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1973

porque os poderes politicos não podem girar dentro da arbitração que estabelece a carta. Toda a vez que um poder prejudique o outro, ha uma anarchia e soffre a sociedade.

O direito de legislar pertence só ás côrtes, é privativo dellas, e não o podem delegar, porque é indeclinavel.

Conceder essa delegação, seria a morte do poder legislativo que é a alma e a vida do systema constitucional. Fazer essa alienação seria aniquila-lo, enfraquece-lo e desprestigia-lo, mas felizmente a carta e os principios oppõem-se a essas delegações e representação do poder legislativo, porquanto quer outro poder politico.

Não é só o § 6.° do artigo 15.° da carta constitucional offendido pela proposta do governo, é tambem o § 14.°, onde se diz que é da attribuição das côrtes o crear empregos e determinar os respectivos ordenados, e, em todos os cento e quarenta e sete artigos da carta, não apparece a delegação d'esta funcção no poder executivo, porque esta funcção é toda especial do poder legislativo, e não póde ser representado por outro poder, porque o direito de representação é impossivel, e só se poderia admittir no caso de dictadura; mas n'este caso ha outros deveres e outras responsabilidades a cumprir, de que tratarei logo.

Por consequencia á vista dos §§ 6.° e 14.° do artigo 15.° da carta não se póde fazer a delegação que se pede, porque isto quer dizer que o poder legislativo não faz nada, não cumpre a sua missão e entrega o seu mandato a outro poder, o que é opprobrioso, altamente opprobrioso.

O artigo 144.º da carta tambem é violado pela proposta do governo. Este artigo diz que é constitucional tudo o que diz respeito ás attribuições dos poderes politicos, direitos e garantias dos cidadãos. Ora querendo o governo tornar-se legislador de uma maneira tão ampla e absoluta, como se vê da sua proposta, invade e aggride a constitucionalidade da carta; pede aquillo que esta não consente, e que pertence exclusivamente a outro poder; pede o aniquilamento do systema parlamentar, aonde esta a alma, e a vida de todos os governos que se regem por instituições livres. Abatido o poder legislativo, a liberdade de um povo está em retirada. A proposta do governo tambem offende o acto addicional.

Todos sabem quanto tempo duraram as nossas guerras civis de 1834 para cá. Queriam uns a carta, outros a constituição de 1820 e outros a constituição de 1838; reputando-se estes dois ultimos codigos como mais liberaes por terem uma origem verdadeiramente constitucional, verdadeiramente democratica, qualidade que se não dava na carta, porque não tinha sido obra dos representantes da nação reunidos em côrtes, mas tinha sido dadiva de um principe, que foi um grande soldado, e o primeiro auctor da liberdade d'este paiz, e de quem temos recordações muito affectuosas. Esta divergencia de opiniões deu logar a guerras interminaveis entre nós, invocando-se sempre n'essas guerras os principios politicos.

O acto addicional veiu finalmente pôr termo a esse estado de cousas, e ainda bem, porque desde então temos sido mais felizes, porque essas distincções politicas acabaram, porque terminaram esses odios, e veiu uma epocha de tolerancia e de paz.

Os legisladores que fizeram o acto addicional, tendo notado que o poder executivo, em differentes epochas, tinha invadido as attribuições do legislativo, marcaram, como excepção filha da experiencia, os casos em que o executivo podia legislar, dizendo no artigo 15.°, §§ 1.º e 2.°:

«§ 1.° Não estando reunidas as côrtes, o governo, ouvidas e consultadas as estações competentes, poderá decretar em conselho as providencias legislativas que forem julgadas urgentes.

«§ 2.° Os governadores geraes das provincias ultramarinas poderão tomar as providencias indispensaveis para acudir a alguma necessidade tão urgente que não possa esperar pela decisão das côrtes ou do governo.»

O § 1.º delega no governo a attribuição de legislar só na ausencia das côrtes, e quando necessidades urgentes o exigirem, sendo ouvidas as estações competentes, e a mesma attribuição é concedida no § 2.° aos governadores geraes do ultramar. Ha portanto duas limitações constitucionaes ao direito de legislar que se delega; só para estes dois casos é que se estabelece a delegação; no mais, o direito de legislar é inalienável, e não podemos declina-lo em outro corpo politico. Não podêmos portanto approvar o que se pede na proposta que foi submettida á nossa consideração, e que esta servindo de thema ao debate.

Mas até mesmo no caso do § 2.º os governadores geraes das provincias ultramarinas não podem fazer uso do direito de legislar tão amplamente como ahi se estabelece, porque se fez a lei de 14 de agosto de 1856 que lh'o limitou, declarando quaes as circumstancias de urgente necessidade e graves em que podiam usar d'elle.

Notem mais os illustres ministros e todos os meus collegas que a carta constitucional e o acto addicional em nenhum dos seus artigos e paragraphos contém disposição alguma por onde se possa entender que o poder legislativo póde delegar as suas funcções, funcções as mais importantes de todas no poder executivo, fóra das excepções constitucionaes que citei.

A nossa missão é portanto indeclinavel, indelegavel, não póde ser desempenhada por nenhum outro corpo politico; não podêmos dar um poder que não é nosso, que nos vem do mandato que recebemos, o qual não nos auctorisa a delega-lo; não o podêmos fazer, e por consequencia a proposta do governo é uma proposta inconstitucional que offende e prejudica o nosso mandato e a lei fundamental do estado.

Mas não ha só a offensa da carta constitucional e do acto addicional na proposta do governo, ha offendidos tambem os precedentes d'esta casa, como eu vou mostrar á camara e ao proprio sr. ministro da fazenda, que já foi meu complice aqui n'uma questão em que eu tive de me separar dos meus amigos politicos.

S. ex.ª lembra-se de certo dos assassinatos de Loanda em 1862; s. ex.ª veiu aqui com um projecto propondo certas providencias extraordinarias, porque alguns pretos assassinavam já os brancos; as auctoridades estavam aterradas e sem força, os processos regulares eram muito morosos, e julgava-se necessario dar força á auctoridade, e alterar a fórma dos processos, a fim de os tornar mais rapidos, e serem punidos os assassinos; e independentemente da intervenção do governo da metropole s. ex.ª queria que lhe votasse auctorisação para alterar a fórma dos processos, porque assim o demandavam as circumstancias especiaes em que se achava a provincia de Angola.

O sr. Fontes Pereira de Mello, meu nobre amigo, que sinto muito e muito não ver n'esta casa, apresentou uma questão previa no sentido em que eu apresento hoje esta; isto é, propondo que a camara decidisse se era ou não inconstitucional a proposta apresentada pelo sr. Carlos Bento, então ministro da marinha, que aquelle deputado julgava offender o artigo 74.º § 7.° da carta constitucional, que permitte ao rei o perdoar ou minorar as penas aos réus condemnados pelos tribunaes. A camara discutiu esta proposta preliminar, e a final decidiu que ella offendia a constituição do estado.

Ora, se nós em 1862, ou se a camara dos deputados em 1862 decidiu que se não podia defender nem admittir a proposta do sr. ministro da marinha, porque era inconstitucional, porque offendia as attribuições de um dos poderes do estado, porque não ha de esta camara dizer hoje o mesmo, quando manifestamente, em vista das considerações que tenho apresentado, se não póde deixar de reconhecer que a proposta era discussão offende as prerogativas e attribuições do poder legislativo? Como podemos nós, corpo legislativo, abdicar da nossa missão, concedendo ao podér executivo uma auctorisação d'esta magnitude, quando o governo nos não apresenta base alguma por onde se possa conhecer quaes são as suas vistas, quando nos não diz ao menos como quer proceder? Como podemos dar ao governo um voto de confiança tão amplo quando sabemos a priori que o governo não tem sequer pensamento politico? Pois não sabemos todos como se formou esta administração? Ignorâmos porventura que se andaram a convidar uns e outros para aceitar as pastas...

Uma voz: — Foram agarrados a cordel.

O Orador: — Não digo que foram agarrados a cordel como se faz ás vezes com os recrutas para o exercito, nem quero dizer que o ministerio formado pela maneira por que foi não seja composto de cavalheiros de muita intelligencia e dignos de toda a consideração; eu só sustento os principios, não trato de pessoas.

Além d'isto que conveniencia póde resultar d'esta auctorisação que o governo nos pede, quando elle tenciona em novembro, como por ahi se assegura, abrir novamente as camaras? Que ha de o governo fazer n'este pequeno intervallo de tempo? Quer decidir um assumpto da grandeza d'aquelle para que pede a auctorisação n'este pequeno espaço? E se d'esta pressa, se d'este vehemente desejo de reformar o governo nos apresentar em novembro conta dos seus actos e do uso que fez, d'esta proposta, e elle não for perfeito, se for defeituoso? É então que os havemos de remediar? Pense a camara bem, que é muito serio, o veja os grandes e enormes perigos que podem resultar d'uma tal auctorisação.

Mas não fica aqui; eu vou apresentar á camara outro aresto em que esta compromettido o sr. presidente do conselho de ministros, o sr. marquez de Sá da Bandeira.

Em 1857, differentes cidadãos de Lisboa quizeram constituir-se em sociedade agricola commercial, de colonisação e mineração da provincia de Moçambique; queriam que o governo portuguez lhes desse a soberania da provincia, e a faculdade de nomear e demittir empregados, fazer propostas de lei, etc...; n'uma palavra, queriam substituir-se ao estado. Pois o sr. visconde de Sá, presidente do conselho ultramarino, onde foi essa pretensão, disse que tal se não podia fazer, que ninguem podia substituir-se ao estado e que aquella concessão offendia o artigo 146.° da carta constitucional, que marca os direitos politicos dos cidadãos. Julgou-se n'aquelle tribunal que aquella medida era inconstitucional, com o que concordou o governo, assim como eu julgo que o projecto em discussão é tambem inconstitucional.

Mas, diz o governo, nós havemos de dar conta ás côrtes. Ora, pergunto eu, com toda a sinceridade e sem espirito algum offensivo para o governo: porque não se constitue o governo em dictadura? Para que nos ha de sujeitar á confissão da nossa incompetencia? Constitua-se em dictadura, porque ao menos assim tem responsabilidade. Faça todas as reformas que entender convenientes a bem do paiz, e se ellas forem boas, o paiz o applaudirá e a camara depois lhe dará um bill de indemnidade.

Mas é exactamente a esta responsabilidade que o governo se quer eximir, e para este fim não duvida de vir á camara pretender. arrancar-lhe uma lei que nos é odiosa, e que mostra que nós não sabemos cumprir a nossa missão. Estamos reunidos ha tres mezes; não podémos fazer cousa alguma por culpa do governo, e a final querem que o auctorisemos a fazer aquillo que nós deviamos ter feito.

Bem sei que o governo póde dizer que esta concessão se tem feito muitas vezes; mas a isso respondo eu que é verdade que algumas vezes se tem dado estas auctorisações, mas sempre assentes sobre bases claras e definitivas, de modo que a camara quando as vota, já sabe de antemão o que quer que se faça. Reformas d'este modo comprehendem-se, porque se respeitam os principios constitucionaes.

Por exemplo, o sr. Ferreri pediu era 1859 auctorisação para reformar a secretaria de marinha e ultramar; foi-lhe concedida pela lei de 3 de agosto de 1859, mas essa lei dizia que o governo ficava auctorisado a fazer aquella reforma em conformidade da lei de 2 junho de 1857, que marcava as bases que se deviam seguir em todo este assumpto, tanto sobre nomeação de empregados, como sobre organisação de serviço.

Auctorisações assim são permittidas, porque não offendem a carta constitucional; são verdadeiras delegações que não offendem os corpos legislativos; mas o que nunca se póde votar é uma auctorisação que nas mãos do governo póde dar-lhe direito a fazer grandes injustiças, a violar as leis e a fazer perder direitos adquiridos e respeitaveis.

Mas ha mais uma rasão, para mim muito forte, e que me obriga a não votar esta auctorisação. Quem vae agora fallar por mim é o sr. ministro da fazenda; são as propostas que nós votámos hontem e ante hontem. E de passagem direi que dos outros srs. ministros ainda espero alguma cousa, porque não conheço ainda os seus actos; mas do sr. ministro da fazenda estou já em plena desconfiança com relação aos seus planos.

S. ex.ª, quando opposição, é um rouxinol que nos deleita; mas quando governo as suas propostas ficam muito áquem das dos seus antecessores; são mais perigosas, mais infelizes.

Peço licença á camara para fazer uma ligeira analyse das propostas de s. ex.ª para me servir de argumento para a questão principal, mostrando a rasão que se apresenta ao meu espirito para me convencer ainda mais de que devo votar contra esta proposta de lei que estamos debatendo.

O sr. ministro da fazenda pediu duas auctorisações. Analyse-as bem a camara, e verá que estas auctorisações são muito inferiores em resultados ás dos antecessores de s. ex.ª, mutatis mutandis.

Eu vou ferir bem as propostas para que s. ex.ª fique convencido d'isto. Eu pelo menos já o estou, e s. ex.ª, se quizer, tambem se ha de convencer.

Quando se discutiram as leis de desamortisações em 1861 e 1866, leis que serviram de base á proposta que o sr. ministro da fazenda apresentou a este respeito, sustentam-se sempre n'esta casa pondo de parte o argumento principal, que era — a liberdade da terra; que a desamortisação era uma questão economica, e o motivo era dar a desamortisação logar a uma grande procura de titulos de divida publica no mercado.

Dizia-se então: «Como os remidores ou compradores se hão de ver obrigados a comprar no mercado as inscripções para remirem ou comprarem os bens desamortisados, esta procura de titulos dar-lhes-ha uma alta muito grande no preço, o habilitará por consequencia o governo, se tiver necessidade de recorrer ao credito, a fazer melhores operações.»

Isto é o que diziam os ministros e os cavalheiros que apresentavam as propostas naquellas epochas, e diziam isto fundados nos principios economicos. O proprio sr. Carlos Bento creio que não desconhece o principio da alta do preço dos titulos em consequencia da grande procura dos mesmos pela desamortisação, ao passo que, sendo a offerta maior que a procura, esses titulos hão de necessariamente tender para a baixa.

Então havia maior procura, mas agora o que ha maior é a offerta, porque o governo é que vende os titulos. Os titulos agora não são comprados no mercado; o governo 6 que estabelece uma especie de casa do cambio, onde os ha do ir vendendo pouco a pouco.

Então compravam-se os titulos na praça; tornava-se portanto a procura maior, e o resultado era a alta do preço d'esses titulos; mas agora torna-se maior a offerta, porque são offerecidos pelo mercado e pelo governo. São dois os concorrentes; a baixa será infallivel.

Pergunto portanto agora a s. ex.ª, sem animo algum de offensa, porque somos amigos e collegas ha quatorze annos — se não acha a sua proposta muito inferior em resultado dos beneficios ás propostas dos outros cavalheiros que o precederam?

(Interrupção que não se ouviu.)

Eu não quero que s. ex.ª diga que sim; procuro convencer-me ácerca dos resultados que ha de ter a proposta que aqui se discutiu. Não quero que s. ex.ª diga que sim, mas elle conhece muito bem os principios que indiquei, principios que não falham em occasião alguma, e que elle sustentou brilhantemente, quando não era ministro, e que agora faz o contrario desprezando-os.

A proposta já esta approvada e por consequencia de passagem é que estou a fallar n'ella, mas fallo porque parece que os homens, quando vão a ministros, se esquecem do que disseram durante dois ou tres annos, e sempre, antes de serem ministros.

A camara de certo se lembra bem que o sr. ministro da fazenda clamava aqui que era impossivel continuar aquelle deficit medonho, que elle sempre nos apresentava; deficit que nos devorava, que nos esmagava, que faria caír o paiz n'um cataclysmo e que tornava o nosso futuro impossivel. Pois s. ex.ª vae alimentar esse deficit com a auctorisação de 3.500:000$000 réis.

S. ex.ª tem auctorisação para um emprestimo de réis 3.500:000$000, que ha de importar em mais do réis 8.000:000$000 de inscripções, e não os dota convenientemente. Por consequencia ha de procurar essa dotação na receita corrente, e o deficit do nosso orçamento, que era de seis mil e tantos contos, vae agora ser elevado.

S. ex.ª apresentava regras, argumentos tão perspicazes o tão rasoaveis, quando opposição, que parecia o illustre deputado um rouxinol; aquella era a verdade que nos deleitava tanto. Agora tudo é o contrario, e s. ex.ª cava muito mais baixo e muito mais superficialmente do que cavaram