1686
Fiquei surprehendido, sr. presidente, com este capitulo de accusação contra o projecto de lei que se discute. Antes porém de mostrar o nenhum fundamento para tal accusação, antes de refutar tão exageradas asserções, devo declarar a Vi ex.ª e á camara que, tomando a palavra a favor da desamortisação dos passaes, eu não quero por principio nenhum que se supponha que pretendo prejudicar os interesses dos ecclesiasticos que representaram contra esta mesma lei, não quero por modo algum que se supponha que pretendo contrariar direitos que a igreja tenha; não quero, repito, que se supponha nada d'isso, porque se o fizesse seria contra o meu caracter, porque pertenço e prezo-me do pertencer á classe ecclesiastica, e seria contra a minha convicção, porque sou tambem catholico apostolico romano.
Diz-se que a desamortisação dos bens ecclesiasticos com relação aos passaes é contra o direito natural. Eu não sei, sr. presidente, aonde se foi buscar fundamento para dizer que a desamortisação d'estes bens é contra o direito natural, contra os principios absolutos do justo.
Todo o mundo sabe que o estado é uma entidade moral, que tem obrigação de empregar todos os meios que julgar convenientes para a satisfação plena de todo o genero de necessidades que o mesmo estado tem: Entre essas necessidades estão as necessidades moraes, e no grupo d'estas estão as necessidades religiosas. E se todo e qualquer governo, todo e qualquer estado tem obrigação estricta e severa de satisfazer a todas as necessidades religiosas, o governo portuguez, desde o momento que está escripto na carta que a religião catholica, apostolica romana é a religião do estado, tem obrigação estricta e severa de subsidiar essa religião, provendo á sustentação do culto e do clero.
Mas note se bem, que, tendo o estado estricta obrigação de satisfazer a estas necessidades, tambem está no seu direito, nem póde deixar de o estar, aliás não se comprehende, de modificar os meios de satisfazer a essas necessidades como muito bom entender e lhe aprouver (apoiados).
Ora, a desamortisação dos passaes não é senão uma substituição ou permuta dos bens que até hoje o estado tinha destinado para a sustentação do culto ou, para melhor dizer, para subsidiar a religião em todas as suas manifestações e necessidades; esses bens são substituidos por inscripções da junta do credito publico.
O estado, n'este caso, está como o particular, a quem inatamente pertence o direito de propriedade, e que póde, como muito bem lhe aprouver, empregar este ou aquelle meio, esta ou aquella condição para a realisação do fim que pela sua natureza tem obrigação e direito de conseguir.
E note v. ex.ª, note a camara, e notem os meus collegas que estranharam que eu assignasse sem declarações, que, se os bens que até agora eram passaes da igreja, não podem ser desamortisados, não podem alienar-se pelo simples facto de parto do seu rendimento ser para a sustentação da religião, então Portugal está todo amortisado. Ninguem desconhece que em todas as parochias, onde não ha passaes, onde não ha bens para a sustentação do culto e do clero, ha a simples derrama para a congrua, que não é senão parte do rendimento dos bens que cada particular possue. Se pois estão amortisados os bens que constituem a dotação do culto e do clero, Portugal está na maxima parte amortisado. Isto é absurdo, sr. presidente; isto não póde ser.
E não se diga que a desamortisação dos passaes é attentatoria de todos os direitos civis e ecclesiasticos que vigoram entre nós desde a fundação da monarchia.
Não quero nem devo fazer aqui uma prelecção sobre historia, mas v. ex.ª sabe, e sabe a camara toda, que o principio de desamortisação vigora entre nós desde o começo da monarchia.
Tenho aqui ouvido fallar de D. Affonso II, de D. Diniz, de D. Filippe III; mas o principio da desamortisação é mais antiga; o principio da desamortisação está estabeleci do entre nós desde o começo da monarchia. Encontramos um facto na vida de D. Affonso Henriques, que prova isto á evidencia. Sabe v. ex.ª qual é? E que quando D. Affonso Henriques beneficiou o mosteiro de S. Salvador de Castro, beneficiou-o (noto a camara) dando licença ao seu abbade para poder adquirir bens immoveis e herdar. Por consequencia se não fosse esta permissão ou licença que lhe deu D. Affonso Henriques então, não os podia adquirir.
É isto, o que se diz propriedade, sr. presidente, que se não póde adquirir sem licença do poder ou sem permissão do Rei.
Licença identica foi concedida por D. Sancho II ao mosteiro de Alcobaça.
Um illustre cavalheiro, que respeito, muito, o sr. Barros e Sá, disse:
«A prova de que tinham propriedades, é que El-Rei o Senhor D. Diniz effectivamente ordenou que se alienassem intra annum, os bens que se tivessem adquirido.»
Mas s. ex.ª cortou sem querer uma expressão, que certamente o podia elucidar melhor a esse respeito. Quando se ordenou que fossem alienados intra annum os bens que se tivessem adquirido, a referencia era áquelles que se tinham adquirido illegalmente; isto é, sem consentimento do poder (apoiados).
A legislação de que se tem fallado, a respeito dos direitos civis e ecclesiasticos desde o fundação da monarchia, só póde ter por fundamento a imaginação dos meus collegas, que muito respeito, ou a má interpretação dos factos.
Se a camara me permitte leio a determinação de El-Rei D. Diniz. Diz assim: V
«E esses herdamentos e possessões fiquem sempre a taes pessoas, que nem sejam frades, nem freiras; nem donas de ordens. E os que nem houverem herdeiros lidemos ordenem e fação dos seus herdamentos e possessões aquelle, que tiverem por bem em tal guiza, e em tal maneira, que depois nem fiquem esses herdamentos as ordens».
Esta determinação é da lei de 12 de março de 1291. E antes d'esta havia já outra, no mesmo sentido, promulgada em 10 de julho de 1286.
E note a camara que o mesmo D. Diniz, no artigo 2.° da sua segunda concordancia com os prelados, prohibe o seguinte:
«Que não comprem possessões algumas, guardando-se a este respeito a lei de seu avô D. Affonso.»
E quer V. ex.ª saber, sr. presidente, qual era a lei de D. Affonso, a que D. Diniz se referia? Resa ella assim:
«... porque poderião comprar tantas heranças, que fosse em grande prejuizo da corôa e vassallos d'ella: pelo que julgarão, que nenhuma casa de religiosos possa comprar herança alguma sem licença de El-Rei... E tirâmos poder aos clerigos de comprar heranças, e fazer dellas o que lhe aprouver.»
Este accordo foi tomado nas côrte de Coimbra em 1211. Mais tarde, sr. presidente, D. Fernando I, nas côrtes de Lisboa em 1371, ampliou aquella lei a todas as acquisições por qualquer titulo, por causa dos abusos que se faziam da interpretação das leis, o que não é para aqui agora relatar.
Essas providencias foram depois incertas na ordenação manuelina (livro 2.°, titulo 8.°), d'onde passaram para a ordenação filippina (livro 2.°, titulo 18.°), e que, declaradas e explicadas por Filippe III na estravagante de 30 de julho de 1611, e por D. José na lei do 4 de julho de 1768, e alvará de 12 de maio e lei de 9 de setembro de 1769, § 10.º, compozeram a nossa legislação sobre amortisação, mandadas applicar a todas as corporações ecclesiasticas, estabelecimentos pios, confrarias, etc... pela citada lei de 4 de julho de 1768, §§ 1.° e 2.°, alvará de 20 de julho de 1769 o provisão de 14 de maio de 1770.
Se os meus illustres collegas examinassem e attendessem bem a essas leis, de certo não diriam que a desamortisação de que se trata era attentatoria de todos os direitos civis que vigoram desde o principio da monarchia.
A questão é que a propriedade ecclesiastica não so podia adquirir sem licença do Rei; e não consta que os direitos que se allegam desde o principio da monarchia estejam em desharmonia com estes documentos que se encontram.
«A lei não creou a propriedade, disse, e muito bem, o sr. ministro, a propriedade é mais antiga do que a lei, que não podia crear o direito absoluto da propriedade. A lei que determinou uma corta propriedade póde tambem alterar essa determinação. E como é que vem dizer-se — isto é attentatorio de todos os direitos civis e ecclesiasticos?!»
Ha aqui uma asserção que não posso deixar passar sem correctivo.
Então porque uma lei determinou uma cousa, o poder legislativo não está no direito de poder alterar e modificar essa lei como muito bem entender?! Porque por alguma legislação antiga, por alguma concessão regia, ou por qualquer outro motivo se concedeu isso á igreja, segue-se que nós o poder legislativo não podemos sobre qualquer ponto alterar essa legislação, havendo de mais a mais conveniencia publica n'essa alteração?!
Sr. presidente, uma tal argumentação não póde tomar-se a serio.
Em vista pois do nosso direito civil em vigor desde o principio da monarchia, a igreja portugueza não póde ter propriedades no sentido que alguns illustres deputados desejam; e aquelles que consideram o principio da desamortisação como injusto, não têem, não podem ter fundamento algum.
Vê-se portanto do que deixo dito que a lei da desamortisação que se discute, nem é contraria aos principios absolutos do justo, nem á nossa antiga legislação civil em uso e vigor desde o principio da monarchia.
Eu logo hei de mostrar tambem que não é contraria á nossa legislação moderna, e precisamente ao nosso codigo civil, como parece pretenderem os meus nobres collegas, os srs. Mártens Ferrão e Barros o Sá.
Mas diz-se que = o artigo é attentatorio de todos os direitos da igreja =.
Bem sei a que isto se refere; mas eu já disse, e vou mostrar que nem mesmo a legislação da igreja se oppõe de fórma alguma a este principio.
Eu dói-me ao trabalho de percorrer e examinar todos os capitulos dos concilios, celebrados aqui e em Hespanha, que tem relação com este assumpto; e declaro a v. ex.ª o á camara que não encontrei lá nada, absolutamente nada, em que se podesse fundar a proposição aqui avançada, de que = o principio de desamortisação era contra os direitos da igreja.
Permitta-me a camara que lhe leia o de que resam alguns capitulos d'esses concilios.
O concilio de Toledo (3.°), capitulo 3.°, diz: «Ut nequis extra necessitatem rem ecclesiae alieneti».
O concilio de Toledo (9.°), capitulo 1.°, diz: «Ut de rebus ecclesiae nihil episcopi auferant, et qualiter proximi funãatoris ecclesiarum sollicituãinem gerant».
O concilio bracharense (2.°), capitulo 14.°, diz: «De praesumptione episcopi in rebus ecclesiae».
No capitulo 15.°: «De rebus ecclesiasticis gúbernanãis». No capitulo 16.°: «De rebus ecclesiae ãispensanãis». E n'esse capitulo applicam os padres do concilio a si aquellas palavras do Apostolo: « Victu et tegumento, his contenti su-mus».
No capitulo 17.°: «De his, ex vasis ministerii ecclesiae aliquiã vendiderint».
O concilio de Merida, capitulo 16.°, diz: «Ut episcopo non liceat tertiam de parochianis ecclesiis tollere».
No concilio agathense, capitulo 49.°, diz: «De-non alie-nanãis ab episcopo rebus ecclesiae». Podem ler-se tambem os capitulos 51.°, 53.°, 56.° e 59.°
Poderia citar ainda, sr. presidente, outros concilios celebrados nas Gralhas, e mesmo no Oriente, em que tratando-se ou ex professo, ou por incidente, dos bens da igreja, se não encontra cousa alguma que contrarie a lei da desamortisação.
Mas, para não cansar a camara, indicarei apenas aos meus collegas o concilio alvernense (2.°), capitulo 13.°, e bem assim a carta do papa Symacho ad Caesarium episcopum, capitulo 1.°, omittindo outras de outros pontifices.
Ora note-se bem que nos concilios citados se trata da prohibição da alienação d'esses bens feita pelos bispos, e da prohibição aos mesmos bispos de applicarem o rendimento d'esses bens para outro fim que não fosse aquelle para que estavam applicados ou determinados.
Mas a respeito da desamortisação, como nós a considerámos aqui, como a nossa legislação a considera e sempre considerou, nem uma palavra que a condemne ou censure. Trata-se lá da administração dos bens pelo pessoal ecclesiastico, e principalmente da applicação do seu rendimento, a fim de não ser distrahido do seu legitimo fim; mas a respeito da desamortisação pelo poder civil no sentido que as nossas leis dispõem, e que aqui estamos discutindo, os meus illustres collegas nada encontram lá.
Prohibe-se aqui que os bispos lancem mão dos rendimentos da igreja para os applicarem fóra daquillo para que foram destinados.
Capitulo 15.° (leu).
Sobre desamortisação, nem uma palavra. Capitulo 16.° (leu).
Portanto já veem V. ex.ª, a camara e os meus collegas, que estranharam ver a minha assignatura no projecto sem declaração, que os concilios celebrados quer na peninsula e nomeadamente em Braga, quer nas Galhas, e mesmo no oriente, nem uma só palavra dizem a respeito de desamortisação.
Eu dei-me ao trabalho, como já disse, de percorrer os capitulos de todos os concilios, não encontrei lá cousa alguma que podesse fundar a asserção de que o artigo do projecto é attentatorio de todos os direitos da igreja.
Mas eu bem sei a que se refere quem sustenta aquella asserção. Refere-se ao concilio de Trento. Mas eu não posso deixar de citar á camara as proprias palavras do concilio de Trento.
Dizem os padres d'aquelle ultimo concilio ecumenico: «Si quem clericorum, vel loeicorum, quacumque is ãignitate, etiam imperiali, aut regali, praefulgent, in tantum malorum om-nium radix cupiditas occupaverit, ut... per se, vel alios, vi vel timore inconcusso, seu etiam per suppositas perso-nas clericorum, aut lceicorum, seu quacumque arte, aut quo-cumque quaesito colore in proprios usos convertere, illosque usurpare praesumpserit, seu impcdire, ne ab iis ad quos jure pertinent, percipiantur; is anathemati tamdiu subja-ceat, quamãiu...
O concilio, como v. ex.ª vê, sr. presidente, como vê a camara, anathematisa aquelle que converter em seu proprio uso, que usurpar os bens da igreja, que impedir sejam por ella auferidos os proventos d'esses mesmos bens.
Os padres anathematisam todo aquelle que, por si ou por outro, seja qual for o pretexto, converter em seu uso proprio os rendimentos da igreja.
Ora, pergunto eu. O estado pretende subtrahir um rendimento que até agora servia para subsidio da religião o para subsidio e instrucção do clero? Pretende tirar-lhe esse rendimento, esse subsidio? Não, de certo.
O projecto em discussão garante aos parochos 6 por cento, porque lhes dá em inscripções de 3 por cento a importancia da lotação em que estiverem os passaes, e depois reserva-lhes aquillo que a praça der.
Portanto, se o estado não quer converter em seu uso proprio esses bens, mas substitue apenas o rendimento desses bens, como podér concluir d'aqui que o concilio de Trento prohibe, sob a pena de anáthema, que sejam desamortisados os bens da igreja portugueza, não sendo a desamortisação outra cousa mais que uma permuta ou substituição d'esses mesmos bens? E quando se discutir o artigo 2.° do projecto eu mostrarei que as inscripções devem ser dadas pelo preço do mercado ao tempo da venda.
E aqui vem a proposito dizer, com referencia á questão previa do sr. Testa...
Vozes: — Deu a hora.
O Orador: — Como deu a hora, peço a v. ex.ª, sr. presidente, que me reserve a palavra.
O sr. Magalhães Aguiar: — Requeiro a v. ex.ª, sr. presidente, que consulte a camara sobre se quer que se prorogue a sessão, até se votar este artigo.
O sr. Presidente: — Não sei que possa consultar a camara sobre o requerimento do sr. deputado, se o orador pediu que lhe reservasse a palavra; entretanto ponho-a á votação (apoiados).
Vozes: — Não póde ser.
Outras vozes: — Votos, votos.
Outras: — Deu a hora.
(Susurro.)
O sr. Presidente: — Está levantada a sessão. A ordem do dia para ámanhã é a continuação da que estava dada. Era pouco depois das quatro horas.