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DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS

Projecto de lei

I

Senhores. — A primeira e a mais sagrada obrigação dos que têem a seu cargo o governo e a inspecção das cousas publicas nos estados regidos por livres instituições é, sem duvida, o velar cuidadosamente para que não haja desharmonia nem conflicto entre as leis constitucionaes de cada povo e o estado da sua opinião e dos seus progressos politicos e sociaes.

É por isso que as instituições não podem ser immutaveis, e como que sacrosantas na sua letra, antes devem acompanhar nos seus aperfeiçoamentos successivos o movimento das sociedades. Cumpre-lhes ser antes a expressão verdadeira e sincera das idéas politicas e das necessidades sociaes de cada epocha do que o preceito á priori estabelecido, ao qual uma nação haja de moldar-se infallivelmente, reprimindo as suas naturaes aspirações, e dissimulando as imperfeições e as lacunas do seu codigo fundamental.

Ha perigos imminentes e gravissimos em manter por largo tempo o desaccordo entre as instituições legaes e os costumes politicos de uma nação, entre a letra, que condemna como attentados os actos de mais ampla e mais desassombrada liberdade, e o espirito liberal, que incita e favorece {as conquistas da moderna democracia.

Por isso as instituições dos povos livres, nas idades antigas e modernas, foram sempre verdadeiros organismos, contendo no seu seio o principio da sua progressiva evolução. Uma instituição que se immobilisa torna-se por esse facto antes um monumento archeologico, do que uma feição da vida social. O poder publico uma vez distribuido tende, por uma lei inevitavel da natureza humana, a concentrar-se exclusivamente nos elementos politicos mais bem quinhoados na partilha. As monarchias temperadas degeneram facilmente em autocracias. As sociedades, onde o governo reside n'um patriciado verdadeiro e n'uma sombra de influencia popular, descaem as mais das vezes em duras e incomportáveis oligarchias.

As instituições têem de acommodar-se ao tempo, aos costumes, aos progressos, ao estado social de cada povo. A constituição de Solon, que foi na antiga Athenas uma conquista valiosa dos direitos populares contra a oligarchia, era já em face das reformas democraticas de Clisthenes uma constituição aristocratica e impopular. Nenhum cidadão inglez, cioso de seus fóros, volveria contente á monarchia dos Tudors e dos Stuarts, nem veria complacente que o governo do seu paiz se inspirasse nos exemplos e dictados de sir Robert Walpole e da era georgiana. As liberdades que parecem grandes e preciosas, quando um povo sáe da oppressão, já com rasão se lhe afiguram estreitas e mesquinhas, quando se habituou a respirar mais desafogado tutellas governativas. Toda a luz é intensa para os que surgem das trevas; toda a praça larga para os que romperam os seus grilhões.

Nenhuma fórma de governo se compadece menos do que a monarchia representativa, com que seja inalteravel a constituição. E são obvias as rasões d'esta verdade, aliás eloquentemente comprovada com a historia de quasi todos os estados europeus, principalmente desde a grande revolução, que nos fins do seculo passado formulou e diffundiu as doutrinas da liberdade e do governo popular.

A monarchia representativa é uma transacção entre a corôa e a liberdade, um mechanismo inventado com o proposito de resolver o mais difficil porventura de todos os problemas sociaes, o de tornar cooperadores na obra commum de reger e encaminhar a sociedade a dois poderes quasi sempre antagonistas — a realeza e a democracia; a realeza, cifrada n'um chefe hereditario, impeccavel, sagrado, irresponsavel, segundo a ficção da lei; e a democracia, representada no povo, que invoca como um direito superior e anterior a todos os imperios e dynastias, o direito de se governar a seu talante, e entender por si ou por seus representantes electivos no concerto e direcção dos negocios publicos.

Antigamente o povo e a realeza affrontaram-se e lutaram, buscando a realeza firmar e engrandecer as que chamava suas inauferiveis prerogativas; lidando o povo por alargar as suas liberdades e franquezas, tirando-lhes o caracter humiliante de uma concessão real, para lhes imprimir o sêllo da verdadeira magestade, d'esta que, com justificado titulo, se podéra appellidar de direito divino, porque se funda na rasão da humanidade.

A monarchia representativa como que legalisou a contenda immemorial entre os poderes exclusivos e os elementos populares, que tendiam mais e mais á democracia. Deu fórma regular e pacifica a este litigio permanente entre o governo de um só e o governo de muitos ou de todos. Repartiu e delimitou melhor os campos, attribuindo ao rei uma parte, a mais avultada e effectiva do poder politico, e reservando ao corpo da nação, antes os instrumentos e as seguranças de censura e de opposição, do que os meios eficazes de participar activamente no governo.

O chefe hereditario da nação está no mais eminente logar, vestido pela carta com todas as armas constitucionaes para estas justas, incessantes e pacificas, em que a democracia prova a cada passo o seu brio e o seu esforço, e em que não raro os representantes do direito popular são vencidos pelo herdeiro da tradição. O rei é, segundo a carta, o magistrado supremo da nação, investido no direito illimitado de nomear e demittir os membros do governo, de convocar os mandatarios populares, e adiar e dissolver as suas assembléas. O segundo ramo da legislatura deve ao rei a sua origem, porque a prerogativa póde com uma simples carta regia converter em um momento o mais obscuro cidadão n'um perpetuo legislador. Alem da sua acção directa nas duas casas do parlamento, o rei constitue a ultima instancia da legislatura, e uma palavra sua, expressão do veto imperativo, basta para annullar o decreto da nação, formulado pelos seus representantes. O rei não julga, mas perdoa e commuta as penas impostas pelos tribunaes, e em certos casos, nas amnistias politicas, antepõe-se á livre acção da justiça, e com o sceptro quebra os grilhões dos encarcerados, ou restitue a patria aos que vagavam exules em terra estranha. A força armada pende do seu arbitrio. Os empregos publicos são por elle conferidos, e em grande numero de casos sem que a lei prescreva as condições da sua collação. As honras e as mercês com que ás vezes se costumam premiar os meritos e os serviços, e não raro se contentam as ambições e se lisonjeiam as vaidades, são discricionariamente repartidas pelo rei, o qual, alem dos meios directos por que exerce a sua auctoridade, tem ainda nos favores da munificencia uma nova origem de influencia e de poder.

A monarchia representativa attribuindo ao rei dois poderes exclusivos — um d'elles em theoria illimitado — o poder moderador e o poder executivo, conferindo lhe pela sancção e pelo veto a mais alta intervenção no poder legislativo, levanta no meio de uma sociedade regida por mais ou menos livres instituições, um arbitro supremo que — em principio — tem prerogativas quasi iguaes ás do imperante na antiga monarchia, e ademais o precioso privilegio com que a lei fundamental o isenta de toda a responsabilidade, o proclama immune de toda a culpa, e o declara a fonte e manancial de todo o bem, e por isso incapaz de fazer ao povo o menor mal.

A corôa, como poder moderador, tem pela dissolução do parlamento o direito de annullar a seu arbitrio a vontade nacional, e de manter á frente dos negocios os homens, que tenham perdido ou não hajam nunca podido conquistar a sympathia e a confiança popular. Como poder executivo, e pela sua vasta e crescente influencia, tem a perigosa faculdade de encaminhar em seu favor a corrente eleitoral, alterando frequentes vezes a genuina expressão do suffragio publico, e dando aos ministerios a apparencia do consenso