1573
paiz ou nos mais abalisados praxistas uma definição exacta para mostrar o que é que essas corporações exercem em relação á propriedade que têem na mão.
E um defeito ou excepção do nosso direito civil, do direito positivo, é a negação d'esse direito, e um abuso, para evitar, o qual não ha senão desamortisar, obrigar a vender, para que essas terras venham a ter todos os progressos da cultura, do aperfeiçoamento social para que ellas tenham as consequencias da livre disposição, e todas as outras condições que têem os demais predios, e que são uma fonte efe receita permanente para o governo, e a condição indispensavel de melhoramento d'esses predios.
Muitas vezes o predio que está inculto ou mal cultivado nas mãos de um individuo, passando para a mão de outro, é melhorado, aperfeiçoado, e vae augmentar a riqueza publica.
Assim, defendendo eu o principio da desamortisação, e negando o direito de propriedade a todas as corporações a que este projecto e os anteriores se dirigem, tenho a declarar que entre o direito de desamortisação, como eu o entendo e proponho, e o que tem sido apresentado e seguido, obrigando as corporações a vender e a receber em troca, por um ou outro preço, uns certos papeis que ellas não podem querer, entre estes dois direitos ha um abysmo.
Eu quero o primeiro e não quero o segundo. Combato este e voto contra elle com todas as minhas forças e com a mais plena convicção.
Não sei se esta minha declaração no animo de alguns dos meus collegas, envolverá contradicção com os meus principios politicos, declarando que pertencerei sempre ao partido progressista e liberal, porque tenho ouvido dizer que a desamortisação como tem sido applicada, é dogma do partido liberal. Era melhor que o partido liberal em logar de se attribuir como dogma este principio de desamortisar por esta fórma, fallasse com mais franqueza e declarasse mesmo abertamente, que o principio da desamortisação, como tem sido applicado e vem proposto n'este projecto, em vez de ser maxima ou preceito do codigo do partido liberal, era preceito ou maxima do codigo do partido financeiro, e que tivesse a coragem de dizer que um tal principio se não podia defender nem com o direito, nem com a moral, e que só se podia invocar pela rasão do salus populi suprema lex. Era melhor reconhecer que depois de muitos desperdicios e má administração, depois de grandes faltas e de grandes peccados, como tem acontecido em todas as nações que têem passado do regimem absoluto para o liberal, não veem outra solução senão trocar por titulos da divida publica os bens que se desamortisam. Isto era mais leal, e deixava muito mais á vontade aquelles que se declaram progressistas e liberaes, e que se não querem declarar financeiros por esta fórma.
Portanto, fixo as minhas idéas por esta fórma. Voto a generalidade do projecto, como o direito que o estado e a nação têem de obrigar a desamortisar, sobretudo os bens que não são possuidos por particulares, ou por associações que não têem os mesmos direitos que têem os individuos; mas não, voto por fórma alguma que o governo se aproveite do producto d'estes bens, para os trocar por papeis, sejam de que natureza for. Quero deixar aos desamortisados a escolha de titulos ou valores por que hão de trocar as propriedades, que se obrigam a vender.
A moção de ordem que mandei para a mesa estabelece a exclusão dos passaes da lei da desamortisação. E a exclusão dos passaes não a quero porque julgue que o governo ou a nação não póde fazer desamortisar esses bens, por isso que reconheço tanto direito na nação para obrigar a vender estes bens, como quaesquer outros das corporações que não têem a propriedade d'elles; mas a unica rasão por que quero a exclusão, é porque tendo ás circumstancias politicas do paiz; e digo politicas, porque a politica é a sciencia de governar bem e de fazer a felicidade de uma nação: é uma sciencia mais pratica do que theorica, e é necessario que se attenda bem ás condições dos povos a que se querem applicar as leis, antes de lh'as applicar, porque leis boas e incontestaveis na theoria, podem produzir pessimos effeitos na pratica, quando applicadas a um paiz que não está ainda preparado para as receber.
Esta lição deu-a ainda o paiz ha bem pouco tempo, conspirando-se abertamente contra leis que tinham muitas cousas boas, muitas cousas que constituem uma necessidade impreterivel de execução n'este paiz, e conspirando-se contra estas cousas boas por causa de outras más, mas guerreando tudo, porque não comprehendia ainda o que era bom, o que devia ser aproveitado, e o que devia ser excluido daquellas leis, que elle combatia em globo, sem respeitar o que ellas tinham de bom.
Fallemos francamente. Em geral, no nosso povo, não ha ainda a instrucção necessaria para que elle comprehenda perfeitamente que a desamortisação dos passaes não tem nada com as leis da igreja, nem offende em nada os interesses da religião; e emquanto a nação não estiver sufficientemente esclarecida para comprehender esta condição primeira, para comprehender que esta lei não offende o que a nação mais preza, que é a sua religião, emquanto não está preparada para isto, não se lhe póde impor á força uma lei que vae alterar os seus habitos, costumes, e até prejuizos, mas que em todo o caso provoca uma resistencia, uma reluctancia muito difficil de vencer, e muito prejudicial ao paiz.
Mas ha ainda outro lado para considerar a questão. E n'esta parte eu declaro previamente á camara que não desejo nem pretendo que os illustres deputados, membros d'esta casa, participem das minhas idéas; quero apenas declarar quaes ellas são, e reservar para mim o direito de pensar, assim como o reconheço e respeito tambem em todos os meus collegas.
Desenganamo-nos. O que leva o clero portuguez e o povo em geral a combater a desamortisação e a subrogação forçada por inscripções é a falta de confiança nas mesmas inscripções; desconfiança que muita gente tem, e que eu, emquanto a mim, talvez até exagere um pouco.
Esta desconfiança vem de se notar uma differença permanente e crescente entre a nossa receita e a nossa despeza, de se ver que nós vamos tendo um deficit cada anno mais augmentado, e por consequencia não é necessario ser dotado de um dom prophetico para reconhecer que, continuando-se n'este caminho, ha de chegar uma epocha em que ha da ser impossivel salvar a divida do paiz, porque a receita não augmenta, e a despeza cresce todos os annos.
Eu não desenvolverei mais as minhas idéas a este respeito, mas direi apenas que, desde que a desamortisação se tem implantado n'este paiz, impondo-se a subrogação forçada dos bens desamortisados por titulos de divida publica, aquella desconfiança augmentou, porque a desamortisação, que ao principio foi proposta muito limitadamente, tem-se estendido successivamente, tem-se ampliado a mais bens, e não é facil prover onde o espirito de desamortisação irá chegar, se por acaso elle continuar na progressão em que tem estado constantemente desde certos annos para cá.
E eu admitto mesmo e reconheço em todos o direito de confiarem muito nas inscripções d'este paiz ou de outro qualquer, assim como quero para mim o direito de não confiar nas inscripções de paiz nenhum; e portanto, se eu reconheço e admitto o direito de cada um confiar muito nas inscripções, respeito ainda mais esse direito naquelles que empregam os seus capitaes em inscripções d'este paiz ou de outro qualquer. Respeito a confiança que elles têem, e não posso admirar-me de que os beneficios que elles tomam para si os queiram dar tambem ás corporações; por isso, se eu quizesse inscripções, não tinha duvida alguma em votar uma lei que desse inscripções ás corporações, mas se eu não as quero para mim, não as posso dar a ninguem.
Eu prevejo que se continuarmos a ampliar a desamortisação como a temos ampliado successivamente até ao dia de hoje, votado este projecto, desamortisados estes bens, havemos de applicar a palavra e o systema tambem aos bens moveis e aos fundos das irmandades e confrarias, e desamortisados, receio muito que a desamortisação se estenda aos nossos bens particulares; receio que ámanhã venha um governo que queira, por mera curiosidade, saber quanto dá um predio na praça publica, e diga ao proprietario: «O senhor tem um predio que ha muito tempo não vae á praça, desejava saber quanto elle vale, por isso é necessario desamortisa-lo, pago-lhe o seu valor em inscripções, e venha o preço da propriedade para mim». Contra isto é que eu me acautelo, e quero-me acautelar com muita antecedencia. Confesso que não estamos ainda n'estas circumstancias, porque a desamortisação ainda cá não chegou, e não fallo porque ella chegasse, fallo porque desejo tomar as minhas cautelas para que ella nunca chegue, e para que eu fique sempre habilitado a combater toda a tentativa que ella faça para cá chegar.
Portanto, sr. presidente, a primeira cousa a fazer é procurar o meio de dar aos nossos papeis o valor que elles devem ter, e para isso a primeira condição é pôr termo ás emissões e abandonar o systema de fazer dinheiro com papeis. Desde que, por meio de todas as reformas justas e economicas possiveis, e pela exploração dos immensos recursos do paiz conseguirmos restabelecer o equilibrio entre a receita e a despeza da nação, a desconfiança tomar-se-ha em confiança, e os nossos titulos, longe de se depreciarem, serão avidamente procurados. A unica condição do credito nacional é a prosperidade das finanças na nação. Trabalhemos para isso e veremos os capitaes affluirem aos nossos titulos de divida publica, cessarem todas as repugnancias e todos os receios, e estabelecer-se o credito nas mais prosperas condições.
Termino aqui.
Vozes: — Muito bem, muito bem.
(O orador foi comprimentado pelo sr. ministro da fazenda e por varios srs. deputados.)
Leu-se na mesa a seguinte
Proposta
Proponho que da desamortisação fiquem excluidos os passaes, e que o preço da venda dos outros bens seja empregado livremente pelos possuidores em titulos da sua escolha, salva a fiscalisação do governo, segundo as leis. = Ferreira de Mello = A. J. de Seixas.
Foi admittida.
O sr. Presidente: — Tem a palavra o sr. Van-Zeller.
O sr. Van-Zeller: — Cedo agora da palavra, e peço a v. ex.ª que me mantenha a inscripção, porque não posso deixar de fallar n'esta questão, uma vez que assignei o parecer da commissão de administração publica como relator.
Não tive pretensão de pedir á camara que me concedesse a palavra como relator em qualquer occasião, porque sei que não é das praxes nem do estylo d'esta casa, e foi o motivo por que me inscrevi sobre a ordem. Ha um só relator, e é o da commissão de fazenda. Peço pois a v. ex.ª me reserve a palavra, se isso é permittido pelo regimento.
O sr. Presidente: — Pela ordem da inscripção pertence agora a palavra ao sr. deputado, mas como s. ex.ª cede da palavra, tem-na o sr. Araujo Queiroz.
O sr. Araujo Queiroz: — Não admitto que haja duvida sobre se os bens das corporações de máo morta devem ser desamortisados.
Assim foi recebido desde o principio da monarchia, e no reinado de El-Rei D. Diniz se prohibiu que os corpos de mão morta podessem adquirir bens alguns.
Isto repetiu-se por vezes successivas, e ultimamente no tempo de D. João VI, pelo alvará de 1806 se ordenou ás
misericordias que alienassem os bens que tinham adquirido desde certa epocha.
Todos nós sabemos que o mandar-se que se alienassem aquelles bens que se tinham adquirido contra a expressa determinação da lei, era por venda voluntaria em moeda valiosa, isto é, por valor intrinseco.
E tanto estes bens como todos os outros que constituiam a dotação de todos estes corpos moraes eram alienados, só por principio do interesse da sociedade, porque tenho como principio invariavel que aquillo que uma vez foi meu, sem facto meu, não póde deixar de ser meu, excepto pelo maior interesse da sociedade. Esta é a justiça universal.
Por consequencia aquelles bens foram desamortisados por utilidade geral; mas esta utilidade geral nunca póde encontrar ou infringir a justiça universal; isto é, fazer-se-lhe um preço elevado e exagerado, a que na realidade não podem chegar.
Ora, se houvesse uma garantia com que de futuro essas corporações podessem contar com a permanencia de todos esses meios, eu não teria a menor duvida em votar isto; mas emquanto eu não vir o credito estabelecido, ou que se façam economias de ordem tal que façam encontro ao deficit que se apresenta no orçamento, eu não vejo que possam estar tranquillisadas essas corporações.
Eu fallo especialmente dos bens das misericordias, hospitaes e tambem dos passaes, porque estes estabelecimentos datam de uma era bastante antiga, e nós por elles somos conhecidos e apreciados no resto da Europa pelo espirito de caridade que existe no animo dos portuguezes, dotando generosamente estes estabelecimentos que mantêem a humanidade enferma.
Ora, os bens que estes estabelecimentos têem não lhes chegam, porque pagam avultadíssimas despezas com os hospitaes que todos esses estabelecimentos têem, e por consequencia se forem privados d'elles ainda ficam com muito menos para poderem supprir ás despezas de tão valiosos encargos.
Ora, se com os rendimentos que actualmente têem d'estes bens não podem acudir a todas as despezas, mesmo estando -na posse dos bens, muito menos o hão de fazer tirando-lhes esses e substituindo-os por titulos que forçosamente hão de ser depreciados, porque isto é da natureza da moeda papel, a qual se se eleva de preço no mercado é porque se fazem grandes sacrificios para ella assim se elevar, mas desde logo começa a declinar.
Não posso portanto admittir que se tire ás misericordias e outros estabelecimentos os seus rendimentos, emquanto por outro lado eu não vir que o credito publico melhora, que a receita é igual á despeza, e que finalmente estes estabelecimentos têem uma garantia solida de meios de subsistencia com que possam contar no futuro.
Emquanto aos passaes é claro que esta medida, pelo lado financeiro, traz grandes vantagens á primeira vista, porque a venda dos passaes dará um augmento consideravel na receita publica pelo imposto de registo, pelos direitos de transmissão de propriedade, pelo augmento de producção e pelo augmento da decima de repartição. Tudo isto avultará muito no orçamento. Mas o que é verdade é que estas vantagens não são tão grandes como a muita gente se afigura, porque creia a camara que a maior parte dos passaes estão bem tratados e produzem geralmente o maximo que é possivel produzirem. Os parochos em geral são bons agricultores, e por consequencia temos que, pelo lado economico não se melhora muito, e pelo lado financeiro é uma violencia que vamos fazer obrigar os parochos a receberem um papel que ámanhã poderá não valer cousa alguma.
E de mais emquanto a religião catholica for religião official, temos de sustentar o clero, os servidores da igreja, que tambem o são portanto do estado. Mais um argumento pois com que se combate esta medida, que longe de tender áquelle fim, tende a diminuir o rendimento do clero, e por consequencia a exigir do paiz novos impostos.
Acresce finalmente a todos estes inconvenientes a circumstancia da agitação por que este paiz tem ultimamente passado, e portanto não acho muito politico que n'este momento se queira ir alimentar esta agitação por meio de uma lei que ha de levantar forçosamente no paiz serias reluctancias e difficuldades.
Admittindo portanto o principio da desamortisação, nego comtudo o meio violento e espoliador adoptado no projecto em discussão, compellindo a vender os seus possuidores aquelles bens que têem como seus, e que se lhes dê por troca titulos a 50 por cento, não estando elles assim no mercado, e sendo por consequencia um preço figurado e fictício, o qual entendo que vae ferir todas as leis da justiça.
Entendo igualmente que esta medida é inopportuna, e entendo que especialmente as misericordias soffrem com ella um prejuizo que nunca será remediado, porque, se as misericordias hoje estão reduzidas a muito pouco, ficarão com muito menos, e d'ahi resultar periga a humanidade, se o governo não acudir a esses estabelecimentos; mas, se o governo não tem meios de satisfazer aos seus credores, muito menos os póde ter para satisfazer a essas necessidades que havemos de reconhecer que são importantissimas.
Estes são os motivos por que assignei o parecer com declarações na commissão de administração, e nunca me conformarei com outro modo de pensar.
O sr. Mardel (sobre a ordem): — Sr. presidente, a hora está adiantada e eu não desejo levar a palavra para casa. Por uso resumirei as observações que tenho a apresentar para justificar o meu voto contra o actual projecto.
Para satisfazer ás prescripções do regimento mandarei a minha moção de ordem e começo por encarar a questão pelo lado financeiro, por isso que, tendo-a os illustres oradores que me precederam encarado pelo lado do direito, esse ponto está sufficientemente discutido.