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CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

Discurso que devia ter sido transcripto a pag. 1094, col. 2.ª, lin. 68.ª do Diario de Lisboa, na sessão de 26 de abril

O sr. Santos e Silva: — A posição politica que occupei n'esta casa e fóra d'ella, durante os trinta ou quarenta dias, de prolongada agonia, em que a final expirou um ministerio, cujas responsabilidades e paternidade não sei se ainda hoje partilham e aceitam aquelles, que, nas horas de maior attribulação, o ampararam com as suas inspirações, e se esforçaram por dar algum calor a membros regelados pelo frio da propria impotencia, obriga-me, ou antes leva-me naturalmente a explicar ao meu paiz, e ás fracções, em que elle se acha desconjuntado, qual será a norma do meu futuro proceder.

E digo desconjuntado, sr. presidente, porque a parte activa, que tenho ultimamente tomado nas cousas publicas, que são de nós todos, gerou-me na alma a desconfiança, e não sei mesmo se o profundo desalento, de que não ha actualmente em Portugal partidos politicos claros, definidos, essencialmente distinctos, pelo radicalismo dos principios, pela separação dos programmas, e pela inconciliabilidade das crenças.

Profundo desalento! sr. presidente! porque governo constitucional, systema parlamentar, sem verdadeiros partidos, são symptomas assustadores da indifferença e descrenças publicas; ou accusam pelo menos grande atrazo na educação politica de um povo, que precisa regenerar-se pela liberdade.

Quando fallo de partidos, sr. presidente, refiro-me principalmente, ou melhor, exclusivamente, ás duas importantes fracções da grande familia liberal, conhecidas geralmente pelos epithetos de partido progressista historico e partido regenerador.

Se ha conservadores, se ha homens, que querem apenas o que está, ou lamentam mesmo que Se tenha caminhado um pouco avante, e saído fóra do circulo estreito das suas acanhadas e modestas aspirações: esses homens nem um grupo formam, distincto, visivel, palpavel, e ponderável na balança das nossas querelas partidarias.

São naufragos, que bóiam equilibrados no tenho do baixel, que se desconjuntou nos embates da onda popular, que é a verdadeira onda da Providencia; d'onde nunca emergiram ministerios anonymos, mas que arroja ás vezes de si para a praia a alga maritima, o sargaço, e o limo, cryptogamicas indecisas, em que até hoje ninguem pôde descobrir orgãos geradores.

Póde a pharmacia dos herbolarios insinua-las ao publico em beberagens mais ou menos indigestas; mas a sciencia do naturalista ha de assellar-lhe sempre um logar nos degraus mais baixos da escala vegetal.

No que diz respeito ao partido anti-dynastico, não fazer mensão d'elle, não é desconsidera-lo. É apenas reconhecer que o isolamento a que se votou, e a tenacidade em combater tudo quanto no nosso paiz, ha trinta annos a esta parte, deriva naturalmente da liberdade e das tendencias irresistíveis de todos os povos, no caminhar incessante e pertinaz, pela estrada patente a todos, larga e desembaraçada da perfectibilidade, o collocam naturalmente fóra da luta activa e militante da politica, da partilha e responsabilidade na gerencia dos negocios publicos, e da acção e influencia em todas as transformações successivas, evoluções naturaes, e remodelamentos por que vão passando todos os partidos, os systemas, as idéas e os programmas politicos e sociaes.

É este o meu modo de ver ácerca do partido anti-dynastico; e peço desculpa ao illustre deputado e meu amigo, o sr. Barros e Cunha, se não aceito, n'este ponto, mas unicamente n'este ponto, as suas ingenuas e innocentes aspirações, mas sempre nobres e generosas. Aprecio muito a sua infallibilidade (riso) e altos dotes de apreciação, mas afasto-me de s. ex.ª no modo de avaliar o partido anti-dynastico. E parece-me que, discorrendo assim, vou de accordo com o sr. Pinto Coelho, que não aceita de certo as doutrinas apresentadas pelo sr. Barros e Cunha. S. ex.ª tem a palavra, e ha de certamente explicar-se.

Sr. presidente, creio que anda entre nós bastante alterada a noção de partidos. Estou tristemente impressionado com

O que tenho ha dois dias ouvido n'esta casa a respeito de partidos. Não me refiro a todos os cavalheiros que têem tomado parte nos debates d'esta camara, porque alguns ha, que collocaram a questão na sua verdadeira altura, e no seu devido pé, e com que eu me conformo completamente. Tenho muita satisfação em nomear os nomes dos cavalheiros que têem exposto doutrinas que são as unicas dignas do partido liberal. Quero referir-me aos srs. Fontes, Mártens Ferrão, e meu particular amigo Lobo d'Avila. Mas não tem acontecido o mesmo a todos: ha outros cavalheiros que não apreciam os partidos, pela maneira por que devem ser entendidos, desconhecendo-lhes a indole, condições e intuitos; e rebaixando-os á missão degradante de serem instrumentos doceis da vontade ou dos caprichos de um homem.

Parece-me, sr. presidente, que se vae abandonando um pouco a essencia pela fórma, a força pelo instrumento, o principio pelo homem, e o espiritualismo delicado da rasão e da intelligencia pelas impressões grosseiras da materia e pela seductora attracção dos sentidos.

Parece-me, sr. presidente, que o sentimento da dignidade partidaria, a autonomia individual, o culto intimo da independencia que ennobrece, da isenção e desprendimento que tornam o homem livre e os partidos distinctos dos apaniguados e das facções, andam um tanto sacrificados aos arminhos nobiliarios do cortezão, aos seductores ouropeis de uma farda bordada, e ao brilho fascinador de uma gran-cruz, elegantemente pendida do collo aprumado de certos fidalgos democratisados que serpeiam no sopé das massas populares, como o musgo rasteiro, a planta parasyta, a erva damninha se enroscam no tronco do roble alteroso, no intuito malefico de lhe amesquinhar a vida e roubar parte da seiva.

Eu, sr. presidente, pertenço ao partido progressista democratico. Ignoro se ha algum partido progressista que não seja democratico. Se o ha, declaro solemnemente que não estão n'elle nem as minhas crenças, nem as minhas affeições. Mas, ser progressista democrata, não é guerrear a aristocracia; entendamo-nos bem. É levantar o nivel moral das classes populares. É correr uma esponja por cima d'essas linhas, já felizmente um pouco sumidas, e que ainda servem para marcar raias, estabelecer limites, e fazer distincções entre o povo, d'onde todos vimos, e a velha aristocracia, a aristocracia de raça, a aristocracia pur sang. Sou democrata dentro das leis fundamentaes do meu paiz. Quero que se promova, sem descanço, a educação do povo, e que unicamente os talentos, as aptidões, a intelligencia, a probidade e os serviços sejam os titulos nobiliarios que a nação aceite e legalise na alta investidura dos cargos publicos. É assim que eu entendo a democracia. Faço votos para que todos os homens liberaes, e que se inculcam progressistas, a entendam do mesmo modo.

Sr. presidente, os verdadeiros partidos politicos são uma creação dos tempos modernos. Na Grecia (e peço perdão para fazer esta pequena digressão), na Grecia os partidarios eram as facções, eram os clientes dos poderosos e argentarios, trucidando na praça publica seus irmãos, para deporem servilmente o poder nas mãos de seus patronos e senhores. Em Roma era mais Uma guerra de cartas, que uma guerra de partidos. Era a luta dos patricios e dos plebeus.

Na idade media a necessidade da propria defeza fortificara o instincto da associação, e agrupara os homens n'um sentimento commum. Era preciso escolher entre o papel de perseguido e de perseguidor. Não havia nem patriotismo, nem direito, nem liberdade, nem moral. Havia a ferocidade dos tempos barbaros, facções, classes, partidarios pessoaes, mas não havia partidos politicos.

Sr. presidente, para que haja partidos politicos, é preciso que a liberdade dê ao povo os meios de attingir os fins a que mira, sem violencia, sem escandalo, sem abalos e sem se calcarem as mais triviaes indicações do senso commum.

Quando se pretendem obter os fins sem escrupulo dos meios, quando prevalece a infernal theoria de que os fins justificam os meios; morreu o partido, e surge do trama, e quasi sempre da infamia, a facção. O verdadeiro partido é o que faz prevalecer as suas doutrinas, o triumpho das suas idéas, e occupa o poder, por meios licitos, decentes, leaes, cavalheirosos, moraes e legaes.

Não nego, sr. presidente, que os partidos praticos, os partidos governamentaes, os partidos que no systema constitucional e na vida parlamentar se devem substituir naturalmente no poder, precisam de chefes, disciplina e orgãos. Os partidos miram a um alvo, caminham por estradas ás vezes escabrosas; são-lhes necessarios guias. Estes guias recebem o nome de chefes, e são os laços que prendem as partes, umas vezes inconsistentes, outras vezes apenas contiguas ou justapostas, e não raro fracamente combinadas ou imperfeitamente soldadas entre sr. Mas um chefe não é um senhor, não é um autocrata, não é um mouchir ou pachá de tres caudas, que por cada caprichoso sobresenho exija um salamalek irreprehensivel da parte d'aquelles que não lhe sacrificaram a consciencia, nem lhe enfeudaram, no pacto bilateral de familia, a independencia das suas convicções (apoiados). O leader não exerce a sua influencia senão com a condição de respeitar as opiniões, a espontaneidade, a liberdade de acção, as doutrinas, os principios e as indicações do seu partido.

O chefe de partido ou seja acclamado nos comícios populares e levantado nas praças publicas sobre os escudos de correligionarios livres, ou se encontre, pela força das circumstancias, e pela logica dos acontecimentos na altura a que foi chamado pelos seus muitos serviços e pelos seus reconhecidos merecimentos; deve ser o mais estrénuo defensor, o mais eloquente interprete das opiniões, das tradições, da honra e do brio do seu partido.

A disciplina nos partidos nunca póde ser o resultado da obediencia cega que se impõe ao soldado, acendrada nos arremessos supersticiosos de qualquer tyrannete de boldrié. A disciplina nos partidos é o effeito da vontade reflectida. Os soldados não estão presos ao chefe por sancção penal ou pela coacção da força material.

Quando o chefe abusa do poder, quebrou-se o pacto de familia; e o ostracismo moral é, em regra, a pena que no tribunal da opinião e da consciencia dos partidos pertence aquelles que se tornaram réus de felonia politica.

O orgão nos partidos é a imprensa, é a palavra, é a tribuna, que valem mais do que a mudez e as astúcias de todos os Catilinas conjurados. É a communicação entre a cabeça e os membros do partido, que têem necessidade de fallar alto, sem medo, sem ambages, mas sem hyperboles. O partido que não eleva á altura da opinião, que não desfralda á publicidade das praças o seu pendão, a sua bandeira, o seu programma, as suas idéas, é um partido que se annulla, que abdica, que se suicida (apoiados).

É preciso que cada um seja homem do seu tempo. É preciso que todos nos convençamos de que o progresso pela liberdade não é mais do que o permanente e successivo rejuvenescimento do homem na sociedade.

Ha homens que nascem já velhos, outros que são sempre meninos e alguns que são sempre jovens. Se Alcibiades foi sempre menino; se Cesar foi sempre homem; se Augusto nasceu já velho: Pericles, na Grecia, Passos Manuel e José Estevão em Portugal foram sempre jovens; mas jovens de espirito, mas jovens de coração (muitos apoiados).

Os partidos precisam de naturezas activas, de intelligencias fortes e consistentes, de caracteres independentes e respeitaveis, de rasões solidas e perscrutadoras, que se guiem e decidam por si e não por adulações, por pequenas paixões, por resentimentos pessoaes, ou por conspirações de antecâmara (apoiados).

Aquelle a quem fallecem os dotes para occupar o primeiro logar á frente das phalanges, a cuja sombra conquistou honras e coroas, mais ou menos immarcessiveis, retira-se á solidão, e espera ahi no remanso da paz e na serenidade da consciencia o culto do respeito, as homenagens e as bençãos do povo, que nunca é mesquinho em prodigalisa-las quando adquire a convicção de que este ou aquelle cidadão se tornou digno dos affectos nacionaes. O povo póde ser apaixonado e injusto em certos momentos, mas a historia, que é a rasão fria dos povos, e a consciencia da humanidade, é sempre justa e imparcial.

Washington, esse vulto venerando, que fundou a liberdade nos estados do norte da America, é um exemplo vivo, é o conselho eterno da Providencia, dado ás nações, á liberdade, aos partidos, e até á consciencia e dignidade de seus chefes. A raça heroica dos Cincinnatus é das paginas mais nobres, mais gloriosas e honradas, escriptas na historia da humanidade.

Os partidos que têem rasão de ser, que têem raízes na opinião, que são grandes e generosos, que assentam em principios salutares, e nos altos interesses moraes, sem os quaes não póde viver a sociedade, esses partidos nunca morrem; por cada chefe que lhes desapparece depara-lhes a Providencia dois ou tres caudilhos. V. ex.ª, sr. presidente, sabe muito bem que a revolução franceza tirou os seus chefes da força intrinseca das suas idéas e da sua gloriosa ban-