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DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

Sessão do 23 de agosto, pag. 304, col. 2.ª

Hontem, depois de terminada1 a sessão; um digno par do reino, que tinha estado presente á discussão, honrando com a sua attenção as simples observações que fiz ácerca da estrada da Covilhã, veiu declarar-me que tanto em relação á estrada da Covilhã como em relação ao governador civil de Castello Branco não eram exactas as informações que eu tinha recebido, e que s. ex.ª lamentava não ter voz n'esta casa para poder dizer...

O sr. Presidente: — Permitta-me o sr. deputado dizer-lhe que se não podem trazer para aqui as opiniões particulares de um membro da outra camara (apoiados).

O Orador: — Narro apenas um facto passado commigo, e creio que sou eu o unico juiz para apreciar a conveniencia de o referir aqui, tornando-o como objecção ou como motivo para continuar as minhas observações (apoiados).

Narro este facto, como narrarei quaesquer outros, porque tenho por habito inalteravel seguir na minha vida parlamentar o systema de só discutir em publico as cousas publicas. Aproveito, como util lição, o exemplo que aprendi n'um dos melhores discursos de Victor Hugo. Não faço politica de bastidores; o que se passa nos corredores ou n'esta casa depois de fechada a sessão, em regra é para mim indifferente, porque não quero saber de factos politicos, acabadas as sessões do parlamento, onde tenho voz e todo o direito de fallar. Por isso se alguma vez, como agora, apparece um facto que deve ser apreciado e discutido n'esta casa, levanto aqui a objecção que se me fez, considero-a minha, refiro-a e discuto-a onde tenho direito de a levantar e de fallar sobre ella.

(Interrupção do sr. Pinheiro Chagas que não se ouviu.)

De certo v. ex.ª póde fallar tambem; e eu terei muito gosto em o ouvir, mas fallará quando tiver a palavra, e até já, se me quer interromper, no que eu não tenho duvida em consentir.

Agora o que eu não venho, com certeza, é discutir aqui a pessoa do digno par, a quem me referi, nem tomar-lhe responsabilidade alguma pela sua opinião. Já v. ex.ª vê, sr. presidente, que eu conheço e respeito estas boas praxes parlamentares, e não ha o menor inconveniente na referencia, nem o menor motivo para a apprehensão, que, a meu pezar, ía suscitando no esclarecido espirito de v. ex.ª

Eu preciso apenas de referir aqui, e não prescindo de o fazer, que ha um membro do parlamento que sabe toda a verdade ácerca da estrada da Covilhã, e que esse membro disse não ser a verdade o que eu hontem referi. Creio que isto basta para o paiz ter a certeza de que n'esta ou na outra casa do parlamento se ha de esclarecer esta questão. É o que eu pretendo.

Toda a camara ouviu hontem, que eu expressamente declarei, que ía deduzir as minhas asserções das informações que tinha, por me ver forçado pela recusa do governo a prescindir da apreciação de documentos, que eu não tenho, nem posso ler, que só o governo tem, e que elle pertinazmente recusa apresentar ao parlamento.

Todos ouviram tambem eu declarar, que, como unico ou ultimo recurso, adoptava aqui a acção juridica ad exhibendum, e deixava a prova de todos os factos dependente da apresentação dos documentos que se acham na mão do governo, reputando-os verdadeiros emquanto elle os não destruisse com esses documentos. Declarei tambem que as minhas informações procediam do que se escreveu nos jornaes a este respeito, e de outros esclarecimentos particulares, mas não apresentei nem inculquei conhecimento meu proprio dos factos referidos, os quaes eu allegava hypotheticamente tornando-os dependentes dos documentos que deviam fazer a prova a favor ou contra as minhas asserções.

Portanto podia e póde haver alguma inexactidão, mas para a averiguar só ha um meio, que é a apresentação dos documentos.

Quem interessa em que toda a verdade se apure, reuna aos meus os seus esforços, e obrigue o governo a exhibir os documentos. Até então não estranhe a duvida nem as apprehensões. Emquanto os documentos se não apresentam; emquanto continua a affirmativa por parte do governo, de que estes documentos nunca hão de vir, eu estava e estou no meu pleno direito de apresentar hontem e de repetir hoje todas as opiniões que se manifestaram em publico, presumindo-as verdadeiras no caso de revelia e depertinacia do governo, e sujeitando-me apenas, como hontem declarei, a que a verdade ou menos exactidão d'estas opiniões fique unica e exclusivamente dependente da apresentação dos documentos.

O que eu asseverei hontem e o que hoje repito é o seguinte. Que no telegramma expedido pelo sr. visconde de Chancelleiros estava expressa a clausula essencial de que os trabalhos da estrada não principiariam, antes de se apresentarem feitas e legalmente ultimadas as expropriações, que importavam, segundo me dizem, em 16:000$000 réis, e que a camara municipal da Covilhã, combinada com os proprietarios d'aquella cidade, se tinha obrigado afazer á sua custa: que as obras da estrada tinham começado antes de realisadas as expropriações: e que tinham começado sob a responsabilidade do director interino das obras publicas do districto, porque o governador civil lhe dissera, que o governo não queria perder a eleição.

Declarei tambem que me constava que este facto tinha sido participado ao governo pelo governador civil de Castello Branco; e que o governo, querendo revogar o segundo telegramma do sr. visconde de Chancelleiros, que mandava suspenderas obras e tornava dependente o seu começo do facto de se haverem feito as expropriações, tomára em conselho de ministros essa deliberação, da qual resultou a saída

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d'aquella cavalheiro, e pela qual mandára continuar as obras da estrada, independentemente da previa realisação das expropriações.

No que eu disse hontem não tive, nem podia ter em vista fazer uma insinuação desfavoravel ao governador civil de Castello Branco, que não tem logar n'esta casa, e que hontem ainda eu não sabia quem era. Sei-o hoje, e conheço-o como um perfeito cavalheiro muito respeitavel e justamente respeitado (apoiados).

Eu no parlamento nunca discuto os actos dos governadores civis senão pela responsabilidade que d'elles tem o governo.

O digno par, a quem já me referi, affirmou-me que da parte do governador civil não havia nenhum compromisso nem nenhuma exigencia, e que elle fôra sempre completamente estranho a este negocio da estrada da Covilhã.

Eu presto inteiro credito ás palavras d'este cavalheiro, que sempre me mereceu plena confiança. Particularmente creio no que me diz, confio e convenço-me. Mas as questões que se levantam no parlamento não se decidem por confianças nem por convicções particulares, e eu aqui não posso guiar-me senão pelos documentos que pedi, que exijo, e que é indispensavel que se apresentem (apoiados).

Lamento tambem e profundamente que o cavalheiro, a que me refiro, não tenha voz n'esta casa. Felizmente tem voz eloquente e muito auctorisada na outra camara, e desde que s. ex.ª se mostrou tão conhecedor e tão instruido n'estes negocios da Covilhã, contrahiu commigo a obrigação, que eu exponho perante o paiz, de tomar a peito esta questão. Eu espero e julgo de conveniencia publica, que s. ex.ª, para rectificar os factos, me responda na outra casa do parlamento, e eu tratarei aqui a questão das rectificações, aceitando as que me convençam e discutindo e rejeitando as que me não convençam, no uso pleno do meu direito, e tanto aqui como lá, ha de haver resposta para tudo que se disser.

Sr. presidente, quando as questões chegam a este estado, v. ex.ª e a camara reconhecem que é impossivel a continuação da coragem do sr. presidente do conselho na recusa dos documentos. Agora ha uma necessidade superior, e espero que o sr. marquez d'Avila e de Bolama a reconheça a tempo de eu poder dispensar-me de insistir outra vez n'este ponto. Essa necessidade está ordenada, é exigida imperiosamente pelo decoro politico de um homem publico, que se respeita. É indispensavel que sejam presentes a esta camara sem demora não só os telegrammas, mas todo o processo relativo á estrada da Covilhã (apoiados).

Eu peço todo o processo, e s. ex.ª ouve-me.

É preciso que o sr. marquez d'Avila e de Bolama saiba e se desengane de que n'este negocio da Covilhã ha alguma cousa mais importante do que a promessa de collocarem o seu busto na sala das sessões da camara municipal, ou de porem o seu nome a uma das ruas d'aquella cidade. Mais importante que essas promessas importantissimas é averiguar-se, previa e indubitavelmente, qual a causa por que s. ex.ª recebe essas honras, de que o reputo digno, e essas distincções a que eu o julgo muito superior.

Se essa nova e mui subida honra vem de um povo que espontaneamente quer prestar homenagem ás altas virtudes de s. ex.ª, como homem publico ou como homem particular, eu debaixo d'este ponto de vista estimarei muito que se elevem não só na Covilhã, mas em muitos outros pontos do paiz, estatuas e monumentos que possam recordar ás gerações futuras o merito e as altas qualidades de s. ex.ª Porém se este monumento ha de affirmar apenas o proposito de perpetuar a memoria de um escandalo eleitoral, eu lamento que tal monumento se levante (apoiados), porque esse monumento deshonraria o paiz, affirmando em todas as idades futuras um facto que tambem não honra s. ex.ª (apoiados).

Hontem eu disse e demonstrei que o sr. marquez d'Avila e de Bolama tinha sido o inventor da divida fluctuante externa, mas não disse tudo. S. ex.ª não se contentou com o facto de ter inventado a divida fluctuante externa, que tem sido a maior calamidade para o nosso paiz. Depois do a ter inventado, encarregou-se de a desacreditar. Foi ainda s. ex.ª que no principal mercado monetario do mundo, era vez de pagar nos prados do vencimento, pediu a reforma das letras da nossa divida fluctuante. Vou provar o que digo.

Foi ainda ao sr. marquez d'Avila e de Bolama que pertenceu receber a realisação do ultimo emprestimo votado ao sr. Fontes para pagar as letras da divida fluctuante externa que existiam na praça de Londres. O principal credor, mr. Bering, tinha harmonisado os prasos de vencimento das letras, de que era credor, com as epochas da realisação do emprestimo, de fórma que o producto da emissão podesse ser applicado ao pagamento das letras. Pois o sr. marquez d'Avila e de Bolama tendo realisado pela emissão do emprestimo consolidado a quantia necessaria para pagar as letras a mr. Bering, em vez de pagar, pediu reforma, em vez de honrar a firma do governo portuguez, e de dar ao producto do emprestimo a applicação legal e já com aquelle credor combinada, deu outra applicação ao dinheiro e reformou as letras que lhe cumpria pagar. D'ahi data o descredito das letras do governo portuguez nos mercados estrangeiros, e como necessaria consequencia vieram as exigencias insólitas e as usqras leoninas.

São estes os serviços do sr. marquez d'Avila. Depois d'isto póde apregoar á vontade as suas altas qualidades financeiras; póde trazer aqui a diminuição ficticia do deficit do estado (apoiados); póde apresentar o que quizer, mas o que se vê póde mais que tudo o que elle apresenta (muitos apoiados).

O que eu vejo, e o que todos vêem, é que o estado financeiro do paiz consiste no grande deficit, que accumulando-se é convertido cai divida fluctuante, conservando-se n'esta fórma, em que arruina o paiz pela incerteza das reformas e pelo augmento dos encargos, até que chega a um certo ponto que não póde ultrapassar. N'esse momento apresenta-se o governo a pedir ao parlamento um emprestimo consolidado, a pretexto de pagar a divida fluctuante (muitos apoiados), que não paga totalmente, que nunca extingue, deixando-a sempre n'uma somma em que pelo contrario augmenta, reunindo-se-lhe as exigencias do maiores premios com os supprimentos a que obriga o deficit do exercicio do anuo corrente (apoiados). N'esta sicencia financeira ha pouco que aprender e nada que aproveitar.

O sr. Carlos Bento, sempre prompto a combater com a grande auctoridade da sua palavra, e com a nenhuma auctoridade de uma tira de papel, veiu contestar a verdade da arguição que eu fiz hontem ao governo, affirmando que o ministerio da fazenda mandava vender a 35¼ os titulos que deviam estar a 40 pelas declarações do presidente do conselho de ministros.

Agora apparece o sr. ministro da fazenda a declarar que era 1 de agosto tinha dado a ordem, que acabou de ter, para a venda dos nossos fundos a 35¼, salvo se houvesse tendencia para alta.

Mas s. ex.ª não respondeu, quando eu lhe perguntei precisamente, se a venda se effectuou, ou não. Eu dispenso a resposta, porque sei que se effectuou a venda, apesar das tendencias para a alta.

O sr. Carlos Bento não quiz tambem attender ao pedido, que eu hontem fiz aqui, para que a esta camara viessem todos os documentos que comprehendem a gerencia financeira do actual governo, mas transcriptos na integra e não por simples extractos. Eu noto o facto e tiro-lhe as consequencias sem nenhuma difficuldade.

Quando se falla constantemente da diminuição do juro da divida fluctuante, que se diz ter descido a 7½ é necessario, é indispensavel apresentar os contratos na sua integra, aliás arrisica-se o ministro a saber-se que a esses 7½, sendo o praso dos vencimentos a tres mezes, reunem se sempre as despezas do cambio, e as outras que ás reformas são inherentes, e que tudo isto representando 1 por cento

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em cada trimestre equivale a 4 por cento ao anno, que juntos aos 7½ por cento perfazem 11½ por cento de juro ou de encargo, que é o mesmo, porque o que importa é a somma que se paga, e não o nome com que se designa.

Apresente s. ex.ª os contratos dos supprimentos na integra, com todas as circumstancias com que foram realisados, porque eu não creio em tiras de papel, quero documentos officiaes e inteiramente authenticos.

A camara, se quizer, póde prestar-se a acreditar nas palavras do sr. ministro, ou em simples apontamentos escriptos, mas eu, como representante do paiz, não creio senão nos documentos originaes e authenticos, transcriptos na integra, como têem sido aqui pedidos muitas vezes, como ainda não vieram o como é difficil que appareçam (muitos apoiados).

Quando um governo quer inspirar confiança ao paiz, procede dando publicidade a todos os seus actos e operações financeiras (apoiados); quando o governo imagina que é sufficiente dar uma resposta fundada em simples apontamentos, e quando se limita a usar com muita graça do dom da palavra, não póde exigir por justo titulo a confiança do paiz, nem a confiança dos representantes da nação (apoiados).

Ao mesmo tempo que o governo nos pinta o nosso estado financeiro muito prospero e melhorando successivamente, eu vejo publicado nos jornaes mais serios e competentes que a divida fluctuante cresce, e que o deficit real é tambem muito maior do que vem calculado no orçamento. É necessario conhecer por uma vez esta historia do deficit. Já fui meu collega n'esta casa um cavalheiro distincto, tão intelligente como estudioso, que todos respeitam pela seriedade do seu caracter e pela sua inquestionavel competencia n'estes assumptos. Refiro-me ao sr. Miguel de Bulhões, que tem publicado algumas obras de superior merecimento (apoiados), e continua a publicar alguns artigos sobre finanças que merecem ser lidos e estudados. Qualquer dos escriptos d'este cavalheiro, na rainha humilde opinião, vale muito mais que todas as obras escriptas, que o sr. marquez d'Avila lega á posteridade (as que eu conheço, mas creio que conheço todas as publicadas). Todavia passa quasi despercebida a muita competencia do sr. Miguel de Bulhões, ao passo que é apregoada aqui quotidianamente pelas cem bôcas da fama a alta competencia do sr. marquez d'Avila.

Uma voz: — É elle quem apregoa.

O Orador: — É elle só, mas vale por cem a apregoar os seus serviços e altas qualidades.

N'um dos escriptos a que me refiro, declara o sr. Bulhões e demonstra arithmeticamente á face dos orçamentos e das contas dos exercicios findou, que o deficit calculado no orçamento é sempre muito inferior ao que se encontra nas contas da gerencia.

Isto não admira, e é a pura verdade. A nossa historia offerece exemplos muito curiosos. Todos nós sabemos que antigamente (a epocha não é muito antiga) houve ministros da fazenda que perguntavam aos collegas se queriam orçamentos com pequeno ou grande deficit, ou sem deficit algum, ou até mesmo com saldo (riso). Todos sabemos que n'estas perguntas e n'estas operações immortalisou o seu nome um dos nossos estadistas, o qual sem difficuldade de nenhuma especie aproveitava a maxima elasticidade dos calculos orçamentaes.

O caso não é tão difficil, como póde parecer, e os meios são muito simples. Não custa nada calcular a receita em muito mais do que se sabe que ella ha de produzir, e a despeza em muito menos do que se sabe que ella ha de ser; pedir depois uma auctorisação para poder preencher as differenças que haja entre os calculos feitos, e no fim em vez do deficit, apresentar ao paiz um saldo que até póde ser enorme (apoiados), é uma sciencia financeira, que eu não invejo. O sr. marquez d'Avila e de Bolama póde possui-la em alto grau, mas eu creio que s. ex.ª não póde pedir o privilegio nem reclamar o exclusivo da invenção, porque alguem o fez em França e aqui antes de s. ex.ª, e toda a gente póde ainda hoje fazer isso mesmo (apoiados).

Sr. presidente, tenho de passar a uma outra ordem de idéas, mas primeiro declaro a v. ex.ª, que, se não me illudo muito, e talvez me illuda por acreditar facilmente o que desejo, devo crer que todos os indicios demonstram a proxima queda do governo (apoiados). Já não vem cedo tão fausto acontecimento.

Quem se encarregará, qual partido politico se incumbirá de dar a este governo a manifestação que elle muito precisa, e que o paiz muito maia reclama, não o sei eu. Seja qual for, eu faço uma declaração em nome do partido a que pertenço, e na qual espero ser talvez apoiado por todos os outros membros que constituem a opposição n'esta casa (muitos apoiados). A minha declaração é a seguinte:

Nós votâmos tudo o que faça caír o governo, venha d'onde vier, seja o que for (muitos apoiados). Nós votâmos tudo com a significação unica de fazer caír o gabinete, que se nos afigura a origem de todos os males, e uma causa incessante de todos os prejuizos publicos. (Muitos apoiados. — Vozes: — Muito bem.)

Mas, sr. presidente, se nós estamos dispostos a votar tudo, Venha d'onde vier, é necessario que se saiba que não pedimos a ninguem que venha para nós, nem implorâmos a partido nenhum d'esta casa que nos auxilie; a nenhum absolutamente (apoiados).

Não pedimos auxilio. Trabalhâmos e cumprimos o nosso dever. Principiámos nos primeiros dias em que se abriram as sessões do parlamento, e temos continuado incessantemente até hoje (apoiados).

A cotação dos nossos fundos baixa, diz o governo, em Inglaterra, por se desconfiar que havia entre nós crise ministerial, e este rumor corre exactamente na occasião em que o sr. ministro da fazenda mandava vender as 200:000 libras. Nada temos com isso. Não nos pertencem os boatos que correm ou deixam de correr em Londres. Se a crise se não verificou, se o ministerio não caíu, a culpa não foi minha, nem de nenhum dos membros da opposição n'esta casa; a culpa d'esta incerteza e d'esta crise permanente é de quem dá motivo a taes acontecimentos (apoiados), teimando em fingir de governo, quando não tem força, nem prestigio, nem condições algumas para governar (apoiados).

Eu não admitto a conclusão tirada com mais espirito do que logica pelo sr. ministro da fazenda, ligando a baixa dos fundos necessariamente á queda do governo ou ao risco que elle corre de caír.

A simples pergunta ou participação da parte do banqueiro inglez, não indicava, que necessariamente baixassem os fundos, sabendo-se que o ministerio estava em crise; podia significar o talvez significasse o contrario, talvez significasse que a queda do governo produziria a elevação e augmentaria o preço dos fundos. É mesmo provavel que aquelle grande credor inglez, aquelle importantissimo credor, como lhe chamou o sr. ministro da fazenda, se soubesse que o ministerio caía, não exigisse o reembolso e não quizesse que se vendesse o penhor dos credites que tinha sobre este paiz. Os factos até mostram o contrario do que o governo tem querido inculcar. Os factos mostram que a grande tendencia para a alta cessou, justamente quando se soube que a crise se não tinha dado, e que o ministerio, em vez de caír, se conservava (apoiados).

A tal circumstancia feliz, de que os nossos fundos publicos íam chegar á cotação de 40, nunca se verificou, embora aqui o sr. presidente do conselho de ministros nos affirmasse positivamente que ninguem queria vender por menos. Pelo contrario, o governo deu o exemplo, e desde que elle quiz e mandou vender por 35¼, provou que havia quem quizesse vender por menos de 40 (muitos apoiados). Entre os particulares aconteceu o mesmo. Muitos individuos illudidos pela declaração do sr. presidente do conselho, acudiram ao mercado para vender, e as inscripções desceram immediatamente, como descem sempre que a offerta excede excessi

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vãmente o pedido. Hontem achavam-se a 36 e uma fracção. Aqui estão os 40 que constituem a falsa esperança com que nos lisonjeou ou antes se lisonjeou o sr. presidente do conselho de ministros! (Apoiados.)

Sr. presidente, nós votâmos contra o governo, como já disse, seja que moção for, e venha de que lado vier; mas a nossa responsabilidade termina no ponto e no momento em que se conseguir a queda do governo.

Os dois partidos, que sós principiaram e que ainda hoje unicos constituem a opposição politica, sabem e reconhecem que a sua missão actual não póde passar alem da queda do governo (apoiados). Eu creio que tanto um, como outro, tanto reformistas como constituintes, não têem duvida em confessar a sua inferioridade numerica, devida unicamente á guerra violenta que o governo nos fez na urna (muitos apoiados), recorrendo para combater estes dois partidos a todos os meios abusivos e illegaes (apoiados). Por isso a opposição actual póde, deve e quer affirmar, que se não prepara para resolver a crise nem para influir na sua resolução. Essa responsabilidade não póde caber-nos. Não faltará quem pretenda assumi-la (apoiados).

Creio porém que todos os partidos representados n'esta casa, sejam quaes forem as circumstancias futuras, pretendem conservar a sua existencia distincta e completamente separada (apoiados), como tem estado até aqui; póde o governo, que se erguer sobre as ruinas do actual, merecer a benevolencia de um ou outro partido, de todos até, mas essa benevolencia ha de conquista-la pelos seus actos, e desde logo pelo seu programma e pela confiança que os seus membros possam inspirar aos representantes do paiz n'esta casa (apoiados).

Eu devo, finalmente, entrar propriamente no assumpto em discussão, que é a resposta ao discurso da corôa, mas primeiro permitta-me ainda v. ex.ª que eu declare á camara, qual é, segundo o meu modo de ver, a opinião do paiz.

É opinião geral que as nossas mais graves difficuldades politicas, e os embaraços que os governos encontram em fazer passar qualquer medida de mais alcance, resultam, principalmente, de que o poder moderador tem sido mal aconselhado, tanto na dissolução das camaras, como na organisação do poder executivo (apoiados).

N'estas circumstancias, esta camara, que deve representar aqui a opinião do povo, não póde, creio eu, corresponder á sua missão e aos seus deveres, se, em momento tão solemne e tão grave, se limitar a meros comprimentos e simples cortezia. Parece-me que andará mal avisada a representação nacional, se mandar a Sua Magestade, como resposta ao discurso da corôa, apenas um escripto innocente, incolor, mais ou menos insulso, sem significação alguma politica, que não possa tomar-se como resistencia da nação aos maus conselhos, que a nação pensa, com rasão ou sem ella, que têem sido dados ao poder moderador, e que não possa ao mesmo tempo ser tomado como indicação de qual é a vontade da maioria do paiz, para remediar no futuro os males excessivos que temos soffrido até hoje.

É por isso que apresento uma substituição á resposta ao projecto de resposta ao discurso da corôa, com significação totalmente politica.

Devo, porém, declarar a v. ex.ª que esta resposta, que eu fiz só, que meditei e redigi muito á minha vontade, que não combinei com pessoa alguma, que não sujeitei á censura nem á apreciação de nenhum individuo nem de partido nenhum, representa unicamente as minhas idéas, que são tambem as idéas dos meus eleitores, é de muitas pessoas, cuja opinião conheço, e que me merecem muita confiança e conceito, tanto pela sua intelligencia, como pelo seu juizo e posição social.

Antes d'isso preciso de dizer á camara, em duas palavras, a maneira por que eu aqui vim na presente eleição, e a maneira por que tenciono saír d'aqui, talvez muito em breve, deixando firmadas n'esta especie de meu testamento politico, como mensagem á corôa ou como declaração ao paiz perante o parlamento, as minhas idéas e as minhas opiniões. Tratei e tratarei de regista-las com a minha habitual franqueza, evitando sempre todas as ambiguidades, porque pretendo e desejo não deixar margem a duvidas.

Quando eu vi que o sr. marquez d'Avila e de Bolama, dirigindo as eleições n'este paiz, para prova de que não tinha odio a ninguem, desenvolvia contra mim todos os materiaes do seu vasto arsenal, eu principiei naturalmente por perguntar a mim mesmo qual seria a causa de tanta sanha e de tanto furor. Não era facil encontrar motivo, não direi racional, mas rasoavel ou justificado por alguma causa conhecida.

Lembrei-me de que entrei pela primeira vez n'esta casa, sendo s. ex.ª presidente do conselho de ministros, e que em todas as sessões d'essa legislatura, emquanto se conservou no poder o ministerio presidido por s. ex.ª, sempre o respeitei pessoalmente, e nem uma só vez lho dirigi uma palavra que pessoal ou politicamente podesse feri-lo ou ser-lhe desagradavel.

Recordei-me tambem de que s. ex.ª, excedendo-me em delicadeza e em amabilidade, como a mim e a todos excede em tudo o mais, não se limitou a ser-me agradavel em todas as occasiões, mas até uma vez levou o excesso da sua amabilidade a ponto de dar-me n'esta casa um testemunho publico que, pela exageração, não só me confundiu, mas até me envergonhou.

Recordei-me tambem de que mesmo nas sessões da ultima camara, sendo s. ex.ª chefe da actual situação, e tendo-me eu declarado opposição com os meus amigos, só depois de termos esgotado os ultimos recursos, não só de espectativa benevola, mas até de auxilio parlamentar, tendo esperado pela realisação das suas promessas até ao ponto a que podia chegar a paciencia humana, votámos contra a lei de meios, recusámos ao gabinete a continuação da nossa confiança politica, mas limitámos a isso a nossa hostilidade, recordando-me eu tambem de nem uma palavra ter dito que podesse ferir pessoalmente o sr. marquez d'Avila ou qualquer dos seus collegas.

Em todos estes factos eu via facilmente sobrado motivo para que o sr. marquez d'Avila me não elegesse, se eu lhe pedisse a eleição, e para que me recusasse um circulo governamental, se eu fosse capaz de descer a solicitar-lhe tal concessão.

Não via, porém, nem podia ver, motivo racional ou plausivel para que n'um circulo, como é aquelle que eu tenho a honra de representar, no qual a unica força é a vontade dos eleitores, o sr. marquez d'Avila fosse tentar uma luta desesperada, que antecipadamente sabia perdida, sacrificando ao capricho pueril da sua raiva impotente o bem estar de dois concelhos importantissimos, o socego e tranquillidade de eleitores independentes, cujo unico crime era terem a audacia de acreditar na liberdade do seu voto e quererem reeleger contra a vontade do sr. marquez d'Avila e de Bolama o seu representante em quem confiam, que nasceu entre elles, que conhecem desde a infancia, que ali tem domicilio e familia e propriedade, e que ali offerece as condições e garantias que aquelles eleitores querem e costumam exigir ao seu representante para n'elle terem confiança e para se reputarem ligados e obrigados pelo seu voto.

Para isto não via eu motivo, e muito menos o podia ver para que se arremessassem sobre os eleitores todos os meios de pressão e de violencia, de illegalidade e de corrupção (apoiados).

Este caso intrincado explicou-se a final, e hoje é claro como a evidencia. O sr. marquez d'Avila, para melhor affirmar e provar quanto é incapaz de odios e de rancores, não dirige a sua raiva e as suas vinganças só contra os que reputa seus inimigos pessoaes, amplia e estende estes nobres sentimentos a todos aquelles que são amigos pessoaes ou politicos dos seus suppostos inimigos (apoiados).

A guerra não era dirigida propriamente á minha pessoa, guerreava-se em mim outro cavalheiro que, em Arganil,

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em Guimarães e em Fafe, parecia ser eleito ao mesmo tempo sob nomes e pessoas differentes (apoiados).

Para o sr. marquez d'Avila eu não sou eu (riso); sou, segundo parece, a sombra de outro corpo, o echo de outra voz, o reflexo de outra intelligencia, a copia ou representação submissa de alguem que s. ex.ª odeia. Não tenho individualidade propria, represento apenas uma dependencia. O sr. marquez d'Avila tem d'estas opiniões excentricas, que, por serem de s. ex.ª, nem me offendem. O meu caracter desmente essas opiniões exoticas, e nenhum dos meus actos publicos as auctorÍ8a (apoiados).

A lealdade para com os meus amigos nunca me obrigou a contradizer as minhas opiniões. A minha amisade nunca foi submissão nem servilismo, e na independencia da minha opinião e do meu voto posso e quero ser pertinaz e rebelde a todas as considerações opposlas á minha rasão e á minha consciencia, nunca fui nem hei de ser servo submisso nem humilde escravo de nenhuma especie de senhor (apoiados).

Não admira que o sr. marquez d'Avila se enganasse commigo, porque o mau fado obriga-o nos ultimos tempos a enganar-se com todas as cousas, sendo raras as que não vê inteiramente ás avessas, quando preside ás eleições (apoiados).

Eu nunca me queixei, vi tranquillo preparar se e desenvolver-se contra mim o arsenal do sr. ministro do reino, e apparecerem em campo todos os meios que já referi. Nem uma só vez recorri a imprensa a queixar-me, nem a denunciar esses escandalos e abusos do poder. Limitei-me apenas a dirigir um manifesto aos meus eleitores, unicos com quem eu trato de eleições, e distribui-o entre elles, não lhe dei outra publicidade nem tencionava dar. O manifesto era só para os eleitores do circulo.

Mas depois o candidato governamental, que o governo tinha coagido e violentado a propor-se — contra mim, pedindo-lhe humilde e supplicante, e enganando esse honrado cavalheiro e o seu partido, o candidato governamental, vendo-se, como eu disse, illudido e burlado pelo governo em todas as promessas, veiu á imprensa retirar a sua candidatura por um modo nobre e digno, como era proprio do seu honrado e respeitablissimo caracter (apoiados).

Então, e só então, recorri eu á imprensa tambem. Não podia consentir que o facto se attribuisse a causa diversa da que o produzia, e tinha de acautelar-me contra as interpretações, ás vezes ambiguas, do sr. ministro do reino. Declarei terminantemente, que, fosse qual fosse a causa que levava o meu honrado antagonista a retirar a sua candidatura, eu era estranho a esse facto, e continuava a minha posição de guerra ao governo, em manifesta opposição, a mais hostil possivel, em perfeita harmonia com o meu manifesto. Provoquei claramente o governo a substituir por outra a candidatura governamental, que se retirava, e fiz publicar então na imprensa periodica o manifesto, que tinha dirigido aos meus eleitores.

N'esse manifesto dizia eu o seguinte (para não abusar da paciencia da camara, leio só a ultima parte, transcrevendo o na integra para poder ser lido, quando se publicar o discurso):

Manifesto eleitoral aos eleitores do circulo n.º 11

«Envolvido n'uma luta eleitoral, em que o governo, tendo-me declarado crua guerra, envidou os ultimos esforços e ameaça ainda recorrer a todos os excessos para combater a minha candidatura, eu posso e quero abster-me agora de referir e de analysar os meios que o governo tentou e a que recorre, mas não posso nem devo deixar de fazer uma declaração positiva e terminante, com a qual defina, sem equivoco possivel, a minha posição actual e futura, apresentando-me desde já claramente ao meu circulo eleitoral, ao paiz, e á camara da qual me proponho a fazer parte.

«Se esta declaração é conveniente para a minha dignidade como candidato, mais convem ainda para fazer respeitar, como a justiça exige que se respeitem, a illustração e a independencia dos meus eleitores, que, no meio da geral dissolução dos costumes politicos, ha muito abriram n'este paiz exemplo de virtude civica, e firmes sustentam, como homens livres, illeso e pleno o seu direito de eleger, emquanto que a maioria dos circulos cobardemente o abandona ou servilmente o entrega de seis em seis mezes a cada governo que está, tenha ou não tenha idéas, tenha ou não tenha principios, comtanto que não deixe de ter á sua disposição as leis para violar, os favores para corromper, a repartição dos impostos para diminuir, o recrutamento para livrar, as obras publicas para negociar, os empregos para prometter, e toda a administração para captar amigos com fallazes promessas ou ameaçar adversarios com a denegação de justiça nas mais justas pretensões. É assim que as lutas eleitoraes, de que deve e póde a todo o momento surgir a salvação publica, imprudentemente repetidas contra a lei fundamental do estado e criminosamente executadas contra todos os principios de liberdade, cavam cada vez mais funda a ruina da patria, em vez de a salvarem, como deviam.

«Não se queixe o paiz do governo, nem das camaras, nem de nenhum dos poderes do estado. Não attribua a outros a culpa que é exclusivamente sua. Queixe-se unicamente de si que, quando elege, aproveita, para negociar á custa do interesse geral o a troco de mesquinhos favores ou illusorias promessas, a unica occasião solemne em que se entregam nas mãos do povo a futura constituição dos principaes poderes e a possivel ou facil realisação de todas as reformas, sem as quaes todos sentem e todos sabem dizer que não podemos viver nem sustentar-nos como nação independente.

«Nas lutas eleitoraes deixe o paiz o governo governar ou fingir que governa na execução das leis, mas governe cada eleitor no seu voto, resista a todas as seducções e a todas as ameaças, vote em homem que todos conheçam no respectivo circulo eleitoral, que aos seus vizinhos offereça pelo seu passado e pela sua posição garantias de intelligencia e de probidade, e que inspire á maioria plena confiança, tanto para esta aceitar os indispensaveis sacrificios que elle votar, como para lhe prestar auxilio e força contra a furiosa resistencia, que hão de oppor os interesses feridos e os abusos cortados pelas reformas, que os verdadeiros representantes do paiz terão de fazer largas e profundas na actual organisação dos serviços publicos em todos os ramos da administração.

«Escolha a nação representantes, que realmente a representem, e não tolere mais esta farça representativa, em que o nome de representante do povo anda alliado á condição de só representar o favor dos ministros e á impossibilidade absoluta de representar a vontade dos eleitores. Desengane-se o paiz, já que a successão dos varios ministerios se conspira para perpetuar a perfida e nociva illusão que nos perde, compromettendo gravemente o futuro da patria.

«Os governos deveriam ser os primeiros a desenganar-se, e tempo era já de ter cessado para elles toda a illusão. As quedas rapidas e successivas dos ministerios, a sua duração ephemera, a prompta substituição dos ministros ao primeiro abalo ou commoção popular, apesar de uma maioria numerosa ou de uma camara quasi unanime, deviam ter desenganado todos os ministros de juizo e de boa fé de que a sua conservação no poder depende menos do numero que da qualidade dos representantes que os apoiam. De representantes puramente nominaes, sem raizes, nem sympathias, nem confiança do povo, tanto vale a maioria como a aunanimidade; essa camara, longe de robustecer, enfraquece e desconceitua o governo a quem apoia.

«Qualquer sacrificio votado pelo verdadeiro representante do povo, que é conhecido e estimado na localidade que o elegeu, que ali tem credito pessoal e possue bens proprios sujeitos tambem aos tributos que votou, não encontra de certo enthusiasmo nem festejos, mas não encontra tambem a indignação popular, não é estimulo nem incentivo para

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tumultos nem para revoltas. As leis feitas pelos verdadeiros representantes do paiz offerecem segura, certa e infallivel garantia de facil execução. Natural é que todos respeitem e cumpram o que a verdadeira maioria consentiu.

«O sacrificio votado e imposto pelo representante nominal e ficticio, que o circulo nunca viu, que na localidade ninguem conhece, que ninguem respeita, em quem ninguem confia, que passou incognito da pasta do ministro para a uma eleitoral, que o favor do governo com a corrupção do suffragio tirou vadio da mesa de um botequim, do ocio retribuido n'uma repartição publica, da litteratura de uma gazeta ou das odes e sonetos á musa ausente, esse sacrificio, apenas votado, é uma provocação a todos os contribuintes, um insulto a todos os eleitores, um desmentido ás promessas e compromissos eleitoraes; envolve o descredito de todos os poderes, levanta as representações do povo, produz os tumultos, accende as revoltas. As leis assim votadas nunca se executam. Com taes representantes toda a difficuldade, por menor que seja, é insoluvel; adia se, não se resolve. Nenhum sacrificio se obtem do paiz; nenhuma reforma póde ter execução. A menor resistencia derruba leis e legisladores, submersos todos no ridiculo da origem. Destas fataes experiencias creio que está o paiz cheio, e, não sem motivo, enfastiado.

«São estas as minhas idéas ácerca da representação nacional. Tenho a firme convicção, tenho toda a certeza, que é possivel obter em conjecturas humanas, de que este paiz se salva logo que uma vez eleja verdadeiros representantes, assim como a tenho de que se perde irremissivelmente, se por indifferença ou corrupção continua a tornar-se complice do crime de falsificação do suffragio e prostituição da representação nacional. Devo a verdade ao meu paiz, e para mim é esta a verdade.

«É assim que eu apresento a minha candidatura perante o paiz. É assim que eu a offereço aos eleitores do circulo, que quatro vezes successivas me têem honrado com os seus suffragios.

«O actual governo guerreia-me a todo o trance, com toda a força, por todos os meios de que dispõe. Honra-me essa guerra, cuja causa não indago; envergonhar-me-ía do apoio, e de mim, se o tivesse merecido. Não sei se provoquei essa guerra; sei que a teria evitado, se trahisse o meu dever de representante do povo, se faltasse á minha consciencia, se sacrificasse a rasão e a intelligencia, ou mesmo se fingisse o sacrificio durante os breves dias que tinham de correr desde o encerramento da ultima camara até á eleição geral, que todos previam. Não quiz: e, felizmente para mim, era e sou incapaz de querer.

«Com a minha dignidade era incompativel, á minha consciencia repugnava prestar ou fingir apoio a um governo, que, illudindo a camara e burlando o paiz com a fatua promessa de resolver a questão de fazenda, deixou passar toda a sessão ordinaria sem apresentar cousa que se parecesse com os meios de resolver tal questão, obstou á discussão das suas exiguas ou absurdas propostas tributarias, fingiu sua esta iniciativa quando as apresentou, reputou-as alheias quando pelo proprio ministro da fazenda contra ellas apresentou representações; e, finalmente, pediu á camara uma lei de meios absoluta e illimitada, que rigorosamente significava a impossibilidade de resolver tanto a questão de fazenda como todas as outras graves questões que o governo não póde resolver sem o concurso do parlamento. A lei de meios era a auctorisação, que o governo, na mais flagrante contradicção com o seu programma, posto que na mais rigorosa harmonia com os seus habitos e habilitações, pedia aos representantes do povo para vegetar um anno mais, impondo ao paiz uma ficção esteril e damninha, adiando a solução das questões e aggravando todas as difficuldades com o adiamento, que tem sido o usual recurso dos governos e a principal causa dos males da patria. Eu recusei essa lei; não podia conceder tal auctorisação.

«Eu não podia tambem, sem trahir os meus deveres de representante legitimo de um circulo illustrado e independente, e conceder um momento mais de confiança a um governo, que, tendo affirmado na camara popular o seu proposito de tributar igualmente todos os rendimentos, e estando compromettido na votação do projecto que tributava os dividendos dos bancos e companhias, foi na camara alta tomar a iniciativa occulta das alterações ao projecto apresentado pelos ministros e votado pelos representantes do povo, alterações que restabeleciam os privilegios e isenção de impostos a favor dos capitalistas, e dos que, tendo maiores e mais commodos rendimentos, nada pagam para o fisco, antes sugam, em transacções lesivas e leoninas com o thesouro, o que os outros contribuintes, e especialmente os proprietarios, pagam á custa de pesados sacrificios e de sempre crescentes vexames.

«Desde que o ministerio deixou caír a mascara e veiu revelar-se á camara dos deputados tal qual era, insistindo com insensata audacia em fazer questão ministerial das alterações ao projecto em que estava compromettido; desde que elle tentou violentar a consciencia e a vontade dos representantes do povo, querendo força-los a consentir n'este meio original de resolver a questão de fazenda, prescindindo de uma receita importante só para favorecer os privilegiados da fortuna, dispensando os ricos e os capitalistas do imposto com que vexa e opprime os pobres e os proprietarios; desde que elle revelou claramente o intuito de que a unica materia tributavel é a propriedade immovel, e de que a unica fonte a exhaurir é a agricultura, já tão abatida e decadente, eu votei contra o governo, que, trahindo as suas mais solemnes promessas, escarnecia do paiz e ludibriava os representantes do povo. Eu, vosso representante pela vossa livre confiança, e nunca pelo favor de governo algum, eu proprietario como vós, e como vós agricultor, não podia preferir os favores do governo nem as amabilidades dos ministros ao meu dever, á minha rasão, á minha consciencia, nem sacrificar juntos com a minha dignidade os mais sagrados interesses de todos nós. Não nasci para isso, e não fui para isso, de certo, que vós me honrasteis com a vossa confiança.

«São estes os meus crimes. São estes os motivos visiveis da guerra feroz que o actual governo declarou á minha candidatura; são estas as causas apparentes, que determinaram os odios, com que o ministerio flagella dois concelhos independentes, lutando como desesperado para impor a este circulo eleitoral a pressão governativa, que elle sempre recusou.

«Eu vejo a propriedade depreciada e a agricultura definhando. Hoje apenas vale 60 o que ha poucos annos ainda valia 100. Abundavam então os pretendentes pelo maior preço a disputar a acquisição; escasseiam e desapparecem hoje, quando o preço é baixo e vil. Os capitaes procuravam então a garantia da propriedade, e era limitado e modico o juro dos mutuos; hoje fogem e recusam-se, quando nos emprestimos hypothecarios a mais leonina usura é licita e legal, e quando a rapidez da execução abafa em juizo o direito e a justiça para esmagar o devedor.

«Tudo isto tem uma causa. Eu sou dos que não se prestam a attribuir este effeito, nem á influencia dos astros, nem ás nebulosas theorias dos cambios com que insultam o nosso juizo e escarnecem a nossa credulidade os que se vão apropriando dos nossos bens, e só miram a obter boas propriedades por pouco dinheiro. Eu vejo certa a depreciação da propriedade, necessaria a decadencia da agricultura, e infallivel a ruina da primeira riqueza do paiz, nas reformas e nas leis dos ultimos annos, nas quaes a pessima e absurda organisação da propriedade, e os encargos e crescentes vexames que a difficultam e opprimem em todas as transacções, arruinando-a nas transmissões, e tornando-a incerta no dominio e na posse, haviam forçosa e inevitavelmente de produzir os males que principiâmos já a sentir, e que muito hão de aggravar-se ainda, porque os effei-

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tos maleficos começam a apparecer, mas não estão ainda completamente desenvolvidos.

«Eu queixo-me, não dos astros, nem dos cambios, mas das leis, dos legisladores e dos governos. Eu promovo a reforma das leis oppressivas e injustas, e opponho-me com todas as forças a que o governo, continuando um systema deploravel e absurdo, descarregue o ultimo golpe e crave o punhal da misericordia na propriedade e na agricultura moribundas.

«É por isso que não sirvo ao governo que me guerreia. Venho ver se sirvo aos eleitores que me conhecem.

«Ao ostracismo decretado pelo governo não me sujeito eu. Não lhe reconheço poder para eleger, hei de combater todas as attribuições de que elle abusa para corromper o suffragio popular, desprezo profundamente e detesto como falsas e criminosas todas as eleições de que elle dispõe e que são aquellas a que me referi. A parte do paiz que lh'as concede, abdicando por habito do direito de eleger, é, na minha opinião, indigna da liberdade..

«D'essas eleições não quero eu, nem de nenhuma que com ellas se pareça. Eu peço unicamente os votos que só tenham a dupla significação = guerra ao governo e absoluta confiança no deputado eleito =.

«São muitos os partidos e diversos os centros politicos, em que se subdivide o paiz, tendentes todos a salvar a patria. A um d'elles pertenço eu, mas a nenhum, nem mesmo ao meu, pedi circulo para me propor nem auxilio para ser eleito. O que não pedi nem quero do pai tido a que pertenço, é claro que o recuso e não aceito de nenhum outro, seja de que especie ou denominação for.

«A minha eleição, se tiver logar, ha de ter a significação incontestavel e clarissima da liberrima escolha dos eleitores com pleno conhecimento da pessoa que elegem e com plena confiança no deputado eleito.

«Todo o voto, que não tenha esta significarão, reuna-se á força do governo e venha contra mim. Todo o partido, e todo e qualquer centro politico, que queiram allegar futuras pretensões a ter concorrido para o triumpho da minha candidatura, é tempo ainda, reunam os seus esforços aos do governo e combatam-me tambem.

«Eu quero e preciso uma experiencia decisiva, quu determine o meu procedimento futuro. Para isso apresento-me só, contra o governo, sem auxilio de partido algum, perante o circulo em que nasci, aos dois concelhos em ambos os quaes tenho familia, parentes e amigos, onde, todos me conhecem desde a infancia, e onde todos apreciam as garantias que represento e a confiança que mereço.

«Se eu posso ser legitimo, genuino e verdadeiro representante da maioria dos eleitores d'este circulo nas condições referidas, eu aceito e aprecio como subida honra o encargo de ser mais uma vez representante do povo. Em outras condições não quero a eleição.

«Eleitores do circulo:

«Os vossos suffragios responder-me-hão no dia 9 de julho, sabendo o paiz a significação que elles têem. = Visconde de Moreira de Rey.»

Eu queria fazer conhecer pelo resultado da eleição os termos, em que eu vinha eleito, e tanto pelo numero de votos como pela natureza da confiança que em mim se depositava. Consegui plenamente o meu fim (apoiados).

No manifesto não deixei possibilidade de illusão sobre a minha posição n'esta casa, e por isso os eleitores, que me deram o seu voto, queriam exactamente o que eu quero.

O resultado, em relação ao numero de votos, não foi menos significativo. Tendo o governo fugido da uma desde que o candidato que se me oppunha retirou a sua candidatura, parecia natural que o governo, não encontrando outro candidato para propor, retirasse ou fizesse cessar no circulo a sua pressão nefasta e os seus meios illegaes. Succedeu exactamente o contrario. O governo redobrou de esforços, e sem coragem para a luta, empregou, para desviar da uma os eleitores, mais e maiores meios do que podia, empregar, para os levar á urna contra mim.

Todos sabem quanto é mais facil conseguir que os eleitores fiquem em casa, principalmente quando elles vêem que o seu candidato não tem antagonista. Pois, apesar de tudo, apesar de todos os meios illegaes, e ás vezes violentos, apesar de contra mim não haver candidato, eu devo declarar que o governo poucas abstenções conseguiu, e foram muito poucos os eleitores que elle póde resolver a não irem á urna.

Todos estes recursos pouco aproveitaram ao governo, a não ser para lhe demonstrar a absoluta insignificancia dos seus delegados e agentes. No concelho de Fafe, cujo recenseamento é de 1:750 eleitores, deduzidos 300 que representam os mortos, os doentes, os ausentes e os que era caso algum vão á urna, e este numero é o que tem faltado em todas as eleições n'aquelle concelho, por mais renhidas e disputadas que sejam; deduzidos esses 300, mostra-se evidentemente, pela votação que eu obtive, que o governo nunca poderia obter, em maximo esforço, mais de 280 votos, porque não ha mais eleitores. Em Celorico de Basto, cujo recenseamento é de 1:400, deduzido igual numero dos que estão impossibilitados e dos que se abstêem constantemente, e n'este concelho talvez esta deducção devesse ser maior, mostra-se com a mesma evidencia, em face da votação que eu obtive, que o governo, em esforço supremo, apenas poderia conseguir 400 a 450 votos. Eu, guerreado a todo o trance, combatido desesperadamente pelo governo, tendo publicado o manifesto que li, empregando o governo todos os esforços e os ultimos recursos para desviar os eleitores da uma, fui eleito por 1:863 votos, todos os quaes têem a significação previamente calculada e expressamente declarada na ultima parte do meu manifesto eleitoral.

Não quiz deixar duvida pobre a natureza da minha eleição. Foi espontanea; os votos, que em mim recaíram, não só foram inteiramente livres, mas representam ainda esforço e dedicação dos eleitores contra a pressão do governo. Votaram em quem conheciam, em quem queriam, em quem confiavam, e em quem primeiramente lhes tinha declarado a amplitude da confiança que exigia e as condições em que unicamente aceitaria a eleição. Posso, pois, dizer que represento fiel e genuinamente, contra a vontade do governo, a vontade dos eleitores de dois concelhos, que a todos os respeitos são dos mais importantes d'este paiz. Escuso de declarar que nenhuma especie de vaidade me leva a fazer esta declaração, e espero que a camara reconhecerá, que esta declaração era necessaria para fundamentar, ate certo ponto, a substituição que tenho a honra de apresentar, e os termos em que redigi o meu projecto de resposta ao discurso da corôa (apoiados).

Assim eleito, é por isso que eu ponho de parte todas as considerações pessoaes, todas as contemplações para com as pessoas illustres dos srs. ministros, para só dizer claramente a minha opinião, que e incontestavelmente a de todos os meus eleitores.

Tanto eu, como elles, entendemos que é urgente necessidade mandar a Sua Magestade, como mensagem, ou como resposta ao discurso da corôa, um documento era que se exprima claramente a vontade do paiz, conciliando-se o respeito e a dedicação do povo pelo Rei com a exposição franca e clarissima de algumas verdades, que Sua Magestade deve ouvir, para as apreciar e attender emquanto é tempo.

O amor pela patria, e igualmente pelo Rei, foram os unicos sentimentos que me inspiraram a substituição, que tenho a honra de propor, e que redigi nos seguintes termos:

«Senhor. — A presença de Vossa Magestade, sempre festejada em todos os actos solemnes da vida nacional, na abertura das côrtes é motivo de sincero jubilo. Na vida constitucional de um povo livre nenhum acto póde haver mais solemne que aquelle, em que o Rei, primeiro representante da nação, abrindo as côrtes geraes, prova o seu respeito pelo pacto fundamental, e affirma o seu empenho de procurar na representação nacional a indicação das idéas

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que devem presidir á constituição do poder executivo. Assim se estreitam cada vez mais os vinculos de nunca desmentido affecto, que ligam a nação portugueza ao monarcha constitucional, seu primeiro representante.

«Os eleitos do povo, tendo de exprimir perante Vossa Magestade os sentimentos do paiz, não podem hoje limitar-se á exposição unica dos votos da nação para com a augusta pessoa do chefe do estado. A força das circumstancias obriga-os a exporem perante o throno, com a lealdade e franqueza que em todos os tempos foram caracteristicos dos bons portuguezes, a apreciação liberrima do poder executivo, exercido por ministros livremente nomeados e demittidos por Vossa Magestade, mas sempre e inteiramente responsaveis para com o paiz, perante os representantes do povo.

«A camara dos deputados da nação distinguindo, como lhe cumpre, assumptos que a lei fundamental tornou tão distinctos e tão distantes, quanto a irresponsabilidade dista e se distingue da responsabilidade, desempenhar-se-ha da sua dupla e difficil missão com todo o respeito devido a Vossa Magestade e simultaneamente com a independencia que, como primeiro dever, incumbe aos livres representantes de um povo livre.

«A nação, toda unanime, quer e protesta manter, tal qual o estabeleceu a lei fundamental do estado, o governo monarchico, hereditario, representativo. A augusta dynastia de Vossa Magestade, pela qual em epocha pouco distante ainda a nação pelejou e venceu em nome da legitimidade do throno e da liberdade da patria, encontra sempre em todo o paiz o mesmo amor, e, quando as circumstancias o exijam, despertará o mesmo enthusiasmo, levantará igual dedicação, garantias seguras de igual exito. Dos heroes que combateram, muitos vivem ainda; dos que a lousa do sepulchro cobriu, existem os filhos e os netos, dignos e leaes herdeiros das tradições de familia. A nação é a mesma. A nova geração, não cedendo em esforço á antiga, empenhar-se-ha espontanea em todos os sacrificios, para que não seja nem um momento abalado o edificio a tanto custo erguido.

«É esta a vontade nacional. O Rei póde confiar na nação, e urge, é indispensavel, que confie. Quando apparecem, posto que raros e isolados, alguns desvarios de imaginações escandecidas, cumpre que os representantes da nação venham perante o Rei affirmar os sentimentos do povo. Não se transforme em perigo real o que por emquanto só é infundado e imaginario. Attenda-se a lição da historia; aproveitem-nos os exemplos de outros paizes. As primeiras demonstrações de desgosto de um paiz dirigem-se unicamente contra os ministros executores que as provocam e produzem. Quasi sempre tambem estes aproveitam, como meio de conservação do poder, as manifestações que se erguem a ameaça-los, figurando-as mais alto dirigidas e tendentes á subversão das monarchias. Só ahi está o perigo. Se os ministros, unicos ameçados, conseguem illudir, a solidariedade estabelece-se, e quando o Rei começa a desconfiar do povo, é seguro que o povo acaba por não confiar no Rei. A conservação dos ministros produz infallivel a convulsão, que o procedimento contrario sem duvida evitaria.

«Os eleitos do povo respeitosa, mas claramente, ponderam a Vossa Magestade, que, a par dos sinceros sentimentos de amor e dedicação de todo o povo portuguez pelo seu Rei, lavra, profundo, crescente, e hoje aggravado em todo o paiz, immenso desgosto pela habitual organisação do poder executivo, que, girando fatalmente entre poucas e sempre as mesmas mãos, parece encerrado n'um circulo vicioso, em que sempre é o mesmo, sendo só apparente e sempre illusoria a mudança. Fóra d'esse circulo, e contra elle, está o paiz afflicto e descrente, mas protestando ha muito contra a viciosa organisação de um poder executivo, que, não merecendo nem podendo esperar a confiança da nação, inaugurou, como systema unico, em vez do respeito e cumprimento da lei fundamental do estado, o sophisma e a violação das suas disposições mais importantes, não consentindo que a vontade nacional appareça em côrtes livremente representada, e pesando sobre os eleitores com o abuso de todas as leis para que em côrtes appareça em grande maioria a falsa e illusoria representação, em que, ainda assim, se não traduz a confiança real nos ministros, mas só e apenas o preço dos favores e das violencias, que durante a luta eleitoral elles fizeram, sacrificando a justiça e todas as leis de administração. »

Agora, nos periodos seguintes, começa a referencia á celebre questão das conferencias democraticas. Antes d'isso preciso eu de entrar, ainda que com pequeno desenvolvimento, em algumas considerações geraes.

Eu sou liberal por herança, por convicção, por todos os principios de dignidade da rasão humana, por todos os motivos e por todas as rasões que podem actuar na intelligencia de um homem, quer essa intelligencia seja grande e verdadeiramente superior, como é a de todos os meus collegas, quer seja limitada e infelizmente inferior, como é a minha.

Quando digo «sou liberal», não desço ás divisões dos diversos partidos, não considero as diversas escolas, prescindo de toda a differença de doutrinas politicas ou economicas. Debaixo d'este ponto de vista não distingo conservadores nem progressistas, moderados nem exaltados, aristocracia nem democracia, escolas de protecção nem de livre cambio; não considero mesmo differenças mais radicaes, nem incompatibilidades absolutas; colloco a questão superior a todas as divisões e subdivisões de idéas e de principios, acima de todas as divergencias, respeitando em todos igualmente a maxima liberdade de opinião. Quero que todos pensem e sintam, e communiquem as suas idéas e pensamentos, como eu quero pensar e sentir, e communicar o que sinto e penso. Assim sou igualmente liberal para todos os principios, para todas as idéas e para todas as manifestações.

Mas, a par da maxima liberdade para todos, eu quero e não prescindo das leis, sem as quaes sociedade alguma póde sustentar-se nem existir (apoiados). Para fazer as leis quero a maxima liberdade, e para as executar e fazer cumprir a todos desejo e quero o maximo rigor (apoiados). Só assim podem coexistir a liberdade e a ordem, porque eu não proclamo nem quero a licença, nem o desaforo, nem a anarchia (apoiados).

Como o cidadão da antiga republica romana, é livre todo o homem que não obedece á vontade de nenhum outro homem, mas que só obedece á lei em que consentiu ou tomou parte, e que é resultado da vontade da maioria. É assim que eu entendo a liberdade; é assim que eu sou liberal. São livres todos os actos; são tão livres, como o proprio pensamento, todas as manifestações do pensamento; ao mesmo tempo são reprimidos e punidos, em harmonia com as leis, todos os abusos e todos os delictos que a lei anterior, livremente consentida, prohibir e declarar criminosos e puniveis (muitos apoiados).

Por isso, como liberal, desejo que o paiz, elegendo liberrimamente, possa fazer apparecer aqui, na representação nacional, a verdadeira expressão da sua vontade. Quero que legisle a vontade da maioria, e que depois as leis votadas por essa maioria sejam executadas e cumpridas com o maximo rigor, tanto por aquelles que as votaram, como por aquelles que as combateram (apoiados); e quero tambem que se deixe ao mesmo tempo campo aberto para que aquelles que combateram e foram vencidos possam, por meio da discussão das suas idéas, conquistar o favor da opinião, empregando os meios de illustrar e de convencer a propria maioria que os venceu. Cumpre deixar sempre aos vencidos toda a esperança de poderem pelos meios legaes fazer substituir as leis votadas pelas modificações por que elles pugnavam (apoiados). Não se revolta, não appella para esse recurso extremo, quem póde no campo legal obter o triumpho das suas idéas e das suas opiniões.

Ao mesmo tempo que sou liberal para querer o systema representativo tão genuino e puro, como é possivel praticar-

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se, declaro a v. ex.ª que não só dentro d'esta casa pelo respeito ao juramento que prestei, mas fóra d'ella e em toda a parte, tanto por convicção e em principio, como pelos dictames do bom juizo e pela observação da nossa sociedade e pela experiencia de outras nações, eu quero e desejo igualmente que no meu paiz se conserve a monarchia constitucional.

Não posso de certo, como o sr. Telles de Vasconcellos, apresentar aos meus collegas, nem allegar em meu favor, a notavel garantia e segura prova de ter sido guarda nacional em 1846 ou 1848, e d'essa falta tenho sincero pezar, que humildemente confesso. Apresento porém outras provas dos meus sentimentos, dos quaes creio que ninguem duvida (apoiados), e dos quaes de certo ninguem tem direito para com algum fundamento duvidar.

Na minha vida publica tenho dado todas as provas possiveis, e se não são muitas, é porque para mais se me não tem proporcionado ensejo. Creio que me é licito allegar tambem as tradições de familia (apoiados). As duas casas que eu hoje represento, ambas ellas se sacrificaram pela conquista da liberdade da patria, e para pelejar a favor da legitimidade do throno. A minha familia tomou parte em todas as lutas da liberdade, e para a conquistar empenhou-se espontaneamente em todos os sacrificios (apoiados).

Posso ir mais longe: meu avô paterno morreu na cadeia, victima da perseguição contra os liberaes; meu avô materno vive ainda, mas os seus padecimentos e uma bala no corpo ha quarenta annos attestam hoje, e attestarão em quanto elle viver, de um modo visivel e irrecusavel, o seu patriotismo e a sua dedicação (apoiados). Meu pae e meu tio pelejaram com distracção no cerco do Porto (apoiados) pela actual dynastia e em favor da liberdade. Ambas as casas estiveram confiscadas, e seus donos pagaram renda para habitarem nas propriedades que eram suas! Quem representa estas tradições, não as desmente nem as renega sem desmentir e renegar a propria dignidade do seu nome (muitos apoiados).

Eu devo confessar, ou antes tenho verdadeiro e legitimo orgulho em poder affirmar, que todos aquelles de quem descendo, e que honraram os meus appellidos de familia, nunca se distinguiram pela brandura do animo, nem se tornaram recommendaveis em tempo algum pelas suas disposições ao servilismo. Todos se distinguiam pela força da paixão nas lutas politicas, travadas a favor da liberdade do homem e da felicidade da patria (apoiados). Era virtude então, chamava-se esforço e coragem, o que hoje é crime e constitue motivo para prisão preventiva, n'este systema liberal, inventado e executado, com fundamento nas portarias de 1845, pelos delegados do sr. marquez d'Avila e de Bolama! (Muitos apoiados.)

Havia de ser realmente curioso ver estes homens prestantes, que nunca se apaixonam, e que sempre tratam tão friamente de todas as cousas publicas, encarregados de pelejarem elles sós com os seus notaveis distinctivos no cerco do Porto e nas lutas da liberdade, em que se conquistaram e fizeram triumphar estes principios, que todos nós hoje gosâmos, e de que nos quer espoliar, estabelecendo precedentes funestos, o sr. marquez d'Avila e de Bolama! Se este paiz fosse exclusivamente composto d'esses homens, que nunca se apaixonam, porque o calculo e o interesse lhes transformam o temperamento, podia dizer-se que até o sr. marquez d'Avila imperaria absolutamente aqui, como podia imperar em Bolama ou em Bujagoz, rodeado de servos submissos e de cortezãos complacentes (apoiados). É licito esperar que a patria não desça a tal abatimento.

Ha, felizmente, homens que se apaixonam, cidadãos que velam pela manutenção dos fóros da liberdade, e que não só se exaltam, mas depressa se revoltariam contra toda a tyrannia. Estes sentimentos não são exclusivos da minha ou de outra familia; são de todo o paiz e de todas as familias (apoiados). Se o opprimirem, depressa verão o resultado, e eu poderia responder principalmente por toda a minha provincia, que se ergueria, como em outras epochas, sempre que fosse

preciso recorrer ás armas, para não deixar perder a liberdade que tantos sacrificios custou. Se o norte do reino é quasi sempre o primeiro a dar o exemplo, as outras provincias não tardam a imita-lo.

E creio que até o sr. marquez d'Avila e de Bolama se convencerá facilmente de que quem está habituado a lutar e a sacrificar-se para combater e derrubar tyrannias serias e terriveis, pela força que representam e pelos meios que empregam, não póde hesitar em lutar tambem para destruir uma tyrannia que ao menos, por emquanto, longe de ser terrivel e assustadora, não sei se lhe possa chamar apenas comica, e assim a designarei, se v. ex.ª me permitte a expressão, aliás retiro-a, mantendo a idéa que não sei exprimir por diversa fórma.

O paiz quer a liberdade, a ordem, a força da lei, mas só da lei, igual para todos, e todas estas aspirações se realisam e devem realisar na monarchia representativa.

Estas declarações devem ser feitas por todos os partidos, e cumpre mesmo que as façam explicitas e claras no parlamento, para que se não deixe ensejo nem pretexto a intrigas mesquinhas e vis, que na historia das monarchias algumas vezes têem produzido funesto effeito (apoiados).

Eu reputo util que todos se acautelem contra a possibilidade de serem apresentados os seus partidos como ameaça permanente á monarchia e á dynastia. Sabe-se que alguns são denunciados ao poder moderador como anarchistas, communistas e petrolistas. Por mim respondo eu, e nunca consentirei que se me attribuam outras idéas alem das que eu proclamo e sustento, definindo-as com a clareza sufficiente para que todos as conheçam e possam apreciar. Eu digo o que quero, e se quizesse cousa diversa, se professasse idéas differentes, eu as proclamaria sem a menor hesitação (apoiados). Sou liberal nos termos em que o deixo declarado. Prefiro praticamente a todos os systemas conhecidos o systema monarchico-representativo, como a nossa lei fundamental o estabeleceu. Actuam soberanamente no meu espirito, a favor da monarchia constitucional, todas as tradições de familia, a que me referi, e que são como religiosas para a alma de um homem que em si respeita e preza a memoria dos seus (apoiados); e actuam igualmente, com não menor força, e no mesmo sentido, todas as considerações e todos os argumentos, que a propria rasão me suggere, sempre que penso e medito, conforme m'o consentem os limitados recursos de uma intelligencia inferior, nas lições da historia e nos exemplos de outros paizes, considerando simultaneamente as circumstancias geraes da Europa e as especiaes do nosso povo, a sua indole, o seu estado de civilisação e de instrucção, e principalmente os seus habitos e costumes politicos. Ainda que eu em theoria tivesse idéas republicanas as mais exaltadas, bastava-me o simples juizo para as desvanecer completamente como sonhos irrealisaveis. O senso commum não consente, a quem tem juizo, persuadir-se que basta mudar as instituições para realisar as suas aspirações e para ter na pratica o que em theoria o seduz. Das cogitações do espirito humano á realidade das cousas vae larga distancia, e o philosopho que no remanso do seu gabinete de estudo facilmente previne todas as objecções e resolve todas as difficuldades theoricas, ver-se-ía embaraçado na execução pratica, e succumbiria sem duvida perante as primeiras difficuldades que lhe oppõe a sociedade, não preparada para receber os seus suppostos beneficios, ou adversa ás reformas com que intempestivamente ou contra a sua vontade quizesse dota-la á força, ainda que sempre em nome da liberdade. É assim que a França duas vezes conseguiu, e não só conseguiu, mas solicitou e agradeceu, largos annos de despotismo em troca de duas rapidas experiencias de supposta republica, a qual se manifestou principalmente pelos horrores, excessos e violencias da anarchia, que sempre acompanha, com mais ou menos força e com duração mais ou menos larga, a transição rapida e violenta de um para outro systema de governo (apoiados). Para trocar a monarchia liberal pelo

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despotismo de qualquer general, que se faz acclamar imperador depois de alguns mezes de presidencia republicana, não nasci eu com certeza, e creio que o simples juizo a ninguem o consente (apoiados).

É assim que eu penso, e por isso entrei n'estas considerações, tendo-me referido com bastante desenvolvimento, na substituição ao projecto de resposta, a este mesmo assumpto.

A todas estas considerações posso ainda acrescentar outra, e essa é puramente pessoal.

Eu aceitei de Sua Magestade uma graça muito superior aos meus merecimentos e a tudo o que eu podia esperar.

Não a uso, para o que muitos a usam, nem a aproveito nem a quero para inuteis demonstrações, que poderiam talvez lisonjear-me a vaidade, se eu a tivesse, mas que não seriam prova bastante da sinceridade de sentimentos, que eu sei affirmar e provar por outro modo, se for necessario affirma-los e prova-los.

Para tomar parte em paradas e comprimentos, apparecendo no paço e nas festas publicas, sempre que a isso convida o Diario do governo, não é preciso, creio eu, grande esforço. Essa prova de dedicação pela dynastia não a posso eu apresentar, porque esse simples facto para mim nada prova. Eu penso assim, reconhecendo nos outros pleno direito para pensarem e procederem como muito bem quizerem. Fujo de comprimentos, porque entendo que a minha presença em taes actos poderia ser importuna, nunca póde ser util. Mas ao mesmo tempo eu sei comprehender os meus deveres, sei cumpri-los, e posso dizer que sou d'aquelles que não evitam nem abandonam o seu posto quando o dever os obriga. Se a occasião se offerecer, os meus esforços não hão de fallar. A intelligencia, o braço, todos os recursos de que eu disponha, hão de apparecer, sendo necessarios, para defender a dynastia, e estou certo que não serei eu quem n'esse ponto desminta as tradições de toda a minha familia (apoiados).

São os meus votos, para que o perigo nunca chegue, mas se chegar contra a vontade e contra os desejos de todos nós, eu estimarei muito ver, na occasião do perigo, marcharem na vanguarda, pegando em armas para defender o rei e a familia real alguns que agora facilmente se jactam de mais liberaes e de mais dedicados. Estou certo de que entre nós seriam plenamente desmentidos os tristes exemplos de outras epochas e de outros paizes, cuja historia ensina que os que mais se approximam na prosperidade são os que mais se desviam e mais promptos desapparecem na hora da desventura (apoiados).

Portanto não é uma asserção inutil a que eu faço em meu nome. Pelo contrario eu entendo, que seria uma asserção conveniente a todos os partidos affirmar que todos elles desejam e querem manter o systema monarchico — representativo, como a carta o estabelece, embora algum partido queira, como eu quero, que o poder executivo seja muito differente do que tem sido até hoje, e até, sendo possivel, que seja o contrario do que é o governo actual (apoiados).

Firmados estes principios, franca e claramente expostas e definidas as idéas que professo, entro sem o menor receio na celebre questão das conferencias do casino, e não temo as ameaças nem as insinuações com que o sr. marquez d'Avila se tem dignado divertir a nossa attenção, imaginando fazer-nos acreditar, que todos os que a este respeito censurarem o governo, se tornam desde logo suspeitos de communistas e de socios da internacional (apoiados). Eu peço a s. ex.ª que se não assuste por minha causa, que não receie pelo meu credito, nem pelo de nenhum dos membros d'esta casa (muitos apoiados). Dos motivos de susto, que tanto parecem impressiona-lo, eu só posso rir-me, e nada mais é preciso. Suspeitem-me, accusem-me de anarchista, de communista, de inimigo da ordem publica e da propriedade individual: taes suspeitas e taes accusações hão de fazer rir os outros, como me fazem rir a mim (apoiados). Não podem produzir outro effeito (apoiados). Tranquillise, pois, o sr. ministro do reino o seu muito esclarecido espirito, que quem tem os meus precedentes, o habito do trabalho, a posição social, os laços de familia, a sua fortuna vinculada á terra do seu paiz, está muito superior a suspeitas tão ridiculas, que nem offendem, porque o juizo humano não se perdeu ainda, nem póde voltar se a ponto de poder reputar-se inimigo da propriedade um proprietario, inimigo da ordem quem na anarchia só póde perder, inimigo do trabalho e das suas legitimas consequencias quem tem trabalho assiduo e vida laboriosa (muitos apoiadps).

Ácerca das conferencias escrevi o seguinte:

«A que ponto todo o paiz distingue o excellente Rei dos maus ministros, acaba de ver-se a toda a luz da evidencia em um facto recente. Abriram-se umas conferencias politicas, facto naturalissimo em todos os paizes em que a manifestação do pensamento não está, como não póde estar entre nós, sujeita a restricção preventiva de nenhuma especie. Os ultimos acontecimentos da Europa podiam ser motivo ou pretexto para perturbar em animos timidos a luz da intelligencia, necessaria a todos, aos governos indispensavel. Os ministros de Vossa Magestade filiaram as conferencias em doutrinas subversivas, considerando-as ramificação de sociedades perigosas. Foi espontanea, grande e sincera a indignação do paiz; e tamanha foi que a maioria dos cidadãos, illudida pela apparencia, applaudiu o acto arbitrario, tão inutil como despotico, com que o poder executivo fechou as portas da sala d'essas conferencias.

«É esta a maior prova do amor do povo pelo seu Rei. Apenas se fallou em aggressão ao throno, em hostilidade á religião e á dynastia, o sentimento publico applaudiu até a medida illegal, que se tomava contra os aggressores. N'um paiz, que assim procede, a monarchia póde e deve descansar, tranquilla e segura, nos sentimentos da nação.

«É licito duvidar da exactidão, com que o governo classificou perante o paiz conferencias e conferentes. A simples affirmativa do poder executivo não basta em factos, cuja prova as leis tornam dependente de autos de investigação administrativa, confirmados por sentenças do poder judicial, com intervenção do jury, essencial garantia dos povos livres. A divisão e independencia dos poderes politicos é o principio conservador das liberdades e da ordem publica. A invasão de poderes, a confusão de attribuições, nunca se justificam, por mais justas que sejam ou pareçam a causa e a intenção, porque attentam contra a lei escripta no pacto fundamental, e criam precedentes que podem ser fataes á liberdade.

«Se fosse inteiramente exacta a classificação do governo sobre a natureza das conferencias, o seu procedimento mais contrario teria sido ainda ao seu dever legal. Se houve crime, o governo concedeu, contra a lei, a impunidade; permittiu, para usar o systema arbitrario da prevenção, a existencia e a continuação do crime, que a final deixou impune. Se respeitasse a lei constitucional, se usasse o systema de repressão, unico legal, o crime, apenas tivesse principio de manifestação, impossibilitado de continuar, encontraria immediatamente o principio da sua punição em harmonia com as leis.

«O § 3.º do artigo 145.° da carta constitucional da monarchia estabelece a repressão contra os abusos commettidos, mas prohibe a prevenção contra a possibilidade de abusar. Este ultimo systema é, sempre foi, a tyrannia, o despotismo. Os que n'eate seculo ousam affirma-lo e segui-lo, queiram ou não queiram, declarem-se ou disfarcem-se, são sempre os partidarios da censura previa, os sectarios da inquisição, os defensores do silencio contra a palavra, das trevas contra a luz, da oppressão contra a liberdade, da fogueira e do potro contra os progressos da rasão humana. Este paiz não retrograda. Se parar é morrer, retrogradar é reunir á morte a affronta e o opprobrio.

«Esta camara deplora todos os desvarios e protesta concorrer, quanto possa, para que se reprimam e sejam punidos todos os abusos commettidos no exercicio do direito de

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manifestação do pensamento, mas quer e protesta sobretudo manter illeso e liberrimo o exercicio d'esse direito.

«Segundo as leis actuaes, um delegado do poder executivo, a auctoridade administrativa, podia e devia assistir ás conferencias. O conferente que, abusando do direito de livre manifestação do pensamento, commettesse crime contra as leis do reino, podia ser preso em flagrante delicto, e devia ser immediatamente remettido ao poder judicial com a informação do delicto commettido e das testemunhas que o presenciaram. A auctoridade administrativa não póde ir mais longe sem se trocar a liberdade pela tyrannia.

«Se os meios de repressão nas leis actuaes são, e talvez sejam, insufficientes, a camara dos deputados da nação cooperará na reforma da legislação vigente, para que a punição dos abusos seja sempre segura, prompta, proporcional e sufficiente. Aos representantes da nação pertence velar e legislar para que as instituições não periguem, e tambem para que o poder executivo não abuse. D'esta dupla missão procurará a camara desempenhar-se, realisando para com Vossa Magestade os desejos do paiz, e separando para isso o respeito devido ao poder moderador da severidade indispensavel para com o poder executivo.»

Entendo que esta é a unica resposta, que póde e deve dar uma camara a um presidente do conselho de ministros, que tem a audacia quasi insensata de vir declarar em pleno parlamento: Pensem como quizerem, mas contentem se com isso! Não manifestem, não tentem fazer propaganda, não queiram adquirir sectarios para as suas doutrinas. Pensem como quizerem, mas contentem-se com isso; n’esta epocha o primeiro dever dos governos é perseguir o desregramento das palavras e das idéas.

Foram estas as palavras que eu ouvi (apoiados).

Contentem se com isso! Contentem-se com pensar como quizerem! Note bem a camara; a liberdade de pensar era ainda um favor que o governo concedia! Era uma generosa liberalidade, era uma excepção aos seus principios, era uma infracção ao seu dever, desde que ameaçava ainda perseguir o desregramento das idéas!! (Apoiados.)

A que epocha nós chegámos! Em que parlamento do mundo seria possivel proferir-se uma asserção assim?! (Apoiados.) Em nenhum (apoiados). Esta heresia nunca se ouviu, e não póde ficar impune (apoiados).

Eu desejava ver o sr. marquez d'Avila e de Bolama avançar uma tal proposição perante o parlamento da Inglaterra, nação mais fria por natureza, onde portanto todas as paixões são menos violentas, e todos os sentimentos mais temperados, mas onde ao mesmo tempo se comprehendem e respeitam, e se obrigam a respeitar, os direitos do homem e os principios da liberdade. Se esta heresia ali fosse proferida por um ministro da corôa, a resposta immediata havia de ser cruel (apoiados).

Chega realmente a parecer impossivel como o sr. marquez d'Avila e de Bolama nega perante o parlamento toda a legislação do paiz, desde o § 3.º do artigo 145.º da carta constitucional da monarchia até ao codigo civil ultimamente publicado!

Não sei se s. ex.ª a ignora, e portanto se a offende involuntariamente, ou se a conhece, e então affirma o deliberado proposito de a rasgar e violar. Mas para o caso é o mesmo (apoiados), e quer a ignore, quer a conheça, o seu procedimento é sempre illegal e revoltante (apoiados). Esta legislação todos a conhecem, todos a respeitam, e todos sabem que foi ímplantada n'este paiz á custa dos maiores sacrificios. A um ministro da corôa não é licito ignorar, e muito menos offender, os principios fundamentaes da liberdade que se acham claramente escriptos nas leis do paiz, em que por fatalidade governa (apoiados).

O § 3.° do artigo 145.° da carta constitucional diz: «Todos podem communicar os seus pensamentos por palavras e escriptos, e publica-los pela imprensa, sem dependencia de censura, comtanto que hajam de responder pelos abusos

que commetterem no exercicio d'este direito, nos casos e pela fórma que a lei determinar».

A ultima lei, o codigo civil portuguez no artigo 362.° diz: «O pensamento do homem é inviolavel». Eu pensava que esta disposição podia dispensar-se, e persuadia-me de que o pensamento seria inviolavel, mesmo sem esta prescripção legal (apoiados). Conheço e confesso agora o meu equivoco, e fico mesmo sabendo que a inviolabilidade só subsiste, emquanto o sr. marquez d'Avila e de Bolama não quizer violar-nos o pensamento para perseguir o desregramento das idéas, segundo o que elle reputa primeiro dever dos governos n'esta epocha (apoiados).

O mesmo codigo civil, no artigo 363.°, diz: «O direito de expressão é livre, como o pensamento; mas o que d'elle abusar, em prejuizo da sociedade ou de outrem, será responsavel na conformidade das leis».

O codigo civil não faz mais que consagrar e repetir as disposições da lei fundamental do estado (apoiados). Collocou estes direitos entre os originarios, que são os que resultam da propria natureza do homem, e como taes se consideram fonte e origem de todos os outros.

São estes principios, pelos quaes se batalhou e venceu, que nós precisâmos hoje de affirmar a um governo que os desconhece, ou que ousa nega-los (apoiados).

Nós affirmâmos que queremos todos os abusos punidos, e que se as leis actuaes forem deficientes, estamos promptos a reformar a legislação vigente, a fim de assegurarmos a punição de todos os crimes e de todos os abusos; mas affirmâmos igualmente, e com mais força ainda, que queremos manter o exercicio d'este direito, aos que não abusam e aos que abusam, tanto a uns como a outros, pleno e absoluto. Se o abuso se manifesta, queremos punição segura, prompta e severa (apoiados). Emquanto o abuso não existir, não admittimos restricções. Basta punir o homem porque elle, faltando, abusou, e basta que o castigo venha quando o abuso se praticou. Mas não é admissivel, nem é necessario prohibi-lo de fallar, só pela suspeita ou pela possibilidade de que elle poderá commetter um crime. Espere-se a realisação do crime para então o punir, e não se puna antecipadamente com o futil pretexto ou simples declaração de que o crime poderia existir (apoiados).

Eu não sinto só verdadeira dor, sinto até pudor e vergonha de me ser preciso affirmar estas verdades a um governo n'este paiz (apoiados).

A tudo isto o sr. presidente do conselho apenas responde: «Proclamava-se contra a religião e contra a monarchia, e os senhores queriam as portas d'aquella casa abertas para se prégarem estas doutrinas?

Esta argumentação é verdadeiramente desgraçada (muitos apoiados).

Não queremos taes doutrinas, s. ex.ª é que as quer, ou ao menos que as consentiu. Se alguem as pregou, foi unicamente s. ex.ª, que, com a sua imprevidencia, consentiu esse prégar durante muitos dias, devendo faze-lo cessar no primeiro momento em que se manifestava. O unico culpado é s. ex.ª, porque não soube ou não quiz cumprir nem fazer cumprir a legislação vigente, e porque só soube e só quiz deixar claro e patente um crime do governo, encobrindo um crime particular, que hoje denuncia sem provas, tendo obrigação de as colligir e de as apresentar.

S. ex.ª é tão culpado das blasphemias e crimes que se praticaram no casino, se por acaso se praticaram, como é culpado da existencia de uma imprensa devassa e immoral, que s. ex.ª deixa sustentar com os ordenados dos seus empregados de confiança, depois de inteiramente informado pelos seus governadores civis de que é esse o destino dos ordenados de alguns empregados, e de quaes são as ruins paixões que alimentam tal publicação. Refiro me ao Trovão da Beira.

É s. ex.ª tão culpado dos crimes do casino, se elles existiram, como é culpado das calumnias que aquelle jornal quotidianamente dirige a todos os empregados e a todas as

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auctoridades ecclesiasticas e civis, judiciaes e fiscaes, do concelho de Arganil.

Parece realmente que s. ex.ª não tem delegados nem conhece as leis para as fazer cumprir, mas só para as violar e offender. Não sabe que as leis deixam a todos a possibilidade de abusar, exigindo porém a responsabilidade pelos abusos commettidos. Por isso pratica-as ás avessas, e ao mesmo tempo que contra a lei expressa tenta prohibir a possibilidade de abusar, negando, que seja licito a cada um exprimir o seu pensamento, não levanta autos, não apresenta provas, não manda instaurar processos, e dispensa a responsabilidade dos abusos já commettidos, concedendo contra a lei a impunidade, em vez de tornar effectiva a punição que a lei determina (apoiados).

O ministro do reino tinha obrigação, apenas se abriu a primeira conferencia, de mandar para ali um delegado seu que assistisse ao que se dizia n'essa conferencia. Devia mandar uma auctoridade administrativa intelligente, que conhecesse as leis do paiz melhor do que s. ex.ª tem mostrado conhece-las, se não podesse ser tanto, quanto s. ex.ª tem mostrado ignora-las. (Vozes: — Muito bem.)

Quando esse seu delegado presenciasse que o crime principiava a manifestar-se, devia tomar as providencias necessarias; e como se dava o caso de flagrante delicto, podia até dar ordem de prisão ao criminoso, tomar testemunhas, levantar o auto de investigação, e remetter ao poder judicial o individuo, o auto e a indicação das testemunhas. É isto que se faz em todos os paizes para manter a liberdade e livrar a sociedade de todos os perigos e de todos os abusos. Não é preciso mais do que isto. Basta o systema de repressão; é inadmissivel o systema de prevenção (apoiados). O sr. ministro do reino encontrava estabelecido em todas as nossas leis o systema de repressão, e não tinha em lei nenhuma o systema de prevenção. Violou as nossas leis para estabelecer um systema arbitrario, systema que deu em resultado poder o crime, se por acaso o crime existia, continuar por largos dias (apoiados), e ficar afinal impune, duvidando-se da sua existencia, porque o governo diz que houve crime, mas não apresenta um unico auto; nenhum principio de processo; legalmente ignora-se o que se passou. Crime evidente, provado, irrecusavel só apparece perante nós o que houve da parte do governo e dos seus delegados (apoiados).

É facil ao governo levantar-se e dizer — accusam-me, e eu livrei o paiz do contagio de doutrinas subversivas, livrei-o dos horrores da communa! Em vez de livrar o paiz d'esses horrores, se por acaso elles existissem, só tinha a culpa de os ter deixado substituir por largos dias, violando para isso á lei; emquanto que, cumprindo-a, teriam cessado no momento da primeira manifestação. Ao mesmo tempo que, por um acto arbitrario e despotico, mandava fechar a casa, em vez de promover a punição, decretava tambem a impunidade para os criminosos, se criminosos havia, deixando o crime occulto e sem a menor averiguação da existencia do facto criminoso (apoiados).

Eu pergunto se a auctoridade administrativa, que informou o sr. ministro do reino, levantou algum auto de investigação que remettesse ao delegado do procurador regio? Não consta. Pergunto se o governo mandou por esse delegado promover alguma accusação? Não consta, ou antes consta o contrario. O que appareceu na imprensa foi, que aquelles que eram accusados de criminosos protestaram pela sua innocencia, e chegaram ao recurso extremo de implorar, como um favor, do sr. ministro do reino, que os mandasse processar (apoiados). O sr. Ministro do reino tinha mais medo do poder judicial, do que aquelles que o governo apontava ao paiz como criminosos. Estes só pediam que os mandassem para o poder judicial; o governo fugia d'esse poder...

Uma voz: — Respondia que não havia que deferir.

É a jurisprudencia de Arganil. O requerer em termos, estar preso para averiguações, não haver que deferir, é a jurisprudencia do sr. marquez d'Avila, é toda a sciencia do seu governo.

A injuria feita pelo sr. ministro do reino dirigiu-se a todos os partidos d'este paiz, mas foi mais directa a um d'elles. Eu tomo o seu procedimento e as suas declarações como o maximo insulto que podia fazer-se aos sentimentos liberaes de todos nós (apoiados), e creio que esta camara não póde deixar de votar uma moção de censura pelos actos praticados pelo governo em relação ás conferencias no casino, e pela sua doutrina affirmada n'esta casa, doutrina illegal, que é uma affronta suprema a todos os sentimentos de liberdade (apoiados).

A estreiteza do tempo obriga-me a resumir as minhas reflexões, e reservar-me-hei para a interpellação que a este respeito está annunciada.

Terminando quanto a este ponto, creio ter demonstrado a toda a luz da evidencia, que, defendendo a liberdade de manifestação do pensamento, sou mais contra os abusos e crimes commettidos no exercicio d'esse direito do que o sr. ministro do reino; e que não é applicavel a mim, nem a nenhum de nós, a invectiva que s. ex.ª nos dirige, como unico argumento, quando nos interroga querem que se prégue á porta aberta contra a religião do estado e contra a dynastia?

Não queremos: de certo, e por isso reprovamos o procedimento do governo que deixou prégar. Queremos a execução das leis, e o cumprimento da lei bastava para que constasse legalmente o crime, se crime existiu, e para que se verificasse a sua punição. Não queremos o que fez o governo, e que consiste em deixar prégar; em não, levantar autos; em não mandar instaurar processos; em não se saber legalmente se houve ou não houve crime; em decretar a impunidade, se o houve; em punir antecipadamente; se o não houve; e finalmente em commetter um crime proprio, tão inutil como revoltante, prohibindo de fallar, em vez de punir os abusos que pelo uso da palavra se commettessem (apoiados).

A invectiva do sr. Marquze d'Avila só contra s ex.ª póde voltar-se (apoiados)}. Este seu triste recurso oratorio; que só poderia impor á ignorancia do vulgo, quebra-se e fica perdido n'uma assembléa de homens illustrados. (Vozes: - Muito bem.)

Entro agora em considerações geraes sobre as attribuições do poder moderador, organisação do executivo, independencia do primeiro que na pratica reputo sophismada, e quasi como não existindo, representação nacional, e estado do paiz em relação ás cousas politicas. A simples leitura basta, e prescindo de qualquer desenvolvimento, porque o tempo não chega para o fazer completo.

«Das altas prerogativas que ao poder moderador conferem, com mais ou menos largueza, as constituições de todos os paizes regidos pelo systema monarchico representativo, não é raro ver o monarcha abusar, invadindo a esphera dos outros poderes é usurpando-lhes as legaes attribuições. Vê-se entre nós exactamente o contrario, e toda a nação o sabe e proclama, fazendo a Vossa Magestade a justiça de o admirar como modelo de moderação no uso do poder, que privativamente lhe pertence pela carta constitucional da monarchia.

«Mas emquanto o poder irresponsavel, longe de abusar, nem mesmo ás vezes parece usar bastante, o poder responsavel, o executivo, invadindo e encobrindo-se sob a irresponsabilidade alheia, abusa, afflije e opprime a nação, cujo desgosto principiou ha muito, e hoje está proximo do termo em que a indignação começa.

«É tempo ainda, mas é já tempo, de não deixar fugir mais uma vez o momento, que póde nunca mais voltar.

«Deve na representação nacional apparecer a vontade do paiz livremente manifestada, e da maioria dos representantes formar-se o governo. Manda Vossa Magestade consultar a vontade nacional; quer que ella se manifeste livremente; e quer tambem da maioria formar o governo. Á

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vontade e aos desejos de Vossa Magestade oppõe-se o governo anteriormente formado, que invocou e obteve a dissolução por não ter maioria, e que, em regra, de antemão sabe que a não póde ter, se o paiz, livremente consultado, apparecer legitimamente representado. Por isso o governo não consulta o paiz; unicamente, a pretexto de o consultar, fórça, corrompe, violenta e opprime os eleitores, porque longe de querer, como Vossa Magestade, que a vontade nacional se manifeste livremente para a maioria formar governo, só promove e só consente que appareça eleita uma maioria que o venha apoiar a elle governo que está formado. A administração, suspensa para tudo mais, só para este fim trabalha com notavel actividade.

«Este systema, deploravel sophisma, praticado durante longo tempo, enervou, e em parte destruiu, as forças do paiz para a politica activa. Grande parte da nação, a mais importante talvez, já não elege nem se deixa eleger. Os eleitores abandonam a urna; este facto é bem sabido. Os elegiveis,— não os que procuram, mas os que costumam ser procurados, — escusam-se ou recusam-se á eleição. Descreram da efficacia d'este meio: natural é que se occupem a procurar outro, certo e seguro, para resolver difficuldades que um paiz nunca deixa sem solução.

«Este facto explica-se facilmente. Desde que o candidato á eleição popular tem de curvar primeiro a cabeça no ministerio do reino; desde que elle tem de attender mais ao favor do ministro do que á confiança do povo; desde que, não o fazendo, tem de sacrificar os seus amigos e de lutar contra as resalvas do recrutamento, contra a elevação ou diminuição dos impostos, contra os favores ou contra as violencias de todas as leis de administração, que o governo, em torpe e immoral veniaga, expõe em hasta publica, como inevitavel alternativa, em que deixa livre a opção, tornando-a só dependente do facto de se votar a favor ou contra o seu candidato; desde que os eleitos, de mais a mais, sabem, que não são chamados a representar a vontade nacional para esta constituir governo, mas só para apoiarem contra a vontade da nação o governo existente, caído o qual terão de apoiar outro peior, ou de ser por elle dissolvidos, para nas mesmas condições repetir o novo ministerio a scena eleitoral do primeiro; desde que a organisação do poder executivo, imitando ou excedendo a immutabilidade da rotação de certos astros na abobada celeste, passa necessariamente, como que obedecendo a ignotas leis de symetria ou monotonia, de umas a outras presidencias, entre poucos e sempre os mesmos individuos, como se só elles fossem o paiz; desde que só estes, quaes conselhos de Veneza, pesam sobre a liberdade e sobre os interesses dos eleitores, não para que livremente se façam representar, mas para que a troco de qualquer preço concedam ao executivo nomeado uma apparencia de representação propria; desde que isto se observa e se pratica invariavelmente, não póde esperar-se, que muitos verdadeiros cidadãos d'este paiz, illustrados, independentes, e pela sua posição mais interessados na prosperidade da patria, se sujeitem nem ás genuflexões perante os ministros, nem a consentir no sacrificio inutil dos seus amigos e vizinhos, nem, e muito menos, á hypocrisia, já talvez vulgar, de falsos protestos e fementidas promessas aos ministros eleitores, com a premeditação de os abandonarem e trahirem, quando appareça momento opportuno de subirem outros ministros, que a seu turno e em breve sejam grandes eleitores tambem.

«E, pois, consequencia necessaria o resultado, que entre nós observâmos — a indifferença absoluta da parte mais sã e mais importante da nação. Salvas excepções, ficam quasi sós em campo os que especulam com todas as lutas eleitoraes; os que as desejam para receber ou negociar os favores que, a troco dos votos, prodigos concedem os governos; os que se não cansam com a repetição, antes se incommodam com a demora das dissoluções, para elles sempre poucas e tardias; os que concedem maioria a todos os governos; os que adoram todas as religiões, tanto a de Christo como a de Mafoma; os que, na presidencia do conselho de ministros, serviriam com igual zêlo Mousinho da Silveira e Passos Manuel, o conde de Basto e o bey de Tunis. É assim que se finge eleger, ao menos na maioria, a ficticia representação nacional.

«Não é o povo. Não é a nação. Não tem culpa a victima, paciente em excesso, de um systema vicioso, longo tempo praticado, o qual produz necessarios o abatimento e a indifferença, de que a nação já não póde erguer-se, a não tentar um esforço violento e supremo. O paiz não tem força para em luta legal reagir e vencer contra o abuso das leis, com que o governo estabelecido entra armado nas convocações eleitoraes.

«Alem d'isso os nomes, que no poder se succedem e que officialmente dirigem as eleições, sempre os mesmos, quasi tantas vezes experimentados, quantas o paiz desenganado e desgostoso d'essas tristes experiencias, não inspiram, nem podem aspirar a merecer a confiança precisa, para que o paiz se levante da indifferença em que jaz, para que desperte e se erga do lethargo em que adormeceu, e muito menos para que, no campo legal, desenvolva a actividade e a energia, sempre grandes nas lutas eleitoraes, mas extraordinarias de difficuldades e de sacrificios, quando cumpre combater, em vez de qualquer influencia individual ou politica, toda a força e todo o peso dos favores e das violencias com que a auctoridade entra na luta.

«O paiz não tem partido. Em menos de tres annos deu maioria nas eleições a todos os grupos, que entre nós se dizem e se apresentam como partidos politicos. Estes partidos não representam a confiança do paiz, porque todos elles, e tanto um como qualquer dos outros, vencem eleições, sendo poder ou sendo auxiliados pelo governo, mas apparecem microscopicamente representados no parlamento, quando o poder os combate na urna. Todos os governos caem, não porque os partidos contrarios tenham força para os derrubar, mas só porque nenhum dos habituaes governos tem força para se conservar. É o paiz que não confia, e portanto que não dá força aos governos, os quaes, ao primeiro abalo ou ao primeiro sacrificio que exigem aos contribuintes, morrem da propria fraqueza.

«As circumstancias reclamam urgentemente a organisação de um governo, em que o paiz confie. É talvez difficil o problema, mas a difficuldade é de certo muito inferior ás luzes de Vossa Magestade e ao amplo poder, que, para a livre escolha dos ministros, lhe foi conferido pela carta constitucional da monarchia.

«Dos chefes dos grupos politicos a lista foi exhausta em repetidas experiencias, todas as quaes deram, sem differença muito sensivel, resultado analogo. Os diversos grupos, cada um do seu lado, divididos e separados por mesquinhas divergencias pessoaes, nem se juntam lealmente, nem cada um isolado póde formar governo que se sustente. O paiz está do outro lado, contra as divisões dos grupos e contra as lutas estereis, em que elles mutuamente se degladiam. Quando ha partidos politicos, que representam o paiz, d'esses partidos deve formar-se o governo. Quando um paiz não tem partidos, fortes e organisados, conhecidos pelas idéas e separados pelos principios, o governo deve saír do paiz, e não póde, sem perigo, formar-se de grupos exclusivos.

«Vossa Magestade encontra nos logares superiores do estado, retirados da politica activa, estranhos ás pequenas dissensões e ás incompatibilidades pessoaes dos ultimos tempos, homens eminentes e profundos, alguns ministros d'estado em epochas mais difficeis, todos os quaes offerecem, como seguro e irrecusavel penhor do seu affecto e dedicação á monarchia, uma vida inteira de sacrificios e de excellentes serviços. Qualquer d'elles, agrupando facilmente em torno de si homens realmente prestantes, que hoje parecem incompativeis, póde desde logo organisar um governo da plena confiança do paiz, ou pelo menos dirigir, sem a perverter, uma eleição geral absolutamente livre,

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pela qual appareça verdadeiramente representada a vontade nacional, desde logo destinada a formar governo. Estranhos a todos os pequenos e ridiculos compromissos de politica pessoal, esses homens nomearão, para os logares superiores de administração, não partidarios seus que dos logares precisem para viver, mas os primeiros homens, desinteressados e independentes por caracter e posição, que sejam estimados e respeitados nos districtos que se lhes confiam. Esses seguirão nos concelhos, para se ampliar ás freguezias, o mesmo systema. A missão eleitoral do governo reduz se então a averiguar em cada circulo, qual é, entre os homens ali conhecidos, respeitados e estimados, aquelle que mais confiança inspira, e cujo voto em côrtes melhor será depois recebido e cumprido pelos eleitores a quem obriga. Este é o unico meio de conseguir que o paiz se sujeite á lei, em que cooperou, e de evitar que elle se insurja contra as leis votadas, como tem frequentes vezes acontecido. O governo promove taes eleições pelos meios conducentes a esclarecer a opinião dos eleitores, abstendo-se porém de toda a intervenção na luta, evitando todos os abusos, não promovendo nem praticando nenhum. O paiz, que se tem prestado a eleger representação dos ministros, seguramente se não recusa a eleger, n'estas circumstancias, a verdadeira representação nacional. Estas côrtes devem ser constituintes, não com poderes illimitados e absolutos sobre todas as instituições, mas sómente sobre aquellas anteriormente declaradas aos eleitores pelo governo, de accordo com Vossa Magestade, que é o primeiro interessado em que a nossa lei fundamental corresponda ás idéas e ás necessidades da epocha.

«Não faltará quem exponha a Vossa Magestade, que com uma camara assim eleita ninguem se entenderá depois. A objecção póde ser mais ou menos fundada, e póde mesmo ser rigorosamente verdadeira, se a palavra ninguem se limitar áquelles que até hoje se habituaram a entenderem-se com as camaras eleitas, para assim levarem o paiz a este estado. É, porém, absolutamente infundada e falsa a objecção em todas as outras accepções. Tal representação, melhor ou peior, é verdadeira; é a representação nacional; é o paiz, em que Vossa Magestade reina, tal qual elle é. Essa representação, se não se entenderem com ella alguns ou todos os ministros, com os quaes o paiz se não tem entendido até hoje, ha de dar ministros á vontade do paiz, que tem direito de os ter á sua vontade; ha de formar governo, que genuinamente represente a confiança do povo, e que ao mesmo tempo seja digno da confiança de Vossa Magestade. Assim estreitam-se os vinculos entre a nação e o seu primeiro representante. Por este meio respeita-se e cumpre-se, por qualquer outro sophisma-se o offende-se, o artigo 4.° da carta constitucional da monarchia, na parte em que elle estabeleceu o governo representativo.

«Mandou Vossa Magestade consultar a vontade do paiz, usando da regia prerogativa que lhe confere o § 4.° do artigo. 74.° da lei fundamental do estado. Esta camara reconhece e respeita as altas attribuições do poder moderador, independente e irresponsavel, que compete privativamente a Vossa Magestade. Mas, tendo de examinar, se a constituição politica do reino tem sido exactamente observada, esta camara faltaria ao dever, que lhe é imposto pelo artigo 139.° da carta constitucional, se não ponderasse a Vossa Magestade, que o § 4.° do artigo 74.° tem restricção expressa, a qual limita a faculdade da dissolução aos casos, em que o exigir a salvação do estado: emquanto que na lei fundamental existe tambem o artigo 17.°, sem restricção alguma, tão constitucional como o outro, no qual se estabelece para cada legislatura a duração de quatro annos. A duração de quatro annos é a regra geral, a faculdade de dissolver é a excepção taxativa e restricta, segundo a carta constitucional da monarchia. A excepção tem-se convertido em regra, emquanto que a regra já nem por excepção se executa. No curto periodo de tres annos, inferior ao da duração constitucional de uma só legislatura, a camara dos deputados tem sido dissolvida cinco vezes. Vossa Magestade apreciará a legalidade e a conveniencia, com que tem sido aconselhado.

«A eleição geral é uma commoção violenta, cuja frequente repetição póde ser perigosa. Por isso a lei fundamental do estado designou expressamente os periodos distantes, em que o acto eleitoral deve ser exercido. A intervenção do poder executivo torna mais violenta a commoção, e approxima o perigo, que a carta constitucional, com tanta rasão, como prudencia, quiz evitar. Esta camara faltaria á verdade e á sua consciencia, se não expozesse claramente a Vossa Magestade, que a constituição politica do reino não tem n'esta parte sido cumprida, e se occultasse que o actual governo excedeu em abusos e violencias eleitoraes tudo o que podia prever-se, igualando e reproduzindo scenas deploraveis de epochas de ominosa recordação.

«Esta camara faz ardentes votos, para que Vossa Magestade, assumindo, como privativamente suas, as altas prerogativas do titulo 5.°, capitulo 1.° da carta constitucional da monarchia, as exerça com a inteira independencia e absoluta irresponsabilidade do poder moderador, não esquecendo que dos outros poderes o que mais precisa de ser moderado é o poder executivo, porque é esse o que mais tende a invadir a esphera legal dos outros, sendo tambem o que encontra mais promptos e mais efficazes os meios de invasão. Se o poder moderador abandona ou confia ao executivo a prerogativa da dissolução, cessa a independencia, desapparece o equilibrio, não póde sustentar-se a harmonia dos mais poderes politicos, e a ordem social não póde manter-se tambem.

«Nâo é a restricção nem a diminuição das altas prerogativas de Vossa Magestade que o paiz deseja, e que as circumstancias imperiosamente reclamam. Pelo contrario: o que todos desejam e o que as necessidades publicas exigem, é a restauração pratica do poder moderador, como chave de toda a organisação politica, exercido privativamente por Vossa Magestade, absolutamente separado do poder executivo, a tal ponto que os ministros conheçam que entre as suas attribuições não se conta a de dissolver a camara, nem a de pedir ou estipular a dissolução, e que assim como a sua nomeação depende da indicação parlamentar, a sua conservação está fatalmeute ligada á condição de não perderem no parlamento a confiança da maioria dos representantes da nação.

«Mais prodiga que mesquinha, tanto na latitude como na qualidade e numero das prerogativas reservadas ao poder real, foi para com o monarcha a carta constitucional da monarchia portugueza. Todavia ninguem reclama contra o abuso; ninguem pede a restricção; todos desejam uso superior e independente; todos clamam contra a usurpação feita ao poder irresponsavel pelos ministros responsaveis, que, invadindo a esphera do poder de Vossa Magestade, simultaneamente abusam e fogem á responsabilidade, oppondo aos clamores do povo a justa inviolabilidade do Rei.

«Vossa Magestade, o primeiro despojado do uso livre das suas altas e privativas attribuições, é tambem o primeiro interessado em não deixar margem a que adquiram consistencia as injustas apprehensões, por emquanto apenas nascentes e só nos espiritos irreflectidos, de que o poder real é causa dos males, quando d'elles só é primeira victima, e de que as prerogativas mais essenciaes á ordem e á harmonia dos poderes são incompativeis com a liberdade dos povos e com os progressos da sociedade.

«É urgente destruir estas falsas apprehensões. Rompendo o circulo vicioso das organisações ministeriaes; encarregando o poder executivo a pessoa de plena confiança, que, em eleição absolutamente livre, obtenha do paiz representação absolutamente verdadeira; tomando a iniciativa da reforma politica em alguns pontos da lei fundamental; escolhendo o governo da maioria do parlamento; não deixando impor ao paiz a obrigação de dar maioria aos ministros, mas impondo a estes, como fatal, a obrigação de terem e de con-

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servarem a confiança da maioria dos representantes da nação — Vossa Magestade satisfaz os desejos do paiz, restabelece a harmonia dos poderes, firma a confiança do povo, e, resolvidas facilmente todas as difficuldades que ora se apresentam insoluveis, fará, emfim, surgir uma nova era de prosperidade publica, alliando-se a execução das leis e o respeito pelos poderes constituidos ao desenvolvimento da riqueza nacional e á felicidade d'este povo, talvez o primeiro pela indole e pelos costumes, e que de certo a nenhum outro cede em respeito, em affecto e em dedicação pelo seu monarcha constitucional. Não se perdem em um só dia sentimentos que as tradições de muitos seculos affirmam. O povo portuguez, se pede com impaciencia, espera com plena confiança a salvação do estado, que hoje, principalmente, de Vossa Magestade depende.»

Os periodos seguintes constituem privativamente resposta a alguns pontos especiaes do discurso da corôa. A simples leitura é sufficiente tambem.

«A declaração de continuarem inalteraveis as boas relações de Portugal com as potencias estrangeiras é para esta camara motivo da maior satisfação. Para isso muito concorrem, sem duvida, as virtudes e elevadas qualidades de espirito do soberano portuguez, com o qual esta camara por tão fausto motivo sinceramente se congratula.

«A tranquillidade publica ter se-ía facilmente mantido inalteravel em toda a parte do reino, se a desordem não fosse em alguns pontos provocada e produzida pela illegal intervenção do governo na luta eleitoral. É este facto muito para sentir e deplorar.

«A nação portugueza, testemunhando a Suas Magestades os Imperadores do Brazil, augustos parentes de Vossa Magestade, o alto apreço em que são tidas as suas altas qualidades, obedeceu ao sentimento espontaneo de admiração e de respeito, que a todos inspiram o illustrado espirito e inclitas virtudes de Suas Magestades Imperiaes. Os deveres de gratidão obrigavam tambem todos os que experimentaram, ou conhecem, quanto, para o benevolo acolhimento dos portuguezes no Brazil, concorre sempre o augusto chefe d'aquelle vasto imperio. Na paz, como na guerra, tem Sua Magestade o Imperador do Brazil provado constantemente os elevados dotes de um caracter verdadeiramente superior, que justamente lhe assignaram logar entre os primeiros monarchas liberaes do mundo. Rodeado de instituições democraticas, mantido ali sempre o equilibrio dos poderes poli ticos, floresce o imperio, e attesta na America que o governo monarchico representativo póde seguro rivalisar com a primeira republica do mundo. É que Sua Magestade Imperial, attento sempre, elle mesmo, á voz da opinião, escolhe o governo que lhe parece conforme á maioria, mas nunca o sustenta contra o voto da representação nacional, que ali não verga sob a ameaça da dissolução, antes se vê forçada pela obrigação de constituir governo a não desperdiçar forças em pugnas estereis e a nunca desvairar a opinião, de que vem a precisar, com promessas irrealisaveis de beneficios impossiveis. Ali, desde que uma vez o imperio indicou ao imperante o perigo de dissolver, as dissoluções tornaram-se quasi tão raras como as grandes convulsões da natureza. Diz a historia, que para as lutas politicas cessaram então as rivalidades palacianas, mas o imperio floresceu, e imperio e imperante fazem hoje inveja ao mundo.

«As relações mais intimas, tanto politicas como commerciaes, com o imperio brazileiro, serão para ambos os paizes de muita e reciproca conveniencia. Os tratados de commercio, de propriedade litteraria, a facil execução das ordens e sentenças judiciaes, a possivel identidade de legislação commercial, civil e de processo, entre duas nações, nas quaes as mesmas familias têem interesses creados a conservar ou a resolver, são, alem de muitas outras, as medidas que principalmente devem occupar a nossa attenção e a de um bom governo.»

Continuando a resposta aos periodos do discurso da corôa, apresento simultaneamente um programma ou simples indicação de algumas reformas e providencias, que julgo indispensaveis e urgentes para o desenvolvimento da riqueza publica, e para a prosperidade das finanças e boa ordem na administração. A proposito d'esta apresentação permitta-me a camara algumas breves explicações.

Durante dois annos, que n'este paiz representam quatro eleições geraes e quatro legislaturas, estive n'esta casa afirmando com a palavra e com o meu procedimento que não pertencia a grupo nenhum exclusivo. Não havia já partidos politicos, separados pelas idéas e definidos pelos principios, quando eu entrei na vida publica. Defendia e approvava a todos os governos as medidas que reputava boas, e rejeitava as que me pareciam más ou nocivas ao paiz. Esta posição, individualmente sustentavel e talvez a melhor, não podia ser util politicamente, porque nenhuma opinião isolada póde influir na marcha e direcção dos negocios publicos. Organisou-se depois o partido constituinte, tendo por fim constituir sobre bases inteiramente novas algumas das nossas intituições e todos ou quasi todos os serviços publicos. O seu fim é constituir pelos meios legaes, constante e successivamente, tanto quanto as circumstancias permittam, sem graves convulsões, sempre com ordem, e nunca com a revolta nem com a anarchia (apoiados).

Á organisação do novo partido presidiram idéas e principios, que eu tinha, e outras que eu aceitei. Algumas d'essas idéas vou eu indicar, declarando a v. ex.ª e á camara, que só o desejo de concorrer para a sua realisação me levou a filiar-me n'este partido. Não o preferi por ter nome mais sonoro ou euphonico que qualquer outro. Não me moveram tambem, só ou principalmente, considerações muitas vezes poderosas, de estreitas relações pessoaes, ainda que estas para isso concorressem bastante. Filiei-me n'este partido pelo accordo previo e com a bem fundada presumpção de que elle lutará para realisar algumas idéas e reformas precisamente definidas. Creio e confio na sinceridade de intenções, na dedicação e no esforço de todos os seus membros, mas declaro perante a camara do modo mais terminante e solemne, que, se o partido a que tenho a honra de pertencer, por qualquer circumstancia que reputo impossivel, mas que sem injuria posso figurar como mera hypothese, deixasse de pugnar pelas idéas, que foram a causa da minha adhesão, ou revelasse intuitos de na pratica as prejudicar ou contrariar, eu seria logo o seu primeiro adversario, por dever de coherencia e de fidelidade ás idéas que professo (apoiados).

Se algum dos diversos partidos, que hoje parecem contrarios ou adversos ao meu, quizer encarregar-se de realisar alguma das idéas, que precisa e claramente vou deixar expostas, eu desde já sou d'esse partido que as realise; não me importam nomes, nem pessoas, quando se trata do que eu reputo beneficio para o meu paiz. Se nenhum partido porém quizer encarregar-se de realisar estas reformas, e isso infelizmente é o mais provavel: se todos continuarem a dispensar-se de apresentar reformas dignas d'este nome, hei de combate-los todos, emquanto tiver logar n'esta casa, ou antes emquanto não prescindir de o ter, resolução a que me sinto muito disposto, a que me impellem rasões poderosas, e que estaria já realisada se não fosse uma circumstancia imprevista e extraordinaria. Emquanto o actual governo, que eu reputo o maior dos flagellos do mundo, se conservar no poder, não abandono o meu posto, e como o tenho combatido, hei de combate-lo até á sua queda, hei de acompanha-lo á sepultura politica, d'onde creio que não resurgirá. Depois talvez repute logo a minha missão cumprida: esperarei ainda a organisação do governo futuro, mas se o seu programma não me agradar, ou logo que as circumstancias me convençam de que a mudança de nomes nada influe na mudança das cousas, declaro-me desenganado da impossibilidade de salvar o paiz por taes meios, e apenas me desengane, mandarei n'esse mesmo dia para a mesa a resignação do meu logar n'esta casa, porque prescindo de partilhar da gloria, e não quero a responsabilida-

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de da ruina do paiz. Não abdicarei dos meus direitos de cidadão, mas prescindo de ser representante do povo, emquanto só houver representação do governo. Não me presto a ficções, e não quero nem posso concorrer para perpetuar a illusão, desde que só a minha presença me parece culpavel cumplicidade em actos que eu condemno o que me repugnam.

Se tomar esta resolução, eu darei ao meu paiz as rasões por que procedo assim, e hei de da-las plenas e com a clareza bastante, para que o meu procedimento seja comprehendido e pareça justificado.

Nunca me recusei, e estou prompto, a fazer ao meu paiz todos os sacrificios, e com a melhor vontade me prestaria a faze-los ainda maiores do que os que tenho feito, que não são pequenos para as minhas forças. É indispensavel, porém, para que eu os continue, que a minha intelligencia me não demonstre claramente que elles são completamente inuteis.

Offereço o pequeno concurso das minhas idéas, do voto, da palavra e do trabalho constante e assiduo, emquanto poder esperar que a minha dedicação aproveite para o bem da patria. Tenho prolongado, e prolongarei ainda a minha esperança até aonde me seja possivel sustenta-la. Com uma experiencia mais póde ficar de todo perdida, e então ninguem poderá estranhar que eu repute de mais a minha presença n'esta casa, e para o meu logar virá quem com maior vantagem me substitua e em melhor harmonia se sustente com os governos e com as maiorias politicas, se quizer concorrer para a consummação da obra, a que eu recuso associar-me.

A primeira questão, a que n'este programma me refiro, é a de fazenda, cuja solução eu não sei separar das considerações politicas e economicas. Eu trato em primeiro logar de habilitar os contribuintes para occorrerem sem grande sacrificio ás difficuldades do thesouro, e para isso os unicos meios parecem-me ser o desenvolvimento da riqueza e a suppressão de muitas despezas que reputo inuteis. A este respeito escrevi o seguinte, que me parece dispensar maior desenvolvimento:

«O nosso estado financeiro é muito grave, e póde tornar-se quasi desesperado, se o systema, por longo tempo seguido, não mudar immediata e radicalmente.

«A simples diminuição da despeza, o desejado augmento, da receita, não bastam; e muito menos, como vagos enunciados theoricos. O essencial é que um governo mereça a confiança do paiz e consiga leva-lo a acreditar no que elle actualmente não acredita; — na efficacia dos sacrificios que se exigem, e na sua applicação fiel e rigorosa a remediar o mal que todos sentem.

«A confiança no governo, acompanhada de algumas medidas de transição, levará facilmente o paiz a sacrificios extraordinarios, transitorios tambem, mas desde logo bastantes para o inteiro equilibrio do orçamento. A divida fluctuante deve consolidar-se a todo o custo. O novo systema de arrecadação, fazendo cessar a necessidade da representação do deficit, produzirá o adiantamento da receita corrente, evitando a creação de nova divida fluctuante, cancro que hoje não só consome em leonina usura uma grande parte dos rendimentos publicos, mas, peior ainda, é obstaculo invencivel ao desenvolvimento da riqueza nacional, porque nem a agricultura, nem o commercio, nem a industria encontram a juro modico dinheiro no mercado, onde não podem concorrer com o governo, que absorve todos os capitaes disponiveis, disputando-os em letras a curto praso, de facil realisação, com alto premio e garantidas com penhor de fundos publicos. Esta concorrencia é invencivel; por isso as fontes de riqueza parecem entre nós quasi exhaustas.

«Não é menos necessario, nem menos urgente, alliviar os contribuintes das despezas inuteis, que actualmente são as mais onerosas. Póde, com segurança, affirmar-se, que o orçamento do estado excederá em saldo a somma do deficit actual, e que os contribuintes pagarão menos do que hoje pagam, se pela simplificação dos serviços desapparecer a obrigação das despezas inuteis. Todos os que hoje têem um negocio a resolver em quasi todas as repartições publicas, nas superiores especialmente, pagam em despeza, em tempo e em trabalho inuteis, um tributo enorme, que, sendo o mais pesado para o contribuinte, nada aproveita ao estado. Temos tambem dez empregados mesquinhamente retribuidos, onde quasi sempre um bastaria depois de simplificado o serviço, podendo ser bem retribuido como é indispensavel que seja, e resultando ainda grande vantagem para o thesouro. Na organisação dos serviços ha tudo a fazer de novo, e é urgente reforma radical ou antes revolução profunda. Em quasi todos os ramos o systema actual não premeia o merito, incita ao ocio e ao desmazelo, quasi prohibe o esforço e a actividade, porque, em vez de recompensar e punir, iguala tudo na retribuição e nas promoções. A concentração da responsabilidade, systema inglez, entro nós experimentado por excepção, mas sempre com vantagem; a absoluta prohibição de accumulação de funcções; a larga remuneração a par da severa responsabilidade; a combinação do maior interesse dos funccionarios com a breve execução dos serviços, tornando a simplificação dependente d'este poderoso incentivo; a plena garantia aos que bem servem; a prompta punição aos que servem mal e aos que muitas vezes nem exercem, são os meios indispensaveis para substituir pela boa ordem o cahos existente. Organisados devidamente os serviços, ver-se-ha evidentemente, que cada contribuinte, reunidas as actuaes despezas inuteis ás contribuições publicas, pagará menos do que hoje paga, e o orçamento em vez de deficit, ha de ter saldo importante».

Seguem-se, como reformas politicas, a do poder judicial e a reforma parlamentar. A segunda está sufficientemente indicada pela legislação dos dois paizes, a que Se faz expressa referencia. A primeira demandaria grande desenvolvimento, que a estreiteza do tempo me obriga a reservar para occasião opportuna, em que especialmente me occuparei d'este assumpto importantissimo. Todavia1 desde já deixo indicadas as bases principaes. O proprio poder judicial, na sua organisação superior, será encarregado dos actos, que hoje, por serem attribuição do executivo, affectam a independencia do judicial. Algumas medidas de repressão e os meios de vigilancia, que hoje não podem entregar-se ao poder executivo e que são indispensaveis para a boa administração da justiça, podem sem difficuldade entregar-se ao judicial devidamente organisado, que, pelo seu tribunal superior, zelará simultaneamente a independencia e a responsabilidade que devem ter todos os membros do poder judicial. As leis organicas podem realisar facilmente o pensamento da reforma que proponho.

«Dependem as mais importantes reformas da previa reforma politica. O poder judicial, aquelle que mais tem reisistido á geral dissolução, aquelle que não poucas vezes tem salvo não só as liberdades individuaes, mas até algumas instituições, demanda nova organisação; que na pratica realise o que em theoria se estabeleceu na lei fundamental. Pertence-lhe pela carta a independencia absoluta. Pelas leis organicas está hoje dependente do executivo nos despachos, nas promoções e nas transferencias. Está, alem d'isso, miseravelmente retribuido. A administração da justiça, que deve ser prompta, proxima e barata, é muitas vezes o contrario, morosa, distante, difficil e carissima. É urgente firmar plenamente a independencia do poder Judicial, estabelecer-lhe a dotação correspondente ás suas elevadas funcções, e torna-lo inteiramente distincto dos outros poderes.

«A reforma parlamentar é, talvez, a primeira das mais instantes necessidades. Uma lei eleitoral, que assegure livre e certa a verdadeira representação, tanto da maioria como das minorias, e que, deixando a opção, estabeleça rigorosas as incompatibilidades, adoptando o systema da Belgica; e a camara alta electiva tambem pelo systema da America do Norte, salvas pequenas modificações, são reformas indispensaveis.»

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Refiro-me agora especialmente á lei do recrutamento.

«A actual lei de recrutamento deve ser desde já substituida pelo ensino militar obrigatorio nas cabeças de concelho ou de comarca. Melhor retribuida esta carreira, em breve o alistamento voluntario excederá as necessidades dos contingentes de recrutas, que agora debalde se pedem. O exercito será mais numeroso, e todo o paiz fica apto para pegar em armas nos casos urgentes. Entretanto, e transitoriamente, os recrutas serão distribuidos a cada concelho, e o seu numero fixo será apresentado obrigatoriamente pelas camaras municipaes nos prasos determinados.»

A actual lei do recrutamento não dá soldados, não dá dinheiro que se applique ás substituições dos recrutas (muitos apoiados), n'essa parte é apenas um supplemento á divida fluctuante, que torna, segundo dizem, o ministerio da guerra credor ficticio do ministerio da fazenda (apoiados), não realisa a igualdade do imposto de sangue, é uma oppressão ao povo, e não preenche nenhum dos fins que o legislador teve em vista; Não serve para o exercito; não serve para o paiz, é uma causa permanente de injustiças e de immoralidades, e só serve como arma eleitoral aos agentes do governo (apoiados), que das resalvas do recrutamento fazem um abuso escandaloso e revoltante. A reforma d'esta lei é indispensavel, a sua immediata substituição é uma necessidade indeclinavel e urgente (apoiados).

O odio ao serviço militar, que, em algumas provincias principalmente, se reputa a maior calamidade que um homem póde soffrer, é a causa principal de todos os inconvenientes que offerece qualquer lei de recrutamento. É essa causa que cumpre combater na sua origem. As remissões a dinheiro, hoje condemnadas como immoraes para a sociedade e prejudicialissimas para o exercito, aggravam o mal e augmentam a repugnancia pela vida militar.

Creio que o meio mais efficaz de combater o mal na sua origem, seria familiarisar o povo com o serviço, que hoje lhe repugna. O ensino militar, nas localidades, sendo geral e obrigatorio, incumbido a um simples destacamento instructor que preparasse os recrutas, quasi sem os separar das suas casas e familias, faria desde logo cessar o odio principal, que naturalmente provém, da aversão que todos têem a separar-se da familia e a ausentar-se da terra em que nasceram. Combinando-se esta primeira instrucção na localidade da residencia com revistas periodicas nas capitães do districto, estou, convencido que isto bastava para em breve tempo attrahir ao alistamento voluntario no exercito mais recrutas do que hoje se pedem. Se esta idéa for recebida, facil é dar-lhe o desenvolvimento necessario para a sua realisação. Em todo o caso parece-me um systema para experimentar, desde que o systema actual está condemnado como vicioso e immoral. Para effectuar a transição sem inconveniente, eu proponho a apresentação do numero fixo de recrutas pelas camaras municipaes, deixando-lhes a distribuição e apuramento dos recrutas, systema que me parece muito preferivel ao actualmente seguido.

Trato agora da organisação municipal, que reputo a melhor garantia da liberdade e da boa administração.

«É indispensavel dar aos municipios, devidamente organisados, vida propria e quanto possivel independente; o mesmo systema deve seguir-se nos districtos, ou talvez nas provincias, com mais largas attribuições. A vida municipal, as assembléas provinciaes, devem preparar com excellentes habilitações muitos membros para a representação nacional, hoje quasi abandonada ao funccionalismo, ou por este usurpada. O antagonismo da nação com a sua representação é de todos o peior mal que um paiz póde soffrer.

«A distribuição do imposto, abolidas muitas das actuaes leis tributarias e desde já a do imposto de transmissão, deve ser feita nos municipios, devidamente organisados. A pena de nullidade imposta aos contratos particulares a pretexto de direitos fiscaes, tão estulta como iniqua, deve desapparecer immediatamente, substituindo-se pelas multas e pela punição, ainda assim mais sobre os empregados publicos, que intervém nos contratos, do que sobre os particulares. Os recursos sobre distribuição do imposto, e todas as questões sobre direitos civis ou fiscaes, pertencem exclusivamente ao poder judicial, perante o qual a fazenda é como qualquer outro litigante, e urge que desappareçam d'este paiz os conselhos e suas delegações, que hoje o opprimem, e com os quaes a pretexto de administração se usurparam funcções a um poder independente.

«O contingente tributario lançar-se-ha como quantia certa aos municipios, e estes entregarão por duodecimos mensaes a somma correspondente a cada mez. A cobrança nos municipios deve preceder a epocha do primeiro pagamento ao estado quatro ou tres mezes pelo menos, e quer se aceite o pagamento por letras de facil desconto, quer se abone aos municipios um juro modico, obtem-se o indispensavel adiantamento da receita, cessando todos os inconvenientes da actual divida fluctuante.

«Os municipios tributarão livremente os rendimentos de cada contribuinte ahi residente ou proprietario, salvo o recurso unico para o poder judicial. Não são difficeis de estabelecer as garantias mais amplas, que sejam necessarias para segurar ao estado o pagamento integral nos prasos devidos.»

Todos conhecem a muita importancia da organisação municipal, e eu dispenso-me de dar desenvolvimento ao que por todos é sabido. O meu fim é entregar aos municipios, devidamente organisados, a distribuição e a arrecadação do imposto, tornando-o certo na somma para o estado, e transformando-o em contribuição sobre a renda emquanto ao municipio, com recursos unicamente para o poder judicial. O que seria difficil, talvez impossivel hoje para o poder central, é muito facil nos municipios e nas freguezias. As congruas parochiaes são talvez o unico imposto proporcionalmente repartido entre nós (apoiados). Facilita-se a cobrança, garante-se o pagamento ao estado, previnem-se, creio eu, na minha proposta, as necessidades de adiantamento que podem justificar a creação da divida fluctuante, que assim fica vantajosamente substituida. Restituem-se, sobretudo, ao poder judicial attribuições exclusivamente suas, que hoje estão usurpadas por tribunecas que não offerecem a menor garantia de sciencia nem de justiça, e cuja organisação foi, na minha opinião, uma das maiores calamidades que têem caído sobre este paiz. E n'este ponto refiro-me, tanto ás que existem superiormente junto doa ministerios, como ás que existem inferiormente junto das administrações e governos civis, tanto aos conselhos superiores como ás simples juntas.

Muitas das reformas que eu proponho, e das idéas que indico, não são para executar de surpreza nem de repente sobre todo o paiz ao mesmo tempo. Podem e devem ser experimentadas n'uma provincia, n'um districto, e algumas n'uma comarca ou n'um concelho sómente. Não comprehendo e reprovo o systema que seguimos de legislar á pressa, muitas vezes tumultuariamente, para todo o reino e ilhas adjacentes, e desde logo com auctorisação para o governo applicar as leis ás provincias ultramarinas. Ainda hoje se segue muitas vezes na Inglaterra o systema contrario de legislar só para uma parte do territorio, e ahi as leis são sempre muito meditadas e reflectidas, não se legisla sem muito estudo e sem muito conhecimento da necessidade e das vantagens de qualquer reforma. Este systema inglez é o unico prudente e verdadeiramente racional. Se a experiencia vem confirmar as previsões da sciencia do legislador, mostrando que a lei corresponde na pratica á intenção que a dictou, applica-se a todo o paiz com a certeza de se applicar uma boa lei. Se pelo contrario, como algumas vezes acontece, a experiencia demonstra que, contra todos os calculos e previsões, a lei na pratica é má e inconveniente, reforma-se, revoga-se ou substitue-se, e apenas uma pequena parte do paiz soffreu incommodo com o erro do legislador. Este systema desejo eu ver adoptado entre nós para algumas leis mais importantes pelos interesses que affectam.

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Outra reforma importante é a que se refere á codificação das nossas leis. A sua necessidade e a sua vantagem são de primeira intuição para todos os homens illustrados.

«A nossa legislação dispersa e cahotica é um dos maiores males que affligem a patria, tolhendo o desenvolvimento da riqueza pela incerteza dos direitos. A codificação em todos os diversos ramos é necessidade urgente. Não é codificar para tornar a lei immutavel, e muito menos para a confundir com leis dispersas, como tem acontecido ao codigo civil, apesar das disposições que expressamente o prohibem. A codificação não inhibe a reforma constante e progressiva das leis codificadas; só exige a inserção immediata das alterações feitas, á proporção que se fazem e se realisam.

«O systema actual, desde que as attribuições legislativas, usurpadas a pretexto de regulamentos e de portarias, foram transferidas para os conselhos e para os funccionarios superiores, que trabalham sem unidade de acção nem de pensamento, dispersaria e inutilisaria sem duvida possivel, em curto periodo, a codificação mais completa e mais perfeita. Não cura, e muito menos extirpa o mal, a causa unica que o produz. É urgente pois, e é indispensavel, a organisação immediata de um corpo collectivo superior, que, á similhança do conselho d'estado francez n'esta parte, seja exclusivamente encarregado dos trabalhos de codificação, da preparar ou consultar sobre os projectos de reformas, acompanhando-os de largas e completas exposições dos seus fundamentos e motivos, de preparar os regulamentos e instrucções para a execução, e de receber todas as consultas e informações sobre as divergencias e obscuridades que as diversas leis apresentam na pratica. Só assim se conseguirá a codificação completa, distincta mas harmonica, em todos os diversos ramos de legislação, sustentando-se simultaneamente a vantagem da codificação e a não menor da reforma constante e successiva.»

Segue-se a organisação da propriedade e a reforma das leis de successão.

«A organisação da propriedade immovel reclama alteração profunda. Cada uma das reformas ultimamente feitas tem depreciado a propriedade, prejudicando sensivelmente a agricultura, primeira fonte da nossa riqueza. A divisibilidade forçada é a negação do direito de propriedade; a amplissima faculdade para dividir, concedida ao proprietario, affirma e reconhece uma condição essencial e inherente áquelle direito. A liberdade do proprietario sobre a terra, que é sua, deve ser ampla e absoluta emquanto possue e no momento em que transmute. A geração seguinte ha de exercer os mesmos direitos com igual plenitude. Não podem os mortos governar os vivos, nem impedir-lhes ou restringir-lhes os seus direitos.

«Nas successões testamentarias, salvos os alimentos e ainda algumas quotas legitimarias, o testador deve exercer amplissima liberdade, podendo designar a fórma das partilhas, o deixar o que é seu, como quizer. Nas partilhas e alienações forçadas, que a lei actualmente impõe, soffre a propriedade immovel, arruina-se o commercio, torna-se impossivel a industria. Um paiz, que sustenta a nossa actual legislação, ainda que sobre elle chovam todos os dons da fortuna — fertilidade do solo, excellente clima, feliz posição geographica — não póde progredir, definha e arruina-se por força.»

Este ponto demandava largo desenvolvimento, de que sou forçado a prescindir. Declaro, porém, que o systema que eu desejo é o que se acha estabelecido na America do Norte, com os melhores resultados. É propriamente a liberdade com todas as suas condições beneficas.

Tocqueville, escriptor por todos os titulos illustre, e notavelmente profundo, que não é nem póde ser suspeito a nenhum homem liberal, diz; «Estranho que os publicistas, tanto antigos como modernos, não tenham attribuido ás leis sobre successões, isto é, ás que têem por principal fim regular o destino dos bens depois da morte do proprietario, uma influencia superior na direcção das cousas humanas. Estas leis pertencem, é verdade, á ordem civil; deveriam, porém, escrever-se no principio de todas as instituições politicas, porque ellas influem, a um ponto quasi incrivel, sobre o estado social dos povos, de que as leis politicas são apenas a expressão. Estas leis têem uma maneira segura e uniforme de operar sobre a sociedade, e de alguma fórma ligam as diversas gerações antes do nascimento. Por ellas o homem está armado de um poder quasi divino sobre o futuro dos seus similhantes».

Este escriptor acrescenta muitas e mui sensatas reflexões sobre os effeitos da aglomeração e da divisibilidade da propriedade territorial, que eu agora omitto, mesmo porque em breve tenciono occupar-me d'este assumpto, tanto n'esta casa, como n'um pequeno escripto que vou publicar.

Agora limito-me a enunciar a minha idéa, manifestando apenas a reforma que desejo.

A legislação da America do Norte exprime perfeitamente a minha idéa.

A primeira regra, diz mr. Kent, que nós seguimos era materia de successões é a seguinte: «Quando um homem morre ab intestato, os seus bens passam aos seus herdeiros em linha recta. Se ha um herdeiro unico ou uma herdeira unica, elle ou ella recebe só toda a successão. Se existem muitos herdeiros no mesmo grau, repartem entre si a herança por igual, sem distincção de sexo».

Mas as leis americanas partilham igualmente os bens do pae, unicamente quando a sua vontade não é conhecida. «Cada homem, diz a lei, no estado de New York (Revised Statutes, vol. III; Appendix, pag. 51) tem plena liberdade, poder e auctoridade, para dispor dos seus bens por testamento, para legar, dividir, em favor de qualquer pessoa que seja, comtanto que não teste a favor de um corpo politico ou de uma sociedade organisada».

Tocqueville, commentando esta differença da legislação americana, comparada com a franceza, que faz da partilha igual ou quasi igual a regra forçada do testador, explica-a da maneira seguinte: «Em França a democracia está ainda, occupada em demolir; na America reina já tranquillamente sobre as ruinas».

É assim effectivamente. A França destroe; a America organisa. Tocqueville parecia prever o futuro. A França acaba de experimentar os funestos effeitos da sua obra de constante destruição, na ultima guerra com a Prussia. A força da America do Norte, desenvolvendo-se prodigiosamente, não tardará talvez a assustar a Europa.

Entre nós a obra da destruição começou ha pouco, e estamos a tempo, se o juizo nos não faltar, para prevenir os effeitos funestos que a França experimentou.

Não se imagine que eu defendo as restricções, nem que pretendo resuscitar entre nós as instituições defeituosas de outras epochas. Não quero vinculos, não quero prazos, não quero morgados de nenhuma especie, impostos pela lei ou pela vontade de uma gernção, que passou, a todas as gerações que se succedem sobre a terra. Não só não desejo resuscitar nenhuma restricção, mas pretendo abolir outras que ainda subsistem. N'esse ponto havemos de estar facilmente de accordo.

Mas o que eu não quero tambem, nem posso querer, é fingir que aceito uma restricção como liberdade, só porque me offerecem com o nome de liberdade uma cousa que em si, pela sua natureza e pelos seus effeitos, é restricção e verdadeira escravidão. Não me seduzem palavras, exijo a realidade das cousas.

Não quero a indivisibilidade forçada, não quero os vinculos nem os prazos, que restringem a liberdade do proprietario, obrigando-o a transmittir inteira e indivisa a sua propriedade. Mas não quero tambem a divisibilidade forçada, não quero leis que obriguem o proprietario a dividir e a retalhar por força, a transrnittir em bocados e em parcellas a sua propriedade.

O que eu quero, e o que desejo, é a liberdade ampla,

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plena e absoluta para cada um reunir, aglomerar, dividir e fraccionar, como melhor lhe convenha, o que é seu, e o que constituo a sua propriedade.

Fallam-me em liberdade da terra! Eu conheço muitas expressões, que reinam e imperam soberanamente em cabeças, que são mais impressionaveis pelo ouvido do que pelo entendimento; mas sei que essas expressões, admiravelmente sonoras, são talvez por isso ôcas de sentido, o longe de exprimirem uma idéa sensata, contrariam o senso commum.

Nunca comprehendi o que seja liberdade da terra; sei que são palavras a que não corresponde idéa possivel ou realisavel praticamente. A terra, immovel, quieta, productiva pelo trabalho do homem, é tão incapaz e tão insusceptivel de liberdade como de escravidão. Não é pessoa, não é direito, é apenas objecto de um direito que o homem exerce, apropriando-se d'ella, ou adquirindo-a por qualquer fórma de transmissão.

N'estes termos liberdade do proprietario, ou tornar livre o exercicio do direito de propriedade, entendo eu o que seja e o que quer dizer. Liberdade da terra são palavras cuja reunião obsta a formar-se idéa, que o juizo possa aceitar.

A questão para mim não é da terra; é apenas das leis de successão. Se a lei me obriga a transmittir reunido o que é meu, restringe a minha liberdade. Se me obriga a transmittir dividido, restringe-me a liberdade tambem, com igual força, só com a differença de o fazer em sentido inverso. Para me dar a liberdade é preciso, que me deixe transmittir de um ou de outro modo, á minha escolha e á minha vontade, prescindindo de governar no que é meu, e deixando-me governar a mim como unico dono. É por isso que não agradeço como favor, nem aceito como liberdade, a simples troca de escravidões, com que foram brindados os proprietarios d'este paiz em nome da phrase sonora e absurda, que se chama liberdade da terra.

No meu systema a lei reconhece o proprietario que em harmonia com as, disposições legaes prova ser sua a propriedade. Se não ha interdicção legal ou declarada pelos tribunaes, que inhiba esse proprietario de dispor, a lei

deixa-lhe livre a disposição e aceita-a. Se elle não dispoz e morreu sem disposição, a lei dispõe por elle, e como não tem motivos alguns de preferencia, dispõe por igual, o que todavia para mim não significa que divide as propriedades, que a divisão deprecie, mas só que divide o valor entre os co-herdeiros da mesma classe.

No meu systema tambem não só se não restabelecem as restricções que foram abolidas, mas desapparecem todas aquellas que restrinjam era cada successão o dominio pleno da propriedade. O proprietario póde gosar como quizer durante a vida, póde transmittir como e a quem quizer por acto de ultima vontade, mas não póde impor onus algum real, que o successor tenha obrigação de conservar inherente ao predio. Todos os onus que imponha são resolúveis pela indemnisação do seu valor á vontade do herdeiro ou de qualquer adquirente. A faculdade da expurgação amplia-se a todos os onus. A geração que passou não fica a governar na terra que deixou. Cada novo proprietario ha de ser proprietario tão pleno como era o primeiro. Póde remir a dinheiro todos os encargos, da mesma fórma que póde pagar e paga todas as dividas do seu antecessor.

Prescindo de mais largo desenvolvimento, e creio ter dado idéa do systema que desejo (apoiados), e que eu brevemente apresentarei por escripto com mais largueza, mostrando que este assumpto, longe de ser indifferente, é essencial para o desenvolvimento da riqueza, está ligado á organisação das familias e portanto da sociedade, influindo directamente nos costumes e nos sentimentos dos povos, tanto no amor da familia, como no amor da patria. (Vozes: — Muito bem.)

Nas relações do paiz com as nações estrangeiras julgo dignas de especial menção as que devemos sustentar com a Hespanha. Faço uma simples indicação dos pontos, que reputo mais importantes, e das medidas que me parecem mais urgentes. É inquestionavel, na minha opinião, a reciproca utilidade de todas estas relações para ambos os paizes.

«As nossas relações externas, com a nação vizinha principalmente, reclamara seria attenção. O que tem sido não póde ser; continuar o systema seguido, não é só prejudicial, é impossivel.

«A independencia nacional ha de manter-se; a esse respeito vela a nação inteira. Mas as independencias não se mantêem com festejos de anniversarios, nem com gloriosas recordações, embora descriptas em prosa sublime, ou cantadas em verso altisonante. A boa administração, a vontade nacional, são as unicas garantias serias. A haver medidas de prevenção, não podem ser outras senão a boa organisação é disciplina da marinha e do exercito, e sobretudo a já indicada substituição da actual lei do recrutamento, que em breve habilitará para as armas, em caso urgente, toda a população válida do paiz.

Mantida, porém, a nossa plena independencia, é indispensavel, que as mais intimas relações commerciaes e economicas se estabeleçam quanto antes com a nação vizinha; e este é dos mais seguros meios de conjurar o perigo, que ninguem vê imminente, mas que muitos receiam, e alguns fingem receiar.

«Propriedade litteraria; completa uniformidade de pautas nas alfandegas; absoluta liberdade do commercio e de transito; uniformidade de moeda; tratado postal, que reduza os preços da correspondencia e estabeleça os saques, por vales do correio, em todos os pontos dos dois paizes, onde existam para cada uma das nações; combinação de estradas e de todas as vias de communicação; possivel uniformidade de legislação commercial, civil e de processo; accordo nos tratados commerciaes de ambos os paizes com as outras nações; e, finalmente, tudo que possa desenvolver relações amigaveis entre duas nações independentes, mas vizinhas, que mutuamente se encravam, e que, até hoje, se têem reciprocamente prejudicado no seu natural desenvolvimento, abrirá um novo campo, vasto e immenso, de prosperidade e de riqueza.»

Refiro-me, por ultimo, ás colonias e ás ilhas adjacentes.

«As nossas colonias exigem tambem a mais séria attenção, e tanto como ellas as ilhas adjacentes. Vastissimos, como são, os nossos dominios, não é possivel acudir em todos a todas as necessidades ao mesmo tempo. A boa administração, habituando as colonias a vida propria e preparando-as para a independencia, depois de seguramente estabelecidas as relações uteis, deve desde já chegar a todas. Os melhoramentos não podem fazer-se por meias medidas, que, na justa phrase de Napoleão I, só representam inutil perda de tempo e de dinheiro. Devera completar-se onde se principiarem, e terminados n'uma parte, passar-se a outra.

«Nas ilhas adjacentes são excessivos os encargos publicos, e parecem mesquinhas as vantagens, com que se compensam. Não será difficil fazer cessar o desgosto, que já publicamente se manifesta.

«A organisação do exercito e a creação da marinha são tambem necessidades urgentes. A retribuição dos officiaes de fileira, mais que mesquinha, muito inferior a problematicos serviços civis, precisa de ser elevada. Sem marinha não ha colonias possiveis, nem se estabelece nem se sustenta commercio proprio. Triste verdade! Não temos marinha. Devemos promptamente crea-la á custa de quaesquer sacrificios.

«Estes assumptos mais importantes; alem de outros muitos, vão merecer a solicitude dos eleitos do povo, os quaes, não poupando esforços nem fadigas, esperam o auxilio de Deus para poderem dignamente corresponder ao que devem á patria, ao Rei e a si mesmos.»

O governo reputou até hoje conveniente não se referir no parlamento ao estado das ilhas, mas é sabido que esse estado não é lisonjeiro nem animador, nos Açores principalmente. Deve de prompto attender-se ao que for justo,

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e cumpre-nos evitar, por todos os meios, que surjam complicações, cuja possibilidade se annuncia, e que podem ser de graves consequencias.

A questão das provincias ultramarinas é muito grave e difficil de resolver. Na minha opinião as colonias podem ser a salvação ou a ruina da metropole, segundo a boa ou má administração que tiverem. Eu devo declarar a v. ex.ª que estou prompto a votar e a aceitar grandes sacrificios, quando a sua applicação segure a conservação e promova a prosperidade das colonias. Os pequenos vasos de guerra, proprios para as estações e serviço colonial, são ali indispensaveis, e os transportes não se dispensam tambem. Não podemos ter verdadeira marinha de guerra, mas, a não querermos perder as colonias, não podemos prescindir da marinha propriamente colonial, se posso designa-la por este nome. Não sou em these pela cessão de alguma parte dos nossos dominios, mas a este respeito entendo que não podem nem devem professar-se principios absolutos. É sem duvida melhor conservar tudo, quando a conservação é possivel e util. Mas as circumstancias muitas vezes são differentes, e tudo depende das circumstancias. Mesmo os mais exaltados pela plena conservação, se forem collocados entre a alternativa de ceder com vantagem, ou de perder sem compensação uma parte do territorio, hão de preferir, creio eu, sem hesitação possivel, a cessão vantajosa á perda sem condições.

Não é possivel porém arvorar a cessão em principio e muito menos em systema. Se a occasião apparecer, deve meditar-se sobre qualquer proposta, e decidir-se segundo a vantagem que offerecer. Napoleão I cedeu com manifesta vantagem aos Estados Unidos uma possessão na America, que a França de certo perderia, se a tempo não negociasse a cessão.

Sr. presidente, eu tenho empregado todos os esforços para restringir quanto possivel as minhas reflexões sobre os pontos da substituição, a que precisava referir-me.

Mando para a mesa a minha substituição, com a consciencia de não lhe ter dado o devido desenvolvimento, porém com a esperança de ter feito comprehender as idéas a que me referi (apoiados).

Vou terminar, agradecendo sinceramente á camara o favor com que me ouviu, e a benevolencia com que me permittiu abusar da sua attenção por tão largo tempo.

Tenho dito.

Vozes: — Muito bem, muito bem.

(O orador foi comprimentado por muitos srs. deputados.)

Rectifico.

Na sessão de 21 de setembro, pag. 771, col. 1.ª, deixou de mencionar-se que tambem foram approvados os artigos 3.º, 4.º e 5.º do projecto de lei n.º 32, que auctorisa a camara municipal da villa e concelho de Melgaço a lançar o imposto unico de 40 réis por cada alqueire ou 2 réis por litro de todo o sal que der entrada no mesmo concelho.

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