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SESSÃO NOCTURNA N.° 74 DE 21 DE AGOSTO DE 1908 7

larmente esclarecido e humano. Foi-o ainda na velha Grecia, tcão cheia de aspirações scientificas e tão dedicada ao culto da arte immortal. Hippocrates, medico e philosopho, nega para a loucura, como para as outras doenças, uma genese divina. A loucura, para elle, era já - maravilhosa intuição - uma doença de cerebro, como a pneumonia era uma moléstia dos pulmões. Hippocrates descobriu a insensibilidade physica dos alienados, a apparição mais frequente das doenças mentaes na primavera, a produção das perturbações cerebraes apos uma longa continuidade de pezares ou de receios, a união da melancolia e da epilepsia, a difficuldade de curar a loucura que se declara passados os quarenta annos, etc., etc. E já Hippocrates applicava tratamentos physicos e tratamentos moraes.

Estas ideias tão claras mergulharam, porem, na noite medieval, como nella mergulhou toda a cultura esthetica e intellectual na magnifica Grecia, da arte e da eloquencia. Esse periodo da meia idade, sepulcral e gelado, foi de facto o ergastulo dos doidos e a sciencia que os diagnosticava o tratava, acossada, quasi desapareceu deixando aos padres em delirio a cura pela destruição dos pobres alienados. A loucura então, como o determinavam as ideias da epoca, foi quasi exclusivamente religiosa. Os conventos foram um viveiro de hystericas debatendo-se nas convulsões do mysticismo, e os grandes fornecedores d'esses possessos, que os papas sanguinarios relaxavam, em nome de Deus, para a fogueira ou para a forca.

O alienado não se tratava. Se era inoffensivo, que vagueasse pelas das e pelos montes. Se era perigoso, possuido ao demonio, ia, coberto de cadeias, para o fundo das prisões ou, coberto de injurias, para os queimadeiros. Afora a morte pela fogueira ou pela forca, tal qual como hoje em Portugal...

Só no país de Treves, em alguns annos, foram supliciados 6:500 loucos.

A Igreja dava-se a meudo ao prazer destas bachanaes de sangue e uma escolatica vazia e subtil, um mysticismo metaphysico, absorvendo a attenção dos homens chamados da sciencia, não lhes deixava tempo para ver o que Hippocrates, acceitando por base unica da sciencia a observação e a experiencia, tinha visto com optima clareza.

Depois vem um pouco de acalmação neste deboche sanguinolento. Os doidos vão- escapando á morte. Tratados ainda como cães, já não são tão frequentemente assassinados. Já apparece Felix Plater, que deixa importantes trabalhos de pathologia mental, mas que acceita ainda a intervenção, na origem da loucura, dos espiritos diabolicos.

Já uma ou outra terra, como Elbing, recebia e hospitalizava alguns doidos. Em Hamburgo guardavam-se os alienados em um hospicio.

Era a reconsideração que começava.

Todo o seculo XVIII é atravessado por um sopro de humanidade relativa.

Os processos da contensão dos doidos são ainda brutaes, mas, emfim, elles são considerados doentes e não os expulsam da humanidade.

No hospital de Brunswick, em 1749,. finalmente, affixam-se instrucções pelas quaes se reconhece o que Hippocrates estava farto de saber, isto é, que pela medicina e outras medidas uteis se chegava a curar a loucura.

A epoca scientifica da assistencia aos alienados, porem, só começa no principio do seculo XIX com Langermann e Reil, que inauguraram o tratamento racional das doenças mentaes em asylos especiaes, pondo em relevo a importancia do tratamento moral e o valor therapeutico do trabalho para certas formas de loucura.

Essa epoca caminha lentamente por todo o seculo passado, assinalando-se pela reforma realizada em França por Pinei e em Inglaterra por Tuke, que supprimiram as cadeias dos alienados, pela criação de novos asylos apropriados ao seu fim e onde se podia fazer a especificação de certos tratamentos.

Finalmente, de ha trinta ou quarenta annos, graças aos progressos realizados em Inglaterra e França e ao impulso eommunicado ao estudo da psychiatria nas universidades allemãs e norte-americanas, a assistencia aos alienados soffre uma transformação importante, da qual neste momento está vivendo.

De facto, a concepção dos asylos de alienados foi-se modificando á medida que se iam impondo os systemas de opendoor e non restraint, á medida que se formavam mais nitidamente as exigencias do tratamento racional das doenças mentaes.

Muitas reformas foram feitas com a criação de pequenos hospitaes de tratamento e de varias colonias agricolas; a grande extensão dada ao tratamento em liberdade, á colonização, á assistencia familiar dos alienados; o abandono quasi completo de todos os meios de contensão dos alienados; a transformação das condições materiaes dos asylos; a reacção contra o isolamento cellular; a criação de estabelecimentos especiaes sobre a forma de colonias para os epileticos, alcoolicos, etc.

Assim seguiu a psychiatria na sua dolorosa ascensão para a verdade, por essa Europa culta alem.

Em Portugal, a despeito da direcção que lhe teem querido impellir alguns sabios alienistas, ella ficou nas alturas pouco mais que medievaes, em que a unica concessão feita aos doidos sobre a crueldade cntholica daquella época é... não os mandar para a fogueira.

Para rivalizar com essa Europa intellectual e psychiatrica, temos o Conde de Ferreira, feito por legado de um benemerito; Rilhafolles, velho edificio adaptado em 1848; o Telhai, Bellas e Camara Pestana, do Funchal, que são minusculos institutos particulares. Quer dizer: o Estado só nos deu Rilhafolles, que foi na origem um velho barracão que se affeiçoou ao mester de recolher doidos.

É pavoroso! O Estado em Portugal até os doidos roubou!

Mas tentou-se, ao menos, fazer alguma cousa?

Disse-se, ao menos., que alguma cousa se ia fazer, promettendo fazê-la?

Sim; mas faltou se ao compromisso, o que torna ainda mais repugnante o procedimento havido para com os pobres loucos.

Vejamos:

Em 4 de julho de 1889 foi promulgada uma lei, chamada lei de beneficencia publica aos alienados, obrigando o Governo a construir quatro manicomios (tres hospitaes e um asylo), e estabelecer enfermarias de alienados annexas ás penitenciarias centraes e a converter em asylo de incuraveis b hospital de Rilhafolles.

O mesmo decreto criou numerosas e abundantes fontes de receita para fazer face a estes encargos.

Esta lei, que tinha defeitos, mas apresentava tambem muitas vantagens e que, em todo o caso, foi uma tentativa pratica do systematização e, sobretudo, um movimento de piedade generoso e humano, é devida á iniciativa fecunda, vigorosa e altruista do fallecido psychiatra Antonio Maria de Senna.

Este benemotito professor, que tanto se interessou pela sorte dos loucos, lutou sem descanso até que conseguiu arrancar a forceps do ventre rebelde dos poderes publicos aquella lei, que iniciaria um novo periodo na evolução da assistencia aos alienados em Portugal, se porventura não tivesse sido criminosamente olvidada.

Ha cerca de vinte annos, Senna, no sou relatorio do serviço clinico e administrativo do Hospital Conde de Ferreira, referindo-se ao movimento de piedade que, desde os fins do seculo XVIII, se espalhara pela Europa e pela America, dizia que "entre os países cultos foi Portugal aquelle em que o movimento de misericordia e amor pelos loucos encontrou consciencias mais duras a amortecer-lhe a energia". Senna, de resto, não estranhava o facto,