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Em virtude de resolução da camara dos senhores deputados se publica o seguinte

parecer n.° 115 - A

Senhores. — A commissão de inquerito, eleita por esta camara em sessão de 27 de fevereiro d'este anno para examinar se nos actos da responsabilidade do governador civil do districto de Villa Real, praticados antes e durante as ultimas eleições de camaras municipaes, toca ao governo alguma responsabilidade, vem hoje dar-vos conta dos seus trabalhos e offerecer á vossa apreciação o seu parecer.

A commissão estudou minuciosamente os documentos existentes na secretaria do reino, e o relatorio, autos e mais documentos que constituem a syndicancia a que o ex.mo ministro do reino mandou proceder no districto de Villa Real por portaria de 3 de fevereiro do corrente anno.

A commissão não perdoou a fadigas, nem esqueceu as mais escrupulosas diligencias no exame dos factos historiados nesses documentos. Não a cansaram os desvelos de uma longa e paciente investigarão, nem a assustou o temor das prevenções poli liças, ou das affeições partidarias.

Tomando por guia a consciencia e por preceito a verdade, afigura-se-lhe que o seu trabalho, bem que de si imperfeito e defectivo, não poderá ser acoimado de parcial ou injusto.

Antes de descer a apreciação de cada um dos assumptos que têem de chamar a attenção da commissão cumpre expor summariamente os principios fundamentaes, que foram como que a norma e dictame dos seus trabalhos.

A commissão foi nomeada para examinar a responsabilidade que possa caber ao governo nos actos da responsabilidade do governador civil.

Importa pois primeiro que tudo discriminar bem e claramente quaes os actos comprehendidos na responsabilidade do governador civil para depois se poder entender se ao governo pertence n'esses actos alguma responsabilidade.

Esse foi o primeiro trabalho da commissão.

Ha no governador civil duas entidades distinctas que senão devem, nem podem confundir sem offensa dos principios mais racionáveis de direito administrativo e manifesta violação da nossa legislação vigente.

O governador civil é delegado e agente do governo, e presidente do conselho de districto.

Como delegado do poder central todos os seus actos podem ser confirmados ou condemnados pelo governo, e são sujeitos á sua fiscalisação e exame. Por esses deve elle inteira responsabilidade aos seus superiores. Isto é do pura intuição.

Como presidente do conselho de districto, que é, segundo o systema da nossa legislação administrativa, um tribunal de primeira instancia para os assumptos do contencioso administrativo, o governador civil não deve responsabilidade dos actos que n'aquella qualidade pratica, senão á sua consciencia, como juiz, e aos tribunaes superiores, que podem conhecer por via de recurso das suas deliberações.

Estes principios deduzem-se da mesma indole das funcções que n'uma e n'outra hypothese é chamado a exercer o governador civil.

Na primeira é o funccionario de confiança, delegado do governo, imagem e representação viva do seu pensamento, que de todos os seus actos deve contas ao poder que o constituiu seu mandatario.

Na segunda é o presidente de um tribunal de ordem administrativa, independente na acção e no voto, irresponsavel diante do governo, como o tribunal a que preside e de que é parte, peias opiniões que professar, sujeito só ao julgamento e decisão dos tribunaes superiores.

Esta é a doutrina geralmente ensinada pelos escriptores de maior auctoridade n'estas materias, e claramente sanccionada em differentes artigos do codigo administrativo, e nomeadamente no artigo 280.°

Convencida da verdade d'estes principios a commissão, no exame que fez dos differentes assumptos, a cuja averiguação teve que dar-se, procurou apartar de si a apreciação de todos os actos que entravam na orbita legal das attribuições do governador civil, como vogal e presidente do conselho de districto, considerado como tribunal do contencioso administrativo, deixando o julgamento d'esses actos á superior decisão do tribunal de segunda instancia, que d'elles ha de conhecer por via de recurso.

Esta é a conclusão indeclinavel dos principios assentados pela commissão. Se aos actos do governador civil, como vogal e presidente do conselho de districto, não cabe responsabilidade para com o governo, que os não pôde dictar, alterar ou annullar, força e rasão é concluir que tambem não pôde o parlamento exigir contas ao governo de actos e deliberações que a lei e os principios collocaram alem da sua alçada e aos quaes não póde alcançar o poder da sua jurisdicção.

E por outro lado graves e ponderosas considerações de conveniencia publica estavam persuadindo a commissão a que, respeitando devidamente a independencia que defende no nosso systema politico e administrativo as raias de todos os poderes do estado, se abstivesse de emittir opinião sobre a regularidade ou irregularidade dos pleitos, que pendem em recurso da decisão dos tribunaes competentes, e que só por estes podem ser legalmente confirmados ou annullados.

A nossa constituição politica firma-se no saudavel principio da divisão e independencia dos poderes. Largos sacrificios custou esta memoravel conquista da moderna civilisação. N'ella está a melhor fiança de ordem, de liberdade e de justiça. O desconhecimento d'este fundamental dogma do evangelho liberal, a invasão reciproca dos poderes publicos, entrando uns nas provincias e dominios dos outros, o mesmo fôra que retrogradar de muitos annos no longo caminho da civilisação, em que se não levamos a outros a dianteira, tambem não somos já os mais atrazados.

Verdades intuitivas são essas, que a commissão certo não recordara n'este logar se não fôra a confusão de doutrinas e a deploravel equivocação de principios com que recentemente estas questões hão sido pleiteadas no tribunal das paixões politicas, ao grado das prevenções particulares de cada parcialidade.

Não é a camara dos deputados academia para votar theses e declarações vagas de doutrina sem effeito legal, sem immediata execução, sem consequencias praticas. Quando o parlamento proclama uma doutrina, e se convence da necessidade ou da conveniencia de a manifestar por modo claro e positivo, não vota e declara theses; senão que vota e approva leis, em que se traduzem as doutrinas com força obrigatoria e com execução immediata.

Votar principios ou theses, e não ter força para dar cumprimento ás deliberações approvadas, e deixar que as leis antigas ou a jurisprudencia recebida continuem nos tribunaes a afrontar impávidas as decisões dos corpos legislativos, esse não é certamente o officio e a missão dos parlamentos.

Se se tem por averiguada a necessidade de acudir com providencias novas, á escuridade, omissão ou errada interpretação das leis existentes, proponham-se e formulem-se aquellas para evitar a reproducção da pratica viciosa, que ora se condemna, mas não se torne o parlamento juiz dos processos pendentes nos tribunaes, arriscando-se a ver desprezado o seu voto e desconsiderada a sua opinião.

Está determinada nas leis a competencia do todos os poderes do estado. Cada qual tem a sua esphera de acção. Se o poder legislativo ou um dos seus ramos invade as attribuições do poder judiciario, dando parecer sobre os pleitos pendentes,—ou a decisão dos tribunaes confirma o voto do parlamento, ou não. No primeiro caso dir-se-ha que o voto das camaras coagiu, e fez violencia na deliberação dos juizes; no segundo soffrerá inevitavel desaire o parlamento, que teve força para prestar culto esteril a um principio, sem que a tivesse igualmente para o tornar effectivo.

Não é dado admittir que a um tempo o parlamento e o conselho d'estado conheçam com igual competencia do mesmo assumpto. Tomar para o parlamento a these, e deixar aos tribunaes á hypothese, sobre inutil, fôra tão subtil e casuistica distincção, que não se atreve a propor-vo-la a vossa commissão, como meio efficaz de dar justa solução ao assumpto que se discute.

Levada d'estes principios a commissão, declinando de si a apreciação dos actos do governador civil, como presidente do conselho de districto,. e abstendo-se de emittir opinião sobre o objecto dos recursos pendentes no conselho de estado, limitou-se a examinar os actos pertencentes á responsabilidade do mesmo governador, civil, como delegado do poder executivo, nos termos da proposta approvada pela camara, da qual resultou a sua nomeação, apreciando igualmente; como lhe cumpria, a responsabilidade, que n'estes actos podia pertencer ao governo. Tal é a ordem dos seus trabalhos.

Dissolução da camara municipal de Alijó

A dissolução da camara municipal de Alijó é o primeiro facto na ordem chronologica, que se deparou ás investigações da commissão. Pelo apreciar iniciou pois os seus trabalhos.

Com data de 18 de outubro de 1863 dirigiu o governador civil ao ministro do reino um officio confidencial indicando a necessidade e a conveniencia de se dissolver a camara municipal de Alijó, e expondo differentes considerações de interesse publico para justificar aquella medida.

N'esse officio a camara é accusada do ter devido a sua eleição a uma serie de illegalidades, corrupções e violencias, que lhe haviam dado o caracter faccioso que transparecia em todos os seus actos; de estar em manifesta e acintosa opposição á actual situação politica; de ter concitado os povos e commettido abusos, demasias e desperdicios na administração economica do municipio; de ter proposto e feito eleger irregularmente uma commissão de recenseamento igualmente facciosa, rebelde aos legitimos mandatos das auctoridades superiores, e ás decisões dos tribunaes judiciaes, que e com grave menoscabo das leis praticára no ultimo biennio escandalosos abusos, recenseando os seus partidarios, excluindo quasi todos os outros, o que forçara o administrador do concelho a representar muitas vezes contra taes excessos, e a interpor os competentes recursos contra algumas illegalidades, das quaes obtivera provimento nos tribunaes judiciaes.

Acrescenta o governador civil, que a camara queria constituir as assembléas eleitoraes para as eleições municipaes, a que devia proximamente proceder-se, nalgumas localidades, onde não podiam concorrer muitos eleitores por falta de segurança em virtude de antigas e implacaveis rivalidades entre umas e outras povoações; que a camara empregaria, como os seus mesmos membros disseram e era voz publica, na nomeação e composição das mesas, pessoas capazes de toda e qualquer burla ou falsificação nos actos e processo eleitoral, e até de qualquer roubo das urnas, como se receia, e não póde prevenir-se em taes assembléas.

Para acudir com remedio efficaz a tantos e tão avultados males, lembra o governador civil a necessidade de uma boa divisão das assembléas, ás quaes concorressem os povos confiadamente, sem receio de falsidades ou insultos, e da organisação e composição das mesas com pessoas probas, que merecessem e inspirassem confiança para a manutenção da ordem e verdade dos actos eleitoraes.

Para alcançar isto o governador civil propõe a dissolução da camara.

Este officio é acompanhado de outro tambem confidencial do administrador do concelho, datado de 15 de outubro, em que aquelle funccionario propõe ao governador civil a necessidade da dissolução da camara municipal. Allega em abono d'esta medida a conveniencia de alcançar na proxima eleição camararia uma representação composta de cidadãos que, sem serem desaffectos ao governo, fossem pela sua probidade e saber superiores a paixões partidarias, e tivessem por só ambição o promover os melhoramentos e prosperidade do seu municipio. Para obter este resultado julga indispensavel manter a liberdade da uma, a segurança dos eleitores e a verdade dos actos eleitoraes, o que sem a dissolução da camara não poderá conseguir-se pelas rasões tambem expostas no officio confidencial do governador civil atrás extractado.

Em 31 de dezembro remette o governador civil outro officio que, com data de 15 de outubro, recebêra do administrador do concelho de Alijó, em que se referem alguns factos, que a serem verdadeiros, provariam a ruim e obnoxia administração da camara municipal.

N'este officio é a mesma camara arguida de abusar das suas funcções para fazer violencia ao suffragio popular; de se preparar para toda a qualidade de arbitrios, distribuindo

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de tal fórma as assembléas eleitoraes que difficultam, se não impossibilitam a concorrencia á uma; de ter sido parcial e injusta no serviço do recrutamento, já illudindo com falsas informações as auctoridades superiores sobre a isenção de mancebos que se escusam ao serviço militar, já deixando de proclamar recrutas mancebos, a quem por lei toca aquelle serviço, e proclamando indevidamente outros em seu logar; de ter na administração dos expostos procedido com escandaloso patronato, subsidiando como expostos filhos de homens casados e ricos, e deixando de dar baixa a outros já fallecidos com reprehensivel desvio do fundo municipal; de haver procedido a obras publicas sem a precedencia de hasta publica, com o intuito de sustentar á custa do municipio feitores seus affeiçoados, chegando ao excesso de prolongar as obras tendo n'ellas poucos operarios. Por estes e outros abusos o administrador do concelho solicita promptas providencias.

Por decreto de 21 de outubro foi dissolvida a camara municipal. Este decreto é do teor seguinte:

«Attendendo ás conveniencias do serviço publico, hei por bem dissolver a camara municipal do concelho de Alijó, e ordenar que se proceda a eleição de nova camara dentro do praso de tempo designado no § unico do artigo 107.° do codigo administrativo.

«O ministro e secretario d'estado dos negocios do reino assim o tenha entendido e faça executar. Paço, em 21 de outubro de 1803. — REI. = Anselmo José Braamcamp.»

Com officio confidencial de 23 de outubro foi enviado ao governador civil, por ordem do ministro do reino, copia authentica do decreto de 21 de outubro, declarando-se-lhe que ficava auctorisado para dar execução aquelle decreto quando a occasião lhe parecesse opportuna, e recommendando-lhe que desse conta da execução do diploma que lho era enviado.

Em officio de 12 de novembro de 1803 communica o governador civil ao ministro do reino, que deu execução ao decreto de 21 de outubro por alvará de 6 d'aquelle mez, pelo qual foi nomeada uma commissão municipal que já entrára no exercicio das suas funcções, e designado o dia 29 do mesmo mez para a eleição da camara municipal que devia funccionar no resto do biennio.

Eis-aqui a summa dos documentos que sobre este assumpto foram commettidos ao exame da commissão.

Cumpre agora aprecia-los á luz dos principios de direito administrativo e da legislação vigente.

O artigo 106.° do codigo administrativo diz: «As camaras municipaes podem ser dissolvidas por decreto do Rei».

O direito de dissolver as camaras foi instituido no codigo administrativo para habilitar o governo a reprimir em beneficio publico as demasias e má gerencia das camaras (consulta da secção administrativa do conselho d'estado de 28 de maio de 1839 e portaria de 11 de agosto de 1859). - É unicamente ao governo que compete decidir quando a conveniencia publica demanda o emprego deste meio extraordinario, e apreciar as circumstancias em que a dissolução das camaras deve ter logar (portaria de 14 de fevereiro e de 6 de agosto, 11 de fevereiro de 1855, 25 de setembro de 1856, 22 de julho de 1861 e 8 de abril de 1802).

A dissolução das camaras municipaes deve repetir-se tantas vezes quantas sejam precisas para se conseguir uma vereação composta de pessoas sensatas, que olhem com attenção pelas cousas do concelho e cumpram as leis (portaria de 7 de novembro de 1855).

Se as camaras municipaes podem ser dissolvidas por decreto do Rei, cabendo exclusivamente ao governo a apreciação das circumstancias em que deve recorrer-se ao emprego d'aquelle meio extraordinario, não pôde este ser responsavel perante o parlamento pela apreciação que fez dos fundamentos com que foi solicitada a dissolução da camara de Alijó, quando nos officios do governador civil e do administrador do concelho, ha pouco extractados, avultam mais que muitas rasões para aconselhar o uso d'aquelle extremo remedio.

Se como fundamento da dissolução se allegasse apenas a conveniencia politica e não o interesse da administração municipal, a commissão não poderia approvar o acto dissolutorio, porque em seu juizo não são as camaras municipaes assembléas politicas em que devam reflectir-se as paixões e interesses dos partidos, senão corporações administrativas exclusivamente devotadas aos melhoramentos do seu municipio e á prosperidade e adiantamento da sua localidade.

O municipio é e foi sempre entre nós poderoso e efficaz instrumento de civilisação. É o primeiro baluarte da liberdade. Cumpre manter illezas as suas immunidades e defender-lhe as franquias e direitos que constituem a sua indisputavel autonomia. 4

Não devem intervir as paixões politicas na gerencia dos interesses municipaes. Fôra sobre lamentavel, perigosa a doutrina que entregasse ao capricho das conveniencias politicas a existencia da administração municipal.

Quando porém para manter a liberdade do suffragio popular, para assegurar a livre concorrencia e a germina expressão da uma, para atalhar desperdicios, emendar desleixos, occorrer a delapidações, pôr cobro a fraudes e patronatos, se alvitra como acertado e unico remedio a dissolução das camaras municipaes, não póde em boa rasão condemnar-se o uso da faculdade outorgada ao governo no artigo 106.° do codigo administrativo.

E o governo procedendo pelas informações dos seus agentes de confiança, que lhe deviam merecer todo o credito, e valer como verdadeiras, não pôde ser com justo fundamento accusado de exorbitancia e abuso de poder por haver offerecido á assignatura regia o decreto da dissolução da camara municipal de Alijó.

Não consta officialmente que algum dos individuos nomeados para compor a commissão municipal não tivesse servido nas vereações anteriores. Não consta igualmente que o governo tivesse conhecimento d'essa irregularidade, se porventura existiu.

Não pôde pois a commissão impor por este motivo responsabilidade ao governo.

Eleições municipaes

Antes de aventurar qualquer apreciação, cumpre summariar muito a vulto os principaes succedimentos da debatida e agitada porfia que por tão longo tempo trouxe turbados os animos no districto de Villa Real. Para mais facil explicação das conclusões a que veiu a commissão, poderá talvez servir esta brevissima synthese.

Fôra designado o dia 22 de dezembro para as eleições da camara municipal. Para disputarem tenacissimamente a Victoria, se apparelharam com bastante antecipação e previdencia duas parcialidades oppostas. Uma descobria claramente os seus propositos hostis ao governo e aos seus delegados; outra dizia-se composta dos defensores da actual situação politica e dos amigos do governador civil.

Rompeu a contenda pela alteração das assembléas eleitoraes. Esse foi o primeiro rebate da luta, que mais tarde se espraiou em variados e por vezes lamentaveis episodios. A provocação deu de si as naturaes consequencias.

De oito camaras municipaes que fizeram mudanças na divisão das assembléas eleitoraes, sete pertenciam ao denominado partido da opposição. Assim o attesta o luminoso relatorio que põe remate á syndicancia ordenada pelo governo.

Da alteração feita pela camara municipal de Villa Real interpozeram recurso para o conselho de districto os eleitores Padre José Justino de Carvalho, José Ayres Lopes Junior e Francisco José de Gouveia. A par d'este recurso subiu um requerimento dos recorrentes, em que eram averbados de suspeitos os tres primeiros membros do conselho «por se acharem altamente empenhados nas eleições do districto em favor de um dos partidos que se oppugnavam, e de que elles eram os principaes chefes».

Fundado na doutrina e praxe ordenada na portaria de 14 de agosto de 1840, o governador civil convocou os quatro conselheiros immediatos na ordem da proposta e submetteu á sua apreciação o requerimento para a suspeição, que por elles foi julgaria procedente e provada pela notoriedade e publicidade dos factos arguidos aos suspeitados.

Em seguimento na sessão de 13 de novembro tomou o conselho de districto, assim composto, conhecimento do recurso interposto dando-lhe provimento.

Identicos recursos se interpozeram nos concelhos de Murça, Villa Pouca de Aguiar, Sabrosa, Alijó e Peso da Regua. O conselho de districto decidiu por igual teor.

N'estas deliberações, tomaram parte os vogaes immediatos aos suspeitados, menos o vogal effectivo Martinho de Mello da Gama, por se abster de votar nas questões eleitoraes, e o substituto Francisco Maria Cabral de Sampaio, por ausente.

Concluidas as operações eleitoraes, e tendo sido interpostos differentes recursos contra a sua validade, fundados principalmente nos abusos, violencias e demasias commettidos pelas auctoridades, foram apresentados varios requerimentos em que eram averbados de suspeitos o governador civil na qualidade de presidente do conselho, e secretario geral como presidente eventual do mesmo, e todos os vogaes effectivos e substitutos do biennio corrente, com excepção do vogal effectivo que se abstivera de intervir n'estes processos, e todos aquelles que anteriormente haviam pertencido ao conselho de districto.

Estes requerimentos partiram da opposição. O partido governamental seguiu-lhe o exemplo. Daqui a impossibilidade da reunião do conselho de districto.

Instado pela urgencia do tempo, pois que mui proximo se avizinhava já o dia 2 de janeiro, em que deviam começar a funccionar as camaras recentemente eleitas, e não so atrevendo a desprezar in limine todas as suspeições por evidentemente acintosas, para constituir o conselho com os tres primeiros vogaes effectivos, por terem estes sido anteriormente julgados suspeitos como partes e principaes chefes de uma das parcialidades, que se debatiam junto da uma, o governador civil determinou aos administradores de concelho, que procedessem a imparcial e escrupulosa averiguação sobre a parte que os suspeitados haviam tomado nas eleições, a fim de só sujeitar á deliberação do conselho as suspeições oppostas a elle. ao secretario geral e aquelles que houvessem influido na eleição de modo que o seu juizo devesse suppor-se parcial e apaixonado.

D'essas investigações resultava que só os tres primeiros vogaes effectivos haviam tomado, como chefes da opposição, parte activa nas eleições.

Constituido o conselho com os quatros substitutos, e um do biennio anterior sob a presidencia do mais velho, visto que tinha de conhecer das suspeições oppostas ao governador civil e secretario geral, foi em sessão de 28 de dezembro averbado de suspeito o presidente e todos os mais membros presentes, a fim de não poderem julgar a suspeição opposta ao governador civil. O presidente levantou a sessão.

Em sessão de 29 do mesmo mez o governador civil submetteu ao conselho de districto, composto dos cinco vogaes que haviam comparecido na sessão anterior, as suspeições oppostas aos tres primeiros conselheiros effectivos, desprezando todas as outras. Estas suspeições foram julgadas provadas, e decididos consecutivamente os recursos interpostos contra a validade das eleições. Por se retirarem os vogaes Antonio Pinto Machado e Francisco Maria Cabral de Sampaio, o conselho ficou composto do governador civil e de tres vogaes substitutos.

Em breve esboço ahi ficam como que epilogados os principaes factos sobre os quaes deve de assentar o juizo e parecer da commissão.

Pelo que atrás preliminarmente se expoz, bem se deixa entender que não podia a commissão avocar a si a apreciação e julgamento das irregularidades, mais ou menos graves e offensivas das leis, que em seus tribunaes proprios hão de ser averiguadas e sentenciadas com exclusiva competencia e cabal desassombro de alheias prevenções. N'isso está e d'isso vem, como dito fica, a autonomia e independencia de todos os poderes, em que se symbolisa e representa a soberania nacional.

Deixada pois á parte a apreciação das suppostas irregularidades eleitoraes, e o julgamento dos actos praticados pelo governador civil, como presidente e vogal do conselho de districto, que, como tambem se ponderou já, não podem importar responsabilidade para o governo, pareceu á commissão que o seu exame devia circumscrever-se nos seguintes pontos:

Procedimento do governador civil emquanto á admissão e julgamento das suspeições.

Excessos, abusos, violencias e attentados contra a liberdade do suffragio popular, que se dizem praticados pelo governador civil e seus delegados nos differentes concelhos.

É ao exame d'esses assumptos que a commissão vae agora dar-se.

Suspeições

Das arguições impostas ao governador civil do districto de Villa Real a que sobre todas avulta, a que mais largo thema ha dado á discussão politica e mais duradoura impressão deixará nos certames da imprensa e nas pugnas parlamentares, é a que traz a sua origem da admissão das suspeições oppostas aos membros do conselho de districto de Villa Real.

Suspeições politicas lhes chamaram. Azada era a phrase a sobresaltar os animos sinceramente devotados ás praticas do regime liberal, a assombrar as consciencias timidas, a apavorar os espiritos desprevenidos, equivocando na mesma appellação noções, idéas e doutrinas distinctas.

Como questão de liberdade consideraram muitos a significação dada aquellas palavras. Tornam-se grave o assumpto; engrandeceram-no as paixões politicas a exageradas dimensões; levantaram-no as malquerenças partidarias a ponto de doutrina constitucional; e por tal arte entraram as prevenções politicas a sentenciar e dirimir o pleito que não pôde a voz serena e desassombrada da rasão fazer escutar e attender os seus dictames.

Longe de condemnar, a commissão folga de registar n'essas mesmas exagerações e desvios da paixão politica o zêlo e amor das instituições liberaes, que n'esses exemplos se está attestando forte, vivaz, susceptivel e porventura nimiamente solicito.

Onde tão esmerada e cuidadosa se mostra a fiscalisação da opinião, velando de continuo o exercicio das funcções publicas, não ha que receiar pela liberdade, nem que temer pela sorte do systema constitucional. -Na consciencia do paiz está a sua melhor e mais segura caução.

Afigura-se porém ã commissão que a tão exageradas apprehensões não devêra dar occasião o assumpto. Bem ou mal oppostas, regular ou irregularmente julgadas as suspeições de que foram averbados os membros do conselho de districto de Villa Real, esse era o objecto de um processo pleiteado perante os tribunaes do contencioso administrativo, e cujas decisões, se erradas, tumultuarias e oppostas ao direito e ás leis do reino, podem ser reformadas pelos tribunaes superiores, aos quaes cabe o julgamento dos recursos.

Supponha-se que houve erro, sobre erro proposito de offender e menoscabar as leis e as sãs doutrinas de jurisprudencia administrativa nas deliberações do conselho de districto. Dê-se por hypothese. Será esse o primeiro exemplo? Não foi por isso que se instituíram os tribunaes superiores e que se concedeu aos offendidos a faculdade de recorrer?

Que se diria, de feito, de um litigante que em contenda judicial fosse vencido, posto que com evidente injustiça, o que para se desaggravar do desaire padecido, viesse interpor recurso para o parlamento, ou para uma das camaras, da sentença desfavoravel, accusando a parcialidade do juiz, censurando a manifesta violação dos principios e das leis, instando pela destituição immediata do magistrado, que lhe menosprezara a sua justiça e zombara da santidade da sua causa?

Por damnosissimo não pôde aceitar-se o precedente, que acabára por annullar a independencia dos tribunaes e obliterar por deploravel confusão os limites que separam todos os poderes do estado.

Eis ahi onde levam as paixões. Á conta d'ellas se equivocam muitas vezes principios contrarios, se confundem idéas dessimilhantes, e se pregoam lamentaveis erros por verdades. São perigosos todos os extremos.

Estas considerações demoveram a vossa commissão a crer que a exageração politica deu a este assumpto dimensões, que de si não comportava, pois que em verdade outra cousa não era que um pleito, mais ou menos regular, como tantos outros, que ordinariamente e sem estrépito se debatem nos tribunaes.

Por identicas rasões, e pelas que já ficam ponderadas no principio d'este trabalho, a commissão entende igualmente que lhe não corre obrigação de dar parecer sobre este assumpto, que não ha de, nem pôde ser decidido por uma votação da camara, mas pelos tribunaes, a quem as leis commettem essa missão.

Porque não se entenda porém que d'este modo a commissão, refugiando-se em calculadas evasivas, quiz evitar a responsabilidade de uma opinião clara, franca e definida, não hesita ella em declara-la desde já por modo que a ninguem faça duvidas.

A commissão não aceita o principio da suspeição por opiniões politicas. Não importam esta parcialidade e prevenção. Pôde no mesmo individuo alliar-se á, idéas politica a isenção de consciencia, a rectidão de juizo, e a despreoccupação e sisudeza indispensaveis na applicação e distribuição da, justiça.

Entre a opinião que não escurece a luz da rasão, nem turba a serenidade da consciencia, e a missão e encargo de julgar que tem por essencial condição a imparcialidade, e por unico

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fito a justiça —não ha, não pôde haver racionavel incompatibilidade.

E tambem é incontroverso que não devem as leis suppor a indiferença politica, que é o mais persuasivo e eloquente symptoma de decrepitude nacional. Esmorecidas as crenças, e apagada a fé nos principios, que são como que a essencia e a vida das instituições liberaes, mal podem estas defender-se de proxima e fatal mina.

E força era aceitar como necessaria condição de ordem publica a indiferença politica, se para fundamentar suspeições aos membros dos tribunaes bastara a allegação das opiniões por elles professadas sobre materias tocantes á governação do estado.

Ou não haveria tribunaes, ou todos seriam suspeitos. Fôra impossivel a administração da justiça. O systema constitucional, ferido na raiz, não fructificára longo tempo.

Quando porém a suspeição não for buscar fundamento á opinião politica, senão a factos e provas que excluam a isenção de animo e a imparcialidade essencial no officio de julgar, parece á commissão que cabe ahi então incompatibilidade legal, que nos termos da legislação e da jurisprudencia civil, assim patria como estranha, deve arredar o suspeitado das funcções de juiz.

Qual d'estas doutrinas foi observada ou violada nos accordãos do conselho de districto de Villa Real?

Toca aos tribunaes o decidi-lo.

Em quanto ao procedimento do governador civil, como delegado do governo, por occasião da admissão e julgamento das suspeições, parece á commissão que não pódem ahi deduzir-se responsabilidade politica para o governo.

As arguições formuladas á conta d'esta materia contra o governador civil são:

O ter submettido ao conselho de districto as primeiras suspeições oppostas aos tres vogaes effectivos do mesmo conselho, desprezando depois as segundas pelos fundamentos expostos na sessão de 29 de dezembro, e constantes da respectiva acta;

O ter funccionado o conselho de districto com menos de seis vogaes, como expressamente prescreveo artigo 208.°, com referencia ao artigo 280.° do codigo administrativo;

O ter mandado proceder por via dos administradores de concelho a minuciosa investigação sobre a parte que os vogaes do conselho de districto averbados de suspeitos haviam tomado nas eleições.

Pelo que toca ás duas primeiras arguições, pertence a sua materia á responsabilidade do governador civil, como presidente e vogal do conselho de districto, sendo que as resoluções sobre taes assumptos accordadas pelo mesmo conselho, ainda esperam confirmação superior e podem conseguintemente ser annulladas.

Resta a ultima arguição. É a que assenta nas syndicancias ordenadas aos administradores de concelho.

Sem louvar este expediente extraordinario, a que o governador civil recorreu, usando das faculdades que julgou serem-lhe concedidas no artigo 224.° do codigo administrativo, como meio extremo de alcançar a constituição do conselho de districto, e de evitar as difficuldades que de todos os lados o salteavam, a commissão entende que d'este acto e procedimento do governador civil não resulta responsabilidade para o governo, que, mal teve noticia d'aquelles acontecimentos, procedeu com todo o vigor e decisão, como o attestam as frequentes instancias, que em successivas portarias e telegrammas dirigiu o ministro do reino ao seu delegado no districto de Villa Real.

N'este logar não pôde a commissão deixar de prestarão ex-ministro do reino o ex.mo sr. Anselmo José Braamcamp os merecidos testemunhos de louvor, que lhe cabem, pela ininterrompida solicitude com que soube n'esta conjunctura velar pela manutenção dos principios e das instituições liberaes.

O governo cumpriu o seu dever, e longe de provocar censuras estão os seus actos reclamando justos gabos.

Liberdade eleitoral

Esta é a grande, a maxima, a mais que todas elevada questão que á commissão cumpria averiguar.

Sobre este ponto a commissão, depois do ter estudado reflectidamente todos os documentos que lhe foram presentes, veiu a concluir com o magistrado syndicante, que o governador civil manteve desafrontada a uma, providenciando acertadamente para que fosse liberrimo a todos o direito sacratissimo do sufragio e o desassombrado uso das franquias eleitoraes.

Para não alongar demasiadamente este trabalho, a commissão reproduz aqui como suas as palavras que servem de remate ao relatorio do digno e intelligente funccionario a quem o governo commetteu a syndicancia.

«O governador civil, diz o syndicante, empregou todos os esforços e diligencias para que a ordem publica se mantivesse geralmente, requisitando força militar e fazendo-a distribuir pelas assembléas, aonde pelas noticias recebidas mais receio havia de que se attentasse contra a tranquillidade e socego da eleição; providenciando para que o sufragio popular se exercesse com plena liberdade, e dando repetidas instrucções n'este sentido aos commandantes das forças destacadas e aos administradores dos differentes concelhos, posto que alguns d'estes não correspondessem plenamente ás ordens e desejos do seu chefe, por evidente falta de aptidão para o exercicio de tão importante cargo.»

E acrescenta «que nenhuma culpa ou criminalidade se póde irrogar ao governador civil como delegado do governo, por não se provar que por sua parte ou por parte dos administradores de concelho se commettessem violencias, pressões ou quaesquer abusos de auctoridade, reconhecendo-se ao contrario que o chefe do districto tomára as necessarias providencias e dera as precisas instrucções para que a ordem se mantivesse durante as eleições, e para que fosse plenamente respeitada a liberdade do voto, instrucções a que os seus delegados nos differentes concelhos corresponderam em proporção com a sua aptidão e zelou.

Se não pôde n'este assumpto ser arguido com fundamento o procedimento do governador civil, menos o pôde ser ainda o do governo, que não se limitou a pedir explicações categoricas sobre os factos em que assentavam as accusações dirigidas ao seu delegado no districto de Villa Real, senão que ordenou a sua vinda para Lisboa, e despachou um zeloso, illustrado e rectíssimo funccionario a conhecer e syndicar dos abusos e irregularidades arguidas, conservando o syndicado suspenso do exercicio de suas funcções até hoje, e aguardando a decisão da camara para tomar sobre este assumpto uma resolução definitiva.

O governo procedeu pois como lhe cumpria. Eram graves os capitulos de accusação. Dizia-se ferida a liberdade nas suas mais augustas prerogativas. Dera rebate o assumpto em todos os animos sinceramente affeiçoados ao regimen e aos principios constitucionaes. Maculada a pureza do sufragio, violadas as immunidades da consciencia, insultada e polluida a uma, que no systema representativo deve de ser como que inviolavel sacrario, o governo constitucional deixou de ser util e veneranda instituição para volver-se em lamentavel e irrisoria burla. Tinham despertado, sacudidos pela violencia das imprecações partidarias, os brios tradicionaes do velho partido liberal. O que fôra de principio vaga apprehensão era já a accusação formal, tremenda, indeclinavel. Não havia transigir. Força era dar cabal satisfação á opinião publica desvairada. Cumpria investigar, acarear factos e pessoas, averiguar friamente a exageração e a verdade, abrir processo aos abusos delatados, cotejar documentos, colher minuciosas informações, e proceder ao cabo com austeridade, com discrição, com precate e acerto.

Isso fez o governo. Por isso lhe cabem justos louvores.

Conclusão

Em vista dos principios expostos, a commissão é de parecer que não ha nos actos da responsabilidade do governador civil, como delegado do poder executivo, fundamento para accusar ou censurar o procedimento do governo.

Sala da commissão, 24 de maio de 1864. = José de Oliveira Baptista = José Maria da Costa e Silva = João Baptista da Silva Ferrão de Carvalho Mártens (com voto em separado) = Joaquim Januario de. Sousa Torres e Almeida = José Luciano de Castro, relator. = Tem voto do sr. Francisco Coelho do Amaral,

PERTENCE AO N.° 115 - A

Senhores —Tendo sido eleito pela camara dos senhores deputados, para fazer parte da commissão de inquerito, que em virtude da resolução da mesma camara, tomada em sessão de 23 de fevereiro, deve dar o seu parecer ácerca dos factos occorridos no districto administrativo de Villa Real, por occasião da proxima passada eleição municipal que ali teve logar, e da responsabilidade que por elles cabe ao governo, e divergindo do parecer da illustre maioria da commissão, entendi dever apresentar á camara, em voto separado, as conclusões a que cheguei depois do detido exame da questão.

A resolução tomada pela camara dos senhores deputados, tendo votado uma commissão de inquerito para dar o seu parecer sobre um assumpto tão grave, como é de certo aquelle de que se trata, fixa para mim indubitavelmente a ampla competencia politica do parlamento para apreciar a questão em toda a sua latitude. E se no debate parlamentar não houvessem sido sustentados principios oppostos a este, sobre os quaes recaíu uma votação da camara, não me deteria no exame de uma doutrina cuja verdade reputo ser um axioma de direito publico constitucional. Tendo porém sido posta em duvida perante o parlamento a resolução d'este ponto, torna-se indispensavel fixar a latitude que póde e deve attribuir-se ao voto parlamentar que creou a commissão de inquerito, e os deveres que a esta incumbem.

Competencia parlamentar

Não é mister, senhores, que o poder legislativo invada as attribuições dos outros poderes politicos do estado, para que o parlamento possa chegar ao exame dos actos da administração publica, que prendem com a liberdade constitucional e politica em que está baseado o systema representativo. É em virtude do direito social, que eleva cada um dos ramos do poder legislativo acima do unico mister de corpo co-legislador, que aquella missão lhe compete.

A competencia politica do parlamento representada no direito constitucional de fiscalisar todos os actos da administração, em relação á ordem publica; competencia esta completamente distincta da pura e simples execução das leis, que a outro poder compete, é um dos meios pelos quaes por parte do poder legislativo se realisa o principio constitucional, segundo o qual, na economia dos grandes poderes politicos do estado, nenhum d'elles é absoluto.

Cada um dos poderes politicos tem a sua competencia privativa e propria. Os tribunaes julgam, a administração executa; o parlamento faz leis. Mas o isolamento não tem logar entre estes poderes. Os tribunaes julgam livremente, mas têem a sua responsabilidade legalmente determinada perante a administração, e o julgado não impede que essa responsabilidade deva ser e seja sempre efectiva. A administração executa livremente, mas assume a responsabilidade dos seus actos para mostra-los conformes com a lei, com os principios sociaes e com as conveniencias publicas. É perante o parlamento que essa responsabilidade se torna politicamente efectiva, embora na ordem da administração possa sê-lo igualmente perante os tribunaes pelo meio contencioso. Nem tão pouco o parlamento é absoluto nas suas deliberações legislativas, para serem efectivas carecem ellas, pela constituição do estado, da concorrencia de outro poder que as sanccione.

É este no systema representativo o machinismo politico dos poderes do estado que funcciona a par do machinismo administrativo, e assim se realisa o grande principio constitucional da harmonia dos poderes pela discreta comprehensão e pela pratica do principio: que nenhum poder póde nem deve poder tudo. É assim que na linguagem dos homens d'estado a responsabilidade tem sempre sido considerada como synonymo de administração.

Seria bem ineficaz o systema representativo se a violação dos seus principios fundamentaes, se a offensa da liberdade politica pelos agentes commissionados do poder executivo, podesse ser subtrahida da responsabilidade politica sempre effectiva, indo acolher-se de traz do julgamento privativo de um tribunal qualquer de administração.

O poder executivo, ao qual a lei por motivos de ordem publica confere o direito de demittir livremente os seus funccionarios, de dissolver os corpos de administração e de sanccionar as suas resoluções, não póde ser privado d'aquella attribuição sob o pretexto de que os actos que devem determinar a sua confiança ou a recusa d'ella, estão por outra ordem de principios affectos a um tribunal para se tomar conhecimento unica e exclusivamente dos seus resultados legaes.

Os tribunaes conhecem das consequencias legitimas dos factos, mas o governo aprecia a responsabilidade moral e legal que d'elles resulta para com o poder, e em virtude d'ella determina a sua confiança e delibera livremente dentro das attribuições que a lei lhe confere. É esta a responsabilidade do funccionario na ordem da administração; responsabilidade que prende e se liga sempre com o poder central que representa o estado. É n'esta esphera superior que o parlamento exerce livremente a sua vigilancia e fiscalisação sobre a acção do governo. Mas se á luz dos principios a liberdade e o poder arbitrario se excluem assim reciprocamente, nada ha todavia na ordem dos factos que mais tenha pretendido confundir-se!

Se por uma parte a faculdade de executar é privativa do poder executivo nos differentes ramos, em que este se partilha; por outra parte o alto poder de exame vae mais longe, e é pela lei e pelos principios depositado no centro da representação nacional, como poder directo da nação, ao qual é confiada a suprema guarda e a superior defeza da constituição do estado.

. Desde que ao governo, como poder executivo, assiste sempre um meio de fazer respeitar os principios de administração e de restabelecer o estado de direito perturbado ou offendido, a sua responsabilidade está por esse facto determinada, e ao poder legislativo como investido da suprema acção fiscal compete o direito de conhecer dessa responsabilidade e de a fazer tornar efectiva.

Em todos os paizes em que o systema representativo é respeitado na sua integridade, este principio e esta pratica é reconhecida sem controversia. Assim acha-se elle consignado nas successivas leis politicas do nosso paiz, desde que n'elle foi fundado o regimen constitucional. É seguido pela tradição não interrompida do parlamento inglez. Tem sido reconhecido em França desde a celebre resolução tomada na demissão de Necker, sempre que o systema constitucional ali tem estado em plena execução. É estabelecido na constituição do reino da Belgica e nas leis politicas do reino de Italia. Na Hespanha tem sido igualmente respeitado sem dar margem a hesitações.

Por toda a parte nos tempos normaes da administração a sua responsabilidade efectiva e directa em todos os seus ramos para com o governo e do governo para com o parlamento, tem sido considerada como dogma do systema representativo. É esta a suprema inspecção politica que distingue, da antiga formula dos governos absolutos, os parlamentos dos governos constitucionaes.

Não queira confundir-se esta superior attribuição politica com a concentração do poder executivo no longo parlamento em Inglaterra ou na convenção nacional na França, como no debate parlamentar se quiz suppor. A historia não o permitte sem que se pretenda desvirtua-la.

O longo parlamento representou a revolução no poder, foi uma invasão contra o poder executivo, que absorveu e concentrou em si, como este pouco antes havia invadido as attribuições do parlamento. Se no meio da guerra e da luta que dilacerava a Inglaterra, elle chegou a realisar a formula pela qual a anarchia tem pretendido mais de uma vez constituir governo estável—a concentração dos dois poderes em uni unico, é bem certo que o poder que acabava de ser abatido nos campos de Naseby, não pôde ficar concentrado por muito tempo d'aquella assembléa politica. A realeza e a nobreza fôra aniquilada pelos golpes do parlamento, este tinha de perecer com ignominia ás mãos do chefe do pequeno bando dos independentes. Era o poder discripcionario da revolução que a si proprio se destruia! Abatendo aquella assembléa manchada pelo crime, e que pouco antes havia sido o instrumento da sua elevação, Cromwel, pôde escarnece-la com a mais pungente e baixa ironia, sem que o paiz mostrasse sentimento dever assim abatido o corpo politico que por tão largo periodo dispozera dos seus destinos. Humilhante, mas merecido castigo do prolongado desprezo pela moral de um povo, de que se havia abusado até ao extremo!

É esta a triste, mas instructiva lição da historia.

Todas as vezes que as administrações têem desconhecido a voz da opinião publica ou que o espirito publico se tem achado profundamente abatido, uma facção intrépida e ousada, qualquer audacioso aventureiro, um exercito passivo obedecendo á voz de um general infiel, ou uma turba amotinada, têem podido, sem resistencia, assenhorear-se do poder, explorar por algum tempo a paciencia de um publico, que se insurge difficilmente, erigir-se em povo debaixo da vista do verdadeiro povo, fallar e obrar em seu nome, e abalar as mais sãs doutrinas sociaes, que devem fazer a educação da nação.

Os erros do poder executivo abriram o caminho aos excessos do longo parlamento; os excessos e os crimes d'este tor-

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naram o seu abatimento e a sua humiliação indifferente ou talvez agradavel ao paiz que a presenciava, porque era esse mesmo que havia supportado o seu jugo oppressivo e immoral.

Os mesmos erros que na Inglaterra elevaram, e mais tarde abateram aquelle corpo politico ou a revolução e a anarchia, prepararam a convenção em França e a arrastaram pouco depois na sua rapida queda. Foi sempre o successivo sacrificio dos principios constitucionaes feito ás ambições de poucos audazes, que pela hypocrisia dos principios chegaram a abater o poder constitucional, para sustentarem em seu logar o poder da anarchia com as praticas do terror.

Mas as epochas do longo parlamento e da convenção passaram para não poderem repetir-se porque o bom senso dos povos as proscreveu.

Cada epocha politica tem tido a sua missão; os governos absolutos acabaram com a sociedade do feudalismo, substituindo-lhe uma forte e estreita cohesão central; mas como a base em que assentavam era viciosa, realisada aquella missão cessou a sua rasão de ser. A revolução veiu destruir o antigo regimen, mas não pôde constituir governo; seguindo unicamente a idéa da liberdade não cogitou da ordem, e uma sem a outra não podia subsistir como systema de governar. Só a união d'estes dois principios deu o verdadeiro caracter de governo das sociedades modernas, chamando todos os elementos sociaes para a representação politica, não em homenagem ao poder do numero, mas sim como criterio para extrahir do seio da sociedade a rasão publica, que unicamente tem o direito de a dirigir.

Todas as condições do systema representativo procedem d'este principio. A eleição, a publicidade, a responsabilidade são outros tantos meios de pôr em evidencia os elementos do poder legitimo, e de prevenir e evitar as usurpações. É assim que no systema representativo não basta o poder do voto, quando elle não é a expressão dos principios, porque, lhe falta o favor da opinião, e sem esta não ha legitimidade de poder. Se as maiorias fazem a lei, não são ellas que criam a opinião. — A opinião escuta os discursos, pésa as rasões, não conta os votos; dizia ha pouco uma das mais robustas intelligencias da França, o sr. E. Girardin.

D'esta generalisação de principios procede a idéa da responsabilidade effectiva em todas as ordens do poder publico, e é por ella que deve aferir-se a competencia dos parlamentos para apreciar a responsabilidade politica dos governos pelos actos, que em toda a vasta ordem da administração offenderem os principios de ordem publica. Attribuição tão vasta, quanto é vasta a administração generalisada em todos os seus ramos; tão larga quanto é larga a-execução e a observancia das leis sociaes, em que é baseada a ordem da sociedade.

Dentro d'esta esphera, no exercicio severo e digno d'esta alta missão, não se abre, como se pensou, passagem ás usurpações e ás dictaduras, ao contrario cerra-se. Não tem sido o serio e rigoroso exercicio dos deveres politicos, que tem aberto aporta ás invasões contra o poder representativo; a severidade dos costumes politicos nunca franqueou o passo para a usurpação, esta tem-se elevado quasi sempre sobre as situações corrompidas e gastas perante a opinião publica. A representação nacional não tem a temer aquellas invasões, quando inflexivelmente cumpre o seu dever; quando assim procede tem o apoio da rasão, publica, e é só esse apoio que pôde tornar fortes e permanentes as situações politicas.

Sustentar os direitos da liberdade onde os vir offendidos, pedir a responsabilidade onde quer que ella esteja, é o supremo direito e o indeclinavel dever do parlamento e do paiz que elle representa. É esta a barreira unica e efficaz contra as tentativas maliciosas que na confusão geral mais de uma vez têem procurado meios de elevação.

Hoje que da sociedade em pó, na phrase de Royer Collard, nasceu a centralisação moderna; hoje que é esse o systema politico da administração, se se deixarem affrouxar os laços da responsabilidade do governo quando se trata de velar pelas consequencias da liberdade, é licito sem paixão perguntar em que senda se pretende lançar o paiz? Quem ha que perante elle queira assumir a grave responsabilidade das consequencias? A independencia dos poderes, senhores, consiste na liberdade da acção, mas não na isenção da responsabilidade perante o poder, ao qual o mandato popular impoz o dever de vigiar pela guarda da constituição e pela execução das leis como uma das mais preciosas attribuições da soberania nacional, cujo deposito lhe é confiado.

Liberdade politica — suspeições politicas e devassas politicas

O governo livre exijo duas cousas como condições indispensaveis da sua existencia: a intervenção efficaz do paiz na direcção dos nescios publicos, e a sua fiscalisação sobre a maneira por que esses negocios são conduzidos. O primeiro tem por base o respeito da liberdade politica, o segundo alarga a area da responsabilidade e torna-a sempre effectiva. O primeiro condemna o subversivo principio das suspeições e das devassas politicas; o segundo traduz-se na theoria da competencia parlamentar, a que consagrei as primeiras paginas d'este voto em separado.

Ha nas sociedades politicas principios communs e superiores a todas as constituições; principios de tal maneira sagrados e necessarios, que uma constituição politica não poderia esquece-los, e uma assembléa illustrada repudia-los, sem fazer retrogradar a civilisação e desprezar a origem da sociedade e do poder. Quando o antigo regimen abatia a liberdade politica, aniquilava com ella os cimentos do systema representativo, mas abria, sem o pensar, o caminho para a sua propria ruina, porque suffocava um grande sentimento e desprezava uma grande necessidade social.

E na liberdade de representação que consiste a base fundamental da liberdade politica, e para que aquella seja efficaz é mister a igualdade de representação e a garantia do seu livre exercicio. A liberdade politica abre o campo a todas as outras liberdades, e assegura-lhes os seus resultados; a liberdade, administrativa e a liberdade economica dependem d'ella por uma successão necessaria. Mas para que aquella liberdade seja efficaz é mister que entre na vida pratica e seja ahi reconhecida. O principio e o fundamento do direito publico n'esta materia é que é mister ligar a existencia do estado ou da entidade governo com a existencia da nação; fazer penetrar no povo, com a pratica sincera da liberdade, a sciencia, a convicção e o amor da mesma liberdade. Sem que se dê este passo todos os outros esforços são infructiferos. Unir o seu destino ao destino da nação de maneira que o povo estime viver ligado á fórma de governo que o rege, deve ser a aspiração de todos os governos illustrados, como é e têem sido os desejos e as aspirações de todos os homens politicos liberaes.

A Inglaterra pelejou quasi todas as suas lutas incruentas para assegurar a liberdade politica. Quando forçava a mão de João Semterra a confirmar-lhe as suas antigas liberdades, consolidava assim a liberdade politica, que já então havia transposto o modesto recinto do municipio, para vir tomar o logar que lhe competia no grande movimento ascendente d'aquella sociedade. N'essa epocha uma grande parte das nações, então mais cultas, possuiam instituições analogas, e não as amavam menos, mas não souberam sustenta-las. D'ahi procedeu a origem da sua decadencia ou o estacionamento que as acompanhou durante seculos.

Quando a França, fatigada e abatida das desordens dos tempos do rei João e de Carlos VI, consentiu que os seus successores lançassem impostos sem o concurso dos estados, recebeu sem o pensar o golpe que bem depressa ía pôr termo á sua liberdade politica. N'esse caminho do reacção se mais tarde so fazia emmudecer a provincia a pretexto de cohibir os seus desvios, era para sobre as suas ruinas se elevar o l’état c'est moi de Luiz XIV, que duas gerações depois viram duramente expiado pelo martyrio politico de um rei bondoso, cujo erro unico foi não saber ou não poder identificar-se com o espirito do seu tempo, e imprimir-lhe a direcção antes que elle intentasse arrasta-lo na torrente, julgando-o seu contrario.

As côrtes da Corunha, antepondo o respeito por Carlos I aos deveres do seu mandato, e pondo de parte os principios da sociedade que apresentavam para seguir o homem que lhes inspirava confiança ou medo, sanccionaram uma vez a doutrina que cerceava a liberdade do povo; n'esse dia, aceitando de facto o desprezo de uma liberdade publica, prepararam para Filippe II a soberania de direito divino de que elle e seus successores abusaram até ao excesso.

Pela mesma epocha passava entre nós, no meio do ruido das armas e do enthusiasmo das victorias, a concentrar-se no chefe do estado, a liberdade politica que as côrtes anteriores haviam sustentado com vigor e independencia no meio das formas imperfeitas do poder representativo. A decadencia então d'esse poder deixou sem correctivo os erros e as imprudencias que, engrossando de dia para dia, comprometteram a corôa nas aventuras de Alcacer-Kibir. e abriram as portas á dominação de Hespanha, que encontrou facil o passo, porque invadia um paiz que, abatido tios seus antigos brios e quebrados os costumes, não pôde ou não soube sustentar a bandeira da independencia que antes havia levantado nos campos da batalha.

É assim que por toda a parte por onde a historia mostra sacrificada a liberdade politica, encontra-se sempre a decadencia do systema politico ou da sociedade que o consentiu.

Em 1813 o conde Molé ao apresentar a lei das finanças ao corpo legislativo em França, annunciou-lhe que d'ahi em diante unicamente se reuniria de tres em tres annos para votar o imposto e receber as contas das rendas publicas. O discurso d'aquelle homem politico foi a oração funebre do systema representativo no seu paiz! Aquella sessão terminou da parte do parlamento pela fingida ostentação de confiança que desde muito já não existia para com o poder, e de fidelidade que cada dia mais se tornava vacilante. A liberdade politica que assim recebia continuos e successivos golpes, espirava n'aquelle momento no seio de um corpo legislativo corrompido, sem principios e sem crenças, que nem sustentava a liberdade, nem dava força ao poder, porque perante elle se havia humilhado.

Eis-aqui como em todas as epochas a decadencia das instituições livres tem começado sempre pelo desprezo da liberdade politica; liberdade que, no meio das grandezas e das glorias da França, faz hoje a saudade e constitue a aspiração dos seus homens d'estado mais illustres.

«Dae á França a liberdade politica pura e sem reserva, dizia ha pouco um dos mais distinctos homens publicos d'aquelle paiz. Não tendo a França, nada mais a reivindicar, nem igualdade civil, nem igualdade eleitoral, nem liberdade politica, os partidos nada mais terão a prometter-lhe. Não tendo mais nada a prometter-lhe, desapparecerão por si mesmos, como effeitos que não têem causa.»

É pela liberdade politica que se cria e desenvolve o espirito publico no povo. O governo mais estavel da Europa será o que repousar ao abrigo d'aquella liberdade sem sophisma e sem violação: a Inglaterra é o exemplo desde remotas epochas, e de nossos dias a Belgica é um admiravel, modelo. E pode-lo-hão de certo ser todas as outras nações em que o espirito publico for reconhecido e acatada a sua influencia no governo do estado.

Mas se d'esta comprehensão absoluta da liberdade politica ou da liberdade constitucional em si e nas suas relações historicas passámos a aprecia-la mais especialmente nas suas relações com o governo da sociedade, chegámos ás mesmas consequencias.

Na pratica dos governos livres a liberdade politica, representada pela liberdade do suffragio, tem a natureza de uma instituição fundamental. Os attentados praticados contra esta liberdade não são unicamente a violação dos direitos politicos dos cidadãos, vão mais longe; buscam mudar o estado do governo e opprimir a sociedade.

O systema constitucional é um systema da representação do paiz, que deve assentar sobre a verdade do voto, verdade que não pôde existir sem a ampla liberdade effectiva de votar sem perigo e sem intimidação.

A nossa lei politica teve em vista este importante principio, e abriu uma vasta area no systema da representação nacional. —Representação nacional nas assembléas politicas:

—Representação nacional nas assembléas das grandes circumscripções em que a administração se divide:

—Representação nacional na administração local da municipalidade.

No municipio, no districto, no paiz, vê-se sempre reconhecido o principio da representação da nação, como meio pelo qual deve exercer-se a sua soberania. Quem diz votos, diz liberdade devotar; diz liberdade de manifestar publicamente o voto; diz liberdade de o discutir; diz nenhuma limitação dos direitos do cidadão pelo exercicio d'esse grande dever social. Todos estes grandes factos são a consequencia necessaria do publico exercicio d'aquelle direito. Grande concurso de todos os individuos para o livre exercicio dos direitos politicos; grande concurso de todos os partidos no interesse da liberdade e do paiz; tal é a indole e a lei dos systemas constitucionaes que não são falseados na sua applicação. A liberdade eleitoral não é a cupula do edificio social, é o seu fundamento. Se o não fosse sobre que base repousaria aquelle edificio?

Esta ampla liberdade no exercicio do direito politico mais importante do cidadão achava-se já garantida nos nossos principios geraes de direito eleitoral, quando foi expressamente ratificada no artigo 39.° da lei de 28 de novembro de 1859, como homenagem prestada a um grande principio, que ninguem esperava então que tão cedo podesse ser violado.

Mas a suspeição politica é a contradição formal de tudo quanto fica exposto, porque é a subversão d'aquella liberdade politica e o mais alto attentado contra a constituição do estado.

Que lei do antigo regimen poderá haver que, tendo taes resultados politicos, possa julgar-se actualmente em vigor?! Que acto do executivo a poderá restabelecer ou suscitar em contravenção da lei politica do estado?!

Se um similhante principio estivesse recebido nas nossas leis (e eu mostrarei que não o está) como esse principio seria falso em vista do systema constitucional do paiz, não poderia por isso ter auctoridade e teria caído com a outhorga de uma constituição politica que lho é contraria, porque a carta derogou todas as leis que lhe fossem oppostas ou incompativeis com o systema que ella vinha estabelecer.

— Os povos barbaros, dizia um philosopho, fazem tudo com as armas; os governos corrompidos dos povos civilisados imaginam que podem fazer tudo com as leis, e enganam-se. As leis que se dirigem ou applicam a uma nação esclarecida e attenta têem necessidade da aceitação tacita da rasão; se não a obtem, não têem o principio de vida, e perecem. —

Possue o povo alguma instituição tutelar, obra das suas mãos, creada no seu interesse e para a sua defeza?

Na ordem da administração local possue o municipio; mas esse, infelizmente, despido de uma grande parte da importancia que deveria ter, e que já teve quando serviu de abrigo e foi a defeza das liberdades publicas. Quanto ao mais a sociedade está centralisada; a grande administração assim como a politica acha-se concentrada nas mãos dos governos. Que ha no paiz que efficazmente possa oppôr obstaculo ás consequencias d'este poder de absorpção? É a garantia e a segurança da liberdade constitucional que em si abriga todas as outras liberdades, e que é um verdadeiro poder de resistencia e de opposição ás demasias d'aquelle outro poder muitas vezes excessivo e perigoso.

Se a liberdade politica ou a liberdade eleitoral, que é a sua expressão mais viva, poder ser posta em duvida; se nos archivos das nossas velhas leis vigora alguma que justifique a violação d'esse principio; se os poderes publicos chegam a reconhece-la como efficaz, perguntarei se não fica aberto o passo para a oppressão politica, embora apparentemente acobertada com a apparencia da constituição do estado?! Não será assim reconhecida de facto a lei dos suspeitos, não já por serem contrarios á politica dominante, mas por exercerem livremente o direito eleitoral, que a lei quer que seja liberrimo em si e nas suas consequencias, e que se o não for, será a sophismação do systema representativo e o escarneo da lei fundamental!?

Quem diz systema constitucional, diz soberania da nação; e quem diz soberania da nação, diz livre representação de todos, livre participação de todos no exercicio d'essa soberania que é manifestada pelo voto. A liberdade eleitoral é por isso uma instituição soberana nos systemas de liberdade; é o proprio regimen constitucional. Eu não perguntarei se a violação reconhecida de um similhante principio é conforme ás velhas leis do antigo regimen; perguntarei unicamente se é possivel! Cale-se a constituição, calem-se os direitos e responda unicamente a prudencia!...

Não se abate e não se humilha pois o parlamento que combater uma tão perigosa e attentatoria invasão no campo da liberdade! Quando é opprimida a liberdade municipal, quem ha que possa ver uma degradação em vir em seu auxilio! Foi ali o berço da liberdade politica; foi ali que se refugiou nos dias de provação e desgraça; é ali que o systema representativo deve ir procurar a principal base para a sua estabilidade futura.

Ali devem acatar os parlamentos as tradições venerandas da liberdade, e saudar o germen de uma futura transformação da sociedade politica. Não se abate, senhores, o paiz que sustentar a liberdade politica na sua manifestação mais nobre e importante; na sua atmosphera é que não respira bem quem a quizer cercear. Quem ha que possa julgar-se pequeno quando se defende uma liberdade publica, ou ter a louca pretensão de reputar-se grande quando a deixa impunemente abater no seu paiz?!

Mas felizmente a opinião de que no nosso direito escripto, no seio do systema representativo, existe como lei o principio das suspeições politicas, e por isso das devassas politicas,

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para servirem de fundamento aquellas, não passa de uma ligeira preoccupação, sem precedentes em trinta annos de pratica de regimen constitucional, e sem base alguma no systema das nossas leis vigentes. É o que passo a sustentar.

Se nas leis patrias em vigor existe o principio das suspeições politicas e das investigações ou syndicancias politicas applicadas as exercicio da liberdade eleitoral

Examinemos primeiro os factos que motivam o extraordinario exame d'esta doutrina.

1.º Dos documentos officiaes e que foram presentes á commissão, consta que, tendo as camaras municipaes do districto de Villa Real feito a designação das respectivas assembléas eleitoraes, d'essas deliberações foram interpostos recursos para o conselho de districto em petições que se acham publicadas na collecção dos documentos juntos ao parecer da camara dos dignos pares. Conjunctamente foram apresentados requerimentos dos mesmos recorrentes, nos quaes davam de suspeitos para julgar estes recursos tres membros effectivos do conselho de districto, por se acharem, diz-se ali, altamente empenhados nas eleições do districto em favor de um dos partidos que se debatiam, e de que elles eram os proprios chefes. Consta tudo dos documentos officiaes presentes ao governo, e já publicados, e dos officios do governador civil de 31 de dezembro e de 4 de janeiro, nos quaes se encontra uma conta circumstanciada de todos estes acontecimentos.

D'aquellas petições de suspeição que continham uma asserção gratuita, porque não era documentada nem d'ella se fez prova, não foi dado conhecimento aos membros do conselho de districto a que se referiam; e pelo governador civil foi tomada a deliberação de fazer convocar os membros substitutos do mesmo conselho, aos quaes reunidos em conselho as apresentou, e por elles, sem audiencia dos suspeitados nem prova da materia allegada (quando ella mesmo fosse objecto de suspeição), foram estes julgados suspeitos para tomar parte nas deliberações do conselho sobre os assumptos referidos. D'esta deliberação arbitraria queixaram-se ao governo aquelles cidadãos, e sobre essa queixa foi pelo ministerio do reino, em officio de 24 de novembro, mandado ao governador civil que desse promptas informações, ao que aquelle funccionario não satisfez officialmente na epocha exigida.

2.º Consta dos documentos officiaes que posteriormente tendo o conselho de districto de julgar da validade da eleição municipal, novamente foi allegada a suspeição dos mesmos membros do conselho de districto pelo motivo de já haverem sido julgados suspeitos para as deliberações anteriores; e porque, acrescentou-se, haviam tomado parte activa nos trabalhos eleitoraes; sem que todavia se allegasse ou provasse qualquer offensa de lei ou excessos praticados por aquelles cidadãos no exercicio do direito eleitoral que os constituissem criminosos.

Consta igualmente que depois por outra parte se requereu que, visto que o conselho já havia recebido como boa doutrina o averbamento de suspeição pelos motivos já referidos, pelo mesmo fundamento e por se dizer que haviam sido auctores das violencias praticadas no acto eleitoral, foram dados de suspeitos o governador civil como presidente do conselho de districto, o secretario geral como presidente eventual e outros vogaes do mesmo conselho.

3.º Por circular de 7 de dezembro o governador civil mandou proceder pelas administrações dos concelhos do districto a um rigoroso inquerito jurado, para se conhecer quaes eram os membros do conselho de districto ou dos conselhos anteriores que haviam tomado parte activa na questão eleitoral, a fim de serem dados por suspeitos. E dizendo-se que d'esses inqueritos resultára que só os tres mencionados membros do conselho haviam tomado parte activa nos trabalhos eleitoraes, resolveu o governador civil, julgando-se auctorisado pelas disposições do artigo 234.° do codigo administrativo, desprezar

1 Governo civil de Villa Real —1.º repartição — N.° 8,1 —Circular — Urgentissimo. — Ill.mo sr. — Para poder avaliar-se o interesse que nas ultimas eleições camararias houvessem tomado os cavalheiros constantes da relação inclusa, os quaes compõem o quadro do conselho administrativo d'este districto, tanto do actual biennio como dos anteriores, e conhecer-se conseguintemente a imparcialidade presumivel com que possam n'aquella qualidade ser juizes nos processos relativos ás mesmas eleições, de que podem ser chamados a conhecer; cumpre que V. s. proceda sem demora a um rigoroso inquerito, ouvindo as pessoas, que com mais verdade, circumspecção e conhecimento de causa, o possam esclarecer sobre se os cavalheiros de que trata intervieram nas eleições por fórma que manifestassem directamente, por intervenção de seus amigos ou por qualquer outra maneira, decidido empenho pelo vencimento de algum dos partidos que se debateram nas ultimas eleições camararias, quer com relação a esse concelho, quer com relação a qualquer outro ou a todos d'este districto.

Esta averiguação, contendo declarações juradas das pessoas que ouvir sobre o indicado objecto, deve ser reduzida a auto por todos assignados, e que me remetterá sem a menor perda de tempo.

Deus guarde a v. s.ª Villa Real, 7 de dezembro de 1863. = O governador civil, Jeronymo Barbosa de Abreu Lima. — Ill.mo sr. administrador do concelho de Alijó. — Identico aos demais administradores dos concelhos do districto.

Está conforme. = O secretario geral, José de Beires.

Relação dos cidadãos que podem ser chamados a fazer parte do conselho de districto de Villa Real nas questões concernentes ás vitimas eleições municipaes

Luiz de Bessa Correia, Antonio Tiburcio Pinto Carneiro, Antonio José Ferreira de Carvalho, Francisco Maria Cabral de Sampaio, Antonio Ludovico Guimarães, Manuel Ignacio Pinto Saraiva, Manuel Ignacio Teixeira. Antonio Pinto Machado, Antonio Osorio Sarmento de Figueiredo, Antonio Augusto Pinto Machado, José de Moura Coutinho da Silveira Monte Negro. Antonio Gerardo Monteiro, Vital Maximo Teixeira de Moura, José Joaquim Ferreira de Meirelles, Francisco José Moreira de Carvalho, Manuel Lopes de Carvalho Lemos, Antonio Botelho Correia Machado, Bernardo Pereira Rebello, José Paulo Teixeira de Figueiredo, Bernardino Felisardo de Carvalho Rebello, Antonio Cabral de Vasconcellos e Antonio Alves de Aguiar.

Está conforme. = O secretario geral, José de Beires.

N.B. Em todos os autos de averiguação, que estão publicados unicamente foram achados suspeitos de parcialidade os tres vogaes pertencentes ao partido denominado da opposição, e que foram depois dados do suspeitos!

a suspeição que lhe fôra opposta; a que fôra opposta ao seu secretario e todas as outras, submettendo unicamente as offerecidas contra os tres vogaes effectivos do conselho de districto já mencionados, as quaes por aquelle conselho foram julgadas procedentes.

4.º Vê-se finalmente que o conselho assim composto, e funccionando apenas com ires vogaes e o governador civil, resolveu, em sessão de 29 de dezembro, os recursos interpostos contra a validade das eleições nos concelhos de Villa Pouca de Aguiar, Sabrosa, Murça, Peso da Regua, Alijó, Mondim de Basto e Boticas; em sessão de 30 de dezembro, estando presentes os vogaes que haviam funccionado na sessão antecedente e dois vogaes que haviam servido nos biennios anteriores, resolveu os recursos relativos ás eleições dos concelhos de Chaves, Santa Martha e Villa Real, abstendo-se de votar n'este ultimo recurso um d'aquelles vogaes.

De todo este procedimento exigiu o governo esclarecimentos do governador civil que d'elle deu conta circumstanciada nos officios de 31 de dezembro e 4 de janeiro, instruindo-os com todos os documentos officiaes, que podiam esclarecer aquelles factos.

Resulta dos acontecimentos referidos, conforme a exposição da propria auctoridade administrativa superior do districto e dos mais documentos officiaes:

1.º Que pela auctoridade administrativa foram por duas vezes submettidas ao conselho de districto suspeições politicas.

2.º Que essas suspeições quando apresentadas nas sessões do conselho de 13 de dezembro e seguintes, foram simplesmente allegadas e não provadas, tomando-as todavia o conselho em consideração, e julgando-as procedentes.

3.º Que sobre ellas não foram ouvidos os membros effectivos do conselho dados de suspeitos.

, 4.° Que no julgamento principal sobre os recursos eleitoraes funccionou o conselho sem o numero legal.

5.º Que para instruir as suspeições politicas apresentadas da segunda vez, o governador civil mandou abrir devassa jurada em todos os concelhos do districto para se conhecer quaes eram os cidadãos que se haviam empenhado na luta eleitoral.

6.º Que o governador civil por si só resolveu apresentar ao conselho de districto umas suspeições e outras não, denegando assim justiça arbitrariamente, visto que o mesmo motivo politico era por elle julgado legal para provocar uma decisão do conselho.

7.º Que n'esse julgamento igualmente não foram ouvidos os membros do conselho dados de suspeitos.

8.º e ultimo. Que de todas estas resoluções foi dada conta circumstanciada e documentada ao governo em 31 de dezembro e 4 de janeiro em officios do governador civil d'aquellas datas, instruidos com todos os documentos officiaes, que evidenciavam os factos apontados.

Taes são os pontos de facto comprovados pelos documentos officiaes remettidos ao governo, sobre a grave questão comprehendida debaixo da designação de suspeições politicas.

A questão de facto está pois posta em evidencia perante a camara, e esteve-o perante o governo desde que este recebeu as representações dos queixosos e as informações documentadas da auctoridade administrativa, a que já me referi.

Examinarei agora a questão legal sobre este mesmo ponto.

As suspeições politicas de que foram averbados os membros do conselho de districto, o as devassas politicas a que procedeu o governador civil, não têem fundamento no direito das ordenações do reino, em que se tem querido ir baseadas, e quando ahi o tivessem, essas disposições estariam hoje derogadas pela lei politica que inaugurou o systema representativo entre nós.

Foi esta a ordem das minhas idéas manifestada na discussão parlamentar, é a mesma que seguirei aqui.

Não discutirei n'este logar qual dos dois systemas é o preferivel, se o que admitte a faculdade de suspeitar o julgador e recusa-lo por isso; se o que não suppõe favor ou parcialidade no juiz que primeiro que tudo se obrigou por juramento a administrar a justiça com uma severa integridade, e cuja auctoridade depende consideravelmente da idéa que d'elle se formar a este respeito. O primeiro é aceito pelos paizes cultos do continente da Europa; o segundo tem em seu favor a pratica da Inglaterra.

Não julgo tambem que na pratica dos tribunaes deva hoje soffrer contestação a faculdade de oppor suspeições perante os tribunaes administrativos.

O decreto de 9 de abril de 1830 resolveu este ponto definitivamente em relação ao conselho de estado, e antes d'elle o direito do processo civil era já applicado na escala dos tribunaes administrativos. É isto unicamente o que se resolve na portaria de 15 de agosto de 1840, que vinte e quatro annos mais tarde tinha de ser pela primeira vez arbitrariamente interpretada contra o exercicio legal e justo das liberdades politicas!

Na epocha d'aquella portaria podia ser duvidoso se em materia de contencioso administrativo podiam ser admittidas suspeições. Ha pouco que havia sido estabelecida no paiz a competencia do contencioso administrativo; e não é muito que então se duvidasse entre nós sobre este ponto, quando em França por muito tempo se duvidou e duvida ainda da mesma faculdade, pela falta de lei positiva que a estabeleça e generalise. Mas nem em França nem em Portugal se tratou de outra ordem de suspeições que não fossem as do processo civil.

A questão, se no silencio da lei administrativa se deve applicar aos juizes administrativos, as regras do direito commum sobre suspeições; direito commum que em França é o artigo 378.° e seguintes do codigo de processo civil, tem sido e é ainda, apesar dos arestos que a jurisprudencia aponta, objecto debatido entre os homens mais competentes que têem escripto em administração n'aquelle paiz. Impugnou-o o sabio Cormenin, ainda hoje o impugna o sr. Dufour, porque a applicação do direito commum na ordem administrativa envolveria a idéa de que os membros dos tribunaes de administração são verdadeiros juizes, caracter que rigorosamente não se lhes poderia reconhecer, porque ao governo assiste o direito de dissolver o tribunal ou de não homologar a sua decisão.

Eu não hesito porém em reconhecer que. o principio das suspeições civis, em materia de administração contenciosa, tem hoje a sancção da jurisprudencia n'aquelle paiz, e que as disposições do codigo do processo civil são geralmente applicadas nas relações administrativas. Assim tem sido julgado por differentes accordãos do conselho de estado; assim é seguido por Serrigny, Foucard, Chauveau, Sólon e muitos outros.

Eu devo notar que se acha ali expressamente decidido pela jurisprudencia incontroversa dos tribunaes, que nenhuma incapacidade resulta para os membros de um conselho que emittiram a sua opinião e votaram em assembléa geral sobre questões submettidas ao seu exame no interesse publico, para as decidirem depois no julgamento contencioso. Que o professor accusado disciplinarmente perante o conselho de instrucção pública, em virtude de uma condemnação correccional por excitação ao odio e ao desprezo do governo, não podia recusar como suspeito o presidente d'aquelle conselho, reitor da universidade, sob pretexto de que na sua qualidade de ministro da corôa era parte interessada na accusação.

A doutrina das suspeições politicas pois não encontraria de certo melhor acolhimento n'aquelle paiz se nas suas epochas normaes alguem ali pretendesse faze-la reconhecer.

Mas se entre nós, nas relações do contencioso administrativo, é admittido o principio das suspeições de direito civil, como succede em França, como se acha resolvido por lei em Hespanha, e como é aceito por todos as outras nações cultas em que a doutrina das suspeições é recebida; que latitude pôde ou deve dar-se ao direito civil applicado n'estas relações? ou antes que latitude tem a faculdade de suspeitar que ali se admitte?

Este ponto tem uma grande importancia, porque n'esta questão das suspeições politicas tem-se pretendido entende-lo de uma maneira que tende a admittir uma jurisprudencia nefasta para a liberdade.

Entremos de espaço na questão.

As suspeições applicaveis em administração contenciosa são, em meu entender, as de direito civil consignadas nas leis civis, recebidas, reguladas e taxadas na jurisprudencia do paiz.

Foi assim que na discussão parlamentar sustentei este ponto como doutrina que esperava não soffresse contestação; é o que sustentarei agora com mais algum desenvolvimento, visto que se poz em duvida o que me pareceu então não poder ser contestado

A excepção que tem passado em direito por tantas vicissitudes quantas são as formas distinctas que a ordem de processo tem seguido desde seculos, é um meio de não proceder que se refere todo ao julgador, e não um meio de não receber que affecte o fundamento do direito de pedir e que constitua por isso defeza propriamente dita. Mas este caracter todo juridico da excepção não prejudica a sua importancia, porque pôde ella ir ferir outra ordem de direitos e de conveniencias sociaes, não menos graves e não menos importantes quer seja nas relações publicas, quer seja nas relações individuaes.

As differentes epochas e as differentes civilisações têem marcado uma successiva progressão na faculdade de recusar por suspeito.

Occupando-me n'este momento d'este assumpto, considero como completamente á parte as relações politicas reguladas por outros principios e por outras leis nas differentes constituições dos povos.

Nas relações politicas a serie social muito mais interrompida do que nas relações civis, deixa ver succederem-se, muitas vezes rapidamente, profundas separações de systema entre as. differentes epochas, que na ordem civil não se mostram nem tão distinctas nem tão precipitadas.

A ordem hoje garantida dos direitos individuaes tem ainda o seu fundamento nas antigas relações civis conservadas por uma longa tradição, ao passo que as instituições politicas dessas epochas, desde muito que caíram pela base. Nas suspeições o systema foi o mesmo.

Quando a liberdade politica, bem longe de ser reconhecida, era considerada pela lei como um perigo social, e sujeita por isso ao systema preventivo que punia severamente as suas manifestações, actos magestaticos do poder soberano vinham de quando em quando advertir os povos que o poder que os dominava não provinha d'elles, e que o seu dever era obedecer; expiavam assim, debaixo de um poder absoluto, os erros pelos quaes os seus maiores tornados subservientes a um poder invasor, haviam deixado perder as liberdades politicas ainda na infancia do seu desenvolvimento. N'essas epochas que passaram, as suspeições politicas appareciam por vezes como cortejo e auxiliar indispensavel do systema de compressão preventiva, que aquelle regimen admittia.

Este estado acabou quando aquelle systema succederam as instituições representativas.

Por outra parte nos governos de revolução e anarchia o systema seguido foi por vezes o mesmo. A verdadeira liberdade, a liberdade de direito não prosperou nem ao abrigo de umas instituições nem das outras. Umas, não reconhecendo a liberdade politica, não permittiam as suas manifestações porque podiam ser criminosas; outras, julgando-a um perigo, sacrificaram-na á conservação do abuso no poder. Mas a conserva

1 Disse-se na discussão (Diario de Lisboa n.° 53):

«Por esta occasião empraso o sr. deputado Mártens Ferrão para que diga, na primeira occasião que se lhe offereça, qual é a lei d'este paiz onde estão taxadas as suspeições, como affirmou. Não me presumo de jurisconsulto, e desejaria muito se-lo, mas creio que não ha lei alguma que defina e taxe as suspeições, e até me parece impossivel que a houvesse.»

- Encerrou-se o debate então sobre o illustre orador que assim exigia a minha opinião, não podendo por isso. sustentar no debate o que me parece ainda ser uma doutrina facil e constantemente seguida em direito; é este o motivo porque entro aqui mais de espaço n'este assumpto.

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ção d'estas tradições, mas a sua consagração e o seu reconhecimento ainda depois de destruido o principio da que ellas dimanavam, seria um triste precedente no seio do parlamento de um paiz livre!

0 que é pois que resta a examinar? É se essas suspeições politicas conservaram uma rasão de ser e de existir, não no systema politico, porque o antigo regimen derrocou-se com as suas consequencias; mas no systema civil da administração: ou antes, se o regimen absoluto que caiu na ordem politica póde nascer e desenvolver-se novamente, na ordem civil? Se pôde em um estado haver systema representativo na politica, e systema absoluto na administração, invadindo a ordem politica?!

É seta a verdadeira formula da questão. Enuncia-la é res

responder-lhe.

Não temos pois que apreciar a doutrina das suspeições politicas senão pelo que ella é e pôde ser na ordem civil.

Ahi tem as suspeições uma historia não interrompida, mas completamente distincta da sua historia politica.

A livre faculdade de recusar o juiz, mesmo sem expressar o motivo da recusa; a faculdade ampla de propor recusa, salva porém aos tribunaes a apreciação da justiça do motivo; a modificação d'essa faculdade substituida pela indicação de motivos legaes, a que a sabedoria dos tribunaes podia addicionar outros igualmente graves depois de convenientemente com

provados; finalmente a designação do quadro das suspeições taxado pela lei, não sendo permittido reconhecer outras que não se comprehendam em alguns á aquelles capitulos, é a serie segundo a qual a theoria das suspeições civis tem sido recebida no direito das nações. São estes os grandes periodos da historia d'este meio de afastar o juiz, se exceptuarmos apenas o desvio anormal do edicto de Nantes e da lei do anno IV em França.

A par com este principio encontra-se sempre na ordem das suspeições motivadas a obrigação de ouvir sobre ellas o juiz recusado. O contrario seria afasta-lo sem o ouvir de um dever social do seu cargo, de cujo cumprimento não pôde ser arredado por uma fórma tumultuaria e de puro arbitrio.

A ordenação franceza de 1607 exigia que as recusas fossem motivadas, contentando-se de enumerar as suas principaes causas, e deixando aos tribunaes a faculdade de as constatar e de admittir outras.

«O codigo de processo, diz um dos seus redactores (Treilhard), introduziu melhoramentos importantes na maioria das suspeições; por uma parte proscreveu o systema das recusas peremptorias, por outra parte foi uma salvaguarda da dignidade da magistratura, determinando com cuidado os casos em que é permittido á parte, recusar o juiz...

Effectivamente taes são as positivas disposições d'aquelle -código.

« Tout juge peut être recuse pour les causes ci-après...»

As causas de suspeição, diz outro dos redactores do codigo, estão traçadas na lei; não são novas, não e sobre essas causas de suspeição que póde haver divisão de opiniões, mas unicamente sobre a fórma do processo. A jurisprudencia illustrada, antes mesmo dos preceitos restrictos da lei, tinha já tirado um assumpto tão importante do vago e da incerteza de outras epochas, que unicamente se compadeceria com uma jurisprudencia menos adiantada.

Debalde quiz o tribunal de cassação conseguir um poder latitudinario para os tribunaes, a sua proposta, para que a lei deixasse á consciencia dos tribunaes decidir se outras causas que poderiam ser propostas, seriam bastante graves para motivar a suspeição do juiz, não foi admittida, e o codigo supprimiu formalmente a disposição latitudinaria da ordenação de 1607.

Eu posso asseverar, sem perigo de erro, que esta doutrina é seguida pela unanimidade dos jurisconsultos francezes o pela pratica sem alteração dos seus tribunaes.

Em Hespanha a jurisprudencia havia já consagrado o mesmo principio, que a sua legislação administrativa e civil veiu depois homologar

Eis-aqui como a impossibilidade que na discussão parlamentar se quiz encontrar de que fossem taxados os motivos de suspeição, não havia sido considerada de igual peso e procedencia na legislação das nações a que me tenho referido.

Essa possibilidade de que se duvidou, encontrou-a o codigo do processo francez, encontrou-a Treillard, encontrou-a o senado e o corpo legislativo que rejeitou o principio vago estabelecido na proposta do tribunal de cassação, tem-na encontrado a jurisprudencia dos tribunaes francezes, reconheceram-na finalmente todos os commentadores a que me referi. E não só a reconheceu a lei, a jurisprudencia e os jurisconsultos da França, mas a lei hespanhola, mas a lei da Belgica, mas a lei da Hollanda, e finalmente a lei de todos os paizes onde ha uma codificação systematica.

Depois do que fica demonstrado julgo-me auctorisado a concluir que não é tão difficil de reconhecer aquella possibilidade, quanto pareceu presumir-se na discussão parlamentar. E se suspeição no sentido vulgar é, como ali se disse, tudo quanto pode attestar que um juiz 6 parcial para julgar esta ou aquella materia; é certo que no sentido juridico a lei não entregou essa apreciação ao vago e ao indefinido, mas determinou as causas juridicas a que um effeito tão importante, quanto é afastar o juiz legitimo, deveria ser attribuido. É assim que com rasão se entendeu na legislação dos paizes a que me referi, e que a sua jurisprudencia e a opinião dos seus jurisconsultos o têem sanccionado sem hesitação.

Entre nós o direito e a jurisprudencia seguiu um systema analogo ao que foi seguido na França.

1 A lei de processo civil de 13 de maio de 18.33 e o regulamento administrativo de 1 de outubro de 1845 nos artigos 13.°, o 15.° não deixam duvida alguma sobre este ponto, porque as suas disposições são expressa e terminantemente taxativas, designando restrictamente quaes são as causas de suspeição ou recusa. Escusado é dizer que não se encontra ali a consagração da recusa ou suspeição por motivos politicos.

O systema da nossa ordenação foi o do seu tempo, as suspeições em parte foram taxadas pela lei, e em parte ampliadas segundo o juizo dos tribunaes; era o systema da epocha e que foi seguido pela ordenação franceza a que me referi. Mas entre nós a jurisprudencia tem ido até onde haviam chegado as leis nos outros paizes, e hoje as suspeições civis, e não ha outras, são completamente taxativas, parte pela lei, parte pela jurisprudencia,.. umas são certas e determinadas nas leis, outras pela praxe e jurisprudencia continuada, seguida e sanccionada por todos. Foi assim que entendi este assumpto na discussão.

Effectivamente a ordenação seguiu o systema da sua epocha vago e casuístico como é toda a codificação daquelles tempos; a jurisprudencia accommodou-o successivamente á opinião publica e ás condições do direito em epochas mais modernas. A jurisprudencia tem tido, e succede sempre assim, mais influencia sobre as velhas leis, quasi sempre vagas e hypotheticas, do que sobre os codigos organisados syntheticamente segundo os preceitos geraes e systematicos da codificação moderna.

As leis não se reformam todos os dias, e todavia as instituições e as theorias successivamente vão progredindo em harmonia com as necessidades parallelas que as provocam. Mas as leis positivas nem sempre acompanham o curso das idéas, estas supprem essa falta pela interpretação e pela intelligencia que se dá ás prescripções legaes, não fazendo com que essa intelligencia na omissão da lei prejudique as conquistas que a theoria e a opinião têem realisado. É isto o que constitue a verdadeira jurisprudencia. Em caso de duvida as leis devem interpretar-se em harmonia com a posição da sociedade para que tem de servir; é assim que a jurisprudencia illustrada suppre e tem supprido as omissões, a incerteza ou as obscuridades das leis.

Interpretar é recompor a lei pelo pensamento do legislador. Mas quem é o legislador? É o homem, de todas as epochas. O pensamento do legislador é satisfazer as necessidades sociaes que successivamente forem apparecendo; é codificar as idéas verdadeiras e justas recebidas pela sociedade; não é o homem d'esta ou d'aquella epocha, é o homem de todas as epochas que a lei tiver de atravessar.

As relações politicas estiveram concentradas em outros tempos nos assentos das côrtes e nos actos magestaticos do poder real; e unicamente n'estes quando mais tarde aquelle elemento tocou a sua decadencia. Mas as suspeições de que falla a ordenação não pertencem á ordem politica, tiveram sempre no systema daquella lei um caracter puramente civil, porque a lei era igualmente civil. Basta ler as suas disposições para haver convencimento d'esta verdade. Tem-se adduzido, como admittindo na sua generalidade o principio legal de suspeitas por politica, a ord. do liv. 3 tit. 24. Nada ha mais infundado.

Para convencer de quanto é inexacta esta opinião, bastará attender á materia e ás disposições da lei.

Seria para desejar ver demonstrar que as eleições municipaes de Villa Real pertenciam mais a algum dos membros do conselho de districto dados por suspeitos, ou a cada um dos seus parentes ou cunhados dentro do quarto grau, ou daquelles que com elles vivessem ou servissem, do que á massa geral dos eleitores daquelle districto! Mas são aquellas as hypotheses previstas na ordenação!

As eleições pertencem a todo o paiz, mas pertencem debaixo de uma relação bem distincta d'aquellas que a ordenação regulou.

Não me deterei na analyse das disposições da ordenação nos outros logares em que ella se refere a suspeições, porque n'este que exclusivamente foi adduzido, de certo por se julgar o mais applicavel, a analyse mostra quanto é infundada a sua applicação.

Mas a jurisprudencia tem determinado o vago em que se achava esta materia toda civil. E determinou-o como? Pelo resultado da pratica dos tribunaes, confirmada pela opinião dos jurisconsultos, e pela discreta, intelligencia e interpretação em vista das disposições dos codigos modernos. Assim o entenderam, sem a menor hesitação, sem o julgarem mesmo objecto questionável, os dois jurisconsultos mais distinctos que modernamente escreveram entre nós sobre este assumpto, os srs. Correia Telles 1 e Nazareth 2, que nas suas Obras entenderam que as suspeições na ordem civil estavam definidas e determinadas, não admittindo nenhuns outros motivos de suspeição mais do que aquelles que consignaram.

No regulamento do conselho do estado de 9 de abril de 1850, em que se organisou o processo perante aquelle tribunal, foram reunidos impedimentos e suspeições, e taxados ou determinados uns e outros, não se admittindo que nenhumas outras suspeições fossem permittidas perante aquelle tribunal 3. Foi assim que n'esta lei do paiz tambem não se julgou que fosse impossivel taxar e definir as suspeições.

Não encontrou igualmente essa difficuldade o sr. Seabra no seu luminoso projecto de codigo civil onde tambem se acham bem explicitamente taxadas 4. E já o codigo commercial havia entendido que unicamente certas e determinadas suspeições é que por direito eram procedentes contra os juizes.

Assim fica exposto o que é a doutrina das suspeições actualmente no nosso paiz, e como se acha regulada nas nossas relações civis, nas leis, pela jurisprudencia, e nos escriptos dos homens mais competentes.

Mas não se adduza a portaria de 14 de agosto de 1840 para justificar a doutrina subversiva que tenho combatido. Não se diga que emquanto vigorar a portaria de á de agosto, que admitte e regula as suspeições nos conselhos de districto, que emquanto prevalecer a doutrina sanccionada pela jurisprudencia administrativa, não se poderá estranhar que os tribunaes administrativos tomem resoluções ou profiram accordãos como os que foram proferidos pelo conselho de districto de Villa Real.

Não se diga, que para se poder condemnar essas suspeições politicas, será necessario formular uma proposta de lei, discuti-la e vota-la. Não se pense que, se não temos uma lei civil prohibindo as suspeições politicas, é porque ellas são permittidas, porque os tribunaes não se regulam pelos principios politicos que cada qual phantasia a seu sabor, mas sim applicam as leis existentes. 2

E não se diga tudo isto no sanctuario das leis, e não se sanccione com a resolução dos eleitos do povo, porque sanccionar-se-ha a inversão e a offensa manifesta dos principios legaes, vindo reconhecer-se na ordem civil a doutrina libertecida, que na ordem politica tem as paginas da sua historia manchadas com o sangue de cidadãos benemeritos!

Não se diga que a portaria de 14 de agosto de 1840 auctorisou uma similhante ordem de principios, porque seria absurdo sustentar que as portarias criam direito ou fazem a lei. Mas aquella portaria não contém, nem podia conter, uma similhante disposição. O que ali se diz é que a doutrina das suspeições, como existia pela lei nas relações civis, podia ter applicação nas relações do contencioso administrativo, e porquê? Porque pela lei civil, no antigo regimen, aquella ordem de suspeições era applicavel aos tribunaes que tinham a seu cargo funcções administrativas.

É isto o que significa a referencia ás leis do reino, que ali são_ citadas.

É esta ainda a doutrina que se encontra na consulta do procurador geral da corôa, de 31 de julho do 1839, e que mal adduzida foi para auctorisar a opinião anticonstitucional que pela primeira vez foi sustentada a pretexto das eleições camararias no distrito de Villa Real!

Se na legislação civil não está admittido o principio das suspeições politicas; se os actos absolutos ou revolucionarios que nas lutas politicas da liberdade contra o absolutismo ou contra a anarchia, as sanccionaram, caíram com o poder illegal e abusivo de que dimanaram; não pôde conceber-se, como se pretende hoje, que essas usurpações contra a moralidade e contra as liberdades individuaes, sejam lei nos nossos tribunaes, possam ser por elles applicadas, e que para o impedir seja mister fazer lei nova!...

Lei nova!... Lei é a carta constitucional da monarchia que acabou com o poder absoluto e discripcionario, unico de que podiam dimanar aquelles actos. Assim o segui na discussão parlamentar; assim o vejo sustentado sem hesitação na luminosa conclusão do parecer da commissão da camara dos dignos pares, e sanccionado com o voto quasi unanime daquelle corpo co-legislador.

De toda esta rapida apreciação resulta que, nem pela theoria e pela lei politica; nem pela lei civil, as suspeições politicas podem ser reconhecidas como legaes e justificaveis, tendo sido por isso uma manifesta e abusiva exorbitancia do poder, para influir illegalmente no processo eleitoral; processo que pela lei e pelos principios constitucionaes deveria ser a expressão da liberdade politica dos cidadãos e não da vontade arbitraria dos governos ou das suas auctoridades de confiança.

Admittidas as suspeições politicas pela auctoridade administrativa e pelo conselho de districto de Villa Real, encontra-se ainda debaixo d'essa hypothese illegal e violenta uma nova serie de illegalidades e de abusos.

É expressa nas leis patrias a obrigação de ouvir previamente os julgadores, que são dados de suspeitos. Assim o ordena a lei (ordenação, liv. 3.°, tit. 21.°, § 4.°) que o juiz da suspeição mande que o julgador, a que for posta, deponha a ella pelo juramento do seu officio, posto que a parte diga que não quer o depoimento do recusado.

Este principio encontra-se sem excepção alguma estabelecido em muitos outros logares da ordenação, e constantemente seguido na legislação posterior, podendo dizer-se que é um principio de jurisprudencia universal, porque é esta igualmente a disposição de todos os codigos das nações cultas. A audiencia do recusado é uma garantia da sua defeza para não ser arbitrariamente afastado da funcção publica de julgar, que pela lei lhe incumbe. É por isso uma condição de ordem e de direito publico, que não pôde ser alterada arbitrariamente. A já citada portaria de 14 de agosto em nada alterou ou modificou este principio que, como toda a defeza, é de ordem publica, e em que aquelle diploma do executivo não podia tocar nem tocou. No processo pois de suspeições, illegal e violento, a que me tenho referido, faltou-se tambem a este preceito expresso da lei civil, sendo por isso igualmente tumultuario sob este ponto de vista.

Se a auctoridade administrativa entendeu que as suspeições politicas eram legaes, tinha dever de reconhecer o principio constitucional da igualdade perante a lei. Como é pois que se julgou auctorisada a apresentar umas, e a recusar a apresentação de outras suspeições, sendo algumas oppostas a ella mesmo? Este facto praticado arbitrariamente pelo funccionario que reconhecia a legalidade do meio, é uma verdadeira denegação abusiva de justiça que não podia praticar a auctoridade, nem o tribunal que se diz que estava convencido de que as suspeições politicas eram um meio regular que era facultado na lei.

Não menos illegal foi a constituição do conselho de districto com menos de seis vogaes para a decisão dos recursos sobre eleições, que teve logar em 29 e 30 do dezembro, como consta das respectivas actas enviadas ao governo em officio do governador civil já citado.

A illegalidade d'aquelle procedimento foi levada á evidencia com grande lucidez no illustrado parecer da commissão da camara dos dignos pares do reino.

Effectivamente houve nas resoluções do conselho manifesta infracção do artigo 208.° do codigo administrativo, e sendo essa infracção da lei em relação á constituição do tribunal,

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1 Manual do processo civil, tit. 1, das suspeições.

2 Elementos do processo civil, § 339.

3 Artigo 88.º § 1.°

4 Artigo 2965.º

1 Cit. discussão parlamentar. Diario de Lisboa n.° 53.

2 Cit. discussão parl.

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resulta, que as deliberações então tomadas relativamente aos recursos eleitoraes feiram como não existentes, porque o tribunal não estava legalmente constituido. É esta a doutrina e a propria phrase da portaria de 27 de janeiro do corrente anno, que seguiu e applicou convenientemente, n'um assumpto identico, o direito existente, e que não julgou o governo incompetente para o determinar e resolver.

Não póde, sem grave erro, sustentar-se que aquella constituição illegal do conselho de districto, fosse fundada na lei de 24 de julho de 1855. Dispõe-se n'aquella lei: que metade e mais um dos membros das camaras municipaes, e dos mais corpos collectivos, sendo o numero d'aquelles impar, 6, em todos os casos, em que as leis exigem para poderem constituir-se e deliberar, metade e mais um do numero par immediatamente inferior.

À simples leitura da disposição legal deixa ver bem que não pôde ter ella applicação á hypothese actual, na qual (pelo codigo administrativo, cit. art.) o numero de que deve constar o tribunal é certo e definido, não sendo d'essa hypothese por isso que se cogitou na lei. Alem de que não poderia entender-se como derogatoria de uma disposição especial, que teve em vista a maior garantia no julgamento de certos e determinados assumptos eleitoraes. É certo por isso que foi illegal e tumultuaria -a constituição do conselho de districto; e fica evidenciado igualmente que a opinião do digno commissario regio sobre este assumpto é insustentavel em face da lei, e da já citada portaria assignada pelo actual sr. ministro do reino.

A portaria de 15 de janeiro de 1839, applicavel ainda hoje, porque a disposição do codigo administrativo actual é identica com a do codigo administrativo de 1836, que vigorava na epocha d'aquella portaria, e a de 7 de janeiro de 1864, transcriptas no parecer da commissão da camara dos dignos pares, põem em evidencia dois pontos importantes sobre este assumpto:

1.º Que foram tumultuarias as decisões do conselho de districto, a que me referi, porque illegal e tumultuaria foi a organisação

2.º Que tem sido sempre opinião do governo, e que a é do actual sr. ministro do reino, que o governo pôde conhecer da organisação illegal dos conselhos de districto, e sendo assim podia e devia tomar conhecimento da organisação illegal e tumultuaria do conselho de districto de Villa Real.

Dissolução da camara municipal do Alijó

Outro facto da administração cumpre registar, que se em si não constitue uma violação de lei escripta, na maneira todavia como foi resolvido deixa ver a errada direcção que se pretendeu dar á politica n'aquelle districto, tornando-a o unico movel da administração local, que tem de certo outras conveniencias a attender.

Tem o governo incontestavelmente a faculdade de dissolver as camaras municipaes (código administrativo, art. 106.°); é uma garantia de administração, que deve ser applicada quando as verdadeiras conveniencias da administração assim o exijam.

Este facto, que sem o concurso de circumstancias de que se acha revestido, não daria objecto a reparos, acompanhado dessas circumstancias não pôde deixar de os provocar.

O officio do governador civil, de 18 de outubro, propondo a dissolução d'aquella camara municipal, e os dois officios do administrador do concelho, sobre o mesmo assumpto, datados ambos do 15 de outubro, põem a claro a maneira porque a administração foi sacrificada á politica numa eleição municipal, que mais util seria para o municipio que lhe fosse estranha.

O governador civil refere-se no seu officio, de 18 de outubro ao officio do administrador do concelho, de 15 de outubro, n.º 183, que por essa occasião transmittiu ao governo, no qual se lembra a dissolução d'aquella camara municipal como um acto do conveniencia politica para o vencimento da eleição, e referindo-se o governador civil em parte á má administração municipal d'aquelle concelho, remette ao governo, não o officio do administrados do concelho, d'aquella mesma data (15 de outubro), e que está publicado, em que se trata d'esse assumpto, mas sim unicamente aquelle cujo fundamental objecto era a conveniencia politica da dissolução. O outro officio só só mais tarde é que foi enviado ao governo! E é notavel como n'elle se refere a designação das assembléas eleitoraes, como um facto consumado quando só muito mais tarde é que teve logar! O officio pois do governador civil e o officio n.° 183 do administrador do concelho, é que foram a base da resolução de 21 de outubro, pela qual foi dissolvida a camara municipal de Alijó.

Os termos do officio do governador civil revelam bem o seu intuito, e se verdadeiros são os factos nelle allegados, o governo deveria ter mandado instaurar os processos respectivos para serem averiguados e punidos os abusos se effectivamente existiam; é porém certo, que em officios pouco anteriores se havia informado o governo em sentido bem differente ácerca d'aquella mesma camara municipal! Se a administração do paiz é uma cousa séria e grave, factos d'estes não podem dar-se sem uma lamentavel quebra dos principios de uma justa e imparcial administração.

Mas o que mais me preoccupa, pelo decoro que é devido ao governo e aos decretos do executivo, são os seguintes periodos que so lêem no officio do governador civil:

«Proponho pois esta urgente medida (a dissolução da camara) a V. ex.!l, para que se digne decreta-la. Conviria que me fosse enviado o decreto com o possivel segredo, para me habilitar a usar d'elle opportunamente.

«Permitta-me mais V. ex.ª que eu lhe rogue a complacencia de mandar dizer-me pelo telegrapho com as simples palavras sim ou não se accede ou não ao que exponho, porque é necessario que eu o saiba para meu governo...»

Tenho, senhores, um profundo sentimento de que o governo tivesse aquella complacencia, sendo posta á disposição do governador civil a faculdade de usar, quando lhe aprouvesse, do decreto real para um objecto tão grave e importante como e a dissolução de uma camara municipal, que não pôde nem deve ser objecto de surpreza para governo das auctoridades administrativas nos abusos eleitoraes que premeditam praticar, mas sim uma pensada resolução de administração no interesse municipal.

A maneira por que este objecto se acha conduzido afigura-se-me pouco em harmonia com os principios de imparcial e boa administração, de que o poder sempre deve dar provas. O officio do governador civil, de 18 de outubro, segundo os principios de boa administração, não deveria ter tido como resposta immediata, sem mais exame, o decreto de 21 do mesmo mez dissolvendo a camara municipal, nem a portaria d'aquella data pondo á disposição do governador civil a execução ou o adiamento do decreto real.

A commissão municipal do concelho de Alijó, creada em consequencia da referida dissolução da camara municipal, tambem não foi constituida em harmonia com as disposições da lei. porque não foi composta na sua totalidade de membros que houvessem pertencido ás vereações anteriores, sendo certo que os havia em circumstancias de serem nomeados para aquella commissão; foi pois outra infracção de lei que indica a pouca regularidade da administração superior n'aquelle districto. Cumpre porém notar, que dos documentos officiaes não consta que d'este facto fosse dada conta ao governo.

Factos abusivos e illegaes junto da uma

A existencia de factos abusivos e illegaes junto da uma está comprovada por muitos documentos, que são hoje do dominio do publico, e cuja apreciação seria extremamente longa)ara ler logar aqui.

A syndicancia a que se procedeu n'aquelle districto, e que se acha publicada na folha official, completa, pelos depoimentos que contém, a exposição dos factos, já conhecidos com uma triste notoriedade.

Limitar-me-hei a apontar unicamente dois factos notaveis, que nos documentos officiaes emanados da propria auctoridade têem uma prova completa. O largo emprego da força armada e o abuso e violencia junto da uma.

A relação dos concelhos para que foi requisitado o concurso da força armada é a seguinte:

Para Villa Pouca de Aguiar foi requisitada uma força de 30 praças (13 de novembro).

Para o Peso da Regua 80 praças (13 de novembro), alem de nova requisição na vespera da eleição.

Para o concelho de Boticas 40 praças, devendo ser distribuidas em partidas de 10 praças, dirigidas aos differentes regedores (15 de novembro). Para o concelho de Alijó 40 praças (16 de novembro). Para o concelho de Santa Martha 40 praças (19 de novembro).

Para Sabrosa 40 praças (18 do novembro). Tal é a nota das requisições de força armada feitas nas epochas referidas.

Não deixarei de notar quanto é perigoso para o regimen da liberdade eleitoral esta tão larga ostentação de força, que melhor seria supprida por uma intelligente e liberal administração.

A imprensa periodica, quando se occupou largamente das occorrencias no districto administrativo de Villa Real, notou que á porta da casa da assembléa eleitoral da Regua estivessem, por ordem da auctoridade, dois homens armados vedando a entrada a cidadãos considerados como da parcialidade denominada da opposição.

0 conselho de districto, conforme consta de uma das suas actas, julgou o facto como não provado; mas os documentos que lhe deviam ser presentes provam que o facto teve logar por uma maneira manifestamente contraria á lei.

Eu julgo dever produzir aqui os documentos comprovativos da existencia d'aquelle facto offensivo da lei, seja que estivessem armados ou que não o estivessem os homens a quem a auctoridade encarregou aquelle serviço. D'esses documentos mostra-se que a entrada da casa da assembléa eleitoral foi vedada a cidadãos que tinham direito a entrar ali, porque não haviam perturbado a ordem publica 2.

1 «Ill.mo e ex.mo sr. — O ex.mo ministro do reino manda remetter V. ex.ª a copia authentica do decreto de 21 do corrente, pelo qual foi dissolvida a camara municipal de Alijó, e dizer a v. ex.ª que fica auctorisado para dar execução a esse decreto quando a occasião lhe parecer opportuna; cumprindo que V. ex.ª dê aviso por esta secretaria d'estado da execução do diploma que se lhe envia.

«Deus guarde a v. ex.ª Secretaria do reino, em 23 de outubro de 1953. — Ill.mo e ex.mo sr. governador civil de Villa Real. — Olympio Joaquim de Oliveira.»

2 Ill.mo sr. — Constituida a mesa definitiva para a eleição camararia na assembléa d'esta villa do Peso da Regua, accordou esta por unanimidade que, em vista da numerosa concorrencia de votantes o ser bem manifesta a irritação dos animos, e por avisos de pessoas insuspeitas e dignas do maior credito que alguns cidadãos não eleitores n'esta assembléa, e muitos outros não eleitores em nenhuma d'ellas pretendiam apresentar-se n'esta assembléa com o fim de alterar a ordem, era de conveniencia para a manutenção da tranquillidade e liberdade que devo dar-se em taes actos que aos chefes d'aquelles não fosse permittido o accesso á sala da assembléa, por isso que 6 sabido serem as suas intenções promoverem alterações, e d'estas resultar a desordem.

Esta resolução que a mesa acaba de tomar, e fará inserir na acta, cumpre-me leva-la ao conhecimento do V. s.ª, a fim de lhe dar a execução que a sua illustração e prudencia lhe aconselhar.

Deus guarde a V. s. Peso da Regua, em mesa eleitoral d'esta assembléa, ás 9 1/2 horas do dia 22 de novembro de 1863. — Ill.mo sr. administrador do concelho. = O presidente da assembléa, Cypriano de Sousa Canavarro.

Ill.mo sr. — Dando cumprimento ao officio que v. s.ª foi servido dirigir-me em data de 17 do corrente acompanhando a copia authentica de um protesto e representação que alguns cidadãos dirigiram a Sua Magestade contra a validade da eleição municipal d'este concelho, a que se, procedeu no dia 22 de novembro ultimo, cumpre-me, em defeza dos factos que n'aquelles documentos se nos attribuem, dizer o seguinte:

Pelo dito do pessoas insuspeitas e dignas de todo o credito chegou ao conhecimento da mesa da assembléa eleitoral d'esta villa, a que tive a honra de presidir, que alguns cidadãos eleitores, mas não votantes n'esta assembléa, e outros muitos que nem eleitores eram n'este concelho, tencionavam apresentar-se na casa da mesma com o fim unico e exclusivo de alterar a ordem, tranquillidade e liberdade, que deve ser da essencia de taes actos; esta, considerando profundamente e com a mais escrupulosa attenção nas lamentaveis consequencias que a desordem, no centro da assembléa, podia acarretar comsigo, resolveu por unanimidade não admittir no interior da casa eleitores ou pessoal de procedencia estranha ás freguezias que constituiam a assembléa; e usando do direito consignado nos artigos 56.º e SS. do codigo administrativo, officiou ao sr. administrador do concelho participando-lhe esta resolução, a fim de, pela sua parte, cumprir com o disposto n'este ultimo artigo.

A mesa lamenta profundamente que o espirito de partido desvairasse alguns animos, a ponto de os levar a. avançar -e sanccionar, com as suas assignaturas, asserções inteiramente falsas e exuberantemente desmentidas pelo modo por que os factos se passaram! E lamenta tanto mais quanto é certo que muitos dos signatarios não souberam o que assignaram, outros assignaram em logares mui distantes d'aquelle em que se lavrou o alludido protesto, e outras finalmente nem eleitores recenseados eram!

A mesa pois limita-se a repellir, com a dignidade propria dos caracteres que a compõem, as calumniosas asserções que se avançam contras validade de todo o acto eleitoral, e da liberdade que, assistiu a elle, e tem a consciencia de que todos os actos que praticou não saíram da orbita legal.

Deus guarde a v. s.ª Regua, 19 de dezembro de 1863. — Ill.mo sr. dr. Arthur Jorge Teixeira, administrador de Villa Real, em commissão. = Presidente da mesa eleitoral, Cypriano de Sousa Canavarro = escrutinador, Francisco da Costa Guilherme = Antonio Bernardes Pereira = Manuel Teixeira dos Santos = Maximiano Augusto de Oliveira Lemos = Manuel José de Oliveira Lemos, escrutinadores = José de Oliveira Soares.

A pertensão de collocar este facto ao abrigo da lei, mostra ou que a auctoridade desconhecia completamente a indole do systema eleitoral e as disposições legaes que o protegem contra as violencias do poder, ou que grandes abusos se pretendem encobrir com uma triste apparencia de legalidade.

Eu sentir-me-ia humilhado se entendesse que era necessario demonstrar aqui perante a camara e perante o paiz que a lei não auctorisa uma prevenção que offenderia directamente os principios de ampla publicidade, de desembaraçado concurso, e de absoluta e livre fiscalisação dos actos eleitoraes.

A falta de segurança publica, não obstante uma tão notavel ostentação de força, e os actos de violencia e de aggressão praticados impunemente pelos bandos que acompanharam em algumas localidades as auctoridades administrativas, são acontecimentos que não podem encontrar a desculpa com que parece querer absolve-los o relatorio do digno magistrado syndicante.

Se, na occasião em que o povo é chamado ao liberrimo exercicio do seu direito politico mais importante, podesse ser indifferente para os poderes publicos, que em vez de ser garantida a liberdade e mantida a segurança, fossem encontradas as auctoridades de confiança do governo, que a lei quer que sejam estranhas ás pugnas eleitoraes, não cumprindo a sua missão de manter a ordem e assegurar o livre exercicio do voto, mas capitaneando publicamente bandos partidarios e partindo assim d'elles a aggressão e a quebra da ordem e da tranquillidade publica; se factos taes podessem ser indifferentes no paiz, seria mister chegar á dolorosa confissão de que nem o povo conhecia os seus direitos e os sabia apreciar e manter dignamente, nem o governo comprehendia a missão de governar uma nação que é livre e que o quer ser!

Longo vae já este voto em separado, que a gravidade do objecto e a multiplicidade dos assumptos que foi mister tratar não permittiu que fosse reduzido a mais curtas proporções, e por isso poucas mais reflexões farei em especial sobre as apreciações feitas no já mencionado relatorio que precede a syndicancia.

É minha opinião que a syndicancia não deveria ter sido limitada unicamente á audiencia das testemunhas espontaneas, como ali se declara.

O fim da syndicancia não podia ser dar satisfação a parcialidades, mas sim apurar a verdade pelo emprego da vasta rede de meios do que, com uma commissão tão largamente auctorisada, se podia dispor. O digno magistrado syndicante tendo» ouvido unicamente as testemunhas que espontaneamente se foram inscrever, declara-as depois apaixonadas, e recusa, sem; outro fundamento, a fé aos seus depoimentos. Mas uma syndicancia é e deve ser mais alguma cousa do que um processo assim instruido e classificado; é mais do que um calculo de conjecturas, deve ser uma collecção de provas, tanto quanto for possivel.

Não podendo admittir-se sem hyperbole (que não é para actos d'estes) que ninguem, imparcial ou capaz de depor com imparcialidade, houvesse n'um districto inteiro; na syndicancia não deviam ser desprezados meios de esclarecimentos, de que em todas as syndicancias se lança mão; e não podiam especialmente ser desprezados quando se recusa fé a todos os depoimentos espontaneos, embora muitos sejam de pessoas que se poderiam julgar superiores a toda a suspeita para não se pretender faze-las acreditar capazes de faltar ao dever de depor unicamente a verdade.

Com depoimentos declarados apaixonados e parciaes pelo proprio magistrado syndicante; com relatorios e informações fornecidos por auctoridades administrativas, umas classificadas pelo mesmo magistrado, de parciaes, ou cheias de zêlo demasiado em apoiar a lista camararia com que sympathisavam; ou de subservientes para com os seus amigos politicos, que d'essa docilidade tendiam a abusar; outras declaradas como inhabeis sem força nem vontade propria; outras finalmente que introduziam na casa da assembléa eleitoral agentes para de noite falsificar as urnas; com elementos taes, digo, o> relatorio tira á syndicancia a grande importancia que deveria ter para ambas as parcialidades politicas que se debateram.

Uma syndicancia deve ser mais do que a collecção dos depoimentos das parcialidades, é e deve ser o apuramento da verdade em toda a sua luz, tanto quanto o poder ser em vista dos meios de que for possivel dispor.

E não se creia que é meu animo lançar desfavor sobre o merito do digno magistrado syndicante, cujos precedentes na vida publica têem sido dignos de elogio; mas a apreciação imparcial deve ir com franqueza e cordura direita ás cousas sem a

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mais minima offensa das pessoas, nem no que levo dito a podia haver.

Na apreciação dos factos comprovados documentalmente, relativos ás suspeições oppostas aos membros do conselho de districto, e que no relatorio da syndicancia são sem hesitação condemnados, não póde ser considerada como procedente para a questão da responsabilidade a distincção que ali se faz entre actos de governador civil no desempenho d'esse caracter; e actos de governador civil como presidente do conselho de districto, não tendo que responder por estes individualmente senão perante a consciencia propria. A admissão de uma similhante doutrina na ordem da administração, romperia os já tão debeis laços da responsabilidade legal, inherente a toda a ordem de actos que offendem os principios da justiça civil e da ordem publica. Aquella irresponsabilidade só é reconhecida pela lei no juizo jurado.

Já em outro logar d'este voto em separado fica demonstrada qual é a responsabilidade effectiva das auctoridades administrativas para com o governo, e o d'este perante o parlamento. Aqui addicionarei apenas em confirmação d'esta doutrina a douta opinião do sr. Colmero actualmente um dos mais distinctos escriptores de administração publica. Esta opinião servirá de resposta á doutrina inexacta a que acabo de me referir.

«Jurisdiccion perfecta, (diz o sr. Colmero) se la ordinaria encomendada á jueces magistrados que aplican la ley sin in-tervencion dei gobierno, mas la jurisdiccion administrativa confiada á las autoridades y corporaciones dependientes dei poder ejecutivo, se una jurisdiccion imperfecta, externa y sin fuerzas para ditar ningun fallo verdadero. Bien sabemos que sus resoluciones son definitivas y causan èjecutoria; pero asi y todo, los tribunales de este orden no prononcian sentencias, sino que ditan é preparan decisiones administrativas…

«Como la jurisdiccion se el complemento de la accion administrativa, se infiere que todos los cargos, á los cuales vá inherente aquella potestad son amovibles, y las personas que los desempenan responsaplcs al gobierno. Exigir tribunales administrativos independentes, soberanos en su linea, equiva-dria á crear un poder intermedio com respecto á la adminis-tration y á los administrados, y caer en los miesmos extremos que la ley se propuso evitar excluyendo á ia autoridad judicial de conecer de los actos administrativos.

«Entre Ia jurisdiccion ordinaria y la administrativa media una diferencia grave y profunda. Las sentencias definitivas de un tribunal civil, luego que pasanen autoridad de cosa juzga-da, son tan firmes é irrevocables, que en ningun poder politico existe la facullad de impedir, entorpecer é debilitar su fuerza èjecutoria. Mas los fallos de la justicia administrativa, si bien causan estado, pueden considerarse como non definitivos mientras no se ajusten á las regias de la equidad; pues estes negocios non fenecen entanto que á la persona offendida por Ia administracion le queda el recurso de probar su agra-vio ante los cuerpos colegisladores y pedirles se exija la res-ponsabilidad competente á los ministros, é tuviere el arbitrio de exponer su queja. ante el tribunal de Ia opinion publica por la vie de la imprenta.»

Se em apoio da doutrina contraria aquella que sustento, se pretendeu no debate parlamentar adduzir a opinião do distincto professor hespanhol, agora que ahi fica transcripta a exacta opinião d'aquelle auctor não se quererá de certo recusar a sua competencia.

No relatorio da syndicancia parece querer afastar-se a questão das suspeições politicas, pretendendo-se agora cobri-las com o principio da paixão politica, que poderia desvairar o julgador. É tarde para esta nova phase da questão!

Um dos corpos colegisladores, de accordo com o voto expresso do presidente dò gabinete, depois de haver procedido a um minucioso exame do assumpto, compulsando os documentos officiaes, e procurando todas as informações de facto, e apreciando todas as circumstancias com a competencia e superior imparcialidade que caracterisa os membros da commissão a que foi commettido aquelle exame, decidiu pela quasi unanimidade de votos, e com o assentimento expresso do presidente do gabinete: 1.°, que no districto administrativo de Villa Real por occasião das eleições municipaes fôra inaugurada a theoria das suspeições politicas; 2.°, que essa theoria offendia directamente a constituição do estado.

Eis as textuaes conclusões do lúcido e illustrado parecer que foi votado por aquelle corpo co-legislador.

«Em resumo a commissão é de parecer:

«Que esta camara se pronuncie desde já, como o exigem imperiosamente a sua dignidade e as doutrinas do codigo fundamental, que vigora n'este paiz, contra a theoria das suspeições politicas inaugurada n'aquelle districto, a qual se não acha consignada e nem o podia estar nas nossas leis, e tornaria impossivel o systema representativo, que só pôde manter-se por meio da mais ampla liberdade concedida ao eleitor no exercicio do direito de exprimir o seu voto, e de se associar com quem, quando e como julgue conveniente, uma vez que não saia dos meios legaes para fazer triumphar esse mesmo voto.»

Pouco antes lê-se no mesmo parecer:

«A commissão tem a satisfação de informar a camara de que, tendo discutido este ponto na presença do ex.mo presidente do conselho e ministro do reino, s. ex.ª concordou inteiramente com estas doutrinas.»

É tarde pois para se querer deslocar uma questão que está assim julgada por um dos corpos colegisladores, pelo chefe do gabinete, e que já o estava pelo paiz!

É tarde ainda, porque aquella theoria é falsa; admittida ella, -as suspeições politicas revestiriam sempre aquella apparencia, -e procurariam assim a sancção dos poderes publicos e da opinião.

Mas o systema da liberdade é um systema de verdade e não de illusão; considera as cousas pelo que ellas são em si, e não pelas apparencias de que se queiram revestir. Estabeleça-se a doutrina e sanccione-se o principio, e abrir se-ha a porta para todas as suspeições politicas! Nunca o absolutismo ou a anarchia as formulou de outra maneira. Sanccione-se o principio ou indique-se o meio de o realisar a coberto da responsabilidade constitucional, e elle será fertil em consequencias, com que de certo a liberdade não terá a lucrar!

Que responsabilidade politica cabe ao governo pelos actos occorridos no districto administrativo de Villa Real que ficam expostos?

Anteriormente ao acto eleitoral só se encontram entre os documentos, presentes á commissão, os relativos á dissolução da camara municipal de Alijó, que já ficam apreciados, e a representação feita ao governo pelos membros do conselho de districto que haviam sido dados de suspeitos em sessão de 13 de novembro, representação que foi mandada ao governador civil de Villa Real, para sobre ella dar promptas informações. Posteriormente porém ao acto eleitoral encontro nos documentos officiaes a serie de ordens emanadas do ministerio do reino para aquelle governador civil, exigindo esclarecimentos e explicações circumstanciadas ácerca das occorrencias que haviam tido logar por occasião das eleições municipaes n'aquelle districto. Aquelles documentos são os que pela ordem das suas respectivas datas constam do parecer votado na camara dos dignos pares, é que se acha publicado na folha official.

Das respostas dadas pelo governador civil as que explicam os factos desenvolvidamente, e que vieram acompanhadas de documentos, que evidenciaram os pontos mais importantes, são os officios de 31 de dezembro de 18(53 e de 4 de janeiro de 1864, que vão aqui juntos a final. Anteriormente a esta epocba, outros officios se encontram do governador civil, mas que não são tão circumstanciados como aquelles a que acabo de referir-me.

Dos documentos que foram presentes ao governo, vê-se pois que em começo de janeiro teve conhecimento official e documentado:

1.º Da opposição das suspeições politicas por duas vezes e da sua admissão parcial.

2.º Da convocação illegal do conselho de districto e da maneira tumultuaria o illegal por que funccionou aquelle tribunal

administrativo.

3.º Das devassas politicas mandadas abrir em todo o districto pela superior auctoridade administrativa para servirem de base ás suspeições politicas, que mais tarde foram oppostas.

4.º Finalmente de todos os actos extraordinarios que o governador civil entendeu poder praticar pela illegal e errada intelligencia que deu ao artigo 234.° do codigo administrativo, mas a cujo preceito de dar conta ao governo satisfez desenvolvidamente nos dois referidos officios.

5.º Teve igualmente o governo conhecimento na mesma epocha de que por ordem da auctoridade fôra vedada a entrada na casa da assembléa, no acto eleitoral, a individuos que não podiam ser privados de ali entrar.

6.º Dos outros actos de violencia teve o governo conhecimento successivamente pelas queixas dos cidadãos que a elle recorreram, pelas informações da auctoridade administrativa, pelos clamores da imprensa periodica e finalmente pelas investigações administrativas a que então se procedeu. E nada ha mais evidente actualmente do que a triste verdade que as eleições municipaes no districto de Villa Real foram uma lamentavel pagina lavrada na historia da liberdade eleitoral no nosso paiz!

Apreciando agora directamente a responsabilidade politica do governo perante a camara, poucas reflexões acrescentarei ao que levo dito.

Em toda esta vasta rede de acontecimentos, que apenas esbocei, unicamente vejo o governo para em relação a elle apreciar a responsabilidade politica que d'aquelles actos pôde resultar pela não repressão o pela impunidade dos abusos que se commetteram; e para reclamar providencias contra as infracções da lei onde quer que tivessem logar, e por quem quer que fossem commettidas.

Se o governador civil abusou, se dirigiu de uma maneira errada ou illegal a administração a seu cargo, a sua responsabilidade é directa para com o governo; a do governo é directa para com o parlamento. É esta a inflexível logica dos principios. Se por parte do partido opposto foram commettidos abusos, esses abusos não podem nem devem ser superiores á lei. Mas para que a lei possa ser effectiva com proveito publico é mister que a sua applicação seja imparcial e igual para todos, porque é esta a condição politica de todas as leis, para que os seus effeitos possam ter auctoridade e força moral. Não se pôde porém obter este resultado quando a auctoridade desce do seu logar de imparcialidade para ir envolver-se nos bandos partidarios, dirigi-los directa e publicamente, e relaxar as leis em seu favor. Desde que isto se pratica começa a anarchia, porque falta quem possa manter a ordem e fazer respeitar a liberdade. Mas a responsabilidade de um tal estado recáe directamente sobre o governo central a cujas mãos vão ter todos os fios da administração.

A responsabilidade do governo pela direcção da administração abrange toda a vasta area em que esta se generalisa, porque sobre toda pôde fazer-se sentir a acção central, porque a toda pôde levar o remedio. Tanto maior é a centralisação na administração, tanto mais effectiva deve ser no governo a responsabilidade pelos actos d'essa administração.

A responsabilidade não só comprehende todos os actos administrativos que influem na ordem publica, mas ainda os factos a que a denominação de actos não é applicavel no seu rigor logico, como são as omissões nos deveres da administração. Se ha no fôro particular responsabilidade pela negligencia, porque não a haverá no fôro publico, onde essa negligencia frequentes vezes pôde decidir do bem ou da ruina commum?! A omissão é a maneira de illudir que desperta menos a attenção. Deixar sem reparação as offensas contra a lei e contra a liberdade do voto; deixar subsistir todas as consequencias da illegalidade; não ter contra ellas uma só palavra de desapprovação, não são omissões, que possam ser subtrahidas da responsabilidade politica, que acompanha os governos representativos em todos os seus passos.

A identificação politica das auctoridades administrativas com o poder central é uma consequencia do systema administrativo, que tem uma confirmação na lei. Nenhuma responsabilidade pessoal se torna effectiva pelos differentes actos da administração para com os particulares sem previo consentimento do governo. É este o nosso systema legal, que, vicioso como é, n'esta parte serve de estreitar os laços da responsabilidade em toda a jerarchia administrativa. A responsabilidade pois dos actos a que me referi não pôde deixar de ser effectiva e indeclinavel por parte da administração.

É effectiva e indeclinavel, porque o é sempre a responsabilidade politica pelos actos que directamente offendem a ordem publica, seja qual for a ordem de funcções em que forem praticados.

Em relação ao magistrado que no exercicio das suas funcções prevarica, ou offende por qualquer outro modo a sociedade, estejam ou não pendentes dos tribunaes os processos sobre que versem esses factos, a responsabilidade do governo é effectiva e indeclinavel se não fez seguir os meios estabelecidos nas leis para a repressão dos abusos. Pôde ter existido o abuso, pôde este estar provado, e todavia a decisão do magistrado que abusou ter sido legal. A corrupção mil vezes tem seguido essa vereda, mas nem por isso a irresponsabilidade pôde vir cobrir aquelles que commettam esses factos.

Na ordem do funccionalismo amovivel esta doutrina está lendo todos os dias a frequente sancção da pratica. Quando é que o ministerio publico se julgou a coberto de responsabilidade perante o governo, porque os seus actos de serviço publico fossem praticados em processos que corressem o seu curso perante os tribunaes? Desde que a responsabilidade se invoca em relação a funccionarios unicamente dependentes do governo, a tribunaes que elle pôde dissolver, a decisões que pôde destruir, todo o pretexto de irresponsabilidade cessa. Na ordem de administração o governo pôde sempre restabelecer superiormente o estado de direito offendido para com a sociedade nas suas formas ou no seu fundamento. É esta uma das rasões porque aquella ampla faculdade lhe é concedida, faculdade que decorre da indole do systema administrativo.

Esta doutrina, sobre este assumpto unica verdadeira em administração, e uniformemente seguida pelos jurisconsultos que com mais competencia têem escripto em administração publica, acha-se reconhecida na já citada portaria do ministerio do reino de 27 de janeiro do corrente anno. Mal pôde por isso comprehender-se como agora se pretende, por parte do digno magistrado syndicante, pôr em duvida a doutrina que o governo ha pouco exarou n'um acto deliberativo d'aquella importancia, em epocha em que estes factos já lhe eram conhecidos. É igualmente effectiva e indeclinavel a responsabilidade do governo na ordem de factos de que se trata porque decorreram elles na sua maior parte da administração pura, e como taes é que foram praticados, não podendo por isso em relação a elles ter applicação essa mesma insubsistente defeza que tenho combatido.

Não pôde contestar-se que mandar proceder a uma devassa administrativa por todos os administradores de concelho de um districto administrativo, para saber as pessoas que tomaram parte activa nos trabalhos eleitoraes n'uma eleição municipal, não seja um acto arbitrario da administração, e só é para reparar que elle escapasse á justa apreciação do digno magistrado syndicante.

O mesmo que deixo ponderado em relação aquelles factos deve dizer-se de todos os actos illegaes praticados pela auctoridade administrativa na convocação do conselho de districto, e na apresentação das suspeições. São actos puramente arbitrarios da auctoridade administrativa, sem que nenhuma resolução contenciosa viesse homologa-los. E não se queira occultar a responsabilidade d'elles perante o governo, por se pretenderem praticados pelo governador civil, como presidente do conselho de districto. A acção contenciosa propriamente dita do governador civil só começa quando o seu voto faz parte da decisão contenciosa do tribunal, e nem assim fica inhibido o governo de apreciar os actos do seu delegado, e segundo elles determinar a sua confiança.

Aquelles factos foram arbitrarios da parte da auctoridade administrativa, porque não podem achar apoio em alguma lei patria. Foram arbitrarios porque a propria auctoridade administrativa só se julgou auctorisada a pratica-los em virtude do artigo 234.° do codigo administrativo, emquanto auctorisa o governador civil a que nos casos omissos e urgentes de as providencias que as circumstancias exigirem, dando immediatamente conta ao governo. Errada intelligencia de certo dada á disposição do codigo, porque este não teve em vista levantar a auctoridade discricionaria dos funccionarios administrativos sobre as leis do paiz e sobre as garantias publicas; mas confissão que mostra bem quanto é fundada a apreciação que tenho feito.

Desde quando pois os actos arbitrarios dos funccionarios administrativos em qualquer ordem de serviço, mas muito principalmente nos que tão directamente affectam a ordem publica, deixam de envolver a responsabilidade do governo que os tolera?

Seria extraordinario que actos de uma tal gravidade ficassem sem responsabilidade na ordem da administração publica de um paiz livre. O tribunal administrativo a que está affecto o recurso contra a organisação do conselho de districto, o que pôde fazer é confirmar ou annullar a decisão, chega unicamente até ahi a sua missão, e não vae tomar conta, ao funccionario ou puni-lo porque inaugurou as devassas politicas, ou porque inventou as suspeições politicas como elemento normal de governo na administração dos paizes livres! E é licito perguntar se aquelles actos deveriam passar despercebidos

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para o governo, no caso que d'elles não tivesse sido interposto recurso em tempo competente?

Se pela circumstancia pois de um recurso estar pendente do tribunal do conselho d'estado resultasse a incompetencia do governo para conhecer dos actos abusivos das auctoridades administrativas suas dependentes; se pela mesma rasão o parlamento não tivesse competencia para exigir do governo as precisas explicações e determinar a sua responsabilidade, a superintendencia parlamentar sobre os actos da administração seria uma verdadeira illusão, e a responsabilidade dos governos uma cousa pouco serial

No meio pois d'esta anarchia de principios e de factos uma cousa prende vivamente a minha attenção, e creio que deverá despertar a attenção do paiz. É que esta questão possa ainda estar a ser discutida no parlamento. É que para a excitar existam tão vivos os motivos como o estavam ao começar a sessão parlamentar; ou se é possivel mais ainda porque estão aggravados com a irresponsabilidade de facto, com a profunda indifferença dos poderes publicos, e pelas consequencias que já os têem acompanhado, e que é facil de prever, que serão produzidas pela franquia assim concedida para todos os abusos uma vez que possam obter ser coroados de successo!

É este um triste symptoma de abatimento moral que quiz aqui deixar registado bem explicitamente, e que oxalá não venha a ser fertil em funestas consequencias contra o respeito dos verdadeiros principios da independencia e da liberdade eleitoral, unico fundamento do_ systema representativo.

A detida analyse a que tenho procedido conduz-me a concluir:

Que no processo eleitoral das eleições municipaes do districto administrativo de Villa Real foram praticados actos tumultuarios offensivos da liberdade eleitoral e das leis que regulam o seu exercicio:

Que as suspeições politicas oppostas ao exercicio dos actos legaes de administração de que por duas vezes foram averbados alguns membros do conselho de districto de Villa Real, e os autos de averiguação ou syndicancias politicas, a que em todo aquelle districto mandou proceder o governador civil para servirem de fundamento a algumas d'aquellas suspeições, offenderam os principios de ordem publica, e viciaram profundamente o processo eleitoral:

Que tendo o governo tido conhecimento d'aquelles factos abusivos e illegaes deveria desde logo ter feito respeitar a lei e os principios da liberdade eleitoral, que assim haviam sido offendidos, fazendo restabelecer o estado legal:

Finalmente, que o governo deve com urgencia adoptar as providencias necessarias para que seja restabelecido o estado legal relativamente ás eleições municipaes n'aquelle districto, sustentando assim inviolavel o respeito pela liberdade da eleição, e assegurando a tranquillidade publica.

Sala das commissões, em 25 de maio de 1864. = O deputado, João Baptista da Silva Ferrão de Carvalho Mártens.

DOCUMENTOS

Governo civil de Villa Real— 1.ª repartição— N.° 3 - A. — Ill.mo e ex.mo sr.: — O muito que se tem escripto pela imprensa periodica sobre as eleições municipaes para o biennio de 1864 e 1865, a que ultimamente se procedeu n'este districto, o modo apaixonado e contradictorio com que tem sido apreciado o meu procedimento e o das auctoridades minhas subordinadas, e sobretudo o que me foi ordenado em portaria expedida pelo ministerio dignamente á cargo de v. ex.ª, em data de 29 de dezembro ultimo, impõe-me o dever de fazer a v. ex.ª uma exposição fiel das occorrencias que se deram n'este mesmo districto, com referencia ás preditas eleições.

Permitta-me V. ex.ª que me abstenha de occupar-me das inqualificáveis verrinas que por alguns periodicos me têem sido dirigidas. São ellas por via de regra tão grosseiras e abjectas, que indigno me consideraria de occupar por mais tempo o elevado cargo que exerço se me podesse convencer que v. ex.ª teria precisão de explicações minhas para completa mente as desprezar. Limitar-me-hei portanto a historiar os factos, e é por elles e só por elles que eu espero ser avaliado,

As eleições municipaes d'este districto foram como nunca disputadas entre dois partidos que já de epocha muito anterior aquella em que tomei conta da gerencia administrativa d'este mesmo districto se preparavam para a luta.

Não tratarei aqui de enumerar os differentes meios a que por um e outro lado se recorreu para mutuamente se supplantarem. Quando os animos se acham excitados ao ponto em que o estão, era impossivel deixar de haver mais ou menos excessos da parte dos individuos apaixonados de ambos os campos É certo porém que da parte do grupo que se denominava opposição esses excessos chegaram ao ultimo ponto. Ha quatro annos que esta parcialidade se achava dominando a maior parte das administrações municipaes e até o proprio conselho de districto, do qual fazem parte tres dos principaes agitado res d'esse partido, que têem á sua disposição um periodico de que é redactor principal um homem nimiamente faccioso e turbulento. E não obstante todos estes meios de preponderancia, apesar de ter por chefe principal uma das principaes potencias monetarias do paiz, nunca este corrilho pôde aqui grangear senão a publica repulsão.

Cônscios d'este geral sentimento, não houve meios de pressão e corrupção que por parte dos seus influentes se não empregassem para alcançar nas eleições a votação que espontaneamente não podiam obter. Tudo tolerei, e a minha tolerancia era tanto maior quanto mais violentos eram os convicios que pela sua imprensa me dirigiam. Muito certo estava eu de que a parte sensata do districto de Villa Real havia de repellir com indignação os meios torpes e indecentes com que se pretendia escalar as cadeiras municipaes. E assim succedeu.

Cumprindo ás camaras municipaes designar as assembléas eleitoraes dos seus respectivos concelhos, assim se fez em todos os que compõem este districto. A do concelho de Villa Real fez uma alteração completa ás em que havia mais de dez annos a esta parte se fizeram as eleições, e, com o fundamento de que essa designação era sobre modo facciosa por ser o mais; possivel incommoda aos povos, recorreram para o conselho de districto os cidadãos eleitores d'este concelho padre José Justino de Carvalho, José Ayres Lopes Junior e Francisco José de Gouveia (documento n.° 1).

Conjunctamente com o recurso foi-me apresentado um requerimento por parte dos recorrentes, em que se averbavam de suspeitos os primeiros tres membros do conselho, por se acharem altamente empenhados nas eleições do districto em favor de um dos partidos que se debatiam, e de que elles eram os principaes chefes (documento n.° 2).

Convoquei os quatro immediatos na ordem da proposta, e submetti-lhes o requerimento da suspeição, que elles julgaram procedente e provada, fundados principalmente na notoriedade e publicidade dos factos arguidos aos conselheiros suspeitados; depois do que, em harmonia com a doutrina da portaria do ministerio do reino, de 14 de agosto de 1840, passei a apresentar-lhes o recurso, a que elles deram provimento. Consta isto da acta da sessão de 13 de novembro ultimo, que vae junta por copia em n.° 3.

Da deliberação da camara de Murça, quanto á designação das assembléas eleitoraes, recorreu para o conselho de districto o cidadão eleitor Antonio Joaquim Ribeiro Cardoso (documento n.° 4); e pelo mesmo foram averbados de suspeitos, por identicos motivos, os tres já mencionados conselheiros (documento n.° 5). Submettida a suspeição ao conselho composto dos conselheiros immediatos aos suspeitados, foi julgada procedente e o recurso attendido pelo modo constante do documento n.° 3.

É de notar que o pequeno concelho de Murça, para a eleição geral de deputados, fórma uma só assembléa na capital do mesmo.

Similhantes recursos, quanto á designação das assembléas eleitoraes feita pelas respectivas camaras, foram interpostos com respeito ao concelho de Villa Pouca de Aguiar, pelo respectivo administrador (documento n.° G), e ao de Sabrosa, pelo eleitor Luiz Guedes de Azevedo (documento n.° 7); sendo estes recursos resolvidos com os mesmos fundamentos, da maneira constante do documento n.° 8.

Em Alijó recorreu da designação das assembléas o cidadão João Baptista de Lima Sampaio (documento n.° 9);.e os membros da commissão municipal recorrida averbaram de suspeitos os mesmos tres conselheiros, pelos motivos expostos (documento n.° 10). Impugnou esta suspeição Agostinho da Rocha e Castro, como procurador de alguns eleitores, pelas rasões constantes do documento n.° 11. O conselho de districto porém julgou procedente e provada a suspeição, e confirmou a deliberação recorrida (documento n.° 12).

Quanto ao concelho do Peso da Regua, os eleitores Francisco José da Silva Torres e outros, recorreram da designação das assembléas feita pela camara (documento n.° 13), e foi tambem opposta suspeição dos mesmos tres conselheiros pelos eleitores Manuel Teixeira dos Santos e outros (documento n.° 14). Esta suspeição, impugnada pelo dito Agostinho da Rocha e Castro (documento n.° 15), foi julgada procedente, e o recurso decidido pela maneira constante do documento n.° 16, sendo supprimida a assembléa de Gallafura, e transferidas as freguezias que a compunham para a da Regua, pelas rasões constantes do officio do respectivo administrador (documento n.° 17)..

No julgamento d'estas suspeições e decisão dos alludidos recursos intervieram, como fica dito, os vogaes immediatos aos suspeitados, menos o vogal effectivo Martinho de Mello da Gama, porque, como se vê do documento n.° 3, se absteve de tomar conhecimento dos negocios do conselho que tivessem referencia a objectos eleitoraes do districto, e o substituto Francisco Maria Cabral de Sampaio, por se achar ausente.

Imperiosas rasões de tranquillidade publica, segurança e commodidade dos povos para o exercicio do direito eleitoral, determinaram o conselho de districto a decidir, como decidiu, taes recursos, e as mesmas rasões houve para se dar alguma desparidade quanto ao numero dos eleitores de cada uma das assembléas.

Não posso para já informar com precisa exactidão sobre as distancias entre as sedes das assembléas e as povoações que as compozeram, mas não duvido de assegurar que as distancias não são taes que tornassem difficil e incommodo o accesso á uma, o que bem claramente se prova pela extraordinaria concorrencia dos eleitores das diversas povoações das mesmas assembléas.

Para a da Regua foi pela camara designada a casa dos paços do concelho, onde ha annos se têem feito todas as eleições; e o conselho, em harmonia com o disposto no artigo 41.°§ 2.º do decreto de 30 de setembro de 1852, não achou rasão plausivel para a mudar.

A freguezia de Gouvinhas, no concelho de Sabrosa, é o centro de todas as povoações que constituiram a assembléa que o conselho de districto ali collocou, para as quaes era mais incommodo concorrer aos logares designados pela camara.

Em data de 9 de novembro ultimo dirigi-me aos administradores de concelho, por meio da circular de que a V. ex. remetto copia em n.° 18, em que lhes recommendava empregassem todos os meios á sua disposição para manterem a tranquillidade publica, e garantirem aos eleitores a segurança que lhes era mister para o exercicio dos seus direitos, convidando-os a requisitarem-me a força de que porventura careces sem. Alguns o fizeram (documentos n.ºs 19 a 24), e eu satisfiz ás suas requisições, habilitando-me para isso com a força necessaria que solicitei do commandante da 5.ª divisão militar Para eu poder apreciar o uso que se fez da força requisitada e o procedimento das auctoridades minhas subordinadas, exigi em circular de 3 do mez passado (documento n.° 25) dos administradores relatorios circumstanciados do modo como se realisaram as operações eleitoraes, fazendo-os acompanhar de relatorios parciaes dos seus respectivos delegados nas diversas assembléas. Eis o que em resumo consta d'esses relatorios.

Quanto ao concelho de Alijó, houve n'elle cinco assembléas onde as operações eleitoraes se fizeram com legalidade. Na assembléa de Sanfins não occorreu circumstancia digna de mencionar-se. Na de Favaios tambem correu a eleição com regularidade, mas na noite de 22 os agentes do partido chamado «opposição» capitaneando uma massa de povo invadiram a igreja onde se achava depositada a uma, pretendendo quebra-la, mas não o conseguiram, porque a isso se oppoz a gente de ambos os partidos que a guardavam, e o regedor respectivo, que, comparecendo com a sua policia, restabeleceu a ordem, fazendo dispersar os amotinadores, ficando a uma intacta.

Na assembléa de Carlão os trabalhos fizeram-se com ordem e mesmo placidez; mas ao anoitecer a gente do mesmo partido «opposição» pretendeu assaltar a casa da assembléa para roubar a uma, para o que tinha feito convergir aquelle local, por differentes pontos, grande numero de homens armados de Favaios e outros pontos estranhos á assembléa. O delegado do administrador do concelho obstou a este attentado, dirigindo-se com a policia da terra aos pontos, pelos quaes os invasores pretendiam entrar, e fazendo-os dispersar, ficando a uma guardada por homens de ambos os partidos, e por uma força de seis soldados que ali se achava para coadjuvar na manutenção da ordem.

Na assembléa de Alijó ainda este partido pretendeu fazer tumulto por occasião da eleição da mesa definitiva, tumulto que ía tomando proporções serias, e que levou o presidente a requisitar, por deliberação da mesa, a presença de força armada para conter os desordeiros. Compareceu esta e foi bastante a sua presença em frente da porta principal da casa da assembléa para se restabelecer a ordem, pelo que se retirou logo ao local em que se achava estacionada, a 120 metros de distancia da casa da assembléa; depois do que continuaram com regularidade as operações eleitoraes. Quando depois se deu começo á eleição da camara a gente da opposição abandonou a uma.

Tambem na assembléa de Villa Verde se pretendeu alterar a ordem. Os incidentes que ahi se deram acham-se minuciosamente narrados pelo delegado do administrador do concelho em seu relatorio especial (documento n.° 26), do qual terá V. ex.ª occasião de ver que tambem n'esta assembléa se deveu á presença da força armada a manutenção da ordem.

No concelho de Boticas estavam designadas tres assembléas, mas o presidente nomeado para a de Covas apresentou-se, é verdade, no local designado, mas retirou-se logo, deixando por isso de haver ali eleição. Nas duas restantes não occorreu circumstancia notavel, a não serem alguns excessos da parte dos agentes da opposição, que recorriam a promessas, ameaças, offertas de dinheiro e outros meios de violencia e corrupção. A força armada requisitada para essas assembléas não interveiu em acto algum, conservando-se sempre em logares afastados d'ellas:

Nas assembléas de que se compunha o concelho de Chaves fez-se a eleição com toda a regularidade e socego, excepto na do Couto de Ervededo, onde a uma foi na noite de 22 roubada. A auctoridade administrativa d'aquelle concelho levantou auto de investigação, e tem procurado descobrir os auctores d'aquella malfeitoria, mas por emquanto ainda o não pôde conseguir, presumindo-se comtudo que fosse praticada pelos partidarios da lista, em que entrava o nome do presidente da respectiva mesa.

No concelho de Mesãofrio nada occorreu digno de mencionar-se. Correu a eleição regularmente em todas as suas operações.

Do mesmo modo se fez a eleição no concelho de Mondim de Basto. Nenhuma occorrencia se deu que deva relatar-se.

Não succedeu o mesmo no concelho de Montalegre. Em todas as assembléas de que se compoz o concelho, a opposição não cessou de espalhar e fazer espalhar noticias falsas e boatos calumniosos, conseguindo por meio d'elles angariar muitos eleitores e afastar outros das urnas. Não se fez uso da força armada, nem mesmo ella havia sido requisitada.

No concelho de Murça correu o acto eleitoral regularmente.

Houve da parte da opposição o emprego dos mesmos meios já referidos; mas não se alterou a ordem, apenas na assembléa de Murça o creado de um dos agentes d'esse mesmo partido ameaçou com uma pistola e um punhal alguns eleitores, mas foram-lhe logo apprehendidas essas armas e elle recolhido á cadeia.

Quanto ao concelho do Peso da Regua já a v. ex.ª remetti, com o meu officio de 23 do passado dezembro, o relatorio documentado das occorrencias que se deram, feito pelo respectivo administrador, bem como o auto de syndicancia a que mandei proceder n'aquelle concelho pelo administrador do d'esta villa. Os alludidos documentos provam sobejamente que são inteiramente infundadas as arguições feitas á auctoridade administrativa da localidade, quanto ao emprego da força e outros meios violentos. Provam ainda mais que da parte da chamada opposição se tratava de pôr em pratica toda a sorte de meios illegitimos para impedir o acto eleitoral na assembléa da Regua. Era n'aquelle concelho que se achava o centro d'essa parcialidade d'onde emanavam as instrucções para todo o districto: era ali que a excitação dos animos de ambos os partidos que se debatiam já de ha muito, tocava os ultimos limites, e era por isso aquelle concelho que me preoccupava mais a attenção, pelo receio que tinha de que a ordem começasse ali a alterar-se; pois que, se tal succedesse, confessam as pessoas de ambos os bandos, seriam incalculaveis as consequencias.

Os dois telegrammas que na noite de 21 para 22 me dirigiu o administrador, e que vão juntos em n.ºs 27 e 28, mostram a boa fé com que se estigmatisa a presença da força n'aquella villa.

A casa da companhia e armazem pertencente ao chefe da opposição achavam-se occupadas por homens armados. O fim

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não se podia presumir, outro do que,!perdidas as esperanças do vencimento pelos meios legaes; violentar no dia seguinte:; a casa da assembléa, e, obstar a que; se fizesse a eleição.

A presença da força que ultimamente foi requisitada, do regimento de infanteria n.° 9, junta com a que foi d'esta villa. inutilisou estes ruins planos; e ás acertadas medidas tomadas pelo administrador do concelho se deve a manutenção da ordem; que tão arriscada esteve. Pelo que me diz respeito devo confessar a v. ex.ª que essa noite de 21 para 22 foi para mim, de um continuo sobresalto, tal era a idéa que eu tinha dos meios a que já havia dias se dizia pretendia recorrer-se por parte da opposição. Eram quatro horas da madrugada de 22 e ainda eu estava, desde as onze horas da noite, na estação de telegrapho, pedindo ao administrador da Regua, que fiz vi -para a estação respectiva, esclarecimentos sobre todos os acontecimentos da noite para me poder prevenir no caso de que se realisasse alguma demonstração armada que podesse ter ramificações por outros pontos do districto. Felizmente as providencias adoptadas e a promptidão com que o foram fizeram com que a eleição se fizesse no dia 22 com inteira liberdade, deixando sómente de concorrer á uma aquelles eleitores que: não quizeram fazer uso do seu direito.

Tem-se dito que a eleição d'quella assembléa fôra falsificada, apparecendo um numero de votos superior ao dos votantes. Esta asserção não é verdadeira, segundo se vê dos cadernos das descargas, o numero de eleitores recenseados n'aquella assembléa era de 666 e o dos votantes de 505, inferior portanto aquelle em 161. Prova-se. isto de um documento que já tive a honra de enviar a V. ex.a com o meu officio de 31 do dito mez de dezembro.

É facil ao homem apaixonado inventar asserções com que encobrir a falta de prestigio: — falsificou-se a eleição da Regua — Mas não basta dize-lo, as actas da respectiva mesa declaram que se fizera com legalidade e verdade (documento n.° 29). Destrua-se, se é possivel, a authenticidade e a fé presumida d'este documento, adduzindo-se provas em contrario de maior força, e não se venha antes d'isso fazer insinuações ao publico.

No concelho de Ribeira de Pena nada houve de notavel por occasião da eleição, a qual se fez placida e regularmente.

Em tres das quatro assembléas, em que se dividiu o concelho de Sabrosa, íizeram-se as operações eleitoraes com toda a placidez e regularidade. Na assembléa porém de Gouvinhas houve de notavel que o presidente designado pela camara não compareceu senão hora e meia depois da marcada, o que deu logar a que os eleitores escolhessem d'entre si um cidadão para presidir á eleição, e este constituisse uma mesa, approvada unanimemente por acclamação pelos eleitores presentes. De modo que quando esta mesa tratava de dar principio á eleição, munido de copias authenticas do recenseamento appareceu o cidadão nomeado presidente pela camara, reconhecendo o direito com que aquella mesa (a quem entregou os papeis que haviam de servir para a eleição) se havia constituido, e declarando que o motivo da sua demora fôra o ter-lhe adoecido o cavallo em que vinha montado.

Correu n'aquelle dia a eleição com regularidade, e como, approximando-se a noite, não houvesse tempo para se fazer a extracção das listas, foi a urna fechada e lacrada, e requerendo-se por parte do mesmo cidadão, encarregado pela camara do presidir á eleição, que a uma ficasse na igreja, e que lhe fosse permittido ficar ao pé d'ella; os habitantes de Gouvinhas protestaram em altas vozes contraí aquella exigencia, declarando que não consentiam que na sua igreja ficasse ninguem nem mesmo a uma, pelo que a mesa deliberou que a uma fosse conduzida para casa do presidente, e ali fosse guardada e vigiada pelos eleitores que o quizessem fazer. Foi então conduzida para aquella casa, e nessa occasião o presidente convidou o cidadão que declarou querer ficar na igreja a guardar, a. uma a ir hospedar-se em sua casa, bem como a todos os eleitores presentes, e a guardarem e vigiarem a uma, que ficaria á sua vista.

No dia immediato foi a mesma uma conduzida para a igreja, reconhecendo-se em plena assembléa que ella se achava intacta, e assim continuaram as operações eleitoraes até ao fim, sem que perante a mesa se fizesse protesto ou reclamação alguma, e só depois é que aquelle presidente nomeado pela camara é que, com mais dois eleitores, fizeram um protesto fóra das actas.

No concelho de Valle Passos fez-se a eleição com regularidade o socego sem incidente digno de mencionar-se.

Foi Villa Pouca de Aguiar um dos concelhos em que a parcialidade chamada «opposição» praticou maiores excessos e desregramentos. Aos boatos e noticias falsas que propalavam no intuito do adquirirem partido, acrescia uma distribuição de dinheiro a mãos largas por um lado, fazendo-se promessas d'elle por outro, assim como o livramento de recrutas, etc.

Acompanha o relatorio do administrador um papel assignado por dois dos principaes chefes da opposição n'aquelle concelho, em que se responsabilisam pelo livramento de um recruta, de cujo papel remetto a v. ex.ª copia em n.° 30.

Na assembléa de Pensalvos d'aquelle concelho, não appareceu, na igreja designada para a eleição, o cidadão nomeado pela camara para presidir a ella, de modo que tendo decorrido mais de uma hora depois da marcada, o grande numero de eleitores que ali estavam escolheu d'entre si um cidadão para presidir, constituindo-se em seguida a mesas nomeada unanimemente por acclamação. É de notar, que, segundo constava, o individuo nomeado pela camara, para, presidencia, já se achava em, uma casa nã povoação, mas, não queria apresentar-se no local da assembléa emquanto não chegassem os eleitores que esperava da sua facção, para com elles disputar a constituição, da mesa. É certo porém que estes só se apresentaram com aquelle presidente ás mãe horas, a, tempo que a mesa nomeada pela assembléa procedia á eleição munida de copias authenticas do recenseamento. Estes: eleitores, parte dos quaes iam armados de grandes, paus, invadiram a igreja,

e vendo a mesa constituida declararam que a não reconheciam e que iam constituir outra em outro local, e assim o fizeram.. O delegado do administrador, não impediu, esta reunião com; receio de que a ordem se alterasse, de modo que em uma e outra se receberam votos e se lavraram actas de eleição.

Quanto á assembléa de Bornes nada houve de notavel até ao fim da tarde do dia 22, em que se levantou questão, sobre o local em que, deveria ficar, a uma, visto não se terem concluido, as operações, eleitoraes.. Pretendiam alguns membros da mesa, pertencentes ao partido da opposição, que ella fosse depositada em casa de; um padre Lino, a cuja pretensão, se oppunham os outros membros da mesa, e quando se estava n'esta altercação o presidente lança mão da uma, passa-a a um membro da mesa, e este que já ali tinha de prevenção dois creados entrega-lh'a e elles fogem com ella; são porém perseguidos por alguns eleitores e pela auctoridade que pôde prender o que levava a urna, a qual foi depois depositada na sacristia da igreja e ahi fechada em, um armario de duas chaves, com uma das quaes ficou o presidente e com a outra um membro da mesa, sendo a da porta da igreja entregue ao commandante da força militar que para ali havia > sido requisitada, e por esta fórma ficou a uma guardada, até ao dia seguinte em, que continuaram os actos eleitoraes sem novidade. O modo como se fez a eleição no concelho d'esta villa, e as circumstancias que a precederam e acompanharam, acham-se com tanta precisão e verdade expostas no relatorio do respectivo administrador, que me não posso dispensar de o fazer subir no original, com os parciaes dos seus delegados nas diversas assembléas, á presença de v. ex.ª, ousando chamar, para elle. a sua especial attenção (documento n.° 31),

Do que fica exposto vê-se que a auctoridade se manteve sempre dentro das raias da legalidade, no meio da effervescencia das paixões partidarias, e que a presença da força armada nos concelhos em que ella esteve apenas foi necessaria para manter o respeito á ordem, a qual em alguns d'elles se achava manifestamente arriscada.

Não devo terminar este relatorio sem dar, conta a V. ex.ª de um facto altamente significativo do desvairamento dos espiritos das pessoas empenhadas na luta eleitoral de que me tenho occupado. Por elle poderá V. ex.ª apreciar a boa fé e seriedade com que se consideram actos de tanto momento..Terminadas as eleições em todo o districto, era mister que aquellas sobre que houve reclamações ou protestos fossem submettidas ao respectivo conselho para este julgar da sua validade. Querendo porém obstar-se a este julgamento (nem outro fim se pôde attribuir a tal procedimento), são me apresentados requerimentos em que se averbam de suspeitos, para não poderem intervir n'estes processos, o governador civil na qualidade de presidente do conselho, o secretario geral como presidente eventual do mesmo, todos os vogaes effectivos e substitutos do biennio corrente (menos o vogal effectivo que declarára abster-se de fazer parte do conselho quando se tratasse de negocios, eleitoraes), e bem assim todos os cavalheiros que fizeram parte dos quadros do mesmo conselho nos biennios anteriores, pedindo-se outrosim que se lhes notificasse o dia do julgamento e os nomes de quaesquer outras pessoas que houvessem de constituir o conselho, porque outras suspeições tinham a oppor!

Das copias dos requerimentos juntas em n.ºs 32 e 33, pelo que respeita á eleição do concelho de Roliças, e da certidão (documento n.° 34) em que se mostra que, em face dos termos de juramentos prestados pelos diversos conselheiros que desde 1836 até ao presente lêem funccionado n'este districto são os incluidos n aquellas duas petições os unicos que restam nas circumstancias de poderem ser chamados em qualquer caso de impedimento a fazer parte do mesmo conselho, poderá V. ex.ª ver que, inutilisando-se todos estes individuos, não havia meios de constituir legalmente aquelle tribunal. Identicos requerimentos (de que não remetto copia por serem textualmente os mesmos, e feitos pelos mesmos procuradores) me foram apresentados com respeito aos outros concelhos, de cujas eleições se reclamou.

A lei manda que as novas camaras entrem em exercicio no dia 2 de janeiro, e eu tinha forçosamente de saír d'este embaraço, adoptando um expediente que desse em resultado o constituir-se o conselho para o julgamento dos respectivos processos.

O que occorre de mais natural era desprezar todas as suspeições como manifestamente enredadoras, e constituir o conselho com os conselheiros effectivos. Mas contra este alvitre havia a muito poderosa circumstancia de que estes cavalheiros já haviam sido averbados e competentemente julgados suspeitos, quando se tratou das reclamações sobre divisão das assembléas eleitoraes, por serem considerados chefes em todo o districto de um dos bandos que se debatiam.

Mandei portanto proceder a uma minuciosa e imparcial averiguação nos conselhos cujas eleições se disputaram, sobre a parte que cada um dos cavalheiros averbados de suspeitos tinha tomado na eleição (documento n.° 35), resolvido a não submetter ao conselho senão as suspeições oppostas a mim, ao secretario geral, e aquelles que das investigações se reconhecesse haviam influido na eleição por fórma tal que o, seu juizo sobre ella devesse presumir-se apaixonado. De todos os autos de investigação que me foram remettidos pelos administradores consta que só os tres já referidos conselheiros effectivos tomaram em todo o districto uma parte activa na eleição, como principaes chefes que eram de um dos partidos, nada constando relativamente aos outros. Comecei portanto por constituir o conselho com os quatro conselheiros, substitutos, e, como tinha de submetter-lhe em primeiro logar a suspeição que me era opposta, convoquei mais. um do biennio anterior, entregando a presidencia ao mais velho na conformidade da lei, visto que o secretario geral estava tambem averbado de suspeito e elle insistia e eu desejava; que esta, suspeição fosse tambem submettida a julgamento.

O que se passou, n'essa sessão, di-lo a acta respectiva (documento n. 36); foi ahi mesmo averbado de suspeito o presidente e todos os membros do conselho,para que não podes, sem conhecer da suspeição que me, era opposta, e o presidente levantou a sessão..

Não se podia manifestar por uma, maneira mais significativa o proposito e o animo deliberado de obstar a que se resolvessem os negocios eleitoraes do districto, A lei não podia prever este abuso inqualificavel, e eu julgue dever cerrar-lhe. a porta, desprezando a suspeição que me era opposta como rejeitára as outras, e presidir ao conselho composto dos vogaes substitutos para se conhecer das suspeições que haviam, sido oppostas aos effectivos.

Foram pelo mesmo conselho julgadas procedentes e provadas, e por isso os mesmos conselheiros decidiram as reclamações e protestos eleitoraes. O modo como uma e outra cousa se fez consta das actas respectivas, que vão por copia em n.ºs 37 e 38.

Estes os factos taes quaes se passaram.

Pelo que me toca, não me accusa a consciencia de ter des. merecido a confiança, do governo de Sua Magestade El-Rei, exercendo as prepotencias e arbitrariedades, que tão ignobilmente me são imputadas. Cumpri o meu dever pelo modo, por que o entendi, no intuito de obstar á desordem que, por um plano geral e combinado, se premeditava e preparava, e de dissolver os embaraços que se queriam oppor á regular administração d'este districto.

Folgarei que o meu procedimento mereça, como espero, a approvação de v. ex.ª

Deus guarde a v. ex.ª Villa Real, 4 de janeiro de 1864. — Ill.mo e ex.mo sr. ministro e secretario d'estado dos negocios do reino. — O governador civil, Jeronymo Barbosa de Abreu e Lima.

Governo civil de Villa Real. — Primeira repartição. — N.° 444. — Ill.mo e ex.mo sr. — Em additamento ao meu officio n.° 443, de 24: do corrente, tenho a honra de transmittir a v. ex.ª os adjuntos documentos.

A camara municipal do Peso da Regua, designando as assembléas para a eleição da camara municipal para o proximo futuro biennio de 1864-1865, fixou as quatro constantes do documento n.° 1.

Alguns eleitores do mesmo concelho, em petição com data de 13 de novembro ultimo, interpozeram para o conselho de, districto recurso á aquella deliberação da camara.

Outros eleitores do mesmo concelho vieram com sua petição, averbando de suspeitos os tres conselheiros effectivos, Luiz de Bessa Correia, Antonio Tiburcio Pinto Carneiro e Antonio José Ferreira de Carvalho, com o fundamento de que, estes se achavam altamente empenhados na luta eleitoral de todo o districto, e eram chefes de um dos partidos que se debatiam na mesma. (Documento n.° 2.).

Em observancia da portaria do ministerio, hoje dignamente a cargo de v. ex.ª, de 16 de agosto de 1840, mandei convocar, para conhecerem d'esta suspeição e do proprio recurso, quando ella fosse julgada procedente, os quatro vogaes immediatos aos suspeitados. (Documento n.° 3.)

Não foi convocado porém o quarto vogal, effectivo, Martinho de Mello da Gama, porque este em sessão de 13 de novembro findo havia declarado que se abstinha de tomar conhecimento, e de votar nos negocios que tivessem relação com as ultimas eleições municipaes do districto. (Documento n.° 3.)

Em sessão de 18 do dito mez de novembro, constituido o conselho, faltando o vogal Francisco Maria Cabral de Sampaio, pois que se achava ausente, submetti previamente ao mesmo conselho o incidente da suspeição, a qual foi julgada procedente e provada, e em consequencia submetti-lhe aquelle mencionado recurso. (Documento n.° 4.)

Recebi então do administrador do concelho do Peso da Regua um officio em que me expoz o que do mesmo consta, concluindo por me indicar e reclamar com urgencia, como providencia preventiva da desordem que fundadamente receiava na assembléa de Gallafura. (Documento n.° 5.)

Convencido da verdade da exposição do administrador, confirmada por outras informações, offerecia-a á consideração do conselho, o qual, compenetrado da mesma verdade, satisfez, á reclamada medida no provimento á aquelle recurso, supprimindo a assembléa de Gallafura, que transferiu com as freguezias que a compunham para a assembléa do Peso da Regua, onde a auctoridade tinha mais meios de manter a ordem. (Documento n.° 4.)

Dando execução a esta decisão do conselho, communiquei-a. ao administrador e camara municipal da Regua, e foi cumprida. N'esta transferencia da assembléa: eleitoral de Gallafura não houve incommodo para as freguezias que a compunham, Poiares, Covelinhas e Gallafura, porque os povos da de Poiares tanto distavam de Gallafura como da Regua, tendo ainda para. esta villa melhor estrada é mais relações; e as freguezias de Covelinhas e Gallafura distavam da Regua uma legua pouco, mais ou menos, e têem para lá, alem da estrada, a facil e commoda communicação pelo rio Douro proximo da qual muito usam ordinariamente; e ainda que estas tres freguezias têem de passar para a Regua o rio Corgo, este ainda hoje, e muito mais n'aquelle tempo, offerece facil passagem em todo o seu. decurso, já pelas barcas (que são necessarias na foz do rio), já pelas poldras em diversos sitios..

Da nota sob o n.° 6 pôde V. ex.ª ter occasião de ver que d'estas freguezias concorreram á eleição quasi. todos os eleitor se.

Na Regua desde o anno de 1857, costuma fazer-se a eleição na casada camara (documento n.º 7),.aonde esta fixou a assembléa e o conselho, tendo em vista o decreto de 30 de setembro de 1852, artigo 4,° n.º 1, não achou motivos para a mudar para a igreja.

O mesmo conselho,.achando commodas aos povos as demais assembléas fixadas, pela camara recorrida, não as alterou,

Das escrupulosas investigações que se fizeram, e que já re-

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metti a V. ex.'não resultam fundamentos para a arguição de ser falsa a votação ria assembléa da Regua, antes a tenho por verdadeira em presença das mesmas, e assim foi julgada pelo conselho de districto em sessão de 29 do corrente. (Documento n.° 8.)

Deus guarde a V: ex'.a Villa Real, 31 de dezembro de 1863. — Ill.mo e ex.mo sr.'ministro e secretario d'estado dos negocios do reino. = = O governador civil; Jeronymo Barbosa de Abreu e Lima.

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