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Discurso do sr. deputado Barros e Sá que devia ler-se no Diario n.° 146 de 3 de julho a pag. 1549, col 2.ª, lin. 90

O sr. Barros e Sá: — Sr. presidente, sem preambulos nem rodeios, e em cumprimento das disposições do nosso regimento, vou ler a proposta que desejo submetter á deliberação da camara como questão previa.

É a seguinte:

«Considerando que o homem gosa pela lei natural da faculdade de se apropriar de tudo aquillo que for conducente á conservação e melhoramento da propria condição, e de se associar, pondo em commum os esforços e meios individuaes para qualquer fim que não prejudique os direitos de outros ou da sociedade;

«Considerando que similhantes direitos são originarios e inalienaveis;

«Considerando que o municipio, a parochia, a igreja e estabelecimentos de instrucção, de caridade e de beneficencia são verdadeiras associações reconhecidas pela lei, que* constituem pessoas moraes e gosam de entidade juridica;

«Considerando que taes associações ou corporações têem capacidade para exercer todos os direitos civis, relativos aos seus institutos;

«Considerando que entre esses direitos se comprehende o de adquirir bens immobiliarios, nos termos, fórma e condições prescriptas no artigo 35.° do codigo civil, o que constitue o direito de propriedade;

«Considerando que o direito de propriedade e sagrado e inviolavel, esta garantido, em toda a sua plenitude, pelo artigo 145.° § 21.° da carta constitucional, com a unica excepção da expropriação por utilidade publica, legalmente verificada, e indemnisação previa do seu valor, mas não unicamente do seu rendimento;

«Considerando que o principio constitucional da inviolabilidade comprehende e abrange toda a especie de propriedade — a individual e a commum, — a perfeita e a imperfeita, nos termos dos artigos 2:176.° e 2:188.° do codigo civil;

«Considerando que o projecto em discussão estabelecendo como regra e principio que = o governo venderá por conta do estado os bens e direitos dominicaes cujo dominio e posse pertence á igreja, aos municipios, ás parochias e aos estabelecimentos de caridade, beneficencia e instrucção, prescreve a usurpação e confisco da propriedade de taes corporações, o contraria o preceito do § 21.° do artigo 145.° da carta constitucional;

«Considerando que a subrogação dos bens das indicadas corporações por titulos de divida fundada, ao preço arbitrariamente fixado, sem audiencia dos interessados e legitimos senhores, de 50 por cento não satisfaz á indemnisação completa do valor dos mesmos bens, mas importa a espoliação de quasi a quarta parte do seu valor real;

«Considerando que a inviolabilidade do direito de propriedade constitue garantia constitucional dos direitos civis e politicos dos cidadãos portuguezes;

«Considerando, assim, que o artigo 145.° § 21.º da carta constitucional involve disposição constitucional, nos termos do artigo 144.°; proponho como questões previas que a camara resolva:

«1.° Se o presente projecto de lei carece de seguir os tramites indicados no artigo 140.° da carta constitucional.

«2.° Se a presente camara terá poder e auctoridade para dispensar,. alterar ou revogar o § 21.° do artigo 145.° da carta constitucional da monarchia.»

A moção que acabo de ler, envolve realmente uma questão que é de natureza prévia, ou preliminar. É uma questão de competencia, e taes questões são sempre prévias. N'esta conformidade passo a fundamenta-la. Permitta-me porém V. ex.ª e a camara, que, antes de tudo, recorde as memoraveis palavras proferidas pelo celebre conde de Mirabeau, na assembléa constituinte de França, ao principiar o seu, notavel discurso ácerca dos bens ecclesiasticos:

«Quando, dizia elle, em uma grande assembléa se examina uma grande questão que interessa a grande parte dos seus membros, a uma classe da sociedade inteira, infinitamente respeitavel; quando esta questão diz respeito ás regras inviolaveis da propriedade, ao culto publico, á ordem politica, e aos primeiros fundamentos da ordem social, importa trata-la com religiosa attenção, discuti-la com vagar e sabedoria, para desviar até as suspeitas do erro nas suas mais remotas relações.»

Aquelle notavel orador que, com justa rasão, foi sempre considerado o primeiro das assembléas parlamentares; que com a sua eloquencia dominava as assembléas, e que, só com a sua voz, continha o Ímpeto arrebatador das turbas populares infurecidas, julgou que a materia e assumpto era de tal gravidade, que devia chamar sobre elle toda a attenção da assembléa constituinte; e (agora, sr. presidente, que se trata não unicamente dos bens ecclesiasticos, mas tão bem dos das corporações e associações de caridade e beneficencia, dos das misericordias e hospitaes, dos estabelecimentos de instrucção e dos municipios e parochias, não será para estranhar que eu chame e requeira a mais reflectida attenção do parlamento; que solicite para mim a benevola attenção da camara, perante quem tenho a honra de fallar. Eu serei tão breve, quanto o comporta a gravidade e a extensão do assumpto.

A este projecto tem-se-lhe dado o nome de desamortisação, mas impropriamente. De desamortisação?! Pois ha algum palmo de terra portugueza que esteja amortisada? — A desamortisação pressupõe a amortisação, e esta consiste no vinculo legal que impede, embaraça e prohibe a transmissivilidade, a circulação da propriedade. Á idéa de amortisação corresponde a de inalienavilidade.

Mas quaes são os predios comprehendidos nas provisões d'este projecto, que sendo, hoje inalienaveis ficam sendo alienaveis? Quaes são os bens que estando fóra do commercio até aqui, ficam na giro commercial d'aqui por diante?! Qual é o vinculo legal que impedindo o commercio da propriedade, fica quebrado pelas disposições d'este projecto, quando convertido em lei?! Desejaria que alguem, por informação benevola, indicasse quaes os bens rusticos ou urbanos, quaes os direitos prediaes que entram no commercio por virtude d'este projecto?! Serão os das freiras?! Não; porque esses foram desamortisados pela dei de 4 de 1861. Os dos cabidos, collegiadas, seminarios, igualmente foram desamortisados por aquella lei, e estão já quasi vendidos. Os dos estabelecimentos de caridade, os das confrarias e irmandades, os das misericordias e hospitaes, os das Camaras municipaes e parochias, estão desamortisados pela lei de 22 de julho de 1866. Serão os bens dos parochos) os passaes ecclesiasticos? Estes tambem não, porque a mesma lei de 1866 facultou a sua desamortisação, permitiu a venda, a troca, a inversão. A respeito d'estas tám-

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bem não ha amortisação, não ha inalienavilidade, não ha privação de commercio; finalmente, não ha amortisação, e portanto não póde haver desamortisação.

A terra entre nós é toda livre, não ha um só palmo de terra que seja escrava, que esteja fóra do commercio, que não possa ser comprada, vendida, trocada ou subrogada Como chamaes pois a este projecto de desamortisação? É porque com esta palavra sympathica, synonima de liberdade, quereis encobrir a indole, a natureza e o fim do projecto. O vosso projecto não é de desamortisação, mas de espoliação.

Não desamortisa, porque não põe em circulação predio algum que não o esteja já; mas espolia porque determina que o governo venderá por conta do estado os bens pertencentes ás corporações e associações, e confisca para o estado a propriedade da parochia, do municipio, do hospital, da misericordia e da igreja!! Confisca a roda do exposto, o leito do enfermo, a enxerga do pobre, a do invalido!! Nada lhe escapa!! A pena de confiscação, abolida pela carta, até nos maiores crimes, é ressuscitada pelo projecto contra a virtude da caridade e contra o culto da igreja catholica!!! Aonde vamos chegando?!!

A minha moção toma por base e fundamento a disposição contida no artigo 1.°, emquanto determina que os bens das corporações e associações sejam vendidos por conta do estado; e a do artigo 2.°, emquanto dispõe que as inscripções, representativas do preço da venda, serão entregues ás ditas corporações pelo preço de 50 por cento. Aquelle artigo era da primitiva proposta do governo; este foi introdução nova da commissão.

Se nós, sr. presidente, estivessemos chegados á situação extrema de optar só entre os desastres, entre as calamidades, eu optaria pela proposta do governo, entendida e interpretada pela doutrina do relatorio que a precedeu, até porque me persuado que o sr. presidente do conselho não daria a sua approvação a um projecto espoliador, elle que quando se tratava da lei de 4 de abril, dizia aqui, n'esta casa, que se precisava licença, annuencia e accordo da côrte de Roma para levar ao cabo a desamortisação ecclesiastica. É certo, é verdade, que o pensamento da espoliação apparecendo ou manifestando-se mais claramente no projecto da commissão, o governo lhe dá a sua approvação, e isto faz-me duvidar da sinceridade das intenções da proposta primitiva do governo e das promessas contidas no relatorio, assim como da firmeza das antigas opiniões do sr. presidente do conselho, e faz-me recordar que a opinião do sr. ministro da fazenda é que as corporações e associações não têem propriedade sobre bens de raiz, mas só usufructo.

Não sei, não posso conciliar isto, mas como a contradicção é hoje uma regra de governo fertil em recursos, não me cansarei em procurar a conciliação de opiniões tão oppostas.

Sr. presidente, tenho para mim que tanto o projecto da commissão como a proposta do governo, repugnam com a inviolabilidade do direito de propriedade garantido na carta constitucional, com os dictames da nossa consciencia e ao direito natural, que é anterior e superior á lei escripta.

Decreta-se que o governo venderá por conta do estado os bens das corporações e associações, etc...; isto quer dizer que, logo que o projecto seja convertido em lei, os bens das ditas corporações ficam pertencendo ao estado. Eu só posso vender por minha conta o que é meu. Vender por minha conta o que não é meu, o que é dos outros, é contrasenso. E um absurdo, uma mistura de palavras contradictorias e de idéas repugnantes.

Os bens, as propriedades das misericordias, hospitaes, etc. não podem ser vendidos por conta do estado sem que o estado primeiro os tenha apropriado. A esta apropriação chama-se confisco, espoliação (apoiados). Pois, em boa fé, diga alguem: póde o estado vender por sua conta o que não pertence ao estado?! Se lhe pertence, é porque a houve por algum titulo, e, n'este caso, o titulo é o da espoliação, synonymo de roubo.

Sr. presidente, se estas palavras são fortes, se porventura offendem alguem, eu as retiro, retirando o governo aquell'outras contra que me queixo por conta do estão. Retire o governo essas palavras e eu retiro as apreciações que fiz. O sr. ministro da fazenda consente em retirar as palavras que indico? Não responde, o que equivale a dizer que taes palavras são essenciaes á realisação do pensamento do projecto, o que quer dizer que ha espoliação. Mas a espoliação, não se illudam, não é feita ás corporações, mas ao enfermo, ao pobre, ao velho invalido, ao exposto, é ao municipio e parochia!

Emquanto ao artigo 2.°, em que principio de direito, de rasão e de justiça se funda a commissão para prescrever ás corporações que recebam a 50 por cento as inscripções que valem 39? O agiota vende a 39, o commerciante compra a 39, o rico, que quer fixar os seus capitaes, compra a 39, porque ha de a misericordia e o hospital comprar a 50?! O governo e o thesouro lucrará muito, quasi 25 por cento, mas este lucro é com jactura alheia, com detrimento dos capitaes destinados á sustentação dos pobres e dos enfermos, do culto divino e explendor da religião. Eu dejava ver ampliadas as faculdades municipaes e parochiaes, mas vejo que se lhe nega o direito de propriedade, e portanto o de administração do que é seu, do que possue!!!

Declarado que os bens são vendidos por conta do estado, desejava saber porque regras, porque preceitos se effectuará a venda. Será pelas leis que regulam as vendas dos bens nacionaes ou será pelas regras prescriptas nas leis de 4 de abril e 22 de julho? A logica leva-nos a suppor que serão applicaveis as regras relativas aos bens nacionaes, mas isto equivale a dizer que não serão permittidas mais remissões, e que não haverá mais laudemios. E esta a intenção do governo e da commissão? Diga-se franca e lealmente. Insisto e insistirei até á impertinência para que se ponha bem a claro esta idéa.

Não abandonarei este logar emquanto por parte do governo ou da commissão, não for explicitamente declarado o mysterio que esta envolvido no projecto. A questão das remissões é grave, mas a dos laudemios tambem o é. Informem a camara que esta em duvida, e persuado-me que quem poderia informar-nos era o sr. Faria Guimarães.

O sr. Faria Guimarães: — Ha de ouvir-me, se Deus quizer (riso).

O Orador: — Se eu tiver a felicidade de ouvir as explicações ao sr. ministro da fazenda, estou persuadido que as corporações não têem que receiar, pois logo que se diga que não são alteradas as regras prescriptas para a venda na lei de 1866, logo que se diga que ficam os laudemios dos contratos e que é licito aos foreiros remirem os fóros depois de cada abatimento, logo que isto seja dito claramente pelo sr. ministro, muitas adhesões hão de desapparecer, e o projecto terá muito má sorte.

Sr. presidente, entre os axiomas do mundo moral aquelle que mais propriamente merece este nome, é o do direito de propriedade. Ha seis mil annos, desde que a terra foi dada aos filhos do homem, sempre o axioma do direito da propriedade tem sido a base da sociedade. A idéa da propriedade esta tão ligada á existencia do homem na sociedade, que não é licito, não é permittido conceber a separação. Os romanos não acharam meio melhor de definir a justiça senão comparando-a com o respeito ao direito de propriedade, Constans et perpetua voluntas suum cuinque tribuendi; os scepticos, que o negam, contradizem-se chamando-lhe roubo; contradizem-se, porque a idéa de roubo presuppõe a de propriedade: a quem roubariam os ladrões senão aos proprietarios? A idéa da propriedade é tão brilhante e inevitavel como o sol que inunda os blasphemos da sua luz. Mas o projecto, que discutimos, mandando vender por conta do estão os bens das corporações e associações existentes pela lei; e auctorisando que o governo retenha na sua mão quasi 25 por cento do seu preço, envolve um ataque directo a este direito sagrado, inviolavel. Desde que uma lei determina que o governo venda por conta do estado os bens que não são do estado, só pela rasão de que as necessidades actuaes e urgentes do thesouro reclamam essa medida, não se estabelece o pernicioso principio de que é justo tudo o que é util? Pois a medida de justiça esta na utilidade, ou é a utilidade que deve ser medida pela justiça? Sei muito bem que todos os direitos do homem têem limites na sociedade, e que o direito de propriedade tambem tem os seus. O direito de propriedade tem por limite a utilidade publica, ante a qual deve ceder, e os direitos de terceiro, que são iguaes aos nossos, e ante os quaes deve parar. A utilidade publica póde exigir, umas vezes, o sacrificio inteiro e completo da propriedade; outras vezes póde exigir sómente modificações no modo de usar e gosar d'ella. Estas limitações, que são reconhecidas pela rasão e pela consciencia, estão consignadas na carta constitucional, e constituem direito publico, que nós não podemos alterar, e que serve para fundamentar a minha questão previa. O artigo 145.° § 21.° da carta garante o direito de propriedade, inviolavel e sagrado, mas admitte duas excepções: a de expropriação total e completa por utilidade publica, legalmente verificada, com a indeclinavel condição da indemnisação prévia; e a da limitação e regulamentação do goso e uso da mesma propriedade, quando os costumes publicos, a segurança e a saude dos cidadãos o exigirem, o que se póde verificar a respeito de certas culturas nocivas á saude, de certas industrias incommodas e perigosas, e a respeito ainda da laboração das minas, do desseccamento de pantanos, da cultura das margens dos rios, etc. etc. etc.

São estas as duas limitações que a lei constitucional consente ao direito de propriedade, mas nenhumas outras auctorisa, nem podia auctorisar, porque se o direito de propriedade póde e deve soffrer as limitações reclamadas pelo bem do estado e impostas pela soberania nacional, esta é tambem limitada pelas prescripções do direito natural, que lhe são superiores e anteriores, e não podem ser modificadas ou reformadas pelas constituições dos povos.

N'estes termos, sr. presidente, não contesto aos poderes publicos o direito de decretarem a desamortisação forçada da propriedade, nem nego a utilidade da desamortisação; mas, como no presente projecto, não se trata de desamortisação de propriedade que esteja amortisada, mas de outra cousa muito differente, mui opposta á desamortisação, não posso dar-lhe o meu voto.

O estado tem direito para decretar a desamortisação forçada, porque tem direito para regular o modo de possuir, de adquirir, de conservar a propriedade, assim como o modo e causas por que póde perder-se. O estado tem, mais ainda, o direito para decretar a expropriação por utilidade publica, mas este direito é subordinado á condição da indemnisação previa de todo o valor da propriedade expropriada, e não de outra fórma. Cumpram pois e satisfaçam a esta condição constitucional, á indemnisação previa, que já não poderá ser aqui negado o direito que tenha contestado. Mas estabelecer o principio que o governo póde vender por conta do estão a propriedade alheia, é decretar o confisco em proveito do estado; auctorisar que o governo fique com quasi 25 por cento do preço da venda, é auctorisar por lei a extorsão, que não é outra cousa senão o roubo; é auctorisar ao governo aquillo que se pune nos particulares, a infidelidade do depositario!!! Uma assembléa de legisladores não póde auctorisar isto!! Façam a indemnisação previa, completa e total, e cessarão os nossos clamores, cessarão os gemidos do enfermo e as lagrimas do pobre (apoiados).

Não contesto, repetirei mil vezes, o principio da desamortisação, mas nego que o projecto seja de desamortisação. O que este projecto intenta é auctorisar a espoliação.

Os nossos réis antigos tambem decretaram a desamortisação forçada, mas isso nada prova contra as minhas idéas e opiniões, que tambem quero e approvo a desamortisação; mas quero a desamortisação como a carta a quer, como a prescreveram os nossos antigos réis. Eu sei que, desde o principio da monarchia, desde o Senhor D. Affonso II até ao Senhor Rei D. Diniz, foram prohibidas ás corporações religiosas novas acquisições; sei que desde o Senhor D. Diniz até D. Affonso V se distinguiam as acquisições por titulo oneroso dos feitos pelo lucrativo; que este Rei lhes prohibiu, com severas penas, novas acquisições; e sei que Filippe III, pela lei de 30 de julho de 1611, posterior á compilação das nossas ordenações, determinou que as corporações não podessem reter por mais de anno e dia os bens adquiridos por qualquer titulo; sei que o Senhor D. José acrescentou estas prohibições de amortisação com novas providencias nas leis de 4 de julho de 1768 e de 12 de maio de 1769 e outras; sei que no tempo da Senhora D. Maria I e do Principe regente se publicaram igualmente varias leis tendentes á desamortisação dos bens ecclesiasticos. Mas, que importa tudo isto, ha n'essa legislação alguma lei em que se decretasse que o governo venderia por conta do estão os bens das corporações, e ficasse com todo ou parte do preço?! Pois esta é a questão, e nenhuma outra. Se eu negasse o principio da desamortisação podiam estes exemplos historicos provar alguma cousa contra mim; mas eu não nego o principio, o que nego, o que impugno, aquillo contra que me revolto é contra a espoliação, contra o confisco feito em nome do principio da necessidade actual do thesouro!!

Se eu não visse, sr. presidente, o principio de desamortisação auctorisado na carta constitucional, pouco importavam essas leis, decretos e alvarás da antiga monarchia, porque esses derivavam-se de um principio, que a carta aniquilou, o do dominio eminente do rei sobre toda a propriedade existente no estado, mas a carta reconheceu o principio contrario o do direito de propriedade — inviolável; o ao mesmo tempo que matou a theoria do dominio eminente auctorisou a expropriação por publica utilidade, mas com previa indemnisação. É por este principio de expropriação que eu aceito e approvo o principio de desamortisação, subordinado sempre á indemnisação previa.

Seguindo por este caminho, obtenho duas vantagens de muito valor: a primeira é que encontro a desamortisação auctorisada pelo direito do reino e pelo direito canonico, no qual foram recebidas as constituições de Leão e Antêmio que diziam: Sed et permutáre pincipi licet pro ré majori, miliori, vel aquali, si respublica hoc expocit, et praguematica fórma super hoc praecedent. Este texto, recebido nas decretaes, auctorisa a permutação dos bens da igreja decretada pelo principe, em respeito á utilidade publica, por cousa que seja melhor, maior ou igual; e a esta permutação, é a que nós hoje podemos chamar expropriação por utilidade publica com previa indemnisação do valor. E não será vantajoso encontrar n'esta materia as leis da igreja em harmonia com as nossas instituições, evitando assim conflictos, fazendo desaparecer escrupulos e tranquillisando as consciencias?! Cuido que sim. Além do texto canonico que já indiquei muitos outros ha, que auctorisam a desamortisação, os quaes julgo escusado invocar, mas referirei a resolução do terceiro concilio de Toledo havido no anno de 589, no tempo de Ricardo que prohibiu á igreja adquirisse mais bens sem licença do rei. Aqui acha-se consignada a idéa da prohibição de amortisação, o que importa a idéa opposta da desamortisação. Affonso VI de Leão em 1102 prohibiu tambem que se fizessem doações ou legados á igreja, e o proprio santo rei Fernando, nos fóros de Cordova, Toledo e Caceres, fez a mesma prohibição, e apesar das instancias do papa Gregorio IX, para revogar estas prohibições, o rei negou-se sempre a faze-lo, donde resulta que a idéa de desamortisação não repugna ao direito canonico mas sempre fez parte do direito publico da peninsula hespanica.

A segunda vantagem que disse se obtinha de encarar o principio da expropriação para auctorisar a desamortisação, em harmonia com a carta constitucional, é não nos vermos precisados, de negar o direito de propriedade ás corporações e associações de que trata o projecto. O nobre e sabio relator do projecto, que depois constituiu a lei de 22 de julho de 1868, hoje ministro da fazenda, entendia que para auctorisar a desamortisação era preciso negar o direito de propriedade ás corporações e associações, e dizia que se fosse obrigado a admittir o direito de propriedade ás corporações, lhe falleciam as forças para defender o principio de desamortisação, e que n'este caso a desamortisação seria uma verdadeira espoliação; note-se que a palavra é de s. ex.ª Dizia mais, que a idéa de desamortisação e de propriedade eram inconciliaveis e contradictorias que uma repugnava á outra; que inverter a fórma da propriedade, acrescentava s. ex.ª, era sacrificar a essencia, a qual consistia em cada um poder dispor exclusivamente da substancia da propriedade; finalmente, que para auctorisar a desamortisação era preciso considerar as corporações como meros usufructuarios para deixar só os rendimentos.

Respeito muito, muitissimo, os altos conhecimentos juridicos do nobre ministro da fazenda; quem ha aqui, ou fóra d'aqui, que não lhe faça completa justiça? Ninguem se atreve a duvidar do talento e saber de s. ex.ª, principalmente em materias juridicas; mas s. ex.ª, cuido eu, estava em equivoco. Póde-se reconhecer o direito de propriedade ás corporações e obriga-las ao mesmo tempo a vender ou a desamortisar marchando pelo principio da expropriação por publica utilidade, como fizeram sempre os nossos antigos réis, e como é auctorisado na carta constitucional. Para que

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havemos negar um principio de eterna verdade, pelo unico motivo de chegar mais depressa e mais directamente a um fim utilitário? Admitta-se, ás corporações o direito de propriedade, mas ponha-se-lhe a limitação que a carta auctorisa.

Essas leis antigas que s.. ex.ª citou, e que eu já hoje referi, provam o contrario, perfeitamente o contrario, d'aquillo que s. ex.ª quer e quiz.

Pois que fizeram os nossos réis? Prohibiram ás corporações a continuação da adquisição de bens de raiz, é verdade, mas isto mesmo prova claramente que essas corporações, até então, haviam adquirido legalmente. Mandaram depois vender, dentro de anno e dia, os bens adquiridos; mas isto não prova que ellas eram as legitimas proprietárias daquillo que deviam vender?! O fim d'esta lei era que fosse transferido para outros o dominio das propriedades, o que prova que ellas tinham o dominio das propriedades que vendiam. A lei de 1769, auctorisava a consolidação dos dois dominios ás corporações; pois que é isto de consolidar os dominios?! Não é reunir o dominio pleno da propriedade? E que faz a lei ultima de 1866, de que s. ex.ª foi relator? Não auctorisa ella no artigo 10.°, que as corporações consolidem os dois dominios, e que possam adquirir por titulo lucrativo qualquer propriedade? Eu nao posso achar conciliação plausivel entre as opiniões de s. ex.ª e as disposições das leis antigas e as da propria lei de 1866, de que s. ex.ª foi estrénuo defensor. Os espiritos elevados perdem-se ás vezes nas grandes alturas.

Sr. presidente, não se diga que eu confundo a propriedade do direito natural, que é individual, com a propriedade collectiva ou commum, filha da lei civil como é a das corporações e associações, as quaes não sendo anteriores mas filhas da lei civil, podem morrer á voz da lei que as creou. Não confundo estas duas propriedades, mas nem por isso posso annuir a que não seja inviolavel e sagrada, e que a outra não o seja, pelo menos emquanto existirem as corporações e as associações que são filhas da lei. As associações podem morrer, e o estado succeda na herança jacente, mas emquanto viverem pela lei, a sua propriedade é tão legitima e inviolavel como a dos individuos. As leis civis podem fazer-lhes variar o modo de a gosar e de a conservar; podem prohibir-lhes acquisições futuras, mas as suas disposições não podem ter effeitos retroactivos, e por isso não podem tocar na propriedade legalmente adquirida. Diga-se que o estado póde matar as corporações, mas não se diga que póde mata-las para depois as herdar; isto equivaleria a legitimar o roubo, que fosse acompanhado do assassinio.

Eu tenho tanta convicção nas opiniões que defendo, que, confesso a verdade, irritam-se-me os nervos quando vejo que idéas axiomáticas são contradictadas por homens sabios. Isto faz-me caír no desalento.

Mas, sr. presidente, que os nossos réis disputassem com a côrte de Roma, se a propriedade dos bens da igreja pertencia ao estado ou ao papa, como chefe da igreja universal, que se disputasse se pertencia á associação geral da igreja catholica, se a cada igreja nacional ou provincial podia admittir-se, a confusão das idéas politicas e sociaes naquelles tempos era grande; mas que se dispute aqui hoje se as corporações e associações têem direito de propriedade, isso é incrivel, e causa espanto.

Pois que, já o nosso codigo civil não é lei, ou é filha do obscurantismo?! Eu chamarei em meu auxilio o sr. visconde de Seabra, chamarei o sr. ministro da justiça á auctoria, supplicarei e requererei o seu auxilio. O sr. ministro da fazenda tenha paciencia, que eu n'estas materias de justiça invoque o auxilio do ministro da justiça. Prescindirei de todos os argumentos derivados da nossa antiga legislação para provar que as corporações e as associações auctorisadas pelo estado têem e são capazes do direito de propriedade nos bens que possuem; mas não posso prescindir das disposições do codigo civil, lei moderna, organisada á face dos melhores principios da philosophia do direito, e pelos homens mais notaveis do estado. O sr. ministro da justiça foi o seu redactor principal; esta auctoridade não póde ser repellida pelo governo. Cuido que não me engano. E que diz o codigo? No artigo 37.° diz que =a igreja, os municipios, as juntas de parochia, os estabelecimentos de instrucção e beneficencia são havidos, quanto ao exercicio dos direitos civis respectivos, como pessoas moraes =; no artigo 32.° diz que = as pessoas moraes gosam do individualidade juridica =; no artigo 34.° diz que = as corporações que gosam de individualidade juridica podem exercer direitos civis =; no artigo 359.° diz que = um dos direitos que a lei civil reconhece é o direito de apropriação, o qual consiste na faculdade (artigo 366.°) de adquirir tudo o que for conducente á conservação da existencia, e que este direito, considerado objectivamente, é o que se chama propriedade =. Aqui temos pois reconhecido que as corporações, as pessoas moraes, de que trata o codigo, são susceptiveis de poder adquirir, e portanto de ter propriedade.

Não julgo preciso desenvolver mais este argumento; isto é claro. Mas o artigo 35.° do mesmo codigo é mais claro ainda. Diz este artigo que =as associações e corporações perpetuas podem adquirir por titulo gratuito toda e qualquer propriedade, que pelo titulo oneroso só podem adquirir bens immobiliarios em fundos publicos =. Aqui está expressamente reconhecida a capacidade de adquirir e o direito de propriedade. Podem adquirir; se podem adquirir, e porque são capazes da propriedade, as excepções ou limitações fortificam o principio, firmam a regra. Ha cousa mais clara, mais evidente?! Certamente não. Mas o codigo diz ainda mais; chamo a attenção do sr. ministro para o artigo 382.°, diz assim = são particulares as cousas cuja propriedade pertence a pessoas singulares ou collectivos, e de que ninguem póde tirar proveito senão essas pessoas, ou outras com seu consentimento. § unico. O estado, os municipios e as parochias, consideradas como pessoas moraes, são capazes da propriedade particular =.

Ora, sr. presidente, quando apparece um texto de lei tão claro e expresso póde negar-se a evidencia legal? Pois diz a lei que as corporações e associações são capazes do dominio da propriedade particular, e ha de o legislador agora negar um principio de eterna justiça que hontem consignou no codigo civil, e isto para cohonestar a extorsão de alguns contos de réis ás misericordias e aos hospitaes?!! Hontem foram os professores, os juizes e os militares os sacrificados, hoje são os pobres, os desvalidos, os enfermos e os expostos; ao rico, ao avarento, ao agiota, a esses nada se pede. A experiencia será feita nas classes desvalidas como in anima villi!!

A propriedade póde ser perfeita ou imperfeita, singular ou collectiva, mas uma e outra é sempre inviolavel e sagrada, e a auctoridade social, a soberania da nação não tem direito para lhe tocar, excepto no caso da expropriação por utilidade publica. A propriedade que compete ás corporações e associações constitue a propriedade collectiva ou commum ao sentido do artigo 2:168.° do codigo civil; mas é tão sagrada esta propriedade como a de qualquer outra corporação particular ou companhia, por exemplo, como a da companhia das lezirias. O artigo 145.° do codigo civil declarou invariavel toda a propriedade, a industrial e a collectiva, a perfeita e a imperfeita; e fazendo-o assim não se dirigiu aos juizes, aos magistrados para lhes indicar que não deviam auctorisar o roubo, o furto, a invasão contra os particulares, para esses lá estavam as disposições do direito civil; a carta dirigiu-se aos legisladores futuros para lhes indicar e recordar um principio de direito natural, e prohibir-lhes que fizessem leis attentatorias do direito inviolável— a propriedade. Assim pois negando eu a competencia da camara para legislar n'esta materia, vou de harmonia com a carta.

Mas admittindo, por hypothese, que a propriedade das corporações seja imperfeita e não completa, admittindo que as associações só tenham o usufructo, como quer o sr. ministro da fazenda, por ventura esse usufructo, constituindo uma fracção importantissima do direito de propriedade, não é sagrado e inviolavel?!! O artigo 2:188.° do codigo civil diz que sim: «Aquelle a quem pertence qualquer fracção do direito de propriedade gosa, pelo que toca a essa fracção, do direito de propriedade plenamente». Que diz a isto o sr. ministro?!!

Sejamos francos, é preciso prostergar todas as regras do direito para chegarmos ao vosso fim. Ide e caminhae...

Tirae, se precisaes, esse denominado usufructo ás corporações, mas tirae-lhe tudo indemnisando-as. O usufructo nas corporações perpetuas avalua-se em trinta annos se rendimentos pelo artigo 2244.° do codigo civil, dae-lhe esse rendimento total completo, e dae-lh'o religiosamente!!!

Sr. presidente, julgo que tenho sido prolixo e enfadonho na demonstração de proposições, que são do conhecimento de todos (Vozes: — não não). Estou cansado e desejo dizer alguma cousa sobre o lado financeiro da questão. Serei breve por que não tenho estudos nas questões fiscaes. Diz-se que projecto é altamente economico. Isto é falso. As leis de 1861 e 1866 tiveram fins exclusivamente economicos, mas a desamortisação fez-se, decretou-se, e o lado economico desappareceu; hoje é só fiscal. Diz-se que só pretendo amortisar a divida fluctuante. Era um bem, se fosse possivel, mas a divida fluctuante resulta do deficit do 6.000:000$000 réis annuaes. Se se podesse amortisar a actual divida fluctuante, no fim de dois annos teriamos outra vez 12.000:000$000 réis da mesma divida.

Preencham o deficit e a divida fluctuante desapparece. Dizem que o preço das inscripções se elevará nas praças pela amortisação de mais de 40.000:000$000 réis d'esses titulos. E um engano. As inscripções hão de baixar porque cessará na praça o pedido, que até agora tem sido grande, daquelles que iam comprar titulos para pagar os bens comprados no thesouro: agora será o thesouro que exclusivamente os fornecerá, a offerta augmenta e o pedido diminue. Acresce que os futuros compradores venderão na praça as inscripções que já têem, para com o dinheiro realisado irem comprar no thesouro novos titulos, e pagarem os predios comprados. A offerta duplicará, o pedido desapparecerá, e o preço diminuirá, e quem sabe até onde. Vemos pois que a operação produzirá eleitos oppostos aos que se intentam. A operação será óptima para a agiotagem, pessima para o thesouro, calamitosa para as corporações.

Qual é o meio de sairmos dos embaraços em que estamos envolvidos? É difficil, mas eu indico. É cumprir-se o programma da gloriosa revolução de 2 de janeiro. Cumpra-se, e tudo terá remedio. Augmente-se a receita, diminua-se a despeza, introduza-se a moralidade na administração, faça-se a luz, que tal foi o programma do actual governo.

Sr. presidente, nós todos nos lembrámos da impressão, do terror que experimentámos, quando, rasgando-se o véu, que encobria o estado das nossas finanças, percebemos que tinhamos um deficit de 6.000:000$000 réis annuaes! Nós todos ficámos espantados, aterrados, quando soubemos que a nossa divida fluctuante era de 13.000:000$000 réis, a maior parte contrahida entre estrangeiros, aos quaes pagavamos enormissimos juros! Mas tambem nós todos nos recordamos da alegria consoladora que sentimos, quando se nos disse, se nos prometteu, se nos fez conceber a esperança de que por economias, bem entendidas, poderiam ser reguladas as nossas finanças, sem abalo e sem destruição dos meios de subsistencia de cada um.

Um sentimento de alegria patriotica apossou-se de todos os corações ao ouvir estas promessas, estas asserções constituindo o credo de um novo partido e de uma nova era politica. Mas por que fatalidade um mal tão facil de reparar ameaça hoje de morte, de aniquilamento, de destruição, a base da nossa sociedade, o alicerce da nossa constituição — a prosperidade?

Esqueceram-se dos meios propostos, e propõem-se outros não lembrados. Estes são simples e comprehensiveis. Propõe-se despojar as corporações e associações taes como a igreja, a parochia, o municipio, a misericordia e a beneficencia, o hospital das suas propriedades!!! É este um grande plano, um seguro recurso que é proposto pelos regeneradores das nossas finanças. E uma grande obra, um grande plano para a agiotagem, este que se recommenda ao patriotismo d'esta assembléa!! E o confisco que se substitue á bancarota. E a mais iniqua, a mais injusta, a mais desastrosa bancarota que se quer fazer legitimar por uma lei!!!

A propriedade é tão sagrada como a divida publica. Ambas estão igualmente garantidas na constituição. Seria uma vergonha, uma infamia para nós votarmos a bancarota, mas o furto e a espoliação são igualmente infames perante a lei e a moral. Estaremos nós já constituidos na deploravel extremidade de não podermos evitar a bancarota senão pelas confiscações??!!

Disse.

Vozes: — Muito bem, muito bem.

(O orador foi comprimentado por grande numero de srs. deputados.)

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