O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Página 729

729

DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

Discurso do sr. ministro da marinha proferido na sessão de 23 do corrente, que devia ler-se a pag. 715, col. 2.º

O sr. Ministro da Marinha (José de Mello Gouveia): — A camara ouviu em uma das sessões passadas que me foi lançado um repto pelo illustre deputado, o sr. Latino Coelho, para eu dizer de facto e de direito sobre certos pontos do notavel documento da commissão de fazenda que se discute.

Este repto veiu acompanhado de um problema politico posto ao governo, que o meu collega e amigo o nobre presidente do conselho se julgou obrigado a desenvolver e demonstrar in continente nos seus resultados fínaes.

Era claro que eu não podia fallar em seguida ao sr. presidente do conselho, porque não é costume que dois ministros vão successivamente occupar a attenção da camara, tolhendo a palavra aos oradores inscriptos, e por isso esperei outra opportunidade.

Na sessão seguinte o meu interpellante não póde comparecer n'esta casa, e agora mesmo tenho o desgosto de não o ver presente, mas não posso deixar por mais tempo de cumprir o dever que tenho de responder a s. ex.ª, e de dar satisfação á camara da intimação que perante ella me foi feita.

Hora e meia de satyras amenas, quatro propostas innocentinhas e este questionário por epilogo (mostra o papel), foram a substancia do discurso do meu amigo o sr. Latino Coelho, que eu e a camara ouvimos com aquelle encanto com que costumámos escutar a palavra correcta e o estylo aprimorado do illustre académico.

Sr. presidente, de todos os desagrados da vida politica, o mais vivo e o mais penoso é sem duvida alguma aquelle que nos resulta de nos vermos collocados na obrigação de contrariar e reconvir as pessoas que estimámos, com quem temos vivido e desejámos viver nas mais prezadas relações de reciproca benevolencia. E esse desagrado sobe de ponto para os homens que como eu não têem o habito, nem o gosto, nem a necessidade de se empenharem n'estas pugnas, fazendo-os abominar a fatalidade de circumstancias de ordem politica que lhes impõe um dever e um papel que lhes repugna.

S. ex.ª, quando principiou o seu discurso, tomou todas as precauções para me, fazer sentir que o que tinha a dizer-me em relação ao exercicio do meu cargo não devia ser tomado nem como hostilidade pessoal, nem como quebra das relações de amisade que cultivámos e eu muito prezo.

Agradeço a s. ex.ª esta declaração, que me allivia da grande preocupação que me opprimia, receiando que o que tenho a dizer, em resposta á intimação solemne que o illustre deputado me fez no uso do seu direito parlamentar, fosse tomado como signal de alteração na estima que lhe consagro, na elevada consideração em que tenho os dotes privilegiados do seu espirito, ou por menospreso da amisade que me protesta e de que muito me honro.

Tranquillisa-me esta declaração, porque me garante a inercia, de todas as susceptibilidades que poderiam ser accordadas pelas palavras que temos de trocar n'este deploravel debate, em que muito e muito a meu pezar nos vemos empenhados.

O illustre deputado e meu amigo epilogou o seu discurso com uma terie de perguntas, a que me intimou para responder, já por mim prevenidas e antecipadamente respondidas n'esta casa, como muito bem fez notar o nobre presidente do conselho, e a que responderei de novo agora com a clareza e decisão que s. ex.ª deseja, e a que eu não tenho interesse nem vontade de faltar, por isso mesmo e precisamente porque s. ex.ª parece procurar nas minhas respostas motivo para um rompimento politico, que eu não quero adiar, quer as consequencias me sejam pessoaes, quer sejam communs ao gabinete, desejando sómente que s. ex.ª tique, como fica, com a responsabilidade do successo.

Antes porém de responder, permitta-me a camara que eu levante duas asserções estabelecidas pelo meu illustre amigo no correr do seu discurso, e que não posso deixar caídas no chão sem faltar ao que devo a mim e ao decoro do meu cargo.

Disse s. ex.ª que lamentava ver a ausencia do governo no parecer da commissão de fazenda, e que sentia não ver ali consignada a opinião do responsavel pelos negocios da marinha; e acrescentou que sabia que eu allegava muitas vezes a minha incompetencia em cousas de marinha, mas que esta allegação não me podia absolver da falta de cumprimento do dever no exercicio de um cargo que me prestava a occupar.

Ha aqui duas censuras graves que eu não posso deixar de repellir, incompetencia e abandono do dever, dois mimos da amabilidade de s. ex.ª, presentes de que tem sempre a dispensa bem provida para brindar amigos e conhecidos.

A camara e o paiz teriam rasão de se assustar se eu me desse por confesso de incompetente na gerencia das cousas do meu cargo. Concluiriam naturalmente que os negocios do meu ministerio estavam nas mãos de algum imbecil, apto para ser instrumento cego de odios e malquerenças, de ambições e de favores injustificaveis, e finalmente de todas as desordens a que póde dar a mão quem não tem imputação.

Tranquillise-se porém a camara e o paiz. O ministro da marinha é o contrario de tudo isso. E a resistencia viva aos interesses illegitimos e ás paixões que se desmandam. Não demora nem procura o conselho de ninguem para despachar o que tem de resolver. Ouve quem deve ouvir por dever do officio, e decide pela sua opinião e sem assessor o que tem de decidir. E até agora não me consta que alguem se tenha queixado do modo por que se lhe administra justiça.

Parece me ouvir já o illustre deputado redarguir — não basta isso, é preciso imitar-me, é preciso ser Colbert ou Pombal, ou pelo menos ter a iniciativa rasgada das reformas da illustre commissão de fazenda.

Confesso humildemente que não tenho essas aspirações. Digo mais, não tenho tempo, nem os meios, nem vontade de exigir esses louros. E digo já porque. Quando o governo está desprendido, por um largo interregno parlamentar, das criticas das assembléas legislativas, quando tem na algibeira uma ampla auctorisação legal para reformar tudo e de todo o modo, com a unica clausula de mostrar alguma diminuição de despeza, verdadeira ou simulada, e digo simulada porque não é outra cousa a transferencia de

Página 730

730

DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

encargos de uns para outros orçamentos; quando se tem por apoio a formidável popularidade de um ministro que cobre a responsabilidade de todos os seus collegas e ainda lhe sobra para dar relevo ao valor politico de todos os seus adherentes; quando se tem por applauso a opinião frenetica que se fórma no dia do triumpho de todas as igrejas militantes, que se faz intolerante e não deixa a ninguem a liberdade da analyse e da discussão, é facil, extremamente facil, fazer ou encommendar algumas duzias de reformas e lança-las na folha official. Nem eu sei quem d'esse esforço não seja capaz. E na secretaria de marinha então aonde, graças ao zêlo e boa vontade de muitos governos que já lá vão, ha muitos estudos e trabalhos feitos sobre quasi todos os ramos de serviço d'aquella repartição; não faltam elementos para de um dia para outro se formular em muitos decretos ao serviço de qualquer innovador, que queira fazer a sua reputação de estadista reformador sem o trabalho de se informar e convencer do valor das suas reformas. Mas examinar bem as cousas, vê-las por todos os aspectos, observar as praticas existentes para conhecer aonde falseiam ou favorecem o bom serviço, ouvir as opiniões contradictorias para de tudo formar uma opinião conscienciosa da necessidade ou utilidade da reforma em projecto, trazer ao parlamento idéas assentadas e convictas sobre a conveniencia de qualquer alteração na legislação, defendê-las e fazê-las ahi triumphar é um pouco mais difficil e não se executa com a mesma promptídão com que se promulgam decretos dictatoriaes.

E note a camara que não quero dizer com isto que os illustres reformadores das ultimas datas não tenham a maxima habilidade para conseguirem estas victorias parlamentares. Haveria no meu coração um sentimento de inveja indigno de mim, se eu me recusasse a confessar o que é notorio, e que elles pertencem á pleiade dos mais distinctos parlamentares que transpõem aquelles humbraes; mas é para observar a s. ex.as, que se elles tivessem de submetter as suas obras a estes tramites, provavelmente não teriam tido tempo de fazer vingar a decima parte d'ellas, principalmente se encontrassem um parlamento disposto, como o temos actualmente, caso em que não sei o que elles poderiam conseguir.

De mais, sr. presidente, não será tempo de suspendermos um pouco este prurido de reformar as reformas; de ás levar á quinta essencia; como quem quer volatilisar os serviços, reduzi-los a substancias gazosas e á classe de fluidos imponderáveis? Creio que sim; e senão veja-se a commissão de fazenda de ha dois annos, a que pertenciam alguns dos membros que pertencem á actual, relatando o orçamento de marinha trazido á camara pelo sr. Latino Coelho, dizia: «Fez-se o que se podia fazer no ministerio da marinha, a reducção do pessoal foi levada á ultima expressão, e não parece possivel operar mais diminuições immediatas de despeza nos serviços d'este ministerio».

Succedeu a este o orçamento do sr. Rebello da Silva, que apresentou ainda assim algumas alterações no sentido de diminuição da despeza; e por ultimo, este governo apresenta o seu orçamento, que mais alguma cousa reduz; e sobre todos estes aperfeiçoamentos do orçamento vae o governo á commissão de fazenda revê e examina com ella este documento, concorda em importantes reducções de despeza, reducções temporarias é verdade, que não são economias permanentes, porque é necessario chamar ás cousas pelo seu verdadeiro nome, mas ainda como reducções temporarias, de despezas que não terão probabilidade de se fazer, ou que por este anno se podem dispensar, são reducções valiosas que auxiliam o equilibrio orçamentai; e todavia nada d'isto satisfaz, e não cessam os brados pelas reducções e economias!

Creio sinceramente nas intenções dos illustres membros da commissão, e de todos os representantes do paiz, que se unem com o governo no proposito de empregar todas as diligencias necessarias para sairmos da perigosa situação financeira em que nos achámos, comquanto ella se melhore e seja hoje mais auspiciosa do que era ha mezes; mas tambem creio, e é visivel, que alguns cavalheiros ainda não estão contentes. O que querem não sei. Eu faço justiça ao seu patriotismo e á sua illustração, e tenho como certo que não querem aniquilar os serviços publicos, e desejam antes que sejam melhores e mais baratos; mas emfim todas as cousas têem limites.

Bem sei que o tempo das reformas não pára; que as necessidades sociaes nascem umas das outras; que o tempo transforma tudo; e que é indispensavel de quando em quando vazar em outros moldes os elementos da vida social, quando as primeiras fôrmas se usam e caducam; mas será isto necessario todos os dias?! Será condição indispensavel do progresso da civilisação e da perfectibilidade humana, que a toda a hora se mobilisera as normas administrativas, á sombra das quaes repousa um povo?! Parece-me que não. Não póde ser; e estou intimamente convencido que isto não conduz a nenhum melhoramento, e só nos póde levar á confusão e á anarchia.

O que me parece que nós precisámos sobretudo é de applicar cuidadosamente a nossa attenção para a administração, e aperfeiçoa-la e zelar as suas despezas, observar o modo por que funccionam as leis, remover lhe os embaraços de execução, sem mudar a toda a hora de principios e de systemas de administração, fazer justiça a todos e respeitar os direitos de cada um. Acredite a camara que não ha conveniencias de ordem alguma, que valham o respeito ao direito e á justiça. Conveniências que a justiça desapprova são precarias, são ephemeras, e não podem fundar a fortuna nem dos homens, nem dos povos (apoiados).

Eu não sei, sr. presidente, se por este systema de prestar escrupulosa attenção ás despezas de administração, nós temos ultimamente poupado mais no ministerio da marinha do que valem muitas das economias contidas em muitos decretos reformadores; e ha ainda muito mais que poupar, não nos cansámos de estudar todos os methodos de fornecimentos que podem trazer economia á fazenda.

Não digo isto em meu abono, porque me não quero fazer um merito d'estes factos, e mesmo porque sou pouco sensivel ás vaidades de estadista e ás glorias de uma profissão que não é a minha, e a que seguramente me não hei de dedicar.

Quem me quizer bem basta que diga que sou amigo do meu paiz e que desejo desempenhar o meu dever com consciencia (apoiados). Mas digo-o em abono dos distinctos empregados que servem na direcção de marinha, e que com tanto zêlo e intelligencia desempenham a sua obrigação, e tão conformes acho commigo no empenho de economisar quanto póde ser poupado, nos dispendiosos serviços da marinha.

Digo-o tambem, e devo dize-lo em elogio do illustre deputado e meu amigo o sr. Latino Coelho, que cortou com algumas das suas acertadas providencias muitos arbitrios no ministerio da marinha, regulando differentes despezas com vantagem do thesouro; e foi elle que compoz a direcção de marinha d'aquelle dignissimo pessoal superior, que a constitue e que tão bem serve o seu paiz nos cargos em que se acha.

Esta é a verdade, e é preciso fazer justiça a todos, dizer a verdade inteira, porque se o systema representativo não póde viver com a verdade é melhor acabar com elle (apoiados).

Mas as reformas, as reformas, direis vós, nós queremos em todo o caso alguma cousa que reformar. Sim, nós devemos reformar alguma cousa; temos ainda bastante que aperfeiçoar e que mudar no interesse do bem publico, mas devagar e com cuidado.

Em todos os ministerios ha que fazer n'este sentido, e no meu ha serviços importantes que precisam de melhoramentos, que estão sendo estudados e discutidos pelos competentes, e por mim ou por outro hão de ser aqui trazidos

Página 731

731

DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

devidamente esclarecidos, mas sem pressas, que nenhuma urgencia reclama; e sem vistas de figurar na gazeta como reformador tumultuario, que assignala na administração uma agitação febril, e mostra pela abundancia das obras que não teve tempo de se informar do valor d'ellas.

Correm os tempos para as nações, mudam se os costumes pelo influxo de idéas novas que illuminam os espiritos, e mostram outros horisontes á vida social. Os povos sentem-se presos nos laços de uma legislação anachronica fundada sobre outros factos com a mira era outros destinos; rompem de uma vez essas cadeias, sacodem o seu jugo oppresser, o assentam ao mesmo tempo os preceitos novos que devem reger a nova sociedade. É a revolução.

E a revolução que só os povos sabem e podem fazer, e que não é dado a nenhum partido nem a nenhum grupo de homens improvisar (apoiados).

E a revolução que vem formular em regras praticas de direito o que a rasão publica já tinha apresentado em idéas e em factos. É a revolução que nunca poderá ser substituida pela legislação artistica de nenhum reformador visionário. Não ha revoluções todos os dias. O que é de todos os dias é necessidade de governo normal e regular (apoiados). E este não póde nem deve proceder como a revolução.

Desejo dar conhecimento á camana de uma opinião a respeito de reformas, que estou certo que ella ha de acatar. Ha na Europa um imperio que ainda ha pouco nos deslumbrava pelo fulgor dos maiores esplendores a que tem chegado a civilisação e a prosperidade das sociedades modernas. Havia n'elle e ha ainda felizmente um ancião que, dotado de um espirito excepcionalmente illuminado, debaixo d'aquella superficie de magnificências via os vermes roedores corroendo o corpo social; passou annos nas assembléas populares a notar um por um os erros e faltas que conduziam o imperio ao abysmo. Marcou-lhe passo a passo o itinerario da via dolorosa, em prophecias implacaveis de uma exactidão aterradora! Não o quizeram ouvir! O imperio desabou assombrando o mundo com o baque de uma queda rapida e estrondosa de que não ha exemplo na historia de todas as idades! Foram procurar o propheta para salvar as reliquias do imperio fulminado, lá está elle n'essa lida, Deus lha abençoe! (Apoiados.) Quer a camara saber o que o ancião dizia haverá quatro annos a respeito de reformas, na assembléa franceza, n'uma d'essas lutas gigantes que travou por largos annos com aquelles cegos e aquelles surdos que não quizeram ver nem ouvir? Permitta-me a camara que lhe leia (leu).

«Ainsi ces institutions, qu'on trouve dignes d'être refondues presque en entier, ces institutions ont été faites par Napoléon d'après les idées de la révolution française, et retouchées ensuite par tous les gouvernements qui se sont succédé et qui voulaient en effacer l'empreinte despotique. Eh bien, tout cela est mauvais, je le concède. La révolution française n'a pás eu le sens commun, Napoléon a été un routinier, et nous des ignorants et des paresseux, qui sommes venus nous abriter dans les ruines de son despotisme!...(Interruption.)

«Soit, messieurs, refaisons toutes choses. Je ne le me pas, l'esprit réformateur est un esprit très-louable; cet es prit réformateur doit veiller sans cesse, car il n'y a rien de parfait en ce monde; il doit toujours avoir l'œil ouvert sur la marche des choses, pour modifier les institutions du pays là où elles ont besoin d'être modifiées. Mais, permettez-moi de le dire, le véritable esprit réformateur a des caractères auxquels on peut le reconnaître d'une manière certaine, et qui, pour moi-même, le rendent profondément respectable lorsque je les aperçois.

«Oh! ce véritable esprit réformateur, il ne fait pas bruit de ses œuvres. Il est modeste; il n'annonce pas de grands buts; il n'eBt pas pressé; il prend chaque object l'un après l'autre; il y touche avec une prudence infinie, comme ces ouvriers qui sont appliqués á des mécanismes délicats, et qu'on voit, la loupe á l'œil, lès instruments les plus déliés á la main, travailler avec une attention profonde. Enfin le véritable esprit réformateur n'a pas toujours la même solution, il en a plusieurs: il a toutes celles qui naissent des choses elles-mêmes. Mais, je l'avoue franchement, l'esprit réformateur qui fait bruit de ses œuvres, qui annonce de grands buts, qui est pressé, qui touche á tout á la fois, et qui n'a jamais qu'une seule solution, celle des idées en faveur, celui-là je le suspecte, et n'ai pas toujours dans ses œuvres une confiance entière.»

Acreditaes, senhores, em mr. Thiers? Pois se acreditaes aqui tendes a sua opinião.

Mas vamos ás perguntas que o illustre deputado me fez a honra de me dirigir para entrar n'essa parte da minha replica. Concluo as minhas observações sobre incompetencia notando que s. ex.ª disse a verdade. Eu sou incompetente para ministro de tudo e nomeadamente da marinha. Incompetente como todos os que por este cargo têem passado e, como eu, não são da profissão; comquanto reconheça que todos tinham capacidade infinitamente superior á minha para desempenhar as suas obrigações. Devo porém assegurar á camara e ao illustre deputado, que nunca alleguei nem allegarei jamais essa excepção de incompetencia para deixar de cumprir o meu dever. E s. ex.ª vae ver como e porque o governo não só se sumiu em algumas partes do parecer em discussão, mas até pediu que d'ellas se apagasse a sua sombra.

Sr. presidente, os governos parlamentares são governos de transacção. N'este systema de governação transigem os governos, transigem as maiorias, e transigem as minorias.

Os ministros tendem sempre, por dever do officio e decoro do paiz, a pugnar pelo maior aperfeiçoamento dos serviços publicos que estão sob a sua inspecção, como meio mais efficaz de promover o adiantamento da nação; e as assembléas legislativas, sendo igualmente protectoras e promotoras da civilisação nacional, têem por norma poupar quanto ser possa, sem contrariar o progresso da nação, as faculdades tributarias do paiz, restringindo as despezas publicas aos termos que lhes parecem uteis ou necessarios segundo as indicações do momento e as circumstancias da occasião em que desempenham este direito fundamental da sua representação.

D'aqui resulta algumas vezes um antagonismo salutar, que se resolve convenientemente pela correcção reciproca das mutuas exigencias. Outras vezes não ha accordo possivel, e as soluções são as que todos nós conhecemos.

Isto não póde deixar de ser assim, e é de força que assim seja, porque se os governos houvessem de ter sempre rasão, escusados eram os parlamentos.

Na questão sujeita o governo apresentou o seu orçamento organisado e desenvolvido, em conformidade das íeis que regem os diversos serviços. Este orçamento foi presente á commissão, e foi presente á commissão depois do governo em conferencias com o seu illustre relator ter assentado em todas as reducções temporarias de despeza que era possivel fazerem-se; e logo verá a camara que ellas representavam mais de quatro quintos da importancia total que votou a commissão.

O orçamento foi n'estes termos á commissão, e a commissão votou de accordo com o governo no que este tinha assentado com o illustre relator; mas, alem d'estes pontos em que ella votou de accordo com o governo, foram votados outros que não tinham o assentimento do governo.

Afastou se portanto o ministro, porque desde esse momento nada tinha a fazer com a commissão nem com a camara; tinha unicamente a entender-se com os seus collegas. E isso fez logo e sem hesitação.

Todavia a commissão obteve depois outras informações, reuniram-se lhe os votos de outros membros, e discutiu novamente as questões relativas aos differentes pontos, deu outro caminho ás suas deliberações, e o governo approximou-se outra vez.

Removidos os principaes motivos de antagonismo entre

Página 732

732

DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

a commissão e o governo, ficavam ainda alguns pontos de secundaria importancia, em que eu peta minha parte tinha alguma difficuldade de concordar; todavia, pareceu-me que essas divergencias não davam rasão sufficiente para abrir uma crise politica, e disse á commissão -pois bem, não concordo comvosco n'estes pontos, tomae a responsabilidade das vossas resoluções, a suprema instancia é a camara, e ella deliberará o que entender; mas fazei me o favor de não mencionar o meu accordo n'essas cousas.

Para mim a solução era a mais facil possivel, e quanto ser póde desejada. Os meus collegas bem o sabem. Mas s. ex.as tambem se não acharam de accordo commigo n'esta parte; e eu acabei por me persuadir de que não devia por uma teima indomável suscitar difficuldades ao governo e talvez conflictos com a camara, porque sou deputado e teria de vir aqui explicar-me, perturbando assim o bom ac- cordo que tem existido entre esta e aquelle por bem da causa publica e para a melhor solução das difficuldades da governação que todos reconhecemos e que a todos nos tem imposto uma patriotica abnegação.

Aonde está aqui o desaire para o governo ou para a commissão? Parece-me que seria absolutamente impossivel a existencia de qualquer gabinete quando entre os seus membros se levantasse sobre um ponto qualquer uma dissidencia, esta se resolvesse logo por uma crise, que podia renovar se todos os dias e a todas as horas; d'esta fórma seria de certo impossivel a existencia de qualquer governo; porque é raro achar dois homens, quanto mais seis, de accordo em todos os pontos de administração, e se cada um teimasse no seu modo de ver as questões secundarias do governo a vida ministerial era uma hecatombe diaria de secretarios d'estado.

Disse o illustre deputado — sumiu se o governo no orçamento. Sumiu se é verdade; e sumiu-se pela mesma rasão por que s. ex.ª se sumiu d'esta casa.

S. ex.ª disse-nos aqui, que visto o accordo em que estava o governo e a camara para conduzir os negocios publicos de modo que não se levantassem conflictos, e que pelo concurso de todos os partidos podesse chegar á resolução mais vantajosa que se podesse dar ás questões momentosas de fazenda que preoccupam a opinião, s. ex.°, não tendo fé nos effeitos desta convenção tacita dos partidos, e, n'esta parte, dissentindo da opinião dos seus collega, tinha tomado a resolução de não vir a esta casa desde o principio a sessão, para não arriscar com a ma opposição a harmonia e o que se fundavam tantas esperanças do bem publico.

Sumiu se o illustre deputado d´esta casa por um louvavel motivo de paz o do concordia entre todos os que têem a responsabilidade do governo do paiz; e foi exactamente pelo mesmo fundamento que eu pedi ao illustre relator da commissão, que apagasse a minha sombra n'aquellas partes do orçamento da marinha, que foram vencidas sem o meu accordo. Não me arrependo d'isso; s. ex.ª é que se arrependeu. Reconsiderou aquella sua resolução; e achando perdido o tempo que tinha deixado em ocio a sua actividade politica, veiu traze-la aqui e veiu annuncia-la como uma manifestação, não equivoca, de hostilidade ao ministerio; e eu estimo muito essa resolução, parque me annuncia por uma parte a minha redempção, e por outra faz me crer que tudo está preparado para que esta administração seja substituida de um modo mais util e vantajoso para o paiz, no que todos temos a ganhar.

E para que este desenlace se não demore, vou responder categoricamente ás perguntas do illustre deputado.

A primeira d'ellas refere-se á iniciativa do governo.

«1.ª Se as reformas e reducções propostas no orçamento do ministerio da marinha são da iniciativa do governo. »

Direi quaes são os actos, e não lhes chamarei reformas, chamo lhes tão sómente o que na realidade são — suppressões temporarias de despeza em que concordei previamente

com o illustre relator antes que apresentasse o negocio á commissão.

A suppressão das verbas de despeza relativas ás vacaturas actuais do corpo dos marinheiros da armada, a suppressão das verbas relativas ás vacaturas em todos os ramos de serviço aonde não havia necessidade nem possibilidade de as prover, a diminuição de despeza pelo desarmamento do brigue Pedro Nunes e da corveta D. João I, que eu já tinha mandado recolher ao reino, foi uma diminuição na verba destinada para o carvão de pedra, e que póde ser reduzida em virtude de providencias que tomei, para que as despezas de carvão em commissões extraordinarias que façam os navios das estações ultramarinas em beneficio das colonias, sejam pagas pelos cofres das respectivas provincias. Foi finalmente a transposição do encargo que pesava sobre o ministerio da marinha de uma verba de 30:000$000 réis, despeza que se fazia na metropole por conta das possessões do ultramar, para o cofre das respectivas provincias ultramarinas. E por ultimo a suppressão, ou antes a deducção de parte dos subsidios da navegação africana, que realmente não vale a pena de ser mencionada, porque nós não havemos de lançar no orçamento subsidios para uma navegação ainda não contratada, e eu jos encargos portanto desconhecemos, devendo inscrever ali só o que lá fica, que é a parte correspondente aos mezes que decorrem até ao fim do contrato actual.

Tudo isto que respondo á primeira pergunta de s. ex.ª anda por 239:000$000 réis; e a deducção annunciada n'este documento que se discute chega a duzentos e sessenta e tantos contos. Ha apenas uma differença de trinta e tantos contos na suppressão da despeza votada pela commissão, e a que commigo foi concordada.

Creio que tenho respondido á pergunta relativa á iniciativa do governo.

A segunda pergunta do illustre deputado é como vou ler (leu).

Creio que esta não precisa de resposta especial, porque está implicitamente satisfeita na resposta á pergunta antecedente.

Sobre a extincção do commando geral da armada já tive a honra de me explicar n'esta casa; tornarei a dizer que não é da minha approvação esta resolução.

Não é da minha approvação, porque não creio vantajoso nem conveniente que o commando da armada seja absorvido nas funcções directas e ordinarias do governo. Ha n'isto, a meu ver, não só prejuizo para a unidade do commando e para o vigor da disciplina, mas uma falta de garantia para as corporações da armada.

Acho uma cousa altamente irregular e de grande suspeição juridica, que eu, por exemplo, mande metter em conselho de guerra um official e lhe nomeie eu mesmo os seus juizes.

É preciso que a camara advirta que eu não faço questão do nome de commando geral da armada, mas sim da entidade que deve exercer estas funcções como auctoridade interposta entre o governo e as corporações da armada.

E sou n'esta opinião auctorisado pelo procedimento do meu illustre amigo, o sr. Latino Coelho, que substituiu esta auctoridade pelo intendente do marinha, a quem attribuiu com o commando do pessoal dos navios surtos no Tejo a inspeção do arsenal, procurando a idéa no plano antigo da creação da majoria general, como diz no trecho do seu relatorio do decreto que creou a intendencia de marinha, que vou ler:

«Este pensamento que nos propomos realisar com as modificações que os progressos do tempo reclamam, não é novo; já o formulou em nome de unia grande transformação politica, na concisa carta de lei de 25 de outubro de 1822, um doa nomes mais distinctos da nossa marinha, quando extinguiu os tribunaes do conselho do almirantado e da junta de fazenda de marinha.»

E veja v. ex.ª, eu que cuidava, imitando a s. ex.ª em

Página 733

733

DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

investigações archeologicas, ganhar um triumpho sobre o meu illustre amigo, levando as minhas averiguações até ao seculo XV, para auctorisar uma opinião que elle julgou legitimada com os costumes do principio d'este seculo, fui objecto da espirituosa critica de s. ex.ª por este pobre trabalho de investigações antigas!

Mas ainda tenho mais explicitas opiniões de s, ex.ª a que me soccorra.

S. ex.ª, como disse ha pouco, deixou a commandar a armada de Lisboa o intendente de marinha, accumulando-lhe com este serviço o da inspecção do arsenal, seguindo n'esta reforma o pensamento da creação da majoria general em 1822; mas note a camara que s. ex.ª não ficou muito certo na efficacia desta medida porque no mesmo decreto da creação da intendencia previu logo a necessidade da separação das funcções do commando das da inspecção do arsenal, como vou mostrar pela leitura do respectivo artigo e seu §.

«Art. 2.° Ao intendente de marinha de Lisboa compete no seu departamento o commando das forças navaes, a inspecção superior do arsenal da marinha e dos outros ser viços e estabelecimentos de marinha do teu departamento.

«§ unico. Esta inspecção não lhe pertence quando esteja por lei especial incumbida a outros funccionorios.»

Ora, quer a camara saber como depressa se deu este caso da necessidade de separação das alludidas funcções tão sabiamente previsto pelo illustre ex-ministro? Será o sr. Rebello da Silva que se encarregará de o attestar.

Eu vou ter á camara uma parte do relatorio do decreto em que este notavel homem de letras, que succedeu no ministerio ao sr. Latino Coelho, creou o commando geral da armada, que dá algum dos fundamentos d'esta providencia.

«Os effeitos d'este systema não se demoraram. A falta de um commandante geral da arma, que servisse de intermediario entre a corporação e o ministro, quebrava a unidade da acção e de disciplina, prejudicando a ordem e a regularidade do serviço. A vigilancia, passando do in tendente para o director geral da marinha na secretaria d'estado pelo facto dos navios saírem a foz do Tejo, dividia e afrouxava a auctoridade do commando superior.»

Mais adiante diz o sr. Rebello da Silva:

«Afastando-me em muitas disposições do pensamento que inspirou o decreto de 1868, segui as indicações da experiencia e obedeci ás exigencias do serviço, fundando-me nas rasões que acabo de expor extensamente a vossa Magestade, rasões que têem por base a declaração explicita de muitas auctoridades encarregadas da execução da lei. Foram os factos, e não o desejo de innovar ou de modificar o estado actual, que dictaram as providencias que julgo indispensaveis offerecer á apreciação de vossa Magestade.»

Por estas rasões, decretou o sr. Rebello da Silva a separação dos serviços da inspecção do arsenal e do governo cia armada; separação cuja necessidade o illustre deputado, o sr. Latino Coelho, já tinha previsto, como fiz notar á camara pelo leitura do artigo 2.º do decreto organico da intendencia de marinha.

Em vista d'estes factos, como podia eu concordar na suppressão do commando geral da armada, quando não havia rasão sufficiente para ella? Alem d'isso, eu não me julgava obrigado; por uma simples velleidade de innovador ou de reformador, a fazer voltar as cousas ao estado anterior e a brincar d'este modo com os serviços e com os homens; nem a economia que d'ahi resultava era cousa que justificasse a menor alteração de valor incerto.

Este negocio terá ainda de ser discutido especialmente, e n'essa occasião darei mais desenvolvimento á defeza da minha opinião.

A quarta pergunta é «se o governo aceita as recormmendações que lhe são feitas no relatorio da commissão de fazenda ácerca da repartição de saude, do hospital da marinha, escola naval e cordoaria nacional.

O meu desejo, quando estas idéas appareceram na commissão, foi rejeita-las peremptoriamente; porque é tal a confiança que tenho na sciencia e pratica do meu illustre amigo e ex-ministro, o sr. Latino Coelho, que, quando os factos me não revelam nenhuma imperfeição das suas obras, não penso sequer em que ellas possam ter defeitos. Por isso, fiquei surprehendido quando os amigos de s. ex.ª votaram em massa por estas novas propostas, e mais longe iriam com ellas íe eu lhes não valesse, e desde então reflecti— quando os amigos politicos do illustre ex-ministro contestam a bondade das suas refoirnas e a utilidade dos serviços que elle reformou ou respeitou, pelo menos devo hesitar, e prometter, como prometto, examinar o que ha sobre isto, e o resultado das minhas indagações será trazido ao parlamento com toda a consciencia e verdade (apoiados).

Outra e ultima pergunta: «Se o governo entende que nenhuma das reducções effectivamente propostas pede obstar a que seja desempenhado no anno economico futuro o serviço importantissimo que incumbe principalmente na protecção e defeza das nossas provincias ultramarinas á armada nacional».

Creio que não póde, e que quanto ao numero de praças do corpo de marinheiros fico ainda em situação mais favoravel que aquella em que concordava o sr. Latino Coelho quando consentia na diminuição de 300, porque, posso dispor de maior numero, vista a faculdade que tenho de chamar para as corporações da armada as guarnições dos navios da fiscalisação. E emquanto aos navios tambem não ferá prejudicado o serviço (apoiados).

Digo eu que não ha grande inconveniente, porque todos os navios que estão nas diversas estações, á excepção da canhoneira D. Maria Anna, nenhum tem necessidade de ser rendido no anno economico de que se trata.

Não contámos com embaraço algum, a não proceder de alguma circumstancia eventual que nos possa constranger por um modo imprevisto, mas actualmente não se póde prever.

O sr. Latino Coelho: —Peço a palavra sobre a ordem.

O Orador: — Na ordem das cousas imprevistas, se temos muito a receiar de sinistro, não ternos menos a esperar de favoravel.

Parece me ter respondido ás perguntas do illustre deputado.

Agradeço á camara a attenção com que me escutou.

Tenho concluido.

Vozes: — Muito bem.

(O orador foi comprimentado por muitos srs. deputados.)

Descarregar páginas

Página Inicial Inválida
Página Final Inválida

×