1669
havemos negar um principio de eterna verdade, pelo unico motivo de chegar mais depressa e mais directamente a um fim utilitário? Admitta-se, ás corporações o direito de propriedade, mas ponha-se-lhe a limitação que a carta auctorisa.
Essas leis antigas que s.. ex.ª citou, e que eu já hoje referi, provam o contrario, perfeitamente o contrario, d'aquillo que s. ex.ª quer e quiz.
Pois que fizeram os nossos réis? Prohibiram ás corporações a continuação da adquisição de bens de raiz, é verdade, mas isto mesmo prova claramente que essas corporações, até então, haviam adquirido legalmente. Mandaram depois vender, dentro de anno e dia, os bens adquiridos; mas isto não prova que ellas eram as legitimas proprietárias daquillo que deviam vender?! O fim d'esta lei era que fosse transferido para outros o dominio das propriedades, o que prova que ellas tinham o dominio das propriedades que vendiam. A lei de 1769, auctorisava a consolidação dos dois dominios ás corporações; pois que é isto de consolidar os dominios?! Não é reunir o dominio pleno da propriedade? E que faz a lei ultima de 1866, de que s. ex.ª foi relator? Não auctorisa ella no artigo 10.°, que as corporações consolidem os dois dominios, e que possam adquirir por titulo lucrativo qualquer propriedade? Eu nao posso achar conciliação plausivel entre as opiniões de s. ex.ª e as disposições das leis antigas e as da propria lei de 1866, de que s. ex.ª foi estrénuo defensor. Os espiritos elevados perdem-se ás vezes nas grandes alturas.
Sr. presidente, não se diga que eu confundo a propriedade do direito natural, que é individual, com a propriedade collectiva ou commum, filha da lei civil como é a das corporações e associações, as quaes não sendo anteriores mas filhas da lei civil, podem morrer á voz da lei que as creou. Não confundo estas duas propriedades, mas nem por isso posso annuir a que não seja inviolavel e sagrada, e que a outra não o seja, pelo menos emquanto existirem as corporações e as associações que são filhas da lei. As associações podem morrer, e o estado succeda na herança jacente, mas emquanto viverem pela lei, a sua propriedade é tão legitima e inviolavel como a dos individuos. As leis civis podem fazer-lhes variar o modo de a gosar e de a conservar; podem prohibir-lhes acquisições futuras, mas as suas disposições não podem ter effeitos retroactivos, e por isso não podem tocar na propriedade legalmente adquirida. Diga-se que o estado póde matar as corporações, mas não se diga que póde mata-las para depois as herdar; isto equivaleria a legitimar o roubo, que fosse acompanhado do assassinio.
Eu tenho tanta convicção nas opiniões que defendo, que, confesso a verdade, irritam-se-me os nervos quando vejo que idéas axiomáticas são contradictadas por homens sabios. Isto faz-me caír no desalento.
Mas, sr. presidente, que os nossos réis disputassem com a côrte de Roma, se a propriedade dos bens da igreja pertencia ao estado ou ao papa, como chefe da igreja universal, que se disputasse se pertencia á associação geral da igreja catholica, se a cada igreja nacional ou provincial podia admittir-se, a confusão das idéas politicas e sociaes naquelles tempos era grande; mas que se dispute aqui hoje se as corporações e associações têem direito de propriedade, isso é incrivel, e causa espanto.
Pois que, já o nosso codigo civil não é lei, ou é filha do obscurantismo?! Eu chamarei em meu auxilio o sr. visconde de Seabra, chamarei o sr. ministro da justiça á auctoria, supplicarei e requererei o seu auxilio. O sr. ministro da fazenda tenha paciencia, que eu n'estas materias de justiça invoque o auxilio do ministro da justiça. Prescindirei de todos os argumentos derivados da nossa antiga legislação para provar que as corporações e as associações auctorisadas pelo estado têem e são capazes do direito de propriedade nos bens que possuem; mas não posso prescindir das disposições do codigo civil, lei moderna, organisada á face dos melhores principios da philosophia do direito, e pelos homens mais notaveis do estado. O sr. ministro da justiça foi o seu redactor principal; esta auctoridade não póde ser repellida pelo governo. Cuido que não me engano. E que diz o codigo? No artigo 37.° diz que =a igreja, os municipios, as juntas de parochia, os estabelecimentos de instrucção e beneficencia são havidos, quanto ao exercicio dos direitos civis respectivos, como pessoas moraes =; no artigo 32.° diz que = as pessoas moraes gosam do individualidade juridica =; no artigo 34.° diz que = as corporações que gosam de individualidade juridica podem exercer direitos civis =; no artigo 359.° diz que = um dos direitos que a lei civil reconhece é o direito de apropriação, o qual consiste na faculdade (artigo 366.°) de adquirir tudo o que for conducente á conservação da existencia, e que este direito, considerado objectivamente, é o que se chama propriedade =. Aqui temos pois reconhecido que as corporações, as pessoas moraes, de que trata o codigo, são susceptiveis de poder adquirir, e portanto de ter propriedade.
Não julgo preciso desenvolver mais este argumento; isto é claro. Mas o artigo 35.° do mesmo codigo é mais claro ainda. Diz este artigo que =as associações e corporações perpetuas podem adquirir por titulo gratuito toda e qualquer propriedade, que pelo titulo oneroso só podem adquirir bens immobiliarios em fundos publicos =. Aqui está expressamente reconhecida a capacidade de adquirir e o direito de propriedade. Podem adquirir; se podem adquirir, e porque são capazes da propriedade, as excepções ou limitações fortificam o principio, firmam a regra. Ha cousa mais clara, mais evidente?! Certamente não. Mas o codigo diz ainda mais; chamo a attenção do sr. ministro para o artigo 382.°, diz assim = são particulares as cousas cuja propriedade pertence a pessoas singulares ou collectivos, e de que ninguem póde tirar proveito senão essas pessoas, ou outras com seu consentimento. § unico. O estado, os municipios e as parochias, consideradas como pessoas moraes, são capazes da propriedade particular =.
Ora, sr. presidente, quando apparece um texto de lei tão claro e expresso póde negar-se a evidencia legal? Pois diz a lei que as corporações e associações são capazes do dominio da propriedade particular, e ha de o legislador agora negar um principio de eterna justiça que hontem consignou no codigo civil, e isto para cohonestar a extorsão de alguns contos de réis ás misericordias e aos hospitaes?!! Hontem foram os professores, os juizes e os militares os sacrificados, hoje são os pobres, os desvalidos, os enfermos e os expostos; ao rico, ao avarento, ao agiota, a esses nada se pede. A experiencia será feita nas classes desvalidas como in anima villi!!
A propriedade póde ser perfeita ou imperfeita, singular ou collectiva, mas uma e outra é sempre inviolavel e sagrada, e a auctoridade social, a soberania da nação não tem direito para lhe tocar, excepto no caso da expropriação por utilidade publica. A propriedade que compete ás corporações e associações constitue a propriedade collectiva ou commum ao sentido do artigo 2:168.° do codigo civil; mas é tão sagrada esta propriedade como a de qualquer outra corporação particular ou companhia, por exemplo, como a da companhia das lezirias. O artigo 145.° do codigo civil declarou invariavel toda a propriedade, a industrial e a collectiva, a perfeita e a imperfeita; e fazendo-o assim não se dirigiu aos juizes, aos magistrados para lhes indicar que não deviam auctorisar o roubo, o furto, a invasão contra os particulares, para esses lá estavam as disposições do direito civil; a carta dirigiu-se aos legisladores futuros para lhes indicar e recordar um principio de direito natural, e prohibir-lhes que fizessem leis attentatorias do direito inviolável— a propriedade. Assim pois negando eu a competencia da camara para legislar n'esta materia, vou de harmonia com a carta.
Mas admittindo, por hypothese, que a propriedade das corporações seja imperfeita e não completa, admittindo que as associações só tenham o usufructo, como quer o sr. ministro da fazenda, por ventura esse usufructo, constituindo uma fracção importantissima do direito de propriedade, não é sagrado e inviolavel?!! O artigo 2:188.° do codigo civil diz que sim: «Aquelle a quem pertence qualquer fracção do direito de propriedade gosa, pelo que toca a essa fracção, do direito de propriedade plenamente». Que diz a isto o sr. ministro?!!
Sejamos francos, é preciso prostergar todas as regras do direito para chegarmos ao vosso fim. Ide e caminhae...
Tirae, se precisaes, esse denominado usufructo ás corporações, mas tirae-lhe tudo indemnisando-as. O usufructo nas corporações perpetuas avalua-se em trinta annos se rendimentos pelo artigo 2244.° do codigo civil, dae-lhe esse rendimento total completo, e dae-lh'o religiosamente!!!
Sr. presidente, julgo que tenho sido prolixo e enfadonho na demonstração de proposições, que são do conhecimento de todos (Vozes: — não não). Estou cansado e desejo dizer alguma cousa sobre o lado financeiro da questão. Serei breve por que não tenho estudos nas questões fiscaes. Diz-se que projecto é altamente economico. Isto é falso. As leis de 1861 e 1866 tiveram fins exclusivamente economicos, mas a desamortisação fez-se, decretou-se, e o lado economico desappareceu; hoje é só fiscal. Diz-se que só pretendo amortisar a divida fluctuante. Era um bem, se fosse possivel, mas a divida fluctuante resulta do deficit do 6.000:000$000 réis annuaes. Se se podesse amortisar a actual divida fluctuante, no fim de dois annos teriamos outra vez 12.000:000$000 réis da mesma divida.
Preencham o deficit e a divida fluctuante desapparece. Dizem que o preço das inscripções se elevará nas praças pela amortisação de mais de 40.000:000$000 réis d'esses titulos. E um engano. As inscripções hão de baixar porque cessará na praça o pedido, que até agora tem sido grande, daquelles que iam comprar titulos para pagar os bens comprados no thesouro: agora será o thesouro que exclusivamente os fornecerá, a offerta augmenta e o pedido diminue. Acresce que os futuros compradores venderão na praça as inscripções que já têem, para com o dinheiro realisado irem comprar no thesouro novos titulos, e pagarem os predios comprados. A offerta duplicará, o pedido desapparecerá, e o preço diminuirá, e quem sabe até onde. Vemos pois que a operação produzirá eleitos oppostos aos que se intentam. A operação será óptima para a agiotagem, pessima para o thesouro, calamitosa para as corporações.
Qual é o meio de sairmos dos embaraços em que estamos envolvidos? É difficil, mas eu indico. É cumprir-se o programma da gloriosa revolução de 2 de janeiro. Cumpra-se, e tudo terá remedio. Augmente-se a receita, diminua-se a despeza, introduza-se a moralidade na administração, faça-se a luz, que tal foi o programma do actual governo.
Sr. presidente, nós todos nos lembrámos da impressão, do terror que experimentámos, quando, rasgando-se o véu, que encobria o estado das nossas finanças, percebemos que tinhamos um deficit de 6.000:000$000 réis annuaes! Nós todos ficámos espantados, aterrados, quando soubemos que a nossa divida fluctuante era de 13.000:000$000 réis, a maior parte contrahida entre estrangeiros, aos quaes pagavamos enormissimos juros! Mas tambem nós todos nos recordamos da alegria consoladora que sentimos, quando se nos disse, se nos prometteu, se nos fez conceber a esperança de que por economias, bem entendidas, poderiam ser reguladas as nossas finanças, sem abalo e sem destruição dos meios de subsistencia de cada um.
Um sentimento de alegria patriotica apossou-se de todos os corações ao ouvir estas promessas, estas asserções constituindo o credo de um novo partido e de uma nova era politica. Mas por que fatalidade um mal tão facil de reparar ameaça hoje de morte, de aniquilamento, de destruição, a base da nossa sociedade, o alicerce da nossa constituição — a prosperidade?
Esqueceram-se dos meios propostos, e propõem-se outros não lembrados. Estes são simples e comprehensiveis. Propõe-se despojar as corporações e associações taes como a igreja, a parochia, o municipio, a misericordia e a beneficencia, o hospital das suas propriedades!!! É este um grande plano, um seguro recurso que é proposto pelos regeneradores das nossas finanças. E uma grande obra, um grande plano para a agiotagem, este que se recommenda ao patriotismo d'esta assembléa!! E o confisco que se substitue á bancarota. E a mais iniqua, a mais injusta, a mais desastrosa bancarota que se quer fazer legitimar por uma lei!!!
A propriedade é tão sagrada como a divida publica. Ambas estão igualmente garantidas na constituição. Seria uma vergonha, uma infamia para nós votarmos a bancarota, mas o furto e a espoliação são igualmente infames perante a lei e a moral. Estaremos nós já constituidos na deploravel extremidade de não podermos evitar a bancarota senão pelas confiscações??!!
Disse.
Vozes: — Muito bem, muito bem.
(O orador foi comprimentado por grande numero de srs. deputados.)