1914 DIARIO DA CAMARA DOS SENHORES DEPUTADOS
PRIMEIRA PARTE DA ORDEM DO DIA
Continúa a discussão do projecto n.° 49, relativo as levadas de agua na ilha da Madeira
O sr. Tavares Crespo: - Impuz-me a obrigação de ser breve, brevissimo, porque assim o exige a occasião apertaria em que esta discussão tem lugar, sob pena de ficar prejudicada.
Ouvi um dia uma phrase feliz ao sr. Marianno do Carvalho, ministro da fazenda. Disse s. exa. que, quando os doutores estavam de accordo, havia por força discussão. É realmente o que se dá n'este projecto. Todos estamos de accordo na sua importancia, na sua necessidade inadiavel, todos estamos de accordo em que é preciso regularisar o contrato celebrado ha dez annos e que ainda não pôde ter até hoje resolução da parte dos poderes publicos.
A questão que se trata é simples. Os hereos de algumas levadas da ilha da Madeira entendendo que podiam ser prejudicados se passassem a poder de terceiros os terrenos onde tinham origem algumas das nascentes ou fontes que abastecem as mesmas levadas, em cuja posse se achavam desde tempos immemoriaes, resolveram ir á praça e arrematal-os.
Em quanto esses terrenos eram possuidos pelas freiras, como estas tinham iguaes interesses aos dos mesmos berços, porque aquellas nascentes tambem íam irrigar a grandes distancias outros terrenos mais valiosos limitrophes com os dos hereos, nenhum receio havia de perturbações futuras. Desde que, porém, tanto uns como outros terrenos, os que tinham nascentes de aguas e os que não as tinham, passavam ao dominio de terceiros, por virtude das leis da desamortisação, mudava a questão de face, e justo fundamento começava a existir de futuras perturbações.
Foi esta a rasão da acquisição: pensar na conservação do manancial do aguas, em cuja posse se achavam e acham mansa e pacificamente.
Não sei se toda a camara conhece a fórma por que foram feitas e são aproveitadas as levadas da ilha da Madeira. Eu não as conhecia. Tive de estudal-as no relatorio que precede o projecto e de colher informações de quem n'aquelle assumpto me podia dal-as; refiro-me ao meu amigo, o illustre deputado Manuel José Vieira.
As levadas de que se trata, e como ellas muitas outras, conduzem aguas, na extensão de 15 e 20 kilometros, trazendo-as das altas montanhas que ha no centro da ilha. Estas obras são despendiosissimas, têem obras de arte em toda aquella extensão, e tiveram necessidade de as fazer construir subindo umas vezes aos pincaros das montanhas, outras a profundissimas gargantas estreitas de terrenos, para, por meio d'essas obras, obstarem a que as mesmas aguas seguissem o seu pendor natural.
Ha levadas que pertencem ao estado. Outras ha, e taes são aquellas a que se refere o relatorio que precede o projecto, que pertencem aos particulares. As do estado foram construidas á custa exclusiva d'elle, por via das repartições technicas; as que pertencem aos particulares têem sido igualmente construidas, e exclusivamente, por differentes associações de hereos, mediante largas despezas.
Ha muitos annos que estão na posse quasi immmorial do uso e aproveitamento d'essas aguas. Por consequencia, desde que os terrenos onde nasciam as aguas, podiam, por virtude da desamortisação e da passagem a novos possuidores, trazer quaesquer perturbações futuras, com rasão entenderam dever obstar a futuras questões.
Mais ainda: essas aguas não só vão irrigar os campos, mas são aproveitadas n'um e n'outro ponto para usos domesticos, comtanto que nem turvem a corrente nem a embaracem ou desviem.
Bem fizeram, pois, os proprietarios ou hereos em adquiril-as pelos meios legitimos.
Levantou-se, porém, a questão sobre só a associação dos hereos era um corpo moral, porque o codigo civil pelo artigo 1:561.° prohibe a essas corporações a acquisição do bens de raiz, e o artigo 35.º define tambem que as pessoas moraes não podem adquirir bens de raiz senão dadas certas e determinadas circumstancias. O codigo civil no artigo 1:561.° diz:
(Leu.)
A estação competente teve duvidas sobre a natureza d'estas associações, e d'ahi a duvida sobre o modo por que os titulos de acquisição deveriam ou poderiam ser passados, estando os interessados ha dez annos no desembolso do seu capital, porque o entregaram, effectuando os preços de compra, e sem a propriedade, porque sem os titulos ainda não poderam tomar conta d'ella.
Por isso vieram perante os poderes publicos.
O codigo civil, artigo 676.º, manda annullar os contratos quando houver inexecução no cumprimento das condições, se o pactuante, que as satisfez pela sua parte, não quizer exigir o cumprimento exacto do contrato; e, tratando em especial da compra e venda, o artigo 1:549,° não permitte que uma das partes fique com o preço do producto da venda sem entregar a propriedade vendida.
Isto é disposição expressa de direito.
A fazenda nacional não é privilegiada; não póde ficar com os valores da praça e ao mesmo tempo não restituir a propriedade a quem de direito for.
Ora sabe v. exa. em que estado isto se encontra?
Os que cultivam terrenos que foram arrematados não pagam ha dez annos as rendas respectivas, nem ás freiras, porque ellas já têem em si o preço e nada têem com o que venderam, nem aos hereos arrematantes, porque ainda não poderam estes entrar na posse dos terrenos.
Aqui está a situação em que se acham os proprietarios que arremataram em praça esses terrenos.
Urge, portanto, tratar d'este assumpto; não podem continuar as cousas como estão hoje.
Aqui não se trata senão de definir um direito consignado no codigo civil, não se trata senão de tornar effectiva uma acquisição que eu entendo que foi bem feita, e entende tambem a commissão de legislação civil.
No ponto de direito subjectivo não ha divergencias, a questão é toda de fórma.
O meu amigo o sr. Moraes Carvalho, cujo talento respeito, entende que este projecto de lei não devia concluir pela fórma interpretativa, mas sim por uma disposição de lei nova, como additamento ao codigo civil; o a commissão entende que na legislação actual ha elementos para resolver a questão pelo meio interpretativo e sem necessidade de promulgar-se nova lei.
Agora no que estamos todos de accordo é em que é preciso resolver alguma cousa.
O sr. Moraes Carvalho já definiu com a sua costumada proficiencia o que sejam pessoas moraes e associações perpetuas; e considerando, apenas juridicamente, as associações de hereos como corpos do mão morta, argumentava: se fossem consideradas como sociedade particular, desde que um dos socios saísse d'ella a associação deixava de existir por effeito do artigo 1:276.° n.° 4.° do codigo civil.
Mas se a sociedade, respondo eu, fosse considerada como associação secreta, tinha de applicar-se o artigo 36.°, que diz:
«Se alguma das corporações ou associações (perpetuas) por qualquer motivo se extinguir, os seus bens serão incorporados na fazenda nacional, quando lei especial lhes não tenha dado outra applicação.»
Portanto, os artigos 32.° e seguintes do codigo civil referem-se evidentemente a outras corporações moraes exemplificadas no artigo 37.°, e não ás associações do hereos, que se regem no direito successorio e em todos os seus direitos civis palas disposições das sociedades particulares.
Se fossem sociedades moraes, perpetuas, como quer o