1569
emigração, é tudo quanto póde produzir a desgraça dos povos.
A desamortisação da terra tem todas as vantagens em contraposição da mão morta. Toda a medida que alargue a desamortisação que temos votado em diversas sessões legislativas, eu a approvarei com a convicção de que voto um meio para a prosperidade do meu paiz. A desamortisação fomenta os aperfeiçoamentos da industria agricola, promove o maior aproveitamento das terras, os arroteamentos das incultas, e todos esses commettimentos que o pleno direito da propriedade, e o trabalho de homem, podem emprehender á luz vivificadora da liberdade, facilita a transmissão dos bens, a facilidade dos contratos, a consolidação do dominio util com o dominio directo, incita essa luta corajosa com o solo, que faz brotar culturas verdejantes de baldios escalvados.
A população agricola é o nervo do estado na phrase de D. Diniz, o rei lavrador. A desamortisação augmenta o numero dos proprietarios, póde elevar o proletario a cultivador e proprietario, que, rasgando as entranhas da terra com o alvião ou ferro da charrua, póde operar essas maravilhas, filhas do trabalho e fadiga do cultivador, que fazem a prosperidade das nações.
O alargamento da area cultivável, o valor progressivo de terrenos anteriormente amortisados são consequencias da desamortisação. A amortisação e a desamortisação estão julgadas. A terra livre procura o trabalho, utilisa as forças naturaes, promove o proletario a proprietario, é o mais poderoso instrumento da riqueza, da população e do progresso.
Se fosse necessario citar factos para provar o que a rasão nos mostra, e que os theoremas da sciencia nos ensina, eu citaria Utrera, onde a amortisação deixou 12:000 fangas de terrenos baldios; eu citaria Cidade Rodrigo, onde se contavam 110 despovoados e 30:000 fangas de terra inculta; eu citaria Zavala na Extremadura hespanhola; citaria o termo de Badajoz com 26 leguas de comprido sobre 12 de largura de terreno inculto; eu citaria a Catalunha, onde se contavam 228 despovoados, devidos á amortisação da terra; eu citaria esse espectaculo desolador, que a Hespanha mostra, e que fez dizer a um dos seus mais notaveis escriptores, Jovellanos, estas palavras: «Quem ha de ver sem horror e sem lagrimas tão vergonhoso desamparo no meio da pobreza e despovoação de tão pingues territorios?»
A amortisação como que enfeuda um paiz a limitado numero de proprietarios, e que significaria então, quando se não podessem adquirir terrenos, os esforços do trabalho, a accumulação de capitaes, as preoccupações do futuro, os sentimentos de ordem, e os actos de previdencia para aquelles, que querem ser proprietarios, e que a mão morta lhes impede que o sejam? Na Polonia só a nobreza podia possuir terra, e qual foi o resultado? Foi que a classe media se achou impossibilitada de crescer em numero e abastança, foi que as classes ruraes permaneceram sujeitas e annexadas, e a Polonia morreu, e ainda hoje mostra á Europa o corpo ensanguentado e retalhado pelas garras da Russia, sem que as nações europeas lhe possam dar remedio. Se fosse necessario citar factos para provar as vantagens da desamortisação, diria o que se passou em França. Dos 4.720:000 hectares amortisados civilmente na França menos de metade só está aproveitada. Aquella area, que é a undécima parte do territorio francez, segundo a opinião de mr. Du Parynode, está avaliada em 342 francos por hectar, e o seu rendimento em 9 francos. Se compararmos este valor e este rendimento com o valor e renda da terra em França, em termo medio, veremos que onde na França existo a amortisação a terra vale e produz a quarta parte do que vale e produz a terra nas communas onde existe a liberdade e allodialidade da terra.
Eis-aqui os effeitos da mão morta, e da desamortisação. Onde ha amortisação da terra o seu valor é a quarta parte, onde ha a desamortisação o valor da producção da terra é o quadruplo.
Foi por isto, que a Inglaterra, onde a opinião publica é rainha, chamou anno de oiro áquelle, em que o grande ministro William Pitt ordenou a venda forçada dos bens communaes amortisados na grande extensão do 5.000:000 hectares.
O augmento da população agricola foi uma consequencia necessaria, em França, das medidas audazes da revolução franceza, que vendeu os bens nacionaes.
A revolução franceza foi uma convulsão espantosa. D'essa grande revolução data a vida politica e economica das modernas sociedades. A revolução franceza ordenou a venda dos bens nacionaes. Até ahi a nobreza e o clero senhoreavam dois terços do solo francez. O numero dos proprietarios em França era diminuto; meio seculo depois, pouco mais ou menos, em 1 de janeiro de 1851 elevava-se o numero dos proprietarios a 7.846:000. Duas vezes foram submettidos os bens immobiliarios a um recenseamento geral. Eis aqui os resultados:
Em 1821 o valor venal do solo, comprehendendo habitações e officinas era de 39.514.000:000 francos. Em 1 de janeiro de 1851 valia mais 83.744.000:000 francos. O rendimento liquido era em 1821, 1.580.597:000 francos. Em
1 de janeiro de 1851 era de 2.643.366:000 francos, havendo mais a circumstancia, de que o valor da grande propriedade subiu um terço ou um quarto n'este periodo de trinta annos, e o valor e rendimento dos terrenos, embora de inferior qualidade, mas adquiridos quasi exclusivamente por cultivadores, subiu ao quadruplo e ao quintuplo. E isto o que dizia o relator do projecto do codigo rural apresentado ao senado.
Entre nós, e em toda a parte apparecem os mesmos factos. O nosso distincto economista o sr. Marreca n'uma memoria apresentada á academia real das sciencias sobre um projecto de estatistica mostrou, que, com o allivio dos encargos pesados e desiguaes, que opprimiam o nosso solo, junto com uma desaccumulação de propriedade rural, cresceu no continente portuguez não só o alimento vegetal, que d'antes faltava á nossa população, mas nos quatorze annos decorridos desde 1836 a 1851 os cereaes e os legumes cresceram 32 por cento, e na Hespanha com iguaes reformas os cereaes, que n'aquelle paiz escasseavam, augmentaram no periodo de 1837 a 1850, 35 milhões de fangas, ou 40 por cento.
Eis-aqui as vantagens da desamortisação.
Se o projecto se limitasse a tornar extensiva a desamortisação, que está votada por lei, aos bens ainda hoje amorsados, não haveria ninguem n'esta casa que se oppozesse a um tal projecto, porque a desamortisação é o meio mais efficaz que se conhece para augmentar a prosperidade publica. A lei de 1866 desamortisou tudo, e apresentava duas excepções: uma dellas foi os passaes dos parochos, a outra os maninhos e baldios, e creio que, por esquecimento, não foram comprehendidos na lei de 1866 os bens pertencentes aos corpos scientificos. Que resta pois a fazer, se queremos alargar as medidas de amortisação que temos já votado? Introduzir n'uma nova lei as excepções da lei de 1866; isto é, os passaes, os baldios e maninhos, e os bens pertencentes aos corpos scientificos.
Estas excepções devem deixar de o ser. Estes bens devem-se desamortisar. E isso que eu proponho, é isso o que eu sustento, é isso o que votarei. Tudo quanto não for alargar sómente as medidas da amortisação, que já votámos, não o posso aceitar.
O projecto em discussão é mais alguma cousa do que isto, é um expediente financeiro, é um ataque á propriedade das corporações, cujos bens se desamortisam. Isto não voto eu. A desamortisação sim, porque a desamortisação da terra quer dizer prosperidade dos povos, e amortisação esterilização da terra.
Eu podia, porque a materia dá de sobra para se poder discorrer largamente sobre este ponto, eu podia apresentar muitas considerações ainda a favor da desamortisação e contra a amortisação, mas parece-me mesmo extemporaneo; a desamortisação esta sufficientemente defendida, é um principio que entre nós foi adoptado com enthusiasmo e com bastante sentimento, talvez geral, appareceu na lei de 1866 a excepção dos passaes dos parochos, excepção que foi talvez aconselhada pela politica, a dos baldios e dos maninhos, e creio que, por esquecimento, a dos bens pertencentes aos corpos scientificos.
Mas diz o sr. Barros e Sá: «A desamortisação será legitima? Poderemos nós faze-la?» E apresentou isto como questão previa.
Eram bem cabidos estes escrupulos quando em 1861, primeiro se tratou de desamortisação em Portugal; ainda eram bem cabidos em 1866, quando se discutiu o projecto n.° 10 d'aquella legislatura, o qual se converteu na lei de 22 de julho de 1866; mas hoje a que se póde referir esta questão previa? Esta questão previa póde-se referir simplesmente a dois pontos. — Podemos desamortisar os passaes? Podemos desamortisar os baldios e os maninhos? Podémos desamortisar os bens pertencentes ás corporações scientificas? Será legitima esta desamortisação?
O sr. Barros e Sá apresenta esta proposta como uma questão previa. S. ex.ª n'um discurso, em que mais uma vez mostrou os seus vastos conhecimentos juridicos, provou que as corporações, cujos bens se querem desamortisar agora, e que se desamortisaram já pela lei de 22 de julho de 1866, tinham propriedade. Baldado empenho foi o de s. ex.ª se me quiz convencer d'esta verdade. Se s. ex.ª fizesse o seu discurso em 1861, quando primeiro se tratou de desamortisar os bens das corporações religiosas; se o fizesse ainda em 1866, quando se discutiu o projecto n.° 10 daquella legislatura, bem cabida seria a sua argumentação.
Em 1866 um deputado, que era professor de direito na universidade de Coimbra, e que hoje é ministro, sustentou o absurdo juridico de que as corporações de mão morta não tinham o direito de propriedade. Um ministro então, professor tambem da universidade de Coimbra, e que sinto não ver n'esta camara, sustentou a cerebrina opinião de que as corporações de mão morta tinham propriedade, mas só em virtude da lei; que a propriedade d'estas corporações provinha exclusivamente da lei. Se n'essa occasião o sr. Barros e Sá pronunciasse o seu discurso, na parte em que mostra exuberante e evidentemente, que as corporações de mão morta têem propriedade, vinha em occasião propria sustentar uma grande verdade; mas agora? Não me parece que seja bem recebida a argumentação. Em 1866 eu tive occasião de fallar sobre este ponto, e mostrei, como as minhas forças me permittiam, que as corporações, •cujos bens se queriam desamortisar, e se desamortizaram, tinham um direito de propriedade sobre os seus bens, como pessoas juridicas; que esse direito de propriedade era limitado pelo fim a que eram destinados os seus bens, na conformidade dos seus estatutos, compromissos e natureza d'essas sociedades; que a propriedade era um direito preexistente, nunca podia provir da lei; que era um direito absoluto, tinha o seu fundamento na natureza humana, na personalidade, e que a lei não podia mais do que harmonisar o livre exercicio do direito da propriedade com o livre exercicio dos direitos dos outros nas suas respectivas espheras juridicas, que coexistem no estado. As idéas que então sustentei, sustento-as hoje.
No seculo XVI o chanceller Dupprat, revolvendo o pó dos cartorios, sustentou que o rei era senhor de todos os bens.
No seculo XVIII o celebre Paulmy reproduziu a mesma doutrina, e o abjecto adulador soffreu que Luiz XV chamasse machiavelica uma tal opinião. Os encyclopedistas reproduziram a mesma doutrina. Foi n'ella que se firmou a terrivel metaphysica com que em 1789 se sustentou que o estado era senhor de todos os bens. Mirabeau, Chapellier e Thouret foram os formidaveis oradores que sustentaram essa terrivel doutrina que se traduziu na lei de 2 de novembro de 1789 em França. Esta doutrina porém morreu, ninguem hoje se lembra d'ella, senão para lamentar os desvarios de brilhantes talentos. Esqueçamos essa doutrina. A propriedade collectiva resultante da propriedade individual não póde perder a sua natureza pelo facto de se pôr em commum para o cumprimento de um fim racional.
As associações, alavancas poderosas do progresso e da civilisação, têem uma propriedade tão respeitavel como a do individuo. Se a sua entidade juridica depende da lei, a propriedade não póde provir d'ella. A lei só póde regular o exercicio do direito da propriedade, em harmonia com o livre exercicio do direito dos individuos e pessoas moraes coexistentes no estado e com os interesses geraes e bem entendidos da nação. Supponhamos que cinco ou seis individuos, que possuidos de verdades proclamadas por mr. Bonnemère na sua memoria premiada pela academia das sciencias, bellas letras e artes de Besançon, reuniam as suas propriedades para uma exploração agricola. A propriedade individual tornou-se collectiva. Por este facto deixaria esta associação de ter o direito de propriedade? Negou já alguem que as corporações scientificas, industriaes, commerciaes tivessem direito de propriedade? Porque o não terá a igreja, as associações religiosas ou outra qualquer associação, que tenha um fim racional? Diz o sr. Barros e Sá que = se as corporações têem o direito de propriedade, não se podem desamortisar os seus bens, senão por meio da expropriação por utilidade publica, na conformidade das leis. Não é assim. As associações têem o direito de propriedade, e os seus bens podem-se desamortisar sem expropriação. O estado pelo seu direito de inspecção e de tutela póde obrigar as corporações a converterem os seus fundos prediaes em outra riqueza tão segura como a terra, que lhes dê igual ou superior rendimento, que facilite a sua administração, que produza a prosperidade d'essas corporações, em harmonia com a prosperidade publica.
Foi por estes principios que nós desamortisámos todos os bens das corporações tuteladas pelo estado, ficando só por desamortisar os passaes dos parochos, os baldios e maninhos e os bens das corporações scientificas. A questão previa do sr. Barros e Sá limita-se hoje a esta sorte de bens. Poderemos desamortisar os passaes? A igreja póde ter propriedade como qualquer individuo. Isto é um ponto incontroverso. O estado póde regular este direito de propriedade em harmonia com o livre exercicio do direito dos individuos e das associações e com os interesses geraes e bem entendidos da nação. O que é o passal? O passal é o antigo dextro. Os dextros eram os logares juntos das igrejas, que gosavam de alguma immunidade como o direito de asylo. Estes logares tinham limites marcados na lei. Não eram menores de trinta passos nem maiores de sessenta. E assim que se vê no decreto de Nicolau II de 1059.
Permitta-me a camara que lhe leia um pouco de latim barbaro, latim de idade media: «Statuimus ita; ut major ecclesiae per circuitum sexaginta passus habeat, capellae vero, sic e minores ecclesiae trintaginta». Estes dextros gosavam de immunidades, e assim se vê no concilio coyaense de 1050, capitulo 3.° «Intra etiam dextros ecclesiae laici uxorati non habitent, nec jura possideant. No capitulo 12.° do mesmo concilio se lê: Proecipimus ut si quilibet homo pro quoecumque culpa ad ecclesiam confugerit, non sit ausus aliquis eum inde violenter abstrahere, nec persequi intra dextros ecclesia:, qui sunt triginta passus, etc... Estes passos contavam-se dos muros da igreja (extra aedium sacrarum ambitum) como se vê do concilio helenense de 1027 e narbonense de 1054.
Estes terrenos em volta das igrejas na extensão de trinta passos nas igrejas menores e de sessenta passos nas cathedraes eram os passaes.
Em virtude das immunidades inherentes a estes terrenos, que eram como coutos e honras, os padres promoveram que se alargassem os passaes; e como os passaes gosaram sempre entre nós da immunidade de não pagarem alguns onus ou serviço, a igreja tentou alargar os trinta e os sessenta passos, primitivos limites do passal, até onde podesse. D'esta tentativa é documento vivo a ord. do liv. 2.° tit. 22.° em que se definem os passaes, os assentos das igrejas e terrenos conjunctos a ellas, não sendo mais terra que aquella que um lavrador commummente em um anno, no tempo da lavoura, póde lavrar com uma junta de bois para sua lavoura porque de taes assentos e passaes não pagavam tributo.
Era pouco fixa a limitação do passal. Veja a camara como o antigo dextro, o passal primitivo, o verdadeiro passal, se converteu no que nós vemos hoje.
A igreja a principio nada possuia, apenas das oblações de pão, azeite, vinho, incenso, alguns subsidios pecuniarios e das primícias das colheitas, que segundo o costume dos judeus se offereciam á Deus, a igreja sustentava o seu clero, amparava os pobres, as viuvas e os peregrinos. É o que ensina o dr. Aguirre em Hespanha e Walter na Allemanha. O desprezo do mundo era o caracter distinctivo da igreja a principio, naquelles santos tempos, nos primitivos tempos da igreja. Pouco tempo depois a igreja enriqueceu-se de um modo admiravel, parecia querer adquirir o mundo. As leis permittiam-lhe o poder herdar por testamento, por successão de seus clerigos, que, não tendo herdeiros, fallecessem ab intestato; é o que se vê das leis romanas, do codigo theodosiano e do de cânon 15.°, causa 12.ª, questão 1.ª Acresceu que se lhe adjudicaram os bens dos conventiculos dos herejes. A piedade e a politica dos principes veiu engrossar o cabedal da igreja. Enormes doações vieram augmentar os seus bens allodiaes, e não ficou só aqui; os principes e