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DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS
popular nas proprias occasiões em que lhes é mais adversa a opinião.
II
Em frente da corôa, e lutando por contrapesar a larga influencia que lhe dá a lei e a tradição, levanta-se o elemento democratico, nem sempre como um activo collaborador na empreza de reger o estado, senão como um emulo cioso de seus brios e mal soffrido de que o chefe da nação ultrapassa em damno da communidade, os limites do seu poder constitucional.
E quaes são os instrumentos com que o povo póde segurar as suas liberdades contra os abusos tão frequentes do poder? São uns directos; os outros indirectos. Pelos primeiros o povo concorre officialmente ao governo da nação. Pelos segundos exerce como que uma potestade tribunicia, cujo veto não tem sancção reconhecida pelas leis, e que na esphera legal só póde produzir os seus effeitos salutares pelo influxo de uma instituição extra-official e consuetudinaria — a censura politica e a força moral da opinião.
Os instrumentos directos, que a lei fundamental faculta ao povo para equilibrar em certa maneira a omnimoda auctoridade do monarcha, resumem-se todos na eleição dos seus representantes e nas attribuições legislativas da assembléa popular.
As duas causas principaes de influencia para a corôa são: o ter ao seu dispor a força publica e o poder a cada passo levantar pelo tributo os subsidios de que careça para exercer a sua acção. Pelo voto annual do imposto e da despeza e pela fixação da força publica, a representação nacional tem a faculdade, mais apparente que effectiva, de negar os recursos e os exercitos aos governos de que descrê, e de se prevenir e acautelar contra os desmandos e usurpações, que fariam descair em verdadeira tyrannia o governo da nação.
Contra estas armas populares, que são o Aventino e o Monte Sacro da moderna democracia, tem a corôa, porém, o adiamento, o veto, a dissolução, o direito de modificar a seu sabor a segunda camara, e de a separar cada vez mais dos interesses populares, de que a traz quasi sempre divorciada a sua indole essencialmente aristocrática e a sua perpetuidade hereditaria.
Para reforçar o povo na sua perpetua contenção com o poder, que não emana directamente do seu seio, é preciso que a lei fundamental assegure aos cidadãos tres grandes immunidades naturaes, primitivas, incontestaveis, anteriores e superiores a todo o pacto constitucional.
A primeira é a liberdade do pensamento e da sua expressão oral e escripta.
A segunda é o direito de pacifica associação.
A terceira é a faculdade de se reunirem os cidadãos para discutir os assumptos do governo e accordar nos meios pelos quaes possa prevalecer, a vontade da nação.
O combate dos diversos elementos populares com as attribuições legaes ou abusivas do poder, é a monarchia representativa, ou esta fórma de governo, em que a realeza hereditaria cede ao povo uma parcella na gerencia dos interesses sociaes. São varias as alternativas d'este certame politico, em que umas vezes a corôa alcança reprimir as aspirações mais ou menos democraticas, e outras vezes o povo consegue firmar nas instituições ou nos costumes uma nova immunidade, uma nova concessão na partilha do poder.
A historia constitucional da monarchia britannica, porque é a mais dilatada e a mais copiosa de factos parlaraentares, offerece no decurso de muitos seculos os mais notaveis exemplos da luta constitucional, e da successiva evolução, pela qual o povo tem procurado em cada epocha restaurar o equilibrio, amiudadas vezes roto pela audaz preponderancia dos soberanos.
Desde que, sob o influxo do conde de Leicester, o povo apparece pela primeira vez como um elemento essencial no parlamento britannico; desde que, pelo celebre estatuto De tallagio non concedendo, o rei Eduardo I reconheceu solemnemente e consagrou na constituição, que nenhum imposto podia levantar-se sem o livre assentimento das assembléas da nação; desde este primeiro esforço do governo parlamentar até ao reinado do infeliz Carlos I, a constituição britannica, ora com as armas em diuturnas e cruentas guerras civis, ora com os civicos esforços nas lutas da palavra, experimenta uma larga e fecunda transformação. Pela famosa petição dos direitos confirmaram-se e ampliaram-se os antigos fóros populares, tantas vezes ultrajados, principalmente sob o despotismo dos Tudors. A insensata persistencia, com que a casa dos Stuarts intentou depois do seu primeiro desthronamento renovar o direito divino, e a monarchia absoluta segundo James I a havia formulado, justificou a revolução que poz no throno o principe de Orange e com o bill of Rights (o acto sobre os direitos dos cidadãos) enlaçou finalmente a realeza com os fóros imprescriptiveis de nação. Não parou comtudo em 1689 a continua transformação das leis fundamentaes na Iuglaterra liberal. Em 1829 os proprios conservadores expungiram da constituição britannica estas opprobriosas incapacidades, que negavam a plenitude dos direitos de cidadão aos catholicos inglezes e revogando os actos de Test e Corporation, lançaram os fundamentos á liberdade de consciencia. Em 1832 o Reforn Bill firmou em bases mais conformes ás liberdades populares a representação parlamentar. Finalmente irrompeu a democracia pelas novas e largas ampliações introduzidas no direito do suffragio pela recente reforma eleitoral.
É a monarchia representativa, no dizer de um dos mais celebrados escriptores e estadistas da Gran-Bretanha — um systema de forças concorrentes. Da intensidade e direcção da sua resultante depende a efficacia do seu trabalho e a estabilidade do mechanismo em que funccionam.
Para remediar os inevitaveis desequilibrios do systema, restituir ao apparelho constitucional o seu movimento regular, e premunir a nação contra as turbações e discordias civis, não ha outro meio pacifico e legal senão a reforma das instituições, e a correcção dos seus defeitos, quando a experiencia os tem reconhecido o a consciencia publica os tem devidamente condemnado.
As armas, com que a lei apercebeu os cidadãos para resistirem ao poder, em tempos de menos rasgadas aspirações, já hoje são insufficientes para refrear os seus abusos.
A regra dos progressos sociaes na humanidade, é que a democracia avance e conquiste palmo a palmo o seu terreno, e que os poderes tradicionaes vão cerceando mais e mais as suas a principio quasi illimitadas attribuições.
III
As necessidades reaes de cada povo são as que devem determinar as suas reformas politicas e sociaes. Mas é bem que nos exemplos estranhos attentemos seriamente, não para que sejam elles a rasão exclusiva do nosso proceder, senão para que nos allumiem nos passos mais obscuros do caminho com a luz da experiencia alheia. E quando vemos que as monarchias representativas, onde é melhor quinhoada a democracia, são as que mais asseguram com a paz e liberdade o bom governo, não o rasão que nós fiquemos atidos a uma imperfeita constituição, á espera de que a tenção crescente da opinião final se desata em temerosas explosões.
Nenhum povo de origem latina se rege presentemente por uma constituição tão ciosa como a nossa de toda a larga interferencia popular. Não admira que o Brazil obedeça a um codigo politico, em que se canonisa e se respeita a soberania nacional; sempre as colonias, quando emancipadas, souberam dar lições de liberdade ás metropoles, encadeadas á tradição. Na Europa achâmos exemplos concludentes de que a purpura dos réis se póde roçar sem perigo pela toga dos cidadãos. A Belgica, um dos povos mais florescentes e pacificos, associou sem quebra da sua paz e da sua prosperidade, uma dynastia electiva ás formas de uma