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DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS
herdeiros das tradições de familia. A nação é a mesma. A nova geração, não cedendo em esforço á antiga, empenhar-se-ha espontanea em todos os sacrificios, para que não seja nem um momento abalado o edificio a tanto custo erguido.
É esta a vontade nacional. O Rei póde confiar na nação, e urge, é indispensavel que confie. Quando apparecem, posto que raros e isolados, alguns desvarios de imaginações escandecidas, cumpre que os representantes da nação venham perante o Rei affirmar os sentimentos do povo. Não se transforme em perigo real o que por emquanto só é in fundado e imaginario. Attenda-se a lição da historia; aproveitem-nos os exemplos de outros paizes. As primeiras de monstrações de desgosto de um paiz dirigem-se unicamente contra os ministros executores que as provocam e produzem. Quasi sempre tambem estes aproveitam, como meio de conservação do poder, as manifestações que se erguem a ameaça-los, figurando-as mais alto dirigidas e tendentes á subversão das monarchias. Só ahi está o perigo. Se os ministros, unicos ameçados, conseguem illudir, a solidariedade estabelece-se, e quando o Rei começa a desconfiar do povo, é seguro que o povo acaba por não confiar no Rei. A conservação dos ministros produz infallivel a convulsão, que o procedimento contrario sem duvida evitaria.
Os eleitos ao povo respeitosa, mas claramente, ponderam a Vossa Magestade, que, a par dos sinceros sentimentos de amor e dedicação de todo o povo portuguez pelo seu Rei, lavra, profundo, crescente, e hoje aggravado em todo o paiz, immenso desgosto pela habitual organisação do poder executivo, que, girando fatalmente entre poucas e sempre as mesmas mãos, parece encerrado n'um circulo vicioso, em que sempre é o mesmo, sendo só apparente e sempre illusoria a mudança. Fóra d'esse circulo, e contra elle, está o paiz afflicto e descrente, mas protestando ha muito contra a viciosa organisação de um poder executivo, que, não merecendo nem podendo esperar a confiança da nação, inaugurou, como systema unico, em vez do respeito e cumprimento da lei fundamental do estado, o sophisma e a violação das suas disposições mais importantes, não consentindo que a vontade nacional appareça em côrtes livremente representada, e pesando sobre os eleitores com o abuso de todas as leis para que em côrtes appareça em grande maioria a falsa e illusoria representação, em que ainda assim se não traduz a confiança real nos ministros, mas só e apenas o preço dos favores e das violencias, que durante a luta eleitoral elles fizeram, sacrificando a justiça e todas as leis de administração.
A que ponto todo o paiz distingue o excellente Rei dos maus ministros, acaba de ver-se a toda a luz da evidencia em um facto recente. Abriram-se umas conferencias politicas, facto naturalissimo em todos os paizes, em que a manifestação do pensamento não está, como não póde estar entre nós, sujeita a restricção preventiva de nenhuma especie. Os ultimos acontecimentos da Europa podiam ser motivo ou pretexto para perturbar em animos tímidos a luz da intelligencia, necessaria a todos, aos governos indispensavel. Os ministros de Vossa Magestade filiaram as conferencias em doutrinas subversivas, considerando-as ramificação de sociedades perigosas. Foi espontanea, grande e sincera a indignação do paiz; e tamanha foi que a maioria dos cidadãos, illudida pela apparencia, applaudiu o acto arbitrario, tão inutil como despotico, com que o poder executivo fechou as portas da sala d'essas conferencias.
É esta a maior prova do amor do povo pelo seu Rei. Apenas se fallou em aggressão ao throno, em hostilidade á religião e á dynastia, o sentimento publico applaudiu até a medida illegal, que se tomava contra os aggressores. N'um paiz, que assim procede, a monarchia póde e deve descansar; tranquilla, e segura nos sentimentos da nação.
É licito duvidar da exactidão, com que o governo classificou perante o paiz conferencias e conferentes. A simples affirmativa do poder executivo não basta em factos, cuja prova as leis tornam dependente de autos de investigação administrativa, confirmados por sentenças do poder judicial, com intervenção do jury, essencial garantia dos povos livres. A divisão e independencia dos poderes politicos é o principio conservador das liberdades e da ordem publica. A invasão de poderes, a confusão de attribuições, nunca se justificam, por mais justas que sejam ou pareçam a causa e a intenção, porque attentam contra a lei escripta no pacto fundamental, e criam precedentes que podem ser fataes á liberdade.
Se fosse inteiramente exacta a classificação do governo sobre a natureza das conferencias, o seu procedimento mais contrario teria sido ainda ao seu dever legal. Se houve crime, o governo concedeu, contra a lei, a impunidade; permittiu, para usar o systema arbitrario da prevenção, a existencia e a continuação do crime, que a final deixou impune. Se respeitasse a lei constitucional, se usasse o systema de repressão, unico legal, o crime, apenas tivesse principio de manifestação, impossibilitado de continuar, encontraria immediatamente o principio da sua punição em harmonia com as leis.
O § 3.° do artigo 145.° da carta constitucional da monarchia estabelece a repressão contra os abusos commettidos, mas prohibe a prevenção contra a possibilidade de abusar. Este ultimo systema é, sempre foi, a tyrannia, o despotismo. Os que n'este seculo ousam affirma-lo e segui-lo, queiram ou não queiram, declarem-se ou disfarcem-se, são sempre os partidarios da censura previa, os sectarios da inquisição, os defensores do silencio contra a palavra, das trevas contra a luz, da oppressão contra a liberdade, da fogueira e do potro contra os progressos da rasão humana. Este paiz não retrograda. Se parar é morrer, retrogradar é reunir á morte a affronta e o opprobrio.
Esta camara deplora todos os desvarios e protesta concorrer, quanto possa, para que se reprimam e sejam punidos todos os abusos commettidos no exercicio do direito de manifestação do pensamento, mas quer e protesta sobretudo manter illeso e liberrimo o exercicio d'esse direito.
Segundo as leis actuaes, um delegado do poder executivo, a auctoridade administrativa, podia e devia assistir ás conferencias. O conferente que, abusando do direito de livre manifestação do pensamento, commettesse crime contra as leis do reino, podia ser preso em flagrante delicto, e devia ser immediatamente remettido ao poder judicial com a informação do delicto commettido e das testemunhas que o presenciaram. A auctoridade administrativa não póde ir mais longe sem se trocar a liberdade pela tyrannia.
Se os meios de repressão nas leis actuaes são, e talvez sejam, insufficientes, a camara dos deputados da nação cooperará na reforma da legislação vigente, para que a punição dos abusos seja sempre segura, prompta, proporcional e sufficiente. Aos representantes da nação pertence velar e legislar para que as instituições não periguem, e tambem para que o poder executivo não abuse. Desta dupla missão procurará a camara desempenhar-se, realisando para com Vossa Magestade os desejos do paiz, e separando para isso o respeito devido ao poder moderador da severidade indispensavel para com o poder executivo.
Das altas prerogativas que ao poder moderador conferem, com mais ou menos largueza, as constituições de todos os paizes regidos pelo systema monarchico representativo, não é raro ver o monarcha abusar, invadindo a esphera dos outros poderes e usurpando-lhes as legaes attribuições. Vê-se entre nós exactamente o contrario, e toda a nação o sabe e proclama, fazendo a Vossa Magestade a justiça de o admirar como modelo de moderação no uso do poder, que privativamente lhe pertence pela carta constitucional da monarchia.
Mas emquanto o poder irresponsavel, longe de abusar, nem mesmo ás vezes parece usar bastante, o poder responsavel, o executivo, invadindo e encobrindo-se sob a irresponsabilidade alheia, abusa, afflije e opprime a nação,