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DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

Sessão de 22 de agosto, pag. 293, col. 1.ª

Continuo, ainda que a meu pezar, a responder ás considerações feitas, em logar do governo, pelo illustre deputado o sr. Telles de Vasconcellos; e digo «a meu pezar», porque todas as regras que obrigam os governos liberaes perante o parlamento, todos os principios mais rudimentaes do respeito devido ás attribuições da camara dos deputados, obrigavam o sr. ministro do reino a apressar-se e a ser o primeiro a responder ás accusações, que lhe foram feitas, e que só contra o governo são dirigidas.

Se o sr. marquez d'Avila e de Bolama não tivesse abandonado o logar, que por todas as rasões lhe pertencia, n'esse caso eu, respondendo a s. ex.ª, não diria «a meu pezar»; dizia pelo contrario «com todo o prazer», porque ao sr. presidente do conselho tinha eu o maior prazer em responder.

Entretanto v. ex.ª viu com que insistencia e constancia eu esgotei todos os recursos de tactica parlamentar, a que

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me era licito recorrer, para que s. ex.ª usasse da palavra e respondesse ás arguições que unica e exclusivamente se dirigiram ao governo. Só assim eu poderia apreciar os argumentos, em que o governo baseia a sua defeza, e só assim a discussão correria regular. Vejo-me, porém, forçado a aceitar a posição em que, mau grado meu, me collocou o sr. ministro do reino.

O illustre deputado repetiu hontem varias vezes, que para entrar n'uma questão tão importante, como era esta da eleição de Arganil, devia haver completa serenidade do animo, e conservar-se grande frieza de espirito e absoluta imparcialidade! Toda a camara presenciou e póde admirar como o illustre deputado, ao mesmo tempo que proclamava estas idéas santas e justas, era o primeiro que se encarregava de inverter na pratica a sua theoria, pelo calor e paixão de que apparecia dominado no debate.

O sr. Telles de Vasconcellos, que foi plenamente confuso na pretendida defeza dos abusos imputados ao governo, mostrou-se gravissimamente injusto nas arguições que intentou dirigir ao orador que o tinha, precedido! O sr. Dias Ferreira, sendo o mais interessado na questão que se agitava, e sendo aquelle em quem o excesso da paixão seria sempre desculpavel, por isso que as violencias tinham sido praticadas na terra da sua naturalidade, e não só contra os seus vizinhos e amigos, mas contra as pessoas de sua familia, o sr. Dias Ferreira deu durante quatro sessões uma das provas mais admiraveis, tanto da moderação de phrase, como da imparcialidade de animo. Limitou-se sempre a apreciar juridicamente, na accepção restricta da palavra, os documentos authenticos, tanto os fornecidos pelo governo, como os apresentados: por. elle.

E que fez o illustre deputado, que me precedeu? Que fez o sr. Telles de Vasconcellos, para mostrar que obedecia aos preceitos, que proclamára?

Que prova publica-nos apresentou o sr. deputado da sua impassibilidade, da sua moderação e da frieza do seu animo? Todos o vimos a divagar e a fugir da questão. Em vez de defender o governo ou a si contra accusações comprovadas, apresentou-se a discutir os actos dos ministerios anteriores, fazendo arguições hypotheticas, que nunca podiam ter cabimento n'esta occasião, e que, quando fossem justas, teriam tido pleno cabimento em occasião em que o illustre deputado, membro d'esta casa longe de as fazer, pelo contrario com o seu silencio pareceu applaudir ou pelo menos approvou tacitamente a defeza vigorosa que o cavalheiro, agora arguido, apresentava então, dos seus actos, perante a assembléa.

Não venho responder agora ás arguições apresentadas pelo sr. deputado. Não carecem de defeza, não valem de certo resposta, n'este momento, accusações de sentinellas á porta; de circulares que se mandaram em epocha já julgada; da carta constitucional rasgada, e de todas as liberdades publicas sophismadas.

Não procuro, nem me cabe a defeza d'esses pontos graves, que só vocalmente se affirmam como defeza contra accusações provadas por documentos authenticos. É licito, porém, estranhar que um verdadeiro patriota, um homem extraordinariamente liberal, assistisse impassivel á violação de todas as liberdades publicas, á offensa de todos os direitos individuaes, ao rasgar da carta constitucional, e a todas as prepotencias contra os cidadãos!!

É talvez prudente suspeitar de exagerada a accusação, ainda mesmo quando ella por extemporanea é inutil e perdida. Em todo o caso, quando esses factos, se são verdadeiros, assolavam este paiz, era essa a occasião em que todos os verdadeiros patriotas, mostrando a forte tempera do seu animo, deviam empregar todos os meios de resistencia contra esses abusos, combatendo impavidos tamanhas calamidades.

Os adversarios não appareceram. Sobravam amigos; faltavam inimigos. Não podem, de certo, reputar-se inimigos aquelles que assentiram silenciosos, quando se praticaram os factos criminosos, se taes crimes existiram, que os absolveram resignados, ou satisfeitos, no bill de indemnidade, e que só têem animo de os censurar, quando toda a censura é inutil, quando taes factos foram julgados e absolvidos, e quando dictadores e dictadura desappareceram completamente, e hoje constituem apenas recordação historica.

Já hontem me referi, posto que incidentemente, a este ponto, que é interessante.

Muitos dos factos que hoje se censuram e fulminam, mereceram ou pelo menos encontraram, da parte de muitos que em impetos de tardia indignação se lhes mostram agora mais adversos, a complacencia bastante para que uns se prestassem sem nenhum genero de coacção a partilhar da sua responsabilidade, e para que outros sem o minimo escrupulo corressem a aproveitar as suas consequencias.

Não quero nem devo, n'este momento, ser mais longo nem mais explicito a este respeito. Este ponto, que póde ter grande desenvolvimento, pertence naturalmente á pessoa a quem elle respeita mais de perto, e que sem o meu auxilio o desenvolverá perfeitamente, se o julgar necessario, e creio que ha de satisfazer a todos. Portanto a este respeito limito aqui as minhas observações.

O illustre deputado, que me precedeu, em seu nome ou antes em nome do governo, declarava hontem cathedraticamente a esta camara, que era preciso não deslocar nem deixar deslocar a questão, a qual se resumia toda unicamente em saber — se os actos praticados no circulo de Arganil tinham, ou não, influido no resultado eleitoral.

Não ha decerto meio mais seguro de deslocar uma questão, a pedido ou a pretexto de a não deslocar, do que o meio que foi empregado pelo illustre deputado.

Pois nós tratámos agora, porventura, de saber se os actos influiram, ou não, no resultado eleitoral? Estamos nós a discutir a validade da eleição, estamos a tratar da sua approvação?! A não se querer reunir a ironia e o sarcasmo ao procedimento insolito e criminoso, já provado da parte do governo, não se póde impunemente affirmar, perante uma camara cujos membros têem uma illustração superior, que para se não deslocar uma questão é preciso exactamente desloca-la, transforma-la e substitui-la completamente (apoiados).

É absolutamente impossivel, é verdadeiramente incrivel esta pretensão de distrahirem a nossa attenção com tão futeis evasivas. Não tratamos d'isso. Tratamos apenas de saber se o governo, que tem rigorosa obrigação de cumprir e de fazer cumprir as leis, as violou, em vez de as observar; tratâmos de indagar se o governo, em vez de cumprir uma obrigação, faltou a ella, e a todos os seus deveres legaes, não mandando cumprir as leis, ou mandando as violar, ou violando-as elle mesmo; estamos a averiguar a existencia de actos, que pela sua natureza são e não podem deixar de ser crimes, e que são crimes para todos que os praticam, tanto para o governo, como para os seus agentes, como para todo e qualquer cidadão d'este paiz.

É d'isto, e só d'isto, que nós tratâmos.

Não queremos saber agora se taes factos influiram, ou não, no resultado eleitoral. N'esse campo mesmo o governo ficaria completamente batido; e não só batido, mas desmentido, porque as suas asserções meramente graciosas encontram já uma negação absoluta nos documentos que foram lidos pelo meu illustre collega e amigo o sr. Dias Ferreira. Ahi se mostra evidentemente, á vista das descargas dos cadernos do recenseamento, que nas localidades, em que o governo empregou estes meios illegaes e criminosos, a concorrencia á urna foi muito menor do que tinha sido em todas as eleições anteriores.

É debaixo d'este ponto de vista, é em face dos principios da influencia dos seus actos no resultado eleitoral, que o governo pretende ser julgado?

Eu protesto contra a evasiva, que se procurou; mas ao mesmo tempo mostro que n'esse mesmo campo fica igualmente condemnado o governo.

Não ha duvida que o governo, pelos meios que empre-

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gou, desviou e afugentou da urna pela pressão e pelo terror muitos eleitores, que tinham o mesmo direito que os outros de usar do seu voto, que sempre tinham usado d'elle nas eleições anteriores, e que agora opprimidos e violentados não poderam concorrer a urna que, n'este paiz, se mandou abrir, creio eu, igualmente para todos aquelles que na qualidade de eleitores têem voto, e incontestavel direito a fazerem-se representar n'esta casa.

Nós tratâmos dos factos criminosos; e esses factos estão provados á ultima evidencia, tanto pelos documentos mandados pelo governo, como pelos outros inteiramente authenticos apresentados pelo sr. Dias Ferreira. Esses documentos desfizeram e destruiram completamente, uma por uma, todas as asserções menos verdadeiras feitas ao governo, pelos seus delegados, e approvadas e confirmadas pelo sr. ministro do reino.

Não serei eu que estranhe a confirmação e approvação, porque tenho, em minha consciencia, a certeza plena e absoluta de que não houve irregularidade praticada nos actos eleitoraes, que não fosse mandada praticar pelo sr. ministro do reino.

Não são excessos dos seus delegados, não e dedicação nem fanatismo dos empregados subalternos. Não nos illudamos, nem tentemos illudir os outros. Os abusos praticados são as consequencias naturaes e infalliveis das instrucções dadas pelo governo aos seus delegados; são o resultado da obediencia cega e submissa d'aquelles que o governo mandou chamar a Lisboa para receberem as suas instrucções, ou nomeou de novo, mandando-os d'aqui já devidamente instruidos.

Quando um paiz inteiro presencía o facto escandaloso de nas vesperas das eleições mandar o governo chamar a Lisboa todos os seus agentes e empregados de confiança, e quando depois apparecem praticados tantos abusos e tantos crimes, não póde aproveitar a ministro nenhum a evasiva, tão pueril como revoltante, de que os actos foram praticados contra a sua vontade, sem seu conhecimento, sem a sua approvação.

Pois quando nós vemos não ser castigado nenhum dos seus agentes, e quando pelo contrario vemos o governo a empregar todos os meios, de que dispõe, para furtar os seus agentes á responsabilidade legal, e para sonegar á publicidade os documentos, que devia ser o primeiro a exhibir perante a representação nacional, podemos nós illudir-nos ou fingir illusões? (Apoiados.) É o governo o auctor unico de todos os actos que lhe são attribuidos, assim como é o unico responsavel por todos os abusos commettidos.

O orador, que me precedeu, apresentou ainda o argumento, verdadeiramente extraordinario, da impassibilidade d'esta camara, a qual não tinha obrigado ainda o governo a abandonar aquellas cadeiras. Acrescentou o nobre deputado, não sei para que: «é a logica dos factos, é a justiça da causa».

Se porventura o sr. Telles de Vasconcellos quiz declarar o parlamento responsavel por todos estes actos, insinuando que o facto do governo não ter ainda caído significava, que o parlamento approvava o seu procedimento, e todos os abusos, e todos os crimes praticados no circulo de Arganil, eu protesto, porque tenho e posso ter a consciencia e a certeza de que muitos dos membros d'esta casa, embora vejam a sua liberdade de acção, até certo ponto, presa e ligada por considerações partidarias e politicas, revoltam-se contra os abusos praticados; e de certo nenhum deixou de sentir uma forte impressão de desgosto e de profunda indignação, quando do alto d'aquella tribuna ouviram desmentir, uma a uma, todas as asserções officiaes, porque todas ellas foram declaradas infundadas e menos verdadeiras por documentos authenticos, de que não é licito duvidar, emquanto não forem juridicamente destruidos.

Portanto não queira o illustre deputado declinar a responsabilidade sobre os membros d'esta camara. Não exagere até esse ponto a sua tolerancia para com o governo.

Não a confunda, sobretudo, com a cumplicidade nos actos que foram praticados só pelo governo e pelos seus agentes, e que mesmo singelamente narrados produziram grande indignação em todos os membros d'esta casa.

O que queria o nobre deputado que até este momento fizesse a camara?

A camara viu e ouviu que se accusava o governo e os seus delegados, nada resolveu ainda, porque naturalmente entendeu que não podia tomar deliberação nenhuma sem primeiro ouvir a defeza.

Não podia fazer outra cousa.

A camara para julgar havia de esperar que o governo se defendesse.

Que fez o governo?

Guardou silencio; fugiu do logar que na inscripção devia pertencer-lhe; não se defendeu ainda. Está ali, até este momento, silencioso e mudo.

A deliberação da camara ha de ter logar depois de ouvir a defeza, ou antes a resposta do governo, porque elle não póde defender-se. Não é justo nem prudente argumentar com uma decisão, que não está ainda proferida, e cujo resultado não póde prever-se, a não se devassarem as intenções alheias (apoiados).

O illustre deputado, para não faltar aos seus principios previamente declarados, e tanto para comprovar a sua frieza de animo e rigorosa imparcialidade, como para affirmar o seu justo empenho de não deixar deslocar a questão, veiu desenterrar perante esta camara, em 1871, as scenas de 1860. Já é levar longe o respeito pelos principios que se proclamam!

Disse o illustre deputado que em 1860 se tinha mandado tropa para Arganil por occasião das eleições. O illustre deputado, como profundo jurisconsulto que é, deveria talvez primeiro que tudo averiguar, se o abuso, ou crime, se quizer, praticado em 1860, que até hoje não foi arguido, estará ou não completamente prescripto segundo a nossa legislação. Se o fizesse, era de presumir que talvez não perdesse o tempo em investigações historicas, hoje sem utilidade alguma pratica.

Mas não é só isso. O illustre deputado, o sr. Telles de Vasconcellos, tinha logar n'esta casa na legislatura de 1860. Teve pleno e perfeito conhecimento d'esses abusos n'essa epocha, o assistiu á discussão que teve logar n'esta casa. Visto que o illustre deputado nos recorda esses factos, devia recordar-nos tambem, e primeiro que tudo, os esforços que empregou para que esses abusos fossem castigados (apoiados).

O illustre deputado pertenceu a essa mesma camara, assistiu ás sessões em que se discutiu e approvou a eleição de Arganil, talvez a approvasse tambem, tomou parte na approvação que hoje censura! (Apoiados.)

O illustre deputado disse que o sr. Dias Ferreira não tinha aprendido as idéas, que hoje tem ou segue, com aquelles a quem esteve ligado em 1860.

Não sei com quem o sr. Dias Ferreira aprendeu, nem me importa. A camara é de certo indifferente a averiguação do tal assumpto. So eu comprehendo a força de tal argumento, creio que elle, longe de contrariar, confirma a justiça com que o sr. Dias Ferreira se defenda n'esta occasião.

O sr. Dias Ferreira combate hoje o emprego da força armada, que a escola, que o sr. Telles de Vasconcellos segue, usava já em 1860. É certo que o sr. Telles de Vasconcellos não póde ser accusado de contradicções; pelo contrario, mostra coherencia perfeita e completa; mas não sei tambem em que seja o sr. Dias Ferreira responsavel pelos factos de 1860, praticados quando elle era ainda estudante de Coimbra.

Quem era o governo d'essa epocha? Quem era o governo que mandou a tropa em 1860 ao administrador de Arganil? Era um governo que o sr. Telles de Vasconcellos apoiou (apoiados). E não teria então o illustre deputado as mesmas idéas que o governo tinha? Quem será mais res-

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ponsavel pelos actos do governo em 1860, o sr. Telles de Vasconcellos, que o apoiava como deputado da nação, ou o sr. Dias Ferreira, simples estudante em Coimbra? (Apoiados.)

Eu estava ainda longe de entrar na vida politica em 1860, mas custa-me ver o sr. Telles de Vasconcellos a accusar se só a si, a pretexto de accusar os outros.

Eu vejo o sr. Dias Ferreira, não como elle podia ter sido em 1860, unido ou ligado á escola que tinha por principios mandar tropa para intimidar os eleitores a pretexto de garantir a liberdade da eleição, mas sómente como elle hoje se apresenta, absolutamente separado d'essa escola, combatendo a intervenção da força armada no acto eleitoral, respeitando a lei, e querendo que a representação seja do povo, e não que a representação nacional seja fabricada pela força armada (apoiados). Estas são as minhas idéas tambem, e se lo iam, ainda que não fossem as do sr. Dias Ferreira.

Disse tambem o illustre deputado que os amigo do sr. Dias Ferreira eram os turbulentos de Arganil. Eu não conheço Arganil. Não conheço lá ninguem. Entretanto ouvi esta asserção do sr. Telles de Vasconcellos sem ser comprovada com documentos authenticos (apoiados), e pouco antes tinha ouvido, comprovado por certidões authenticas tiradas de processou judiciaes, que o maior amigo do governo em Arganil não só estava actualmente pronunciado, mas já tinha sido anteriormente pronunciado, e mais de uma vez, por crimes muito graves.

A differença no modo de fazer as accusações, que o sr. Dias Ferreira nunca fez sem exhibir prova authentica, e que o sr. Telles de Vasconcellos faz sem apresentar prova alguma, é muita, não póde ser maior (apoiados). Não é, porém, a unica differença.

Ainda que nos prestemos a acreditar igualmente as accusações comprovadas e as não comprovadas, havemos de reconhecer que entre a turbulencia e a criminalidade ha tambem differença grande e enorme. Entre a criminalidade que apparece provada n'esta casa por documentos authenticos, como são pronuncias passadas em julgado, e a turbulencia affirmada apenas n'uma asserção graciosa, eu creio que ninguem hesita, e que para todos é a escolha muito facil de fazer (apoiados).

Disse tambem o illustre deputado em nome do governo (porque eu tomo sempre as suas asserções como defeza do governo, e não como defeza de s. ex.ª), que tinha sido da maior liberdade e da maior legalidade o espirito que tinha presidido á eleição do circulo de Arganil.

Para isso affirmava o sr. Telles de Vasconcellos que os empregados, que trabalharam contra o governo, e portanto a favor da opposição, não foram demittidos, e que se esse espirito fosse de intolerancia e de injustiça, todos elles seriam demittidos.

Não é tarde ainda para as demissões. E se a má estrella, que ha algum tempo preside aos destinos d'este paiz, permittir a conservação d'este governo por muito tempo (eu espero em Deus que não ha de permittir tal calamidade, cuja duração rasoavelmente já não podia ser até hoje, mas tem sido), (apoiados); se este ministerio continuar por muito tempo, eu creio que as provas da tolerancia politica, do benevolo caracter e do espirito recto e justiceiro do sr. marquez d'Avila e Bolama hão de chegar ainda a muitos pontos d'este paiz, para onde ellas têem estado retardadas pela voz da imprensa, e porque eram já muitos no mesmo sentido os factos de que, com escandalo da opinião publica, a imprensa d'este paiz arguia o governo.

Por tolerancia do governo, diz o sr. Telles de Vasconcellos, os empregados não foram demittidos! Mas um d'elles era preso para averiguações na occasião em que mais tranquillo descansava na sua propria casa! (Apoiados.) Depois de preso fazia um requerimento em que, fundado nas leis do paiz, perguntava o motivo da culpa; respondia-se-lhe simplesmente — está preso para averiguações; e faltava-se á verdade, porque n'esse mesmo dia, em um documento official dirigido ao governador civil, declarava-se que aquelle individuo não tinha sido preso para averiguações, mas unicamente por suspeitas de alteração da ordem publica, de concerto com uns certos homens desconhecidos n'aquella localidade.

Qual será mais tolerante, qual será menos oppressor e mais digno? Dar simplesmente a um empregado publico a sua demissão, ou prende-lo, e depois de preso manda-lo passeiar pelos mercados publicos, em todos os pontos de um largo trajecto desde o logar da prisão até á cidade de Coimbra? (Apoiados.)

Qual será mais tolerante? Eu não decido, nem quero decidir estas competencias de tolerancia e de legalidade. Deixo a decisão ao sr. Telles de Vasconcellos. Mas o que eu affirmo é que mais proprio do sr. marquez d'Avila e de Bolama, mais conforme e mais parecido com a epocha de 1845, é incontestavelmente fazer-se o que se fez, é inquestionavelmente prender em vez de demittir.

Os documentos provaram, que o governo empregou todos os meios, de que podia dispor, para produzir a desordem e o derramamento de sangue no circulo de Arganil, assim como promoveu e conseguiu fazer derramar sangue em outros circulos do reino. Eu encaro as cousas como ellas são, o considero as consequencias que deviam seguir se;

Para isso mandava o sr. ministro do reino prender arbitrariamente um homem n'uma localidade, onde elle tinha incontestavel influencia, e onde estavam reunidos todos os seus amigos. Para isso mandava-se effectuar a prisão por seis soldados apenas, de fórma que se incitava o povo á resistencia e á desordem, provocando-o pela facilidade de desarmar uma tão pequena força. Parece que o unico ou principal fim era produzir por este modo uma conflagração geral, que servisse de pretexto a empregar-se depois a força contra uma povoação inteira.

Para promover a desordem o governo não só approvava, mas animava a publicação de um jornal, em que o administrador do concelho de Arganil todos os dias chamava corruptos e indignos a todos os funccionarios da localidade, tanto civis e fiscaes, como judiciaes e ecclesiasticos (apoiados).

Para promover a desordem, o governo transferia o seu representante do ministerio publico, porque elle, tendo conhecimento d'estes factos, os communicava e d'elles se queixava, denunciando-os como crimes para o ministerio da justiça.

Ao mesmo tempo que os empregados, que obedeciam á lei e cumpriam os seus deveres, eram punidos e castigados com a transferencia, animava-se e sustentava-se a publicação do jornal que devia promover a desordem, conservando se á testa da administração do concelho o fundador d'esae jornal, o homem que tinha declarado sustenta-lo com o seu ordenado, e que na pratica traduzia por actos o que por palavras se affirmava todos os dias n'esse jornal official.

É este o procedimento do governo; se eu lhe não attenuo a gravidade, não lhe exagero tambem a significação. Não lhe farei favor, mas não lhe faço injuria tambem.

Apesar de todas as provocações da auctoridade, não houve a desordem, e, tendo falhado todas as suas tentativas desordeiras, o governo tira d'ahi pretexto para nova audacia, e vem ainda exclamar, fazendo do Sambenito gala: com que direito me accusaes, se desordem não houve nenhuma?!

Não houve, é verdade, mas não foi por falta de diligencias que o governo e os seus agentes empregassem. Não houve, porque por um phenomeno se encontrou um povo tão paciente, tão seguro da sua força ou ainda tão crente e tão confiado em que em breve chegaria o termo do seu soffrimento, que resistiu ás prisões arbitrarias dos seus influentes, que desprezou o insulto quotidiano, que soube e quiz ser superior e mostrar-se impassivel perante a calumnia official organisada e sustentada pelo poder que o opprimia. Quando apparece um povo que resiste a tudo isto, o

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merecimento é todo d'esse povo, mas a culpa do governo aggrava-se, é ainda muito maior, torna-se realmente revoltante (apoiados).

É esta a liberdade, com que o sr. marquez d'Avila e de Bolama quer dotar o paiz! São estes os direitos individuaes, com cujo exercicio nos quer dotar um governo que não nasceu do parlamento, que não se organisou em virtude de nenhuma indicação constitucional, que nenhuma circumstancia conhecida recommendou, que não tem titulo algum para affirmar que representa a confiança do povo (apoiados), e que encontra n'esta camara a prova mais plena da reprovação do paiz, porque, tendo presidido a uma eleição, não acha aqui um unico partido politico, que se sujeite a partilhar e muito menos a aceitar a responsabilidade dos seus actos! É com esta liberdade, é com estes principios beneficos que o governo de 1871 quer dotar o paiz, que combateu denodadamente e venceu com esforço difficuldades superiores para conquistar a liberdade que tem direito de gosar?

Assim parece, e outra cousa não póde presumir-se, desde que o governo vem declarar que são apenas irregulares, desde que foge de declarar que são criminosos, tanto o facto da prisão arbitraria de um cidadão pacifico, como o facto não menos revoltante de se arrancar um criminoso das mãos da justiça, prendendo-se, em vez d'elle, o official judicial que obedecia ao mandado do seu juiz. Se estes actos são apenas irregulares, se não são crimes, quererá o governo por os lamentar, depois de os ter mandado praticar, a confiança da camara, um voto de louvor? Parece-me que sim. Parece que o governo espera um voto de louvor, uma moção de confiança por ter praticado estes actos e por ter dotado este paiz em 1871 com os beneficios de 1845.

Veiu ainda o illustre deputado, que me precedeu, em nome do governo, dizer que ninguem approvou as prisões arbitrarias feitas pelo administrador do concelho de Arganil. Ninguem as approvou. O governador civil tanto as não approvou, que mandou soltar immediatamente o preso.

Nós não tratamos, ao menos por emquanto, do acto do governador civil de Coimbra, mandando soltar o preso. Não é esse o crime revoltante que se accusa; não foi esse o ponto que se censurou. O acto do governador civil póde e deve censurar-se tambem, e eu logo direi porque. Mas até aqui o que se tem accusado, e do que nós tratâmos, é do crime insolito do administrador de Arganil, delegado de confiança do governador civil e delegado de confiança do governo, ter mandado prender um cidadão pacifico, arrastando-o durante cinco dias por aquellas povoações, em exposição publica pelos mercados e feiras, para intimidar e amedrontar os povos e afugentar os eleitores da urna. É d'esse facto que nós tratâmos. Ninguem approvou aquelle acto, diz o sr. Telles de Vasconcellos, e a cousa não é difficil de dizer. Suppunhamos que ninguem approvou esse acto; mas pergunta se se o reprovaram (apoiados). Pergunta-se se mandaram, ou não mandaram, a força publica ao administrador de Arganil, para lhe dar os meios de praticar, não aquelle acto irregular, mas aquelle crime revoltante (muitos apoiados). Pergunta-se, se demittiram o funccionario criminoso, e se mandaram pelo ministerio publico, instaurar contra elle o processo competente. Empregaram algum d'esses meios? Não. Mandou-se apenas fazer uma syndicancia. Era preciso realmente proceder com muito escrupulo e com todas as formalidades a esta syndicancia, depois que o governador civil reconheceu tanto a irregularidade e a criminalidade da prisão, que mandou soltar o homem preso, commettendo uma illegalidade tambem. Grande era a vontade de syndicar, quando nenhuma necessidade havia de syndicancia! Pois era preciso mandar syndicar para saber que o administrador tinha prendido o homem que elle remettia preso ao governador civil? Serviria a syndicancia para saber que se devia punir o auctor d'essa prisão illegal e arbitraria? Era preciso syndicar, para que? Para conhecer da criminalidade do acto? Não; porque essa criminalidade tinha-a reconhecido o governador civil, mandando soltar o preso, para attenuar a culpa do seu subalterno culpado (apoiados).

A syndicancia não tem explicação possivel, a não ter sido feita com o proposito de conseguir para o culpado a impunidade. Não tem outra rasão de ser, senão o intuito de disfarçar o crime e de attenuar quanto possivel as consequencias do attentado praticado. E que este foi o unico fim, veiu a syndicancia prova-lo; e o procedimento do governo até hoje, ainda melhor o prova (apoiados). É o medo depois do crime, é a fuga á justiça depois dos maleficios perpetrados. Tomem ao menos a responsabilidade dos seus actos, e ponham-lhes o nome por baixo. Já que excedem em illegalidades e violencias todas as recordações de 1845 (apoiados), igualem ao menos os seus auctores na coragem (apoiados). Assignem os actos publicos com os seus nomes. Tomem perante o paiz a inteira responsabilidade dos actos illegaes que praticam. Excedem na illegalidade, excedem na violencia, excedem em todos os meios de corrupção eleitoral, todos os abusos até hoje conhecidos. Mas fogem cheios de medo á responsabilidade, occultam-se, escondem-se uns atrás dos autros (apoiados), os superiores atrás dos inferiores (apoiados). Quando a final se procura a responsabilidade dos ministros, perante o parlamento, escondem-se, oceultam-se, desapparecem, humildes e supplicantes, os ministros da corôa atrás dos regedores da Bemfeita e da Cerdeira, pedindo-lhes que por favor estendam a mão da protecção (apoiados).

É assim que se sustenta o prestigio, é assim que se mantem a dignidade do poder! (Apoiados).

Não é só para a camara que eu trato esta questão, porque toda a camara está ao facto d'ella por todos os documentos que examinou e por todos aquelles que ouviu ler. Trato-a principalmente para o paiz, porque cumpre e é indispensavel que este governo, emquanto resiste a todas as indicações constitucionaes para se retirar, seja apresentado perante o paiz como aquillo que é, como aquillo que vale (apoiados).

Diz o governo «eu soltando aquelle que foi preso arbitrariamente pelo administrador de Arganil, desaggravei, desaffrontei a liberdade individual.»

Tem graça este systema de um governo aggravar todas as liberdades individuaes para as desaggravar depois. É cousa original! (Apoiados).

Um cidadão não póde ser preso sem culpa formada, excepto nos casos de flagrante delicto, e em outros especialissimos, taxativamente designados na legislação d'este paiz. O governo manda prender aquelles, que pelas leis lhe é prohibido mandar prender, e prende-os pelos seus delegados de confiança. As prisões verificam-se, os cidadãos estão privados da sua liberdade e oflendidos nos seus direitos. O governo e os seus agentes, depois de os terem cinco, dias presos, expondo-os em espectaculo publico, trazendo os em correrias pelas povoações, mandamos soltar depois da eleição, como agora, tendo-os privado de eleger. Apresenta-se depois satisfeito e audaz o ministro ao parlamento, e diz: «porque me accusaes? Eu desaggravei e desaffrontei as liberdades individuaes offendidas, mandando pelos governadores civis soltar os que arbitraria e despoticamente tinham sido presos pelos administradores de concelho!» O ministro não teme que lhe respondam — se desaggravou as liberdades individuaes é porque primeiro as aggravou e affrontou (Apoiados.) A tardia defeza dispensava-se, se o governo se tivesse abstido da culpavel offensa. Como quer o ministro que se lhe agradeça esta ficção de respeito pela lei, se, para poder fingi-lo, foi elle o primeiro e o unico, que em vez de cumprir a lei, como devia, deliberadamente deixou de a cumprir e flagrantemente a violou (apoiados).

Eu vou, sem difficuldade, mostrar que o governo e seus delegados, longe de uma vez qualquer cumprirem a lei, duas vezes violaram, duas vezes forçaram e duas vezes offenderam todas as leis escriptas d'este paiz (apoiados). O codigo administrativo, tanto pela doutrina como pela epo-

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cha da sua promulgação, não será, de certo, suspeito ao nobre marquez d'Avila e de Bolama. Pois o seu proprio codigo o condemna, tal foi o excesso do seu illegal procedimento! (Apoiados.)

É preciso recordar a lei ao governo; é preciso talvez ensinar as suas disposições expressas aos ministros e aos seus delegados, que as ignoram ou fingem ignorar, porque todos elles desconhecem e offendem a lei escripta d'este paiz.

Prescindo de me referir á carta constitucional, que no artigo 145.° §§ 7.°, 8.°, 9.° e 10.º estabelece plenamente as garantias individuaes a este respeito.

Vou referir-me ao codigo administrativo, que no artigo 252.º diz o seguinte:

«No que respeita á policia judicial, é permittido ao administrador do concelho prender ou mandar prender os culpados, nos casos em que se não exige a previa formação de culpa.»

Nos §§ 2.°, 4.° e 6.° d'este artigo diz o codigo administrativo que a prisão deve ser logo participada ao juiz competente pela auctoridade administrativa, a qual remetterá ao ministerio publico um auto de investigação dos factos com os nomes das testemunhas e informação sua, limitando-se a isto as suas funcções, porque os presos ficam, desde logo, só á disposição da auctoridade judicial, que ácerca d'elles procederá do mesmo modo e nos mesmos termos ordenados nas leis para os que são presos por ordem judicial.

Esta é a lei expressa, positiva e bem clara. O governo, por intermedio dos seus agentes responsaveis, por meio dos seus delegados de confiança, fez exactamente o contrario do que a lei expressamente ordena (apoiados). É o que vamos ver.

Pelas nossas leis a auctoridade administrativa não póde mandar prender senão nos casos restricta e taxativamente marcados nas leis. A prisão por ordem do administrador do concelho só póde effectuar-se nos casos de flagrante delicto, e n'aquelles casos em que se não exige a previa formação de culpa.

O que seja caso de flagrante delicto está definido no artigo 1020.° da novissima reforma judiciaria pela fórma seguinte:

«Flagrante delicto é aquelle, que se está commettendo, ou se acabou de commetter sem intervallo algum. Reputa-se tambem flagrante delicto o caso, em que o delinquente, acabando de perpetrar o crime, foge do logar d'elle, e é logo continua e successivamente seguido pela justiça, ou por qualquer do povo.»

Quaes sejam os casos, em que se não exige a previa formação de culpa, acham-se tambem definidos e especificados nas leis. São os crimes de alta traição, furto violento ou domestico, homicidio e levantamento de fazenda alheia, mencionados no artigo 1023.° da mesma reforma, e de falsidade, fabricação ou falsificação de moeda, papeis ou notas de bancos nacionaes ou estrangeiros, em harmonia com o artigo 6.° da lei de 4 de junho de 1859.

A prisão foi illegal e arbitraria, porque foi feita, sem culpa formada, fóra dos casos em que a lei a permitte. A esse respeito não ha duvida possivel.

Resta examinar apenas o alto feito de legalidade e de virtude, com que o governo affirma e exagera os seus sentimentos liberaes, e intenta provar a sua dedicação e o seu respeito pelos direitos individuaes. É o facto do governador civil de Coimbra ter mandado arbitrariamente soltar o cidadão, que arbitrariamente foi preso pelo administrador do concelho de Arganil, seu delegado de confiança, restituindo-lhe a liberdade depois de cinco dias de prisão, e principalmente depois de ter passado a eleição, na qual este cidadão foi privado de tomar parte com o seu voto e com a sua influencia, vendo-se espoliado do direito mais importante nos paizes livres por uma violencia prepotente e escandalosa da auctoridade administrativa, que devia ser paternal e benefica. O facto de soltar, se não é tão violento nem tão escandaloso, como o facto de prender, é igualmente illegal e igualmente arbitrario (apoiados).

A auctoridade administrativa, que só prende nos casos especificados nas leis e a que já me referi, não exerce nem póde exercer, porque a não tem, jurisdicção alguma sobre as pessoas que prendeu. Ha de pô-las immediatamente á disposição do juiz (apoiados), porque só ao poder judicial incumbe conhecer do delicto, apreciar as suas circumstancias, e decidir sobre a liberdade dos cidadãos. É isto o que expressamente determina a lei nos §§ 2.° e 6.° do artigo 252.° do codigo administrativo.

A nota a este artigo diz com toda a precisão e clareza, que a auctoridade administrativa em nenhum caso póde mandar soltar os presos porque lhe não compete a apreciação e julgamento de delicto. São expressas as portarias de 1 de setembro de 1837, 26 de junho de 1838, 5 e 11 de setembro de 1839 e 14 de novembro de 1851.

Que importam, porém, as leis ao sr. ministro do reino? O sr. marquez d'Avila e os seus delegados só conhecem, só approvam e só executam as portarias de 1845 (apoiados).

A auctoridade administrativa, que só póde prender nos casos especificados nas leis, nunca póde soltar; desejo ver se o sr. ministro ousa negar estes principios. Na minha vida forense tenho eu visto, em perfeita harmonia com a nossa legislação, mais de uma querella intentada contra os administradores de concelho por terem mandado soltar os presos, depois que foram recolhidos á cadeia. Se a auctoridade administrativa excede as suas attribuições, se solta depois de prender, se prende fóra dos casos legaes, commette abuso de auctoridade, e em todos os outros casos, diz a lei expressamente, não póde o administrador do concelho oadenar a prisão, mas sómente proceder ás investigações necessarias e transmitti-las ao magistrado judicial, e fazendo o contrario, commette o abuso de auctoridade pelo qual póde ser punido com a pena de prisão de tres mezes a tres annos, segundo o artigo 291.° do codigo penal.

São estas as disposições das nossas leis; e por todos os regulamentos administrativos que eu conheço, a auctoridade administrativa só póde mandar soltar aquelles que as rondas ou a policia prendem ou antes retêem por suspeitos, ordinariamente de noite, e só nos grandes centros de população, e que são levados aquella auctoridade antes de serem recolhidos á cadeia. Só esses é que a auctoridade administrativa póde mandar soltar, porque ainda não os recolheu á cadeia, quando não encontre indicio ou fundamento algum de crime, quando evidentemente reconheça que a suspeita ou detenção policial fôra absolutamente infundada.

Porventura será isto contrario aos bons principios de administração? Será isto contrario á liberdade de um paiz? Não. Pelo contrario, é indispensavel á liberdade de todos os povos, e a restricção do poder da auctoridade administrativa para ordenar ou effectuar as prisões é a primeira garantia de um povo livre.

Eu leio a v. ex.ª as poucas palavras de um commentador distincto dos artigos do nosso codigo penal, jurisconsulto profundo que todos nós conhecemos e respeitamos. Refiro-me ao sr. visconde de Paiva Manso. Diz elle:

«A detenção preventiva é um facto da maior gravidade n'um paiz livre, visto ser uma punição antecipada que vae atacar o credito do indiciado. Por isso a legislação dos povos livres tem cercado de todas as precauções e garantias essas detenções; e o que prova o poder que tem no coração humano o sentimento dos direitos individuaes, é que em todas as epochas em que o systema liberal se tem inaugurado, sempre os povos têem pugnado pela garantia real da liberdade individual. Sirva de exemplo o povo inglez que, desde a epocha de Carlos I, trabalhou pelas obter, até que em 1679 alcançou o celebre acto do Habeas corpus. N'um paiz liberal, portanto, como o nosso, aonde a legislação dá tantas seguranças aos direitos do individuo, o codigo penal não podia deixar de punir gravemente todos os attentados, que contra ellas se apresentassem por parte

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d'aquelles em cujas mãos está depositada a auctoridade publica,»

N'estas leis e n'estes principios não se encontra excepção alguma para a hypothese de estar depositada a auctorida de publica nas mãos do sr. marquez d'Avila e de Bolama. A hypothese não era facil de prever, mas a excepção era precisa para os factos que estamos presenciando (apoiados).

Prohibir á auctoridade administrativa as prisões é a primeira liberdade individual, é a primeira garantia que as leis politicas de um paiz firmam, quando se estabelece a liberdade (apoiados).

O governo e os seus agentes fundaram-se na portaria de 1845, portaria a respeito da qual é licito duvidar, se hoje está, ou não, em vigor. Eu creio que nem a duvida é possivel em vista da propria letra da portaria, a qual declara que ella é apenas para aquelle momento, só para aquella occasião, emquanto durarem aquellas circumstancias excepcionaes, que passaram ha muito.

O actual governo e os seus delegados fundaram-se, como disse, na portaria de 1845. Assim affirmam que, para elles, ella vigora, não como simples theoria, mas como lei exequivel que elles praticam e tornam realidade. Ao mesmo tempo, sem o menor escrupulo, fingem ignorar, ignoram talvez, e em todo o caso offendem e contrariam as disposições das portarias de 1837, 1838, 1839 e 1851, a propria reforma judicial e toda a outra legislação, incluindo a carta constitucional, que não dá á auctoridade administrativa o direito de fazer prisões arbitrariamente, mas apenas n'aquelles casos para que está especialissimamente auctorisada.

Mas, sr. presidente, como nos póde isto admirar, se eu hontem ouvi declarar aqui por parte do governo, que na comarca de Arganil estavam em divergencia e opposição o poder judicial e o poder administrativo?

Poder administrativo! Poder administrativo é talvez additamento que este governo, usando da sua larga iniciativa, pretende fazer na lei fundamental do paiz (riso).

Até hoje poder administrativo não ha. Ha poder executivo, e uma das partes do poder executivo é a administração; mas a administração não é todo o poder executivo, nunca se póde confundir com elle, e ninguem a confunde, a não ser o sr. marquez d'Avila, que quer primeiro que tudo, a titulo de administrar, confundir todas as idéas, violar todas as leis, suffocar todas as vozes, destruir e abafar todas as liberdades (apoiados).

E fazia-se isto com tanto conhecimento de causa, que se invocava, para se justificar esta singularissima doutrina, o parecer do nosso illustre collega e meu amigo, que eu muito respeito, o sr. Mártens Ferrão, quando o sr. Mártens Ferrão só dizia, que lhe parecia haver incompatibilidade na comarca de Arganil entre o delegado do procurador regio e o administrador do concelho.

A camara ha de concordar, que n'estas nossas sessões aprende-se muito, quando se vê considerar como lei do paiz e como doutrina corrente, uma idéa exotica que era até hoje ignorada e que nunca se proclamou (apoiados).

Sr. presidente, admittida esta doutrina, porque não levou o governo, no circulo de Arganil, avante e até ao fim, o plano que o sr. José Dias Ferreira affirmou que tinha sido premeditado? Porque não levou elle o seu amor pelo desaggravo de todas as liberdades individuaes, a ponto de ter mandado prender no dia 7 todos os eleitores, para os soltar no dia 9, e apresentar-se perante os representantes do povo a pedir um voto de louvor, um monumento, uma estatua, por ter desaggravado as liberdades individuaes offendidas em todos os eleitores do circulo de Arganil? Porque o não fez? Porque não póde, senão assistiriamos nós mais a esta novidade parlamentar (apoiados).

Se o governo podesse, ousava-o e fazia o de certo.

N'esse caso não seria só a Antonio Pinto, de Pomares, que se tinha aggravado a liberdade para a desaffrontar depois, era a todos os influentes, era a todos os principaes da opposição. Forte pela sua coherencia, orgulhoso com os seus muitos serviços, o governo apresentando-se aqui a pedir um voto de louvor por todos esses actos, praticava em larga escala uma theoria, que, se é nova e exclusivamente sua, ainda tem menos de nova do que de singular, de injusta e de atrevida (apoiados).

Mas a auctoridade administrativa não podia mandar soltar, depois que só á auctoridade judicial pertencia dispor do preso. E não podia mandar soltar, vou dizer a v. ex.ª porque. Pórque o poder judicial, que nos povos livres se estabelece absolutamente independente, tanto póde e tanto deve servir de garantia ás instituições e ás auctoridades contra os abusos dos cidadãos, como póde e deve servir de garantia aos cidadãos contra os abusos das auctoridades e dos agentes do poder executivo (apoiados).

Sr. presidente, a independencia do poder judicial, a primeira das nossas liberdades politicas, está sendo absolutamente desconhecida pelo governo actual (apoiados), que lhe invade e deixa ou manda invadir as suas attribuições privativas, e que, não contente com isso, desauctorisa os membros d'esse poder, e fornece aos agentes administrativos os meios de fundarem publicações, que na imprensa os insultam e calumniam! (Apoiados.)

A independencia do poder judicial affronta e opprime todos os governos, que em vez de cumprirem as leis, querem viola-las e substitui-las pelos caprichas da sua vontade. Não admira o procedimento do actual governo, que é conforme ao procedimento de outros governos, pelos quaes, em epochas distantes, foi tambem violada e offendida a independencia do poder judicial.

Todo o individuo preso arbitrariamente pela auctoridade administrativa, tem direito a exigir, que ella o entregue immediatamente ao poder judicial, perante o qual elle possa justificar que a sua prisão foi illegal e abusiva. Se consegue essa prova, tem direito de intentar, perante o mesmo poder judicial, a acção criminal contra a auctoridade, que arbitrariamente o prendeu, a fim de a fazer punir por abuso de poder.

Não ha poder administrativo, ha delegados do poder central, que exercem as funcções da administração, mas que n'esse exerecio são responsaveis perante o poder judicial, como é responsavel qualquer individuo particular, pelas offensas e violações das leis. Estes é que são os principios. Esta é que é a doutrina. Se é nova para o sr. ministro do reino, é velha e antiga para quem conhece os paizes livres e para quem respeita os direitos individuaes (apoiados).

O que se vê, o que está verdadeiramente demonstrado, é que o governo, praticando por si e pelos seus agentes toda a qualidade de abusos e de illegalidades contra as leis escriptas, que affirmam os principaes direitos dos cidadãos, ainda leva o seu excesso ao ponto de zombar de todos aquelles que têem obrigação de conhecer do seu procedimento, e de lhe tomar estreitas contas pelos seus abusos e violencias! (Apoiados.)

Quanto o governo era estranho aos crimes e prepotencias póde ver-se e admirar-se nos seus proprios documentos.

Como eram os telegrammas do governo, quando o meu illustre collega e amigo o sr. Francisco Van Zeller lhe affirmava por escripto, toman-lo inteira responsabilidaie da asserção, que se tinha comettido a prisão arbitraria de um cidadão pacifico em Arganil?

O telegramma era o seguinte: « Acaba de me asseverar por escripto o ex deputado Francisco Van-Zeller, que o administrador do concelho de Arganil arrancara das mãos do official do juizo um preso, que se achava culpado, pondo o em liberdade e prendendo o official. Que prendêra tambem sem motivo um influente a favor da opposição. Verifique som demora estes factos, não permittindo que se pratiquem violencias contra a liberdade do cidadão.»

O sr. ministro do reino, limitando se a mandar verificar, sem uma palavra de censura para o caso de se verificar a exactidão de taes attentados, sem uma demonstração de

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que os reprovava e queria ver reprimidos, sem uma só recommendação para se proceder contra o auctor de taes crimes, mostra bem quanto se impressionava: e na singeleza do seu estylo encontra-se facilmente a prova, de que se attendia mais á influencia de taes factos no resultado eleitoral, do que ao respeito pelas leis e pelos direitos individuaes.

A este telegramma supprimiu-se a data, e foi util cautela, porque dispensa o sr. ministro do reino de fazer mais uma errata vocal, como fez em relação á resposta do illustre deputado que fui seu governador civil.

Esta errata vocal merece algumas observações.

Se este telegramma do governador civil é, como se vê nos documentos publicados, do dia 8, está em pé o argumento do sr. Dias Ferreira, quando sustentou que a resposta tinha vindo vinte e quatro horas depois, e esse argumento ha de vigorar para todos os effeitos.

Agora o ex-governador civil solicitou uma errata vocal do sr. presidente do conselho, o qual veiu dizer, que effectivamente a resposta tinha sido recebida no mesmo dia que a data estava errada, mas que o erro tinha sido do telegrapho. Todos nós sabemos quanto no telegrapho são possiveis e frequentes os erros de data, mas eu aceito o argumento e a rectificação, apesar de acreditar pouco nos erros do telegrapho a este respeito.;

O telegramma do sr. ministro do reino, que não traz data, é incontestavelmente, segundo elle e todos declaram, do dia 8 á noite. Se a data da resposta do sr. Telles do Vasconcellos está errada, segue-se que essa resposta saíu de Coimbra no mesmo dia 8 ás nove horas e dez minutos da noite, pouco depois ou logo em seguida a ter recebido em Coimbra o telegramma do sr. marquez d'Avila. Sendo assim, o que se segue é que o governo teve logo conhecimento de que a ordem, que mandava no seu telegramma, não tinha sido respeitada nem cumprida pelo governador civil de Coimbra.

O sr. ministro mandava averiguar pela auctoridade superior do districto, se no concelho de Arganil se tinha arrancado um criminoso das mãos do official de justiça, prendendo esse official, e se se prendêra sem motivo um influente da opposição; ordenava que o governador civil verificasse estes factos, o não bastava uma hora para verificar em Arganil a sete leguas de distancia, e para de Coimbra vir logo a resposta.

O sr. ministro mandava verificar o que havia a tal respeito, e se, existe o erro de data de que o sr. ministro do reino fallou, segue-se que o governador civil respondeu sem verificar, e portanto que o despacho não foi cumpido pelo governador civil, porque não teve tempo para verificar cousa alguma em Arganil.

Vejam como argumentam. Eu sei que todas as vezes que uma causa está perdida, são baldados os maiores esforços da intelligencia e da dialectica para a salvar; mas o governo deve ter muita cautela na maneira por que dirige a sua argumentação, se quer ao menos salvar as apparencias (apoiados).

Eu repito: se o telegramma é do dia seguinte, dá-se o caso da responsabilidade, que foi exigida pelo sr. Dias Ferreira, e o sr. governador civil respondendo — não ha preso algum ás ordens da administração — informava exactamente o contrario da verdade dos factos que lhe cumpria ter verificado: se vigora a errata, e se o despacho é do proprio dia 8, o que se segue é que a brevidade da resposta mostra que a ordem não foi cumprida, porque o governador civil respondeu logo sem ter verificado e sem ter tempo de verificar o que se lhe mandava verificar.

Em qualquer dos casos a resposta é sempre contraria á verdade dos factos em todos os pontos, de que se trata, e a posição do governo é triste e nada decorosa.

Os telegrammas são todos curiosos e ha um principalmente cuja redacção é primorosa e digna de especial menção.

Eu não estranharia a redacção, nem me demoraria a exaltar estas maravilhas de estylo e estas excellencias da grammatica, se o sr. marquez d'Avila e de Bolama, sendo presidente do conselho e ministro do reino, não fosse simultaneamente, para honra e gloria das letras patrias, presidente da academia real das sciencias. Sem este concurso de circumstancias talvez eu não achasse notavel a redacção d'este telegramma.

Diz elle: «o governo prefere a perda de todas as eleições ao triumpho de uma só por meios illegaes e violentos.»

Todos nós sabemos o que valem estes telegrammas e as portarias no mesmo sentido, que este governo publicou com admiravel generosidade. O caso que de taes recommendações fazem os governadores civis, e a harmonia em que ellas estão com as instrucções vocaes, vê-se e aprecia-se facilmente pelos factos e pelos resultados. A questão agora é só de redacção e de grammatica.

Se o muito nobre presidente da academia real das sciencias não inventou novas regras de interpretação, que fossem desconhecidas quando eu andava na escola, a intelligencia que se deve dar ao telegramma é que esta recommendação vigora unica e exclusivamente para o caso de se poder ganhar uma só eleição por meios illegaes e violentos; mas já não vigora para o caso de se poderem ganhar duas ou muitas por esses mesmos meios.

Se em uma camara composta de 100 deputados, o governo tendo de perder fatalmente 99, podesse ganhar uma por meios illegaes e violentos, preferia perder todas as 100. Já é abnegação, e devemos agradecer muito este admiravel desinteresse! Porém, se dos 100 deputados podesse por meios illegaes e violentos ganhar a maioria, 70 ou 80, então já tinha outra intelligencia o telegramma. Note a camara, que a grammatica é de rigor, quando a redacção é do presidente da academia real das sciencias. Não póde grammaticalmenle tirar se outra conclusão. Se vencesse uma eleição só, não queria que para isso se usassem meios illegaes e preferia então perder todas; mas se podesse vencer por meios illegaes e violentos duas eleições e principalmente a maioria da camara, então resalvava-se completamente o partido que se podia tirar do emprego dos meios illegaes e violentos. Eu deixo este ponto, mas ninguem dirá que não analysei o telegramma á letra e pela grammatica (apoiados).

O sr. Telles de Vasconcellos apresentou outro argumento forte: disse que o sr. Dias Ferreira defendia hoje um homem que em 1860 tinha chamado atroz. Leram-se as sessões da 1860, das quaes apenas consta, que o sr. Dias Ferreira censurou ou combateu a inconveniencia de ser nomeado para juiz substituto n'aquella epocha o individuo que agora foi preso. Leu tambem o sr. Telles de Vasconcellos e deu as honras de especial menção n'esta casa ao jornal o Conimbricense d'aquella epocha, trataram-se as eleições de 1860 e finalmente trouxeram-se muitas outras cousas, todas igualmente respeitantes á questão que nos occupa.

A esse respeito responderá plenamente, se quizer, porque não me parece muito preciso, o illustre deputado a quem estas arguições, especialmente se dirigiram.

Eu limito-me a declarar a v. ex.ª que, mesmo prescindindo da nenhuma relação de taes factos com os abusos praticados na ultima eleição, quando o illustre deputado, que me precedeu, affirmou que o sr. Dias Ferreira tinha declarado que o cidadão Antonio Pinto era um homem atroz, eu esperava que a prova de tal facto apparecesse plena e irrecusavel nas palavras então proferidas pelo sr. Dias Ferreira, e ainda agora me parece que não era ser exigente esperar essa prova. Pois não appareceu (apoiados). Ouvimos ler muitos papeis, mas de toda a leitura resultou, não que o sr. Dias Ferreira tivesse chamado atroz a esse individuo, mas apenas que o sr. Dias Ferreira tinha combatido a inconveniencia da sua nomeação para juiz substituto em uma comarca, onde este individuo era amigo intimo de outro, que n'aquella epocha se achava ali pronunciado. Este impedimento, ou esta censura, tinhas

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Forçosa e seguramente uma duração temporaria, porque, logo que os seus amigos deixassem de estar pronunciados, não havia inconveniente algum, ou, pelo menos, não se deprehendia da affirmativa do sr. Dias Ferreira, que houvesse inconveniente algum, em que esse individuo fosse juiz substituto. A incompatibilidade era toda de occasião em certa e determinada comarca. O caracter do individuo nunca foi offendido no que eu ouvi ler, e nunca se poz em duvida a sua honra nem se disse que elle devesse ser inhibido de taes funcções em qualquer outra localidade, ou n'aquella mesma em qualquer outra occasião (apoiados).

O illustre deputado apresentou tambem, não em documentos authenticos, mas em simples tiras de papel, que teve o trabalho de ler, a copia de uns officios que declarava terem sido dirigidos pelos administradores do concelho ou pelos governadores civis da epocha da dictadura, aos seus subordinados, mandando-lhes effectuar prisões.

A esse respeito tenho apenas a notar a differença absoluta que houve entre o procedimento do sr. Dias Ferreira, dirigindo as accusações aos srs. ministros, fundado sempre em documentos authenticos, e o procedimento do illustre deputado, que dirige arguições, que elle reputa igualmente graves, mas que em todo o caso são completamente indocumentadas, e feitas apenas por simples copias ou apontamentos, que por muito que seja o credito, e é grande na verdade, que tenha o illustre deputado, não podem ter o caracter de documentos authenticos, para competirem com os outros, e muito menos para serem tomados em consideração por esta camara.

A esse respeito eu repito ainda o que já disse não se trata do que fez a dictadura, porque o governo actual não é accusado pela dictadura, nem a questão é agora entre o governo e a dictadura, é entre este governo e o paiz; é entre este governo e os representantes da nação, que no uso do seu direito dirigem ao governo estas graves accusações, e lhe exigem a responsabilidade pelos abusos commettidos (apoiados).

O illustre deputado, que me precedeu, apresentando n'esta casa a defeza do governo, referiu-se especialmente ao juiz de direito da comarca de Arganil, e declarou que tinha estranhado actos que s. ex.ª havia praticado nas melhores intenções de certo.

Eu não deixo passar a differença que ha entre o procedimento do illustre deputado perante esta camara, reconhecendo expressa e claramente as boas intenções do juiz, e o officio que o mesmo illustre deputado, quando governador civil de Coimbra, dirigiu ao governo, declarando o seguinte:

«Vou explicar a v. ex.ª como as cousas se passaram, para poder apreciar a boa fé do juiz n'esta arguição...»

Outro periodo: «Seria conveniente averiguar se as auctoridades judiciaes de Arganil procederam n'este negocio com a mesma diligencia e zêlo que mostrou o administrador do concelho...»

Outro: «Aqui permitta-me v. ex.ª umas breves considerações sobre o estado do concelho de Arganil, depois que o juiz Ferreira Leão se tornou protector de um dos partidos politicos que se batem n'aquelle concelho.»

Aqui reconhece as boas intenções do juiz. No officio que dirigiu ao governo declara que primeiro dá as explicações para que o governo aprecie a boa fé do juiz na sua arguição.

Esta parte da questão era mais do sr. ministro da justiça (apoiados).

E, na minha curta vida parlamentar, pelo que tenho visto e pelo que sei de tradição ter acontecido em todos os parlamentos, creio que é caso unico fazerem-se arguições a magistrados judiciaes, e assistir silencioso e impassivel a essas arguições o sr. ministro da justiça, que ao mesmo tempo é digno membro do primeiro tribunal judicial d'este paiz. É caso novo! (Apoiados.) E eu espero que unico ha de ficar.

Argue o governador civil de Coimbra o juiz de direito de Arganil de má0 fé na queixa, que elle dirigiu por não ter recebido ainda um individuo, que estava preso ha muito tempo, e do qual não podia prescindir para que o processo proseguisse regularmente nos prasos legaes. Já o facto em si é original, mas as circumstancias que o acompanharam excedem muito a originalidade do facto.

Parece que o illustre deputado, que me precedeu, tomando grande calor n'este assumpto, se confundiu a ponto de declarar que o juiz procedêra irregularmente na arguição ao administrador do concelho, porque elle juiz, achando-se todos os dias na audiencia face a face com o carcereiro, tinha obrigação de saber que o preso não estava ás ordens do administrador do concelho, porque este ainda o não tinha recebido, nem o preso existia na cadeia de Arganil.

Provaram os documentos authenticos, lidos ali n'aquella tribuna, que o governador civil recebeu o preso em Coimbra a 26 de maio, apesar de dizer no officio que o recebeu no principio de junho, e só o mandou para Arganil a 29 de junho. É o que consta da certidão. E consta mais do officio do governador civil, que este se desculpa da demora com a circumstancia de ter chegado o preso doente a Coimbra.

A este respeito nada disse o sr. Telles de Vasconcellos. Arguido principalmente por este facto, por ter apresentado como unica desculpa a circumstancia de ter estado doente o preso, e tendo se aqui lido uma certidão do carcereiro de Coimbra, de que o preso nunca tinha estado doente, o ex-governador civil não apresentou a este respeito a menor explicação, e limitou-se a repetir, que tinha estranhado o procedimento do juiz, porque este exigia ao administrador do concelho o preso, quando elle juiz, por estar na audiencia face a face com o carcereiro, devia saber que o administrador do concelho não tinha recebido o preso.

Em primeiro logar, não me consta, pela pratica dos tribunaes, que o juiz esteja em audiencia face a face com o carcereiro. Isto creio que é figura de rhetorica, cuja belleza não discuto porque não é muito facil aprecia-la; mas o que não é, o que com certeza nunca póde ser, é a verdade dos factos.

O estar o preso demorado pelo administrador do concelho ou pelo governador civil, em relação ao poder judicial é exactamente o mesmo (apoiados).

O poder judicial tem direito de receber os presos, logo que as prisões se effectuam; e os delegados da auctoridade administrativa têem rigorosa obrigação de os entregar debaixo das penas estabelecidas pelas leis do paiz e não podem rete-los sob pretexto nenhum (apoiados).

O juiz precisava do preso para o regular andamento e para a conclusão do processo; e sabia que era a auctoridade administrativa quem retinha esse individuo, de que não precisava, e que não podia reter.

A auctoridade administrativa para se desculpar, disse: «que o preso estava doente»; mas o carcereiro da cadeia, aonde o preso sempre existiu, declara na certidão: «que o preso nunca teve doença nenhuma e que sempre esteve de perfeita saude!» É a propria auctoridade administrativa, que não dá nenhuma explicação satisfatoria ácerca de tal contradicção flagrante, a que censura ainda o juiz, fazendo-lhe differentes insinuações! Estes são os factos, que difficilmente se acreditam! (Apoiados.)

Disse mais o illustre deputado, em nome do governo, e eu mais uma vez repito que nunca me dirijo ao illustre deputado, mas sempre ao governo: «que o official de diligencias, que effectuou a prisão do regedor, e que em virtude d'isso foi mandado recolher á cadeia pelo administrador do concelho, não trazia mandado do juiz».

A paginas 27 dos documentos, diz o administrador, em officio ao juiz de direito de Arganil, o seguinte:

«Em resposta ao officio de v. s.ª datado de hoje, tenho a dizer-lhe que effectivamente capturei o official de diligencias Antonio Martins e Paiva, porque, não tendo v. s.ª respondido á reclamação que lhe fiz em tempo opportuno,

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houve offensa do artigo 357.°; sendo certo que não lhe tirei o mandado, mas sim lhe pedi que m'o entregasse. So não participei a v. s.ª tal facto, é porque tenho tido todo o tempo tomado com o serviço publico; finalmente, em virtude das instrucções que recebi, mandei pôr em liberdade o dito official de diligencias.»

É notavel e altamente significativo este officio, mas a sua redacção é clarissima; e não é possivel, depois d'este documento authentico que é a propria declaração do administrador do concelho, vir affirmar que o official de diligencias não trazia mandado! (Apoiados.)

Mas acrescenta o illustre deputado: «E se trazia mandado era o mesmo que não o trazer, porque o despacho do juiz annullava o mandado, o qual, depois de annullado, fica como se nunca tivesse existido.»

Não discuto agora se o despacho do juiz annullou, ou não, o mandado: é uma questão, que me declaro incompetente para decidir; e ao mesmo tempo que estabeleço esta minha incompetencia, considero tambem e affirmo igualmente a do illustre deputado e a de todos os funccionarios administrativos para decidirem quaes os effeitos que póde ou deve ter um despacho judicial.

O juiz, que é membro de um poder independente, é quem decide os effeitos dos seus despachos; das suas decisões ha sempre recurso para os tribunaes superiores (apoiados); mas não são as auctoridades administrativas, que podem destruir nem restringir as decisões de um poder independente, declarando: que os seus despachos só têem os effeitos que lhes apraz dar-lhes (apoiados).

Estas cousas realmente não deviam precisar de serem affirmadas n'esta casa! (Apoiados).

O mesmo caso se dá a respeito do regedor da Cerdeira, pronunciado pelo crime de falsa denuncia em juizo. Diz o illustre deputado, em nome do governo, que o regedor tinha sido pronunciado por um crime commettido no exercicio das suas funcções. Ao mesmo tempo vê-se que o delegado do procurador regio, agente do governo perante os tribunaes judiciaes, entendeu que o crime era estranho ao exercicio das funcções do regedor. Vê-se mais, que, com esta opinião do delegado, se conformou o procurador regio, seu superior na organisação do ministerio publico e tambem representante do governo perante a relação do districto.

Que importa que se não conforme a auctoridade administrativa ou o governador civil do districto? Tem porventura essa auctoridade outros recursos, que não sejam os expressamente marcados na lei? Tem, ou póde ter, a auctoridade administrativa attribuições para se ingerir a apreciar as decisões judiciaes? Póde o governador civil tornar-se arbitro da conveniencia ou inconveniencia de qualquer decisão?

Não. Isto não póde ser; nunca se viu (apoiados).

O representante do governo, que perante o juiz era o delegado do procurador regio e não o administrador do concelho, podia recorrer para a relação do districto do despacho do juiz para o revogar na essencia ou nos effeitos.

O governo podia, quando muito, levantar um conflicto de jurisdicção, como recurso extremo.

Vozes: — Não podia.

O Orador: — Sei que não podia, ou pelo menos é essa tambem a minha opinião. Póde, porém, haver opiniões differentes, póde considerar-se o caso opiniativo, e como eu não intento prohibir nem prejudicar opiniões contrarias ás minhas, digo que o governo, se quizesse fazer uma tentativa extraordinaria, se julgasse tão importante e tão urgente o caso do regedor que não lhe parecesse sufficiente o simples recurso para a relação do districto interposto pelo delegado, o unico recurso que tinha a tentar era levantar o conflicto de jurisdicção. Mas nada d'isso se fez; rejeitou-se tudo o que era legal ou podia ter ao menos apparencias de legalidade, e adoptou-se unicamente o meio simples e prompto, illegal e anarchico, de sujeitar a decisão do juiz ao arbitrio do administrador do concelho, que escoltado pelas bayonetas do governo imperava em Arganil em nome da força bruta (apoiados).

Outra insinuação, senão é uma injuria grave, foi a que, em nome do governo, dirigiu o illustre deputado, que me precedeu, ao delegado do procurador regio da comarca de Arganil, n'aquelle tempo. S. ex.ª declarou que conhecia o homem, que conhecia aquelle delegado; mas que não conhecia quem lhe dictára a resposta.

Ficara ainda o sr. ministro da justiça silencioso e impassivel diante d'esta nova arguição? (Apoiados.) Pois o sr. ministro da justiça póde ouvir dizer, que os seus funccionarios precisam ou não podem dispensar quem por elles escreva as suas respostas nos processos? (Apoiados.)

E a camara deve notar ácerca d'este delegado, que o actual ministro de justiça, attendendo de certo ao seu merito e só ao seu merito, despachou-o para um logar melhor, transferindo-o de Arganil para uma comarca superior em todas as condições e em rendimento.

Não sei realmente como n'estas circumstancias o sr. ministro da justiça possa tranquillo ouvir dizer, que o funccionario por elle despachado, como para receber premio, dá nos processos respostas que não são d'elle, e que não se sabe por quem são dadas?! (Apoiados.)

Eu já me vi forçado a defender ha pouco a independencia do poder judicial, admirando-me de ver silencioso o sr. ministro da justiça, que é um dos mais dignos e mais respeitaveis membros do supremo tribunal de justiça n'este paiz! Agora sou forçado a erguer a voz em defeza de um funccionario por quem o ministro da justiça tem responsabilidade, e o silencio do sr. ministro continua! A minha admiração cresce, e a estranheza, que este facto naturalmente produz, deixa no meu animo impressão muito desagradavel.

Não devia ser eu, deputado da opposição, que n'esta casa tivesse de ver me obrigado a preceder o sr. ministro da justiça na defeza, que para elle é obrigação rigorosa, dos seus empregados injustamente arguidos, e nos documentos violentamente injuriados (apoiados).

O illustre deputado declarou aqui tambem, que, se o governo lhe desse ordens contrarias ou diversas, tomaria sobre si a responsabilidade de não as cumprir. Proclama-se como principio admissivel a desobediencia de um empregado de confiança politica ao seu chefe! A doutrina é toda assim, e a ella correspondera os factos de Arganil! (Muitos apoiados.)

Mas desde que o illustre deputado fallou em nome do governo, tornando a defeza do governo commum com a sua, e desde que agora, invertendo as posições, indica que é o ministro do reino quem obedece aos governadores civis, e não estes aquelle, pois a isso equivale dizer, que, se o governo lhe desse ordens contrarias, não as cumpria, eu deixo este ponto ao ministro e ao seu ex-governador civil, e não desejo nem quero prevenir n'esta parte a resposta do sr. marquez d'Avila e de Bolama, o qual n'estas condições costuma sempre responder de modo agradavel para todos. Eu desejaria ouvi-lo.

Referiu-se tambem o illustre deputado ao auto de investigação administrativa contra os empregados fiscaes da comarca de Arganil.

Os autos de investigação administrativa são por lei obrigatoriamente remettidos ao poder judicial por via do representante do ministerio publico. Sobre elles organisam-se os autos do corpo de delicto, e depois o poder judicial julga ainda sobre a procedencia ou improcedencia dos corpos de delicto.

É pois sabido, e é evidente, que é só o juiz quem julga, se o auto de investigação é valido ou nullo, se presta ou não presta, se é verdadeiro ou se é falso, decidindo em face das provas como poder independente e julgando em ultima ou unica instancia, salvo o recurso para as instancias superiores do mesmo poder (apoiados).

O poder judicial julgou, que aquelle auto de investigação

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administrativa não só era improcedente, e para a accusação nada valia, mas que era falso, isto é, que era falsa e calumniosa a denuncia, porque era falso e não tinha existido o facto criminoso que se denunciava em juizo.

Agora eu pergunto: com que direito vem invocar-se perante esta assembléa o argumento que resulta de um auto de investigação de um crime supposto, que já está julgado improcedente e falso pelo unico poder competente, que é o poder judicial? (Apoiados.)

Essa investigação administrativa tratava de imputar aos empregados fiscaes da comarca de Arganil crimes graves, praticados no exercicio das suas funcções.

Inquiriram-se para provar os erros e abusos dos empregados no exercicio das suas funcções varias testemunhas, entre as quaes avultam tres mulheres, que vivem da sua agencia. Prescindindo da circumstancia de viverem da sua agencia, eu pergunto a v. ex.ª que caracter, que garantia de sciencia offerecem tres mulheres para apreciarem actos praticados por empregados fiscaes no exercicio das suas funcções? Pois na comarca de Arganil não ha homens? São as mulheres que conhecem as leis tributarias, a organisação das matrizes, a distribuição e arrecadação dos impostos, e a maneira por que em harmonia com as leis estas funcções devem ser exercidas? (Apoiados.)

O facto irregular de darem por testemunhas tres mulheres, era já por si sufficiente demonstração, de que, se era muita a vontade de culpar, faltavam inteiramente os factos que podessem constituir culpa.

O que na verdade era todos nós o sabemos.

São conhecidos, e tem sido por mais vezes usados estes manejos, que se dirigem mais á conquista dos empregos do que á culpabilidade dos empregados. Trata-se a todo o custo de arranjar uma apparencia de crime, o que por meio de denuncia e de autos de investigação, em que jurem os denunciantes, não é muito difficil. Essa apparencia de processo póde servir de pretexto á demissão dos empregados. O que os denunciantes pretendem é substitui-los nos empregos, e pouco lhes importa que sejam depois absolvidos, comtanto que fiquem nos logares conquistados em epochas eleitoraes por estes meios tão honestos como moraes (apoiados).

Vamos, porém, á circumstancia de viverem da sua agencia estas santas mulheres!

Se esta circumstancia em mulheres póde ser notavel e por si só significativa, mais notavel foi de certo a interpretação que lhe deu o illustre deputado, para d'ahi tirar as tuas philosophicas conclusões.

Disse o sr. Telles de Vasconcellos: — viver da sua agencia quer dizer, são pobres, nunca póde entender se outra cousa. — A conclusão não me parece distinguir-se pelo rigor logico. Ha muita gente que vive da sua agencia e que é muito mais rica do que o illustre deputado imagina. Mulheres vivem muitas da sua agencia, adquirindo por meios licitos, ou consentidos por lei, fortunas relativamente grandes. Ha muitos homens enriquecidos tambem pela sua agencia licita. Portanto a conclusão, que o illustre deputado tirou, para affirmar, que viver da sua agencia é ser pobre, e que esta expressão significa pobreza, não é logica e póde muitas vezes ser completamente inexacta.

São portanto inuteis as exclamações philanthropicas, e não sei a que proposito venha exclamar-se: « pois, porque um homem é pobre, deixa porventura de ser honrado e de ser verdadeiro?»

Eu sei, como todos sabem, que a pobreza não tem nada com a virtude; que ha muito pobre honrado e muito rico que o não é. Mas essa não é a questão, e inutil me parece tentar desloca-la com recursos de sentimentalismo, que não illudem, nem podem illudir um só momento, o juizo e boa rasão de uma assembléa illustrada. A questão é, que estas mulheres das agencias, fossem ricas ou pobres, foram administrativamente chamadas a depor sobre assumptos, que não podiam conhecer, e que, longe de serem crimes, eram falsas denuncias, como decidiu e julgou o poder judicial (apoiados).

Alem das tres mulheres que viviam da sua agencia, foram testemunhas, segundo se provou pelos documentos do sr. Dias Ferreira mandados para a mesa, e juraram aquella innocente investigação administrativa, pessoas de inteiro credito e muita respeitabilidade. Entre ellas figurava, talvez no primeiro e mais distineto logar, o dignissimo regedor participante, hoje pronunciado pela sua fala denuncia em juizo, e alem d'este outro individuo, já então pronunciado, e muito habituado a pronuncias judiciaes, porque já o tinha sido por crimes graves em diversas epochas, sendo lançados os despachos de pronuncia por dois dignos juizes, o sr. Mexia Salema e o sr. dr. Mota.

E realmente incrivel, e nunca poderia acreditar-se sem a prova authentica que se apresentou, que um individuo, apesar de estar pronunciado sem fiança, fosse inquirido como testemunha! E note v. ex.ª e note a camara, que estava pronunciado sem fiança, e o administrador do concelho, como se prova por documento authentico, em vez de prender ou empregar todas as diligencias para prender o pronunciado sem fiança, inquiriu-o como testemunha n'um auto de investigação administrativa! É até onde póde chegar o arrojo da illegalidade (apoiados).

Mas o illustre deputado, que tem recursos para tudo, disse ainda se aquellas testemunhas não provaram o facto criminoso, segue-se porventura que o crime não existiu, o que o facto que se imputava não podia ser provado por outra fórma? Haveria motivo bastante para metter em processo como falsos denunciantes os individuos que tinham dado aquella participação? — Sr. presidente, esta argumentação faz estremecer (apoiados).

O illustre deputado, que se mostra tão conhecedor das cousas judiciaes de Arganil, tem obrigação de saber que o juiz, logo que recebeu aquella investigação administrativa e denuncia em juizo, mandou dar vista ao ministerio publico, e procedeu-se a um corpo de delicto muito minucioso e muitissimo volumoso (apoiados). A justiça procedeu a todas as averiguações. Juntou-se ao processo um officio do delegado do thesouro, unica auctoridade competente para saber e para informar da existencia ou não existencia, da verdade ou da falsidade, do facto mais grave da denuncia. Este facto ora, que o recebedor da comarca, mancomunado com o escrivão de fazenda, distrahia os dinheiros publicos para os applicar a negociações particulares. O delegado do thesouro não só tinha mandado fazer uma syndicancia, mas tinha mandado proceder no cofre da recebedoria a uma vizita ou busca repentina, pela qual conheceu que o recebedor estava inteiramente quite e regular, e que não faltava um real. Desde que o juiz, depois do auto de investigação, formou o volumoso auto de corpo de delicto, inquirindo todas as pessoas importantes que deviam saber d'aquelle assumpto, e que como taes lhe foram indicadas, ninguem dirá que elle não cumpriu plenamente o seu dever (apoiados). É verdade que o juiz não inquiriu as mulheres que vivem da sua agencia, e é verdade tambem que não inquiriu como testemunhas os criminosos pronunciados sem fiança. Façam-lhe um crime por isso. Accusem-o porque elle sabe comprehender e cumprir com inteira dignidade os seus deveres.

Depois de tudo isto o juiz reconheceu, pelo depoimento das testemunhas e pelo officio e declaração do chefe dos empregados arguidos, que a denuncia era absolutamente falsa e calumniosa, e o illustre deputado ainda estranha que o agente do ministerio publico, que tem obrigação de perseguir todos os criminosos, intentasse uma acção contra o falso denunciante? Acharia, porventura, legal ou justo, que o deixassem, como elle pretendia, encobrir-se com a sua qualidade de delegado de confiança do sr. marquez d'Avila e de Bolama, para que não continuasse o seu processo sem ser concedida uma regia licença? Não póde ser. O illustre deputado bem o reconhece; faço-lhe essa justiça (apoiados).

O illustre deputado referiu-se tambem ao notavel alvará

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de dissolução da mesa da misericordia de Arganil, alvará cujos fundamentos fizeram uma impressão profunda n'esta assembléa. Disse s. ex.ª que se honrava de ter praticado aquelle acto, porque os membros eleitos por aquella corporação eram os mesmos, que já tinham sido dissolvidos por não terem prestado e não estarem approvadas as contas relativas ás epochas anteriores de outras suas gerencias. Mas não foi essa a arguição que se lhe fez. A arguição foi por motivos differentes. Baseou-se apenas na manifesta contradicção do seu procedimento, dissolvendo a mesa por esse motivo e nomeando ao mesmo tempo para a commissão, que havia de substituir a mesa dissolvida, outros individuos que estavam exactamente nas mesmas circumstancias, porque tinham sido tambem membros das mesmas mesas, nas mesmas epochas, cujas contas não tinham ainda sido prestadas nem approvadas (apoiados).

O que era rasoavel e justo não era o que se fez. A lei é a mesma e igual para todos. A mesma causa, que se invoca para dissolver uns, não pede servir para nomear outros. Se o delegado do governo em Coimbra considerou e julgou motivo sufficiente para dissolver uma mesa a circumstancia de terem sido eleitos para ella membros dissolvidos por não terem prestado contas, não podia nomear para os substituir outros membros que tinham exactamente os mesmos defeitos. A contradicção é flagrante, e não tem defeza, porque o illustre deputado nem tentou defender-se (apoiados). De mais a mais, segundo me consta, o presidente nomeado pelo delegado do governo para essa commissão não tinha só o defeito commum da falta de prestação de contas, era um padre suspenso, em virtude dos seus excessivos merecimentos, do exercicio de todas as ordens ecclesiasticas.

Revela-se, pois, bem claramente qual foi o motivo e qual foi o fim da dissolução. Vê-se bem, e todos o sabemos, que o fim não era outro senão o effeito eleitoral; e foi por isso que a dissolução teve logar no dia 6, isto é, tres dias antes da eleição.

Quiz tambem o delegado do governo censurar o juiz de direito de Arganil, porque elle não tinha ido presidir pessoalmente á formação de um auto de corpo de delicto; e constando de uma certidão, que o juiz n'esse mesmo dia estava presidindo a uma audiencia geral, o illustre deputado declarou que uma audiencia geral não durava dia e meio.

Ha audiencias geraes que duram tres, quatro e cinco dias, toda a gente o sabe; mas toda a gente sabe tambem, que o juiz de direito não tem obrigação de fazer os corpos de delicto, a não ser em casos especiaes, a que este não pertencia, podendo em todos os outros casos manda-los fazer pelo juiz eleito; assim como sabe tambem toda a gente que um governador civil não tem competencia alguma para conhecer, nem para averiguar, se o juiz cumpriu, ou não, as suas obrigações, nem por fórma alguma póde censurar a maneira por que o juiz de direito exerce o seu logar (apoiados).

Disse o illustre deputado, que me precedeu, que não sabe se nas secretarias d'estado ha mais documentos a respeito dos factos passados em Arganil, mas que em todo o caso não os podiu, nem os pediria nunca, porque desadora o systema de serem trazidos pelos ministros a esta casa os documentos confidenciaes.

N'esta parte o illustre deputado exprimiu bem o systema do governo. O governo quer ser acreditado sob palavra, invoca a sua alta qualidade para exigir todas as decisões a seu favor, pedindo ao mesmo tempo dispensa, ou recusando-se simplesmente a apresentar os documentos que tem, e que devem condemna-lo, segundo dizem os que o accusam. O systema do governo é o mais commodo, e não póde estranhar-se que o sr. Telles de Vasconcellos, como antigo delegado de confiança e hoje defensor do governo, lamente a excepção que se fez á confidencia e ao segredo. Mas quem desadora o systema de pedir a apresentação dos documentos, tambem deve desadorar, é muito mais, o systema peior

de se fazerem insinuações que pareçam referir-se a documentos, os quaes não se quer que sejam apresentados.

Eu sigo outro systema a respeito de confidenciaes. Para mim a natureza confidencial de qualquer documento, longo de ser eterna, tem fixado, pelo proprio facto a que respeita, o praso mais ou menos breve, mas sempre limitado da sua duração.

Ha documentos, que póde ser necessario considerar confidenciaes, emquanto o negocio a que dizem respeito não se resolve. Mas, resolvido o negocio pelo governo, e quando o mesmo governo tem de responder pelo seu procedimento perante os representantes do povo, não póde elle invocar a natureza confidencial de quaesquer documentos, de que a camara precise ter conhecimento. Não póde então deixar-se o governo unico juiz para decidir soberanamente sobre a conveniencia ou inconveniencia da publicação, porque isso equivalia a tornar impossivel a responsabilidade (apoiados).

No parlamento não se podem, creio eu, avançar proposições d'esta ordem, porque são blasphemias contra os principios fundamentaes do systema representativo, cujas bases são a publicidade e a responsabilidade (apoiados).

Disse tambem o illustre deputado que, no logar do governo, não teria mandado os documentos confidenciaes, que elle mandou.

Eu creio bem que o illustre deputado ha de ter sentido muito, que o governo mandasse esses documentos, e realmente para o sentir tem justos motivos que eu comprehendo e aprecio. Por isso n'esta parte noto apenas a ingenuidade da declaração.

Com effeito, era muito mais util, tanto para o governo como para os seus delegados, que o sr. ministro do reino, attendendo aos conselhos dos seus amigos, tivesse recusado a publicidade de documentos que o compromettem, a ponto de se poder dizer afoutamente, que ainda governo nenhum foi tão compromettido pela apresentação de documentos por elle mesmo trazidos á camara.

Disse mais o illustre deputado que se admirava, de que se tivesse chamado criminoso ao governo por estes acontecimentos, porque para haver crime era necessario ter havido intenção criminosa, a qual para s. ex.ª só existe n'umas condições que eu, francamente o confesso, não tive a fortuna de comprehender bem.

Porém a minha opinião é diversa, e eu provo com a lei escripta ao illustre deputado, que a sua opinião é reprovada por direito, como contraria á lei expressa.

Diz o codigo administrativo n'uma das notas:

«E note-se que nos delictos de abuso de auctoridades se envolve sempre intenção malefica; e não póde portanto n'estes crimes absolver-se o réu com o fundamento de que não teve intenção criminosa.»

Esta doutrina é a do nosso suprerno tribunal de justiça, que de certo tem mais auctoridade do que as theorias, ás vezes nebulosas, dos escriptores da Allemanha. Assim se decidiu em accordão de 19 de maio de 1863, e em muitos outros.

Esta é a jurisprudencia. Nós não podemos admittir que o governo, ou qualquer auctoridade, se desculpe com a ignorancia da lei e dos factos. O governo nunca póde desculpar-se com a ignorancia da lei; elle não está ali senão para fazer cumprir a lei, e para a fazer cumprir a primeira condição é conhece-la, a primeira necessidade é não a ignorar (apoiados).

Mas nós não temos só a demonstração plena da intenção criminosa da parte do governo; pelos documentos authenticos temos a demonstração plena da premeditação, que é uma circumstancia aggravante (apoiados).

Basta ter desprevenidamente as participações do delegado do procurador regio na comarca de Arganil em relação ao estado da comarca, e o que elle positivamente affirma em relação ao administrador do concelho, delegado do governo n'aquella localidade.

Vê-se que o administrador do concelho, digno represen-

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tante do sr. ministro do reino, em vez de prender os criminosos contra os quaes tinha mandados de prisão, ía conferenciar, reunir-se e conviver com elles, para juntos fundarem o jornal Trovão da Beira, cuja creação o sr. ministro do reino protegeu, conservando o administrador, que declarava dar esta applicação ao seu ordenado, sendo evidente que o sr. marquez d'Avila protegeu o jornal por esta fórma, e não sei se por mais alguma.

Desde maio que o delegado do procurador regio diz ao governo, que o seu delegado de confiança em Arganil, em vez de prender os criminosos, associava-se com elles para fundarem o jornal, que outro delegado superior do governo classificava de verdadeira sentina de odios ruins, que na torpeza da injuria e da calumnia procura o prazer ignobil de infamar.

Isto era affirmado ao governo, ao proprio sr. marquez d'Avila e de Bolama, desde maio, e consta dos documentos trazidos pelo governo ao parlamento. Pode o governo negar, que desde maio conhecia perfeitamente todos estes factos, communicados officialmente pelas suas auctoridades do districto, d'aquelle concelho, e d'aquella comarca?

Negue, se tanto ousa, mas estes factos confundem e esmagam todas as negativas (apoiados).

O governo teve tambem conhecimento anterior e perfeito, de quaes eram as intenções do administrador de Arganil, o qual lh'as communicava com toda a clareza, annunciando lhe que queria recorrer á força.

E que fez o governo? Que fez o sr. marquez d'Avila o de Bolama? Que fez a innocencia, que pretende defender-se com a falta de intenção? — O sr. ministro do reino, o governo, mandou força ao administrador de Arganil, que tinha annunciado que havia de recorrer a ella, e mandou-lh'a para que a ella recorresse, e para que a empregasse (apoiados).

Não é só a intenção criminosa do governo que está provada; está provada tambem e evidentemente a premeditação dos crimes. As provas não podem ser mais claras, e são muitas, porque não são só sufficientes, são excessivas (apoiados)

Foi n'este ponto, e sem ter destruido uma só das accusações a que acabo de referir me, e sem apresentar defeza aceitavel de nenhuma das arguições que tinham sido dirigidas ao governo, que o illustre deputado, que me precedeu, se declarou cansado e vencido pela fadiga, deixando de tratar da questão de Arganil. Não me illudem, creio eu, os apontamentos que tomei, com maximo cuidado, do discurso do sr. Telles de Vasconcellos. N'este ponto s. ex.ª, cansado para Arganil, passou a occupar-se da reforma parlamentar, e logo em seguida pediu, talvez para ir colher bons elementos para aquella reforma, uma commissão de inquerito, unicamente para o districto de Coimbra, a fim de conhecer dos actos da auctoridade durante as eleições.

Eu creio muito sincero este pedido, mas s. ex.ª mesmo ha de reconhecer...

O sr. Telles de Vasconcellos: — Não ouvi bem o que v. ex.ª disse.

O Orador: — V. ex.ª pediu um inquerito só para o districto de Coimbra, mas este pedido, que eu creio sincero, v. ex.ª facilmente reconhece, que encontra pouca possibilidade de ser attendido, quando se dirige a uma camara, que, como v. ex.ª sabe, recusou um inquerito parlamentar para todos os circulos do paiz, onde os eleitores tinham soffrido violencias e prepotencias da parte do governo...

O sr. Telles de Vasconcellos: — Pedi como excepção.

O Orador: — Como excepção é ainda mais difficil de conseguir. Haveria grande incoherencia e até manifesta contradicção no procedimento da camara, se ella concedesse por excepção aquillo que positivamente recusou como regra geral. Esteja s. ex.ª certo de que a camara recusa, e por isso fico eu.

Alem d'isso, se tal inquerito tinha de ser feito pelo governo, era absolutamente inutil. Seria exactamente como a syndicancia ácerca da eleição de Arganil, a que mandou proceder o governador civil de Coimbra.

Essa syndicancia já se acha feita, está impressa, todos nós a temos aqui, e sabemos o que ella vale e para o que foi feita. Assim é melhor não se fazerem estas cousas (apoiados).

O illustre deputado declarou mais, que confiava sempre em todos os ministros. Eu, n'esta parte, não o percebi bem outra vez, e julgo prudente esperar que s. ex.ª explique melhor a sua theoria, quando tiver de novo a palavra.

Tambem disse s. ex.ª, que não vota nada que possa produzir anarchia. A este respeito tenho de fazer algumas considerações. S. ex.ª não vota n'esta casa nada que possa produzir anarchia; e eu acho este proposito muito justo e louvavel. Creio, porém, que me é licito notar, que s. ex.ª não teve duvida em deixar praticar em Arganil aos seus subalternos, pelos quaes era responsavel, as ordens do governo que deviam produzir necessariamente a anarchia.

Eu noto entre a theoria do illustre deputado, e os actos praticados no circulo de Arganil pelo governo, uma contradicção flagrante (apoiados).

Declarou s. ex.ª tambem que, entre a reacção e a communa, preferia a reacção.

Foi n'esta parte que muitos illustres membros do partido regenerador, do qual s. ex.ª é digno ornamento, se apressaram a pedir a palavra. Portanto, não devo alongar-me em considerações a este respeito sem esperar as declarações mais explicitas feitas pelos illustres membros d'aquelle partido. Eu desejo ser esclarecido a este respeito, e tenho vontade de aprender, o que ignoro.

Perguntei apenas, se já estavamos em tão triste estado, que se nos apresentasse, forçada e fatal, a alternativa da communa ou da reacção. Fiz a pergunta, e devo esperar a resposta.

Mas se a opção é forçada entre uma e outra cousa, eu creio que a um governo, que praticou em Arganil todos os excessos, abusos e crimes, que evidentemente se provaram pelos documentos authenticos; que fez derramar sangue e commetter violencias inauditas em Macedo de Cavalleiros, Mirandella, Vouzella e em outras localidades; que commetteu outros abusos, de que nós havemos de fallar, e de que eu me hei de occupar largamente ainda; creio, digo, que a um governo d'esta ordem pertencem de direito e de facto ambos estes nomes de reacção e communa, os quaes elle tem incontestavel direito de exigir ambos para si só (apoiados).

Por um lado é reacção contra todas as liberdades individuaes e politicas dos cidadãos; por outro lado é communa pelas violencias praticadas, e que mandou praticar pelos seus delegados e agentes de confiança (apoiados).

Havemos de tratar essa questão, e eu reservo-me para a discutir com largueza. Mas nós, desde já, precisâmos para apreciar o procedimento do governo de muitos documentos, que ha muito tempo foram pedidos por muitos dignos membros d'esta casa. Não podemos dispensar esses documentos (apoiados). Foram pedidos ha muito tempo e todos com urgencia (apoiados). Aos pedidos e á urgencia tem o governo respondido com o mais completo silencio, affirmando assim a sua deliberada resistencia ou absoluta recusa de os mandar a esta camara (apoiados).

D'esses documentos, uns dos mais importantes são os que dizem respeito á estrada da Covilhã. São poucos; e muitos que fossem, já tinha havido tempo de sobejo para os copiar mais que uma vez. Se o governo tivesse vontade de os trazer á camara, já aqui estavam ha muito. Se o governo não tivesse o deliberado e firme proposito de os sonegar á publicidade, todos ou pelo menos alguns d'esses documentos já tinham apparecido. Não appareceu nenhum, e difficilmente apparecerá, a não tomarmos aqui uma resolução expressa e terminante, pois, segundo me consta, o governo tem declarado particularmente a algumas pessoas,

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com quem vive em mais intimas relações, que sobre este assumpto jamais terão de vir os documentos á camara. Felizmente eu posso dispensa-los para o que hoje me proponho a dizer.

A imprensa denunciou o facto da mudança da directriz da estrada na Covilhã como uma veniaga eleitoral a tal ponto escandalosa, que um dos membros do gabinete se viu forçado a abandonar o poder, para affirmar quanto se separava dos seus collegas, com quem não quiz mais servir.

(Interrupção do sr. Pinheiro Chagas que não se percebeu.)

Eu sou advogado, e tenho esta vantagem ou desvantagem em relação ao meu collega, que acaba de interromper-me, e que na litteratura é uma das glorias patrias, sendo alem d'isso uma intelligencia distincta e por todos os titulos respeitavel. Os advogados estão muito habituadas a encontrar e a empregar no fôro um remedio simples o poderoso contra estes recursos da sonegação de documentos, e esse remedio chama-se a acção ad exhibendum.

Eu explico a phrase ao illustre deputado, que não tem obrigação de a conhecer, e talvez a não conheça. Quando um individuo tem interesse em ver uma cousa, que reputa sua, ou um instrumento commum, que outro retem em seu poder e pertinaz se recusa a mostrar ou a apresentar, a pertinacia do réu não basta para triumphar do direito e da justiça do adversario. Este, demonstrando que os documentos existem em poder do outro e o seu interesse na exhibição, allega os seus direitos livremente, cumulando a acção exhibitoria, exigindo a apresentação dos documentos com o comminatorio de que, se os não exhibir, se dê como provado o que se acha articulado. Este é o caso. Ninguem duvida de que o governo tem os documentos. Ninguem ousa negar que os documentos são proprios da camara, e o direito do parlamento para os exigir é evidente, porque tem de apreciar o procedimento do governo. O direito é commum a todos os representantes do povo. Eu uso do meu direito, unico recurso contra a pertinacia do governo, allego como quero, e exijo a exhibição, sujeitando a ella, mas só a ella, a prova do que allego.

Se não são exactas as minhas arguições, se foram exageradas ou falsas as asseverações da imprensa, o governo que as desminta, apresentando os documentos que tem em seu poder. Declaro-me prompto a ceder a esse desmentido, mas nenhum outro admitto, a nenhum outro me sujeito. Nunca cederei perante a simples e insolita pertinacia de recusa, quando o governo tem rigorosa obrigação de apresentar todos os documentos que lhe foram pedidos, e que tem tido até hoje... (Aqui me vejo eu seriamente embaraçado, e lutando com a difficuldade de encontrar de prompto uma palavra, que não fim a susceptibilidade auricular do sr. presidente do conselho) direi que tem tido até hoje a habitual coragem de recusar...

O sr. Osorio de VasconoellOS: — Coragem é ahi synonymo de cobardia.

O sr. Presidente: — Peço licença ao sr. deputado para lhe dizer que essa interrupção não me pareça demasiado parlamentar.

O Orador: — Bastam os factos, pouco imporiam as palavras. Eu achei, segundo parece, expressão parlamentar que o sr. Osorio de Vasconcellos traduziu livremente. Os factos são que ha muito tempo se pediram os documentos relativos ao processo da estrada n.º 55 na secção da Covilhã, e os factos são que o governo tem recusado pertinazmente esses documentos, tendo sido o seu procedimento, na alteração da directriz, classificado pela imprensa como escandalosa veniaga eleitoral!

Eu digo o que sei. O sr. ministro do reino foi o primeiro, e foi o unico, que suspendeu o primitivo traçado d'aquella estrada, e que mandou proceder a novos estudos para outro traçado, que passasse por dentro da cidade da Covilhã. Sabe-se que, sendo depois ministro das obras publicas o sr. visconde de Chancelleiros, s. ex.ª, respeitando até certo ponto (esta é a minha opinião) a portaria do seu collega, e cedendo ás exigencias da localidade, expedira uma outra portaria para se executar o novo traçado, mas sob a condição previa e muito expressa da camara municipal da Covilhã apresentar feitas á sua custa as expropriações necessarias para a construcção da estrada.

Mas, segundo parece, a camara municipal não estava habilitada com os meios precisos para realisar essas expropriações, e ou por essa, ou por outra causa, as expropriações não estavam feitas; e o que é certo, é que não se executava a alteração do traçado nem começavam os trabalhos pela nova directriz, emquanto as expropriações não fossem apresentadas feitas e legalmente ultimadas á custa da camara municipal da Covilhã (apoiados). Era essa a condição previa, fatal e sine qua non, da portaria do sr. visconde de Chancelleiros (apoiados).

N'estas circumstancias se approximava o dia da eleição geral de deputados. Eu tive algum conhecimento publico, e talvez tambem particular, de que o circulo da Covilhã fazia questão capital da estrada pelo centro da povoação, pondo as suas condições com toda a clareza e simplicidade. Se o goveno, tendo alterado o traçado, realisasse a alteração, que os engenheiros tinham classificado de absurdo technico, dando principio e succossivo desenvolvimento aos trabalhos, o circulo elegia unanime um deputado governamental. Se o governo não mandasse principiar os trabalhos do novo traçado antes do dia da eleição, o circulo elegia compacto um deputado da opposição. A Lisboa veiu uma commissão com instrucções positivas e claras, e todos sabemos, á excepção do governo que finge ignorar o que sabe, que foi o ultimatum imposto por essa commissão. A imprensa deu geralmente noticia circumstanciada d'esta negociação (apoiados), e entrou até em pormenores de que eu julgo dever abster-me n'este momento. O governo aceitou as condições impostas. 0 sr. marquez d'Avila e de Bolama não era homem que as repellisse, nem que deixasse de apressar-se a aceita-las.

A camara municipal da Covilhã não apresentava as expropriações feitas a tempo de se proceder com as formalidades legaes á abertura dos trabalhos, antes do dia da eleição. O director interino das obras publicas de Castello Branco, instado, segundo se diz, pelo governador civil do districto, mandou declarar ao governo que a eleição da Covilhã estava perdida, senão se desse immediatamente começo aos trabalhos d'aquella estrada. Podia ao governo auctorisação para os mandar continuar, declarando ao mesmo tempo que já os tinha mandado principiar sob sua responsabilidade (apoiados).

O facto é que o director das obras publicas do districto de Castello Branco, contrariando positivamente a portaria do sr. visconde de Chancelleiros, mandou dar começo a esses trabalhos, sem estarem cumpridas as condições impostas na poriaria. O sr. visconde de Chancelleiros mandou suspender esses trabalhos, e d'ahi veiu a desintelligencia com os seus collegas.

Não são conhecidas, nem o podem ser, as peripecias que tiveram logar no conselho de ministros, entre o sr. marquez d'Avila e o seu collega que se retirou das cadeiras ministeriaes; mas o que se sabe é que o sr. marquez d'Avila empregou toda a força, toda a pressão de que podia dispor, para resolver o seu collega a consentir que o director das obras publicas, longe de cumprir, contrariasse a portaria assignada por s. ex.ª E o que se sabe tambem, é que o sr. visconde de Chancelleiros resistiu nobremente (apoiados), não só ao sr. presidente do conselho, mas a todo o governo, declarando que pelo ministerio a seu cargo nunca se fariam especulações eleitoraes, e que abandonava o governo que descesse a taes meios para obter votos na representação nacional. Se isto não consta dos documentos, eu emprazo o governo a que os apresente todos (apoiados), e quanto antes: A simples dignidade do poder impõe ao sr. marquez d'Avila, como obrigação imprescriptivel, que confunda a minha voz e as accusações que se lhe fazem, com a apresen-

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tacão dos documentos. Tem rigorosa obrigação de os apresentar (apoiados).

Eu recorro a todos os meios, e até emprego, como o sr. Dias Ferreira, o comminatorio, não de cobardia, mas de coragem e heroicidade do sr. presidente do conselho de ministros.

Sabe-se, e diz se mais, que o ultimo telegramma expedido para que as obras continuassem, apesar da suspensão ordenada pelo sr. visconde de Chancelleiros, telegramma que este se recusou a assignar, fôra mandado expedir com declaração de que era resolução tomada em conselho de ministros (apoiados), tendo o sr. visconde de Chancelleiros tomado todas as cautelas para a todo o tempo se saber, que, antes de se expedir tal telegramma, já s. ex.ª não fazia parte do ministerio, porque se considerava demittido pelo facto de o governo mandar praticar este acto (apoiados).

Se o governo não apresenta os documentos, eu estou no meu direito de dirigir contra elle esta accusação, tornando a sua prova dependente do facto da não exhibicão. E esta camara não só está no seu direito, mas tem mesmo dever de condemnar o governo pela sua pertinacia na recusa, como réu que confessa tacitamente, ou antes que recorre ao silencio como unica defeza possivel, demonstrando assim que todas as accusações, que se lhe possam fazer sem os documentos, são menores e menos aggravadas do que a accusação que para o governo resultaria da simples apresentação dos documentos. Tudo o que dissermos é pouco, porque os documentos diriam muito mais. E esta a rasão por que o sr. marquez d'Avila soffre em silencio todas as accusações, fugindo de apresentar os documentos, que evidentemente o condemnam (apoiados).

Os escandalos abundam, e todos iguaes, posto que em genero differente. Este ministerio ha de ficar eternamente memorando pelos seus altos feitos eleitoraes. Não é só a historia da estrada da Covilhã; é, por exemplo, em relação ao Porto, a historia do cemiterio de Paranhos (apoiados).

Todos vimos levantar-se aqui outro dia, admirado e indignado, o nobre presidente do conselho de ministros, e exclamar: «No Porto venceu a opposição; como ousam affirmar que houve abusos?»

Para este governo, que inventou logica para seu uso especial, não ha meio nenhum de poder ser accusado senão pelas eleições que venceu; nas eleições, em que elle praticou os maiores abusos e illegalidades, e que ainda assim perdeu, elle quer manter a plenitude da sua innocencia, e questiona a justa gloria de não ter praticado em seu proveito a menor irregularidade (riso. — Apoiados).

Opprime os povos, sobrecarrega-os com a força armada, emprega todas as violencias, abre os cemiterios, muda a directriz das estradas illegalmente, e contra lei promette outras, esgota os ultimos recursos da pressão e da corrupção, faz tudo o que lhe lembra, substitue a todas as leis o seu arbitrio, e quando encontra alguns circulos, em que os eleitores resistem a todos estes meios de perseguição e de corrupção, diz: «Ahi estou absolutamente innocente; ahi a opposição venceu; e os meios, se se empregaram alguns, não prestaram», porque para o governo os meios efficazes são só aquelles que esmagam a tal ponto a livre vontade dos eleitores, que quem elege é o governo, e o povo não póde vencer, porque nem póde resistir (apoiados).

Sr. presidente, eu residia no Porto quando a auctoridade administrativa, quando o governador civil e o governo d'aquella epocha, entenderam que deviam empregar todos os meios para fazer cessar os enterramentos dentro da cidade, nas catacumbas das differentes ordens e irmandades, e bem assim n'aquelles cemiterios, que não offereciam as condições indispensaveis, para que dos enterramentos não viesse perigo á salubridade publica. V. ex.ª, natural d'aquella cidade, por tantos titulos illustre, sabe, melhor do que eu, quanto são importantes no Porto as diversas ordens e irmandades que ali existem; e quanto são importantes, não só pelo numero e qualidade dos irmãos, mas pela sua riqueza e pela influencia de que dispõem. E v. ex.ª sabe tambem perfeitamente que a maior fonte de receita, que tinham as ordens do Porto, assim como o maior incentivo para attrahir a entrada de novos irmãos, era a circumstancia de lhes poderem assegurar uma sepultura separada sem ser em cemiterio publico. Por isto póde a camara avaliar a impressão, que fez a ordem do governo, mandada executar pelo governador civil d'aquella epocha.

Creio que todos imaginam, quanto as ordens emanadas do governo, e mandadas executar pelo governador civil, foram mal recebidas em quasi toda a cidade do Porto. E muito facil suppor a resistencia, que a maior parte da cidade oppoz á execução d'estas providencias. Pois, apesar de tudo, venceu a final a causa da salubridade publica; as ordens cederam pouco a pouco, fechou-se o cemiterio de Paranhos, estava já uma cidade importante, como a do Porto, habituada a cumprir a lei, e todo o povo sem esperança de ver continuar aquelles abusos. Por fatalidade chega a segunda presidencia de conselho de ministros ao sr. marquez d'Avila e de Bolama, e precisa elle de fazer umas eleições. A occasião era azada e propicia para enterrar mortos nas ruas, nas praças e até em casas particulares. Votar com o governo era a lei suprema. Votassem com o sr. marquez d'Avila, e teriam tudo que quizessem (apoiados).

Diante da conveniencia eleitoral do governo todas as leis cessaram, todos os esforços da administração anterior inutilisaram-se e desappareceram. A administração não_ existia, ou tratava apenas de fabricar votos, e n'este serviço publico o zêlo era em toda a parte inexcedivel.

Como para conseguir os votos de Paranhos era necessario resuscitar os enterramentos no cemiterio insalubre, não podia hesitar o governo, mandou logo abrir esse cemiterio, e satisfeito por attender assim á salubridade publica, decretou o sr. marquez d'Avila que continuassem ali os enterramentos.

A imprensa levantou contra este abuso um justo clamor, que, por muitas considerações, se tornou notavel, e logo conhecido de todo o paiz. Só o sr. marquez d'Avila finge ignorar o que todos sabem, e parece indicar que a este respeito não ha documento nenhum, a não ser a notavel portaria em que mandou cessar os enterramentos no cemiterio de Paranhos, depois de passada a eleição! (Apoiados.) Durante a eleição, ignorou o governo o que todos sabiam, e para conseguir os votos, o cemiterio esteve aberto. Passou a eleição; o governo teve occasião de saber; recebeu a primeira noticia do facto escandaloso; não censurou nem demittiu as auctoridades que o praticaram; limitou-se a mandar fechar o cemiterio, e ao primeiro crime juntou a burla aos eleitores que por tal preço entregaram o voto (apoiados).

Aqui apresenta-se ufano com a portaria, allega a ignorancia dos factos, e diz:

«Tropelias no Porto, onde a opposição venceu, nunca me constou isso!»

Pois fizeram-se, e muitas. E se não lhe basta esta minha affirmativa, ahi tem o cemiterio de Paranhos, que vale bem elle só por com tropelias distinctissimas (apoiados).

Mas não é só isto. Onde estão tambem os documentos relativos ás eleições de Vouzella (apoiados), pedidos ainda em junta preparatoria? Elles são indispensaveis a esta camara, porque ahi o governo não se limitou aos abusos usuaes; ahi o candidato da opposição, hoje nosso digno collega, esteve em perigo de vida (apoiados). Elle e a sua familia soffreram assuadas publicas...

Uma voz: — E tiros.

O Orador: — Dispararam-se contra elle armas de fogo (apoiados), e não vieram até hoje documentos nenhuns, porque o governo gosta dos meios que foram empregados n'aquelle circulo, e só se lamenta talvez, porque elles foram inefficazes (apoiados).

Temos ainda as eleições de Mirandella e de Macedo do Cavalleiros. Sobre essas, nem o governo apresenta os do-

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cumentos, nem a illustre commissão de verificação de poderes dá pareceres (apoiados).

Como havemos de julgar o governo?!

O sr. Luiz de Campos: — Está julgado.

O Orador: — Já devia estar condemnado, e se o não está, não é minha a culpa.

Como havemos de julgar o governo, consentindo-lhe ao mesmo tempo uma dispensa absoluta para elle continuar a recusar-nos todos os documentos, que têem rigorosa obrigação de apresentar a esta camara?!

Ha um meio só, na minha opinião. Já que elle os não apresenta, é julga-lo réu de todos os crimes de que é arguido, não se lhe aceitando como defeza a simples promessa de se defender, com a qual nos illude constantemente, e com a qual escarnece e, ludibria este paiz (apoiados).

É este o meu voto. É este o meu desejo.

Para tudo ser extraordinario, o governo defende-se apenas com a questão de fazenda, e o sr. marquez d'Avila e de Bolama resume a questão de fazenda em dois actos da sua vida publica. São muito notaveis ambos.

O primeiro foi mandar pagar os juros das inscripções nas cabeças de comarca. A camara comprehende quanto foi audaz esta iniciativa, e que esforço de imaginação é mister para a produzir! Todavia ouvimos todos s. ex.ª attribuir a isto a grande elevação dos nossos fundos, e um desenvolvimento immediato do credito do paiz.

Não discuto a limitada conveniencia de tal medida, mas não Creio que fossem tão milagrosos os seus effeitos. Se o fossem, a questão de fazenda resolvia-se já e facilmente. O sr. marquez d'Avila não se recusaria, de certo, a fazer o sacrificio de desenvolver a sua invenção, e ser-nos ía licito esperar que, n'esta sessão ainda, se dignasse apresentar uma proposta para serem pagos os juros das inscripções nas juntas de parochia de todas as freguezias.

Então sim; ficará completo o systema financeiro de s. ex.ª, e de certo as inscripções portuguezas serão preferidas em todos os mercados do mundo aos titulos de todos os outros paizes, e teremos nós o primeiro credito conhecido.

Outra parte igualmente importante da questão de fazenda, para o sr. marquez d'Avila e de Bolama, é ter elle, na qualidade de administrador geral em 1840, na cidade do Porto, conversado com uma commissão e ter merecido por isso um voto de louvor nas actas da camara municipal.

D'este facto comprehendo eu que depende hoje muito a solução da questão de fazenda. Por isso invoco desde já o testemunho do illustre representante do Porto, que é ao mesmo tempo presidente da camara municipal d'aquella cidade...

O sr. Pinto Bessa: — Eu não sei nada d'isso.

O sr. Visconde de Montariol: — Sei eu. É verdade.

O Orador: — Ainda bem que o affirma o sr. visconde de Montariol, cujo testemunho tenho logo de invocar tambem para um facto importante, que me diz respeito, e que se deu na junta geral do districto de Braga.

O sr. Visconde de Montariol: - Sei isso perfeitamente.

O Orador: — Não sabe v. ex.ª quanto eu por isso me felicito. Sem a exactissima averiguação d'estes factos importantes, lutariamos contra o impossivel, e nunca chegariamos a approximar-nos da solução da questão de fazenda (riso).

O sr. marquez d'Avila e de Bolama levanta-se, ora iracundo, ora facundo, e diz: «Com que direito me arguem a mim, que inventei o pagamento dos juros das inscripções nas cabeças de comarca, e que fui administrador geral do Porto em 1840, e já então provava o meu amor por todas as liberdades, e principalmente pela liberdade eleitoral, tratando com uma commissão, que veiu consultar-me ácerca de quem havia de ser eleito n'uma eleição, que estava pendente?» (Riso.)

Este facto notavel da nossa historia financeira e politica

devia ser gravado em bronze com letras de ouro, e dar-se para assumpto de analyse e profunda meditação em todas as escolas superiores. Se a ingratidão da patria recusa esta recompensa tão merecida, não a recusarei eu. Impressionado pela narração do sr. marquez d'Avila, pareceu-me que os cavalheiros, que formavam a commissão, faziam já n'aquella epocha tal idéa da abstenção eleitoral do administrador geral do Porto, que se dirigiram a sua casa a consulta-lo sobre a eleição. E para lhe provarem maior confiança na sua isenção, e as suas vivas crenças no espirito liberal de s. ex.ª, foram perguntar-lhe quem haviam de eleger. A resposta do administrador geral foi tão nobre e elevada, que os membros da commissão, summamente satisfeitos, desistiram de uma manifestnçãosinha (riso), e correram depois a fazer uma grande manifestação nas actas das sessões municipaes.

Estes factos para a questão de fazenda são realmente muito importantes. Pela minha parte, agradeço sinceramente ao sr. marquez d'Avila a minuciosa narração, que outro dia fez d'este episodio da sua gerencia, como administrador geral no Porto.

E como não ha crime, nem perigo, em cada um fazer o seu proprio panegyrico, quando se refere a actos da sua vida publica, eu, escudado com o respeitavel exemplo do sr. presidente do conselho de ministros, e precisando de invocar o testemunho do sr. visconde de Montariol, tenho tambem a dar conhecimento á camara de um acto, de importancia extrema para a questão de fazenda portugueza, e que teve logar no anno de 1860.

Em 1860 tive eu a honra de ser eleito procurador a junta geral do districto de Braga, exactamente como o sr. marquez d'Avila e de Bolama, em 1840, foi nomeado administrador geral do Porto. Tambem eu, como elle, fiz esse sacrificio ao meu paiz (riso). Reunida a junta, tive logo a honra de ser nomeado primeiro secretario. Aceitando esse cargo, fiz ainda outro sacrificio ao meu paiz. Este cargo era gratuito, e agora não posso dizer — exactamente como o de administrador geral do Porto — o qual devia ser bem remunerado, sem o que é licito suppor, que não existiria nas actas municipaes o voto de louvor, a que se referiu o nobre presidente do conselho. O administrador geral do Porto recebeu a commissão eleitoral que o procurava. Eu escuso de declarar a v. ex.ª e á camara que, como secretario, não me limitei a escrever todas as actas das sessões da junta geral; tive tambem occasião de receber o governador civil, que me procurava para combinar a lista dos membros para a eleição do conselho de districto. Recebi-o, como o sr. marquez d'Avila recebeu a commissão; mas a esse respeito não ficou voto de louvor nas sessões da camara municipal (riso).

Acabadas as sessões da junta geral, teve logar o facto mais importante, a que tenho a honra de referir-me. A camara conhecerá, quanto elle iguala, se não excede, em importancia, a moção de louvor votada na camara do Porto em 1840. Desde já supplico e invoco a maxima attenção do sr. visconde de Montariol, ao qual exoro que, quando for para Braga, consagre o seu tempo a consultar as actas das sessões da junta geral em 1860, a fim de poder aqui confirmar a verdade do que estou dizendo.

De certo tambem o sr. Pinto Bessa, accedendo ao pedido do sr. presidente do conselho, quando for para o Porto, vae occupar-se principalmente de consultar as respectivas actas da camara municipal, a fim de verificar a verdade dos factos que se deram com o sr. marquez d'Avila em 1840. Isto é importante e indispensavel. A patria espera este sacrificio dos meus dois dignos collegas (riso).

Agora refiro o facto importante. A junta geral do districto de Braga, por unanimidade, deu um voto de louvor á mesa de que eu fazia parte!! (Riso.) Não se riam. Isto ha de constar das actas, e ninguem póde ignorar este facto importante, nem o do Porto (riso).

Julgo ter sufficientemente demontsrado, que, aceitando este encargo e fazendo este sacrificio ao meu paiz, principiei, como o sr. marquez d'Avila, n'um logar importante

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de administração a affirmar e a provar os meus sentimentos liberaes e os meus serviços á fazenda publica. Agora, de certo, ninguem ousará pôr em duvida, que eu estou plenamente habilitado para tratar a questão de fazenda, porque tenho titulos e testemunhos publicos muito parecidos com os do s. ex.ª É, porém, dever meu de delicadeza, e de modestia, reconhecer e confessar que o facto, que se deu com o sr. marquez d'Avila em 1840, e que tem da ser verificado pelo sr. Pinto Bessa, é mais respeitavel pela sua antiguidade, mas tambem só por isso, do que o meu, que teve logar vinte annos depois, em 1860, e que tem de ser confirmado pelo testemunho do sr. visconde de Montariol...

O sr. Visconde de Montariol: — Sem o contestar,

não o affirmo.

O Orador: — Todavia o illustre deputado ha de comprometter-se solemnemente a verificar quanto antes a inteira exactidão, porque factos d'esta ordem ha poucos, não se dispensam para resolver a questão de fazenda, são impurtantissimos, e para absoluta certeza deveriam até ser comprovados com documentos authenticos (riso). Emquanto essa prova não chega a esta casa, eu demonstrei o que queria demonstrar, e é que para a questão de fazenda, e para todas as questões que devem occupar a nossa attenção, tanto vale o facto que o sr. marquez d'Avila referiu outro dia, como o que eu acabo de referir agora. Estas cousas não são para aqui (apoiados).

Ha outro facto que ainda não tive o prazer de ouvir referir ao sr. marquez d'Avila o de Bolama, mas que é digno de especialissima menção. Pertence á historia financeira de s. ex.ª, mas esse não o narra elle, não o lembra, e talvez desejasse que todos o esquecessem.

O sr. marquez d'Avila e de Bolama é o inventor, é o auctor da divida fluctuante externa. Esta parte brilhante das nossas finanças foi inventada por s. ex.ª e o paiz deve-lhe este notavel serviço.

Em 1866 o sr. Fontes, como ministro da fazenda, propunha a emissão de um emprestimo consolidado de réis 6.500:000$000 para fazer face ao desequilibrio do orçamento. Foi votada essa proposta n'esta camara, e foi remettido o projecto para a camara dos dignos pares, onde na respectiva commissão de fazenda foi impugnado unica ou principalmente pelo sr. marquez d'Avila e de Bolama, cujos talentos elevados têem dotado este paiz com os maiores beneficios conhecidos. Este foi um dos principaes.

A argumentação de s. ex.ª era que a emissão de um emprestimo consolidado n'aquella epocha, em que o dinheiro estava caro, seria ruinoso, porque só podia fazer-se em condições muito onerosas. Propoz, portanto, que se levantasse dinheiro a premio e se adoptasse nos mercados estrangeiros o mesmo systema que estava adoptado n'este paiz para a representação da receita e para os supprimentos do deficit que constituem a divida fluctuante. Taes esforços fez o sr. marquez d'Avila e de Bolama, para conseguir o triumpho d'esta sua feliz idéa, que, cedendo á habitual eloquencia de s. ex.ª ou forçado pela necessidade de evitar embaraços na camara alta, o sr. Fontes Pereira de Mello concordou com a opinião do sr. marquez d'Avila, e d'ahi nasceu a divida fluctuante externa, que teve a sua origem na lei de 16 de junho de 1860 pelo levantamento de 6.500:000$000 réis em duas series. Esta divida fluctuante externa, uma vez creada, tem resistido a todos os esforços posteriores, e tem sido tão prejudicial para este paiz, que não ha exageração em a considerar uma das causas principaes das nossas difficuldades financeiras e do abatimento do nosso credito (apoiados).

Tem-se succedido os ministerios, todos reconhecem e todos apontara este mal; porém o paiz não conseguiu ainda ver-se livre d'esse cancro roedor, que lhe consome uma grande parte dos seus rendimentos (apoiados). E eu tenho grave receio de que, sem grande esforço, não possa jamais acabar a divida fluctuante externa, que é representada na maior parte por capitães portuguezes, os quaes, á sombra da maior garantia que suppõem oferecer a divida estrangeiia, procurara negociar com o governo em mercados estranhos, deixando de o fazer no paiz. O patriotismo de tal procedimento corresponde fielmente ao patriotismo da idéa que o auctorisou.

Referindo este facto, eu quero mostrar que não desconheço inteiramente a historia financeira do sr. marquez d'Avila, o que sai apreciar os serviços por s. ex.ª prestados ao paiz.

Ësta medida é do sr. marquez d'Avila. O seu alcance, posto que negativo o prejudicial, é de um effeito muito superior ao que resultou do pagamento do juro das inscripções nas cabeças de comrarca. Será talvez excessiva audacia minha a nova asserção, que vou fazer, e essa faço-a com bastante escrupulo e verdadeira hesitação. Parece-me, tambem, e se estou em erro, é em boa fé, que a creação da divida fluctuante externa, invenção do sr. marquez d'Avila, tem exercido uma influencia no abatimento do nosso credito muito superior á que exerceu na sua elevação o voto de louvor dado pela camara municipal do Porto em 1840 ao sr. ministro do reino, marquez d'Avila e de Bolama. Já disse, a este respeito hesito, porque toda a duvida é prudente. Parece-me, mas não affirmo. Effectivamente não sei bem qual d'estes assumptos, ambos importantissimos, têem influido mais para o abatimento ou para a elevação do nosso credito (riso).

Não sou competente para tratar profundamente questões tão graves. Desconfio dos meus recursos, e tremo da superioridade do sr. marquez d'Avila, quando me refiro á questão de fazenda. Mas tenho, creio eu, mais que a competencia precisa para conhecer que um paiz que gasta mais do que os seus rendimentos, e que recorre por habito, que pareçe immutavel, a transacções onerosas e leoninas, para todos os annos haver a receita necessaria para saldar a despeza que faz, não vae bem, e caminha para a ruina proxima e infallivel, se por acaso não muda radicalmente de systema (apoiados).

Já assisti n'esta camara á votação do ultimo emprestimo, que se dizia destinado especialmente para a extincção da divida fluctuante externa. O sr. ministro da fazenda d'aquella epocha, mais innocente ou menos prudente, levou a sua condescendencia ao ponto de aceitar uma proposta minha, que tornava obrigatoria a applicação do emprestimo á extincção da divida fluctuante externa, prohibindo expressamente esse recurso no futuro.

Já v. ex.ª vê que esta aceitação havia de soffrer, como soffreu, certas modificações que a inutilisassem. É esse o uso e costume quando se trata d'estes assumptos, e foi o que aconteceu.

O emprestimo votou-se, realisou-se, gastou-se, e a divida fluctuante externa, longe de se extinguir, soffreu pequenas alternativas, depois das quaes, no espaço de dois annos apenas, apresenta-se hoje igual ou superior na somma que então representava, obrigando-nos a novos e maiores sacrificios, e ameaçando-nos, como então nos ameaçava (apoiados).

Está assim a questão de fazenda, como eu a vejo e como eu a entendo, embora a encontre diversa nos relatorios e nos discursos dos illustres ministros.

Eu para saber o que vejo, escuso de me estar a entreter com a demonstração fallada ou escripta de certos documentos fornecidos pelo governo, e em que eu pouco creio e nada confio. Eu vejo primeiro, que o governo demora e recusa os esclarecimentos que lhe são aqui expressamente pedidos sobre o estado da fazenda publica, por deputados muito competentes para tratar esta questão; segundo, que as raras publicações do estado da divida fluctuante, que por acaso apparecem no Diario do governo, annunciara que a divida fluctuante cresce em vez de diminuir. Ao mesmo tempo todos sabemos que o enorme emprestimo ultimamente votado, e quasi todo emittido, está empenhado na parte que resta para emittir, e poucos recursos offerece, ou nenhuns, para diminuir essa divida.

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DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

É tambem muito para notar que quando o sr. presidente do conselho vem aqui annunciar-nos que as inscripções em breve estarão a 40, porque tem os mais seguros indicios da tendencia para a alta e da subida até esse preço, se dê a fatalidade de coincidir este annuncio com a noticia de que o sr. ministro da fazenda quasi ao mesmo tempo mandava vender em Londres a 35 1/4 200:000 libras de titulos do ultimo emprestimo. Isto é altamente notavel. O governo vende a 35 1/4 quando a tendencia é para 40!

Isto é o que eu sei da questão de fazenda; e sei tambem que em breve virá o governo apresentar-nos como fatal a dupla necessidade de lançar novos impostos e de contrahir mais um enorme emprestimo.

Quando sei e quando vejo tudo isto, e ainda mais do que isto, ninguem estranhará que eu não esteja disposto a admittir como meios serios para combater os males que nos cercam, e que opprimem as nossas finanças, as declarações do sr. presidente do conselho de que foi administrador geral do Porto em 1840, e de que mandou pagar os juros das inscripções nas cabeças de comarca.

(Deram cinco horas.') •

Como hoje não posso terminar as observações que tenho ainda a fazer, e como alem d'isso pretendo encetar uma outra ordem de considerações, peço a v. ex.ª o obsequio de me reservar ainda a palavra.

O sr. Presidente: — Chamo a attenção do sr. deputado. Para corresponder á cortezia com que disse no principio do seu discurso que retirava qualquer phrase menos parlamentar, eu convidava-o a que retirasse as phrases — calumnias officiaes, prepotencias violentas, e outras.

O Orador: — Retiro tudo que v. Ex.ª quizer. Só quero conservar as idéas que exprimi. Palavras pouco me importam.

O sr. Presidente: — E convidava-o ainda mais, a que na sequencia do seu discurso se abstivesse do emprego d'essas expressões.

O Orador: — Isso é mais difficil. Farei todos os esforços possiveis; mas eu já disse hontem a v. ex.ª e á camara que não sentia em mim a força precisa pára dominar sempre as minhas expressões.

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