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N.º 50
SESSÃO DE 15 DE JANEIRO DE 1879
Presidencia do exmo. sr. Duque d’Avila e de Bolama
Secretarios — os dignos pares
Visconde de Soares Franco
Eduardo Montufar Barreiros
(Presente o sr. ministro da justiça.)
Ás duas horas e um quarto da tarde, achando-se reunidos 23 dignos pares, foi declarada aberta a sessão.
Lida a acta da precedente julgou-se approvada, por não haver reclamação em contrario.
Não houve correspondencia.
O sr. Palmeirim: — A commissão encarregada por esta camara, de ir a Santarem assistir ao acto solemne da trasladação dos restos mortaes do nobre marquez de Sá da Bandeira, cumpriu o seu dever, recebendo por essa occasião da parte da filha e genro d’aquelle benemerito cidadão a incumbencia de testemunhar á camara o seu reconhecimento pelo acto de deferencia e respeito prestado por ella á memoria de seu pae e sogro.
O sr. Presidente: — Lançar-se-ha na acta a declaração que acaba de fazer o digno par o sr. general Palmeirim.
(Entrou o sr. ministro da marinha.)
ORDEM no DIA
O sr. Presidente: — Vamos entrar na ordem do dia, que é a continuação da discussão sobre a interpellação do digno par, o sr. marquez de Sabugosa, ao sr. ministro da marinha.
Continua com a palavra o digno par o sr. Vaz Preto.
O sr. Vaz Preto: — Antes de entrar na materia, peco a v. exa. que se digne declarar se sobre a mesa estão já os documentos que requeri fossem enviados a esta camara pelo ministerio da marinha, documentos que julgo indispensaveis para se tratar a questão que está na ordem do dia, e que pedi com urgencia. A camara votou que se expedisse este requerimento, e bem assim a sua urgencia.
O sr. Presidente: — Á mesa ainda não chegaram os documentos requeridos pelo digno par o sr. Vaz Preto.
O sr. Ministro da Marinha (Thomás Ribeiro): — Assim que recebi o requerimento do digno par, o sr. Vaz Preto, dei as ordens convenientes para elle ser satisfeito. É provavel que não tenha havido tempo de passar esses documentos, e sinto que s. exa. se veja por essa motivo privado d’elles n’esta occasião; mas n’este momento não posso fornecer-lhos.
O sr. Vaz Preto: — Desejo tratar esta questão debaixo do ponto de vista do interesse publico, como aconselhou o sr. ministro dos negocios estrangeiros, no discurso que pronunciou na ultima sessão; e por assim o desejar é que pedi documentos importantes, porque estimaria que a camara tivesse todos os elementos pelos quaes podesse avaliar profunda e maduramente a concessão que faz o assumpto d’este debate.
Os documentos a que ha pouco fiz referencia, derramam muita luz, e quasi que se podem reputar indispensaveis para esclarecimento do assumpto. Infelizmente não foram mandados, não estão sobre a mesa, não podem ser examinados nem por mim, nem pela camara. É verdade que a culpa não provem do sr. ministro da marinha, como s. exa. acaba de declarar para satisfazer á pergunta que dirigi á mesa; mas tambem não é menos verdade, que eu pedi esses documentos com antecipação para poderem ser remettidos á camara. Passarei, pois, sem esses esclarecimentos, e a camara passará tambem sem esses meios de informação no meu entender muito uteis, porque dizem respeito exactamente a uma concessão analoga á de que se trata, pedida ha muito pouco tempo, e ha muito pouco tempo tambem rejeitada pelo governo! A falta dos documentos, dos verdadeiros meios de instrucção em casos d’estes, só póde ser supprida por esclarecimentos verbaes do ministro, e por isso na sessão de antes de hontem dirigi eu ao sr. ministro da marinha varias perguntas, ás quaes s. exa. teve a benevolencia de responder com a maior promptidão. Prestei, como devia e como convinha, a maxima attenção ás respostas que o illustre ministro deu a cada uma das minhas perguntas, esperando que ellas dissipassem no meu espirito as duvidas, desfizessem as apprehensões, e por fim aniquilassem a impressão desagradavel que lhe tinha causado a concessão. Não foi, porem, assim; as duvidas cresceram, as apprehensões fortaleceram-se mais, e a impressão desagradavel augmentou ainda. As declarações do sr. ministro da marinha, se não poderam destruir-me ama impressão que me causara o decreto de 26 de dezembro de 1878, forneceram-me ao menos elementos para poder tratar a questão na sua altura.
Tratal-a-hei debaixo do ponto de vista do interesse publico, como devem ser tratadas todas as questões que interessam a Portugal, promovendo o desenvolvimento das suas colonias. Para se tratar, porém, o assumpto como merece, é mister saber precisamente o que é, o que significa, e até onde chega a concessão feita pelo decreto de 26 de dezembro de 1878, e depois se ella está nos limites da legislação vigente.
Das palavras do sr. ministro da marinha conclue-se, e eu conclui, que nem s. exa. estava de accordo com o seu collega dos estrangeiros no modo como deve ser considerada a concessão, nem provavelmente com o sr. ministro da justiça, que já consultou sobre uma concessão similhante, e em sentido completamente desfavoravel.
Seria, pois, util á discussão, conveniente para a camara, necessario para o paiz, que estes tres ministros, que deviam estar de accordo sobre um ponto tão importante, expliquem as suas divergencias, desfaçam as suas contradicções; em summa, dêem só uma e unica interpretação a cada artigo do decreto, de fórma que não possa haver a mais leve duvida.
Se a elles todos cabe este dever, ao sr. ministro da justiça, como fiscal da corôa, que consultou sobre assumpto analogo, tem dever expresso, a que o obriga a sua posição, de accentuar as suas idéas, e de explicar o documento de que tem responsabilidade, e que o sr. Corvo pretendeu desfigurar.
A camara precisa saber qual é a opinião do sr. ministro da justiça neste debate.
As contradicções do sr. ministro dos estrangeiros que eu tornei bem salientes na ultima sessão, a divergencia de s. exas. quanto á concessão, e o silencio do sr. ministro da justiça revelam clara e manifestamente que o decreto é embrulhado, que o decreto é confuso, que o decreto carece de interpretação authentica, emfim que o governo nem sabe, nem soube, o que concedeu ao sr. Paiva de Andrada.
A primeira cousa que pede a prudencia, que aconselha
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o bom senso, e que é dever de todos os governos é de serem escrupulosos em actos d’esta natureza, que dão direitos e criam obrigações.
Em concessões d’esta ordem deve-se estabelecer clara e precisamente tudo que se concede, e a fórma por que se concede, de modo que os artigos do decreto não se prestem a interpretações differentes, o que póde ser origem de contestações e conflictos prejudiciaes ao estado, principalmente quando esses conflictos são com companhias, emprezas ou sociedades estrangeiras.
Nós já tivemos bastantes dissabores, e já pagámos caro esses conflictos, e podemos ainda vir a pagal-os muito mais caro por leviandade indesculpavel do actual governo.
Devemos, pois, acudir-lhe em quanto é tempo, e empregar os meios, para que, a haver de fazer-se qualquer cousa, seja util, racional e acceitavel.
O decreto de 20 de dezembro de 1878 concede no n.° l.° do 1.° artigo o seguinte:
«1.° A posse das minas de oiro conhecidas, e não exploradas, pertencentes ao estado, situadas nos terrenos portuguezes, comnprehendidos na area fechada pelas semicircunferencias mais afastadas de dois circulos, tendo como centro a villa de Tete e o forte do Zumbo, e como raio a estensão de 36 leguas, e pelas duas linhas parallelas tangentes aos mesmos circulos.»
Não pude conseguir na sessão passada que o sr. ministro me dissesse se estavamos effectivamente de posse do territorio immenso abrangido por uma area de um circulo cujo raio é de 36 leguas, e mais a area de um parallelogrammo do qual um dos lados é da extensão de 72 leguas, tanto é o valor do diametro de qualquer das semicircumferencias, e o outro uma das tangentes igual á distancia de Tete ao Zumbo.
Muito util seria para a discussão que o sr. ministro quizesse hoje dizer-nos qual é o territorio naquella area, em que temos pleno dominio, qual a sua situação, qual a sua extensão, e quaes os terrenos que são exclusivamente do estado?
Sr. presidente, pela simples leitura e por uma succinta analyse d’este decreto se reconhece a confusão e obscuridade.
Quem haverá aqui na camara que saiba dizer ao certo o que esta concessão é, o que ella significa e até onde chega!
As respostas confusas, embrulhadas, pouco explicitas do sr. ministro da marinha, as contradicções palpitantes entre o que s. exa. disse e o que disse o sr. ministro dos negocios estrangeiros, o desaccordo completo em que estão os dois ministros, asseverando o sr. Thomás Ribeiro que as minas concedidas são as de Tete e do Senna, e o sr. Corvo que as minas do fertilissirno paiz do Senna estão excluidas da concessão, mostram á camara que o acto do governo foi precipitado, que é irregular e injustificavel.
Sr. presidente, no n.° 1.° do 1.° artigo a concessão feita pelo governo ao sr. Paiva de Andrada consta das minas de oiro conhecidas e não exploradas.
A idéa que vem logo á mente é perguntar que minas são essas, quantas são, onde estão situadas, quaes as suas condições, emfim quaes as informações dos governadores a este respeito?
Esta pergunta fiz para conhecer a amplitude da concessão; a resposta, porém, do sr. ministro da marinha mostrou que o seu conhecimento sobre similhante assumpto era nullo, ou quasi nullo, e tão pouco seguro estava, que me recommendou a leitura de um livro que o sr. Corvo lhe ministrou para occorrer ás difficuldades da occasião.
Esse livro, que falla das nossas colonias e de Moçambique, refere-se tambem a algumas minas, mas não a todas. Não sabe, portanto, s. exa. nada ao certo pelo que respeita a minas pertencentes ao estado, e pouco sabe ácerca do territorio em que temos pleno dominio n’aquellas paragens. Affirma não obstante que possuimos ali em terrenos baldios e incultos mais de 50:000 hectares, posto que separados.
A camara ficará comprehendendo por esta affirmativa, que a declaração do sr. ministro dos negocios estrangeiros, quando asseverou que possuiamos ali reunidos mais do 100:000 hectares de terrenos baldios e incultos, não é exacta.
As informações officiaes dos governadores dizem e affirmam o contrario quando foram consultados ácerca do concessão analoga, mas muito mais modesta.
Sr. presidente, este modo de responder do sr. ministro da marinha é curioso e original. A minha pergunta era simples, e s. exa. julgou a tão complexa que entendeu necessario um livro inteiro para a satisfazer, e por isso devolveu para mim esse livro tão maravilhoso, que serviu de principal elemento e auxilio ao sr. ministro dos negocios estrangeiros, para fazer a excellente prelecção geographica e historica que a camara ouviu attentamente; a indicação que elle faria de certas minas veiu a proposito, e em soccorro á memoria do sr. ministro da marinha, que não se lembrava de nenhuma a que se referisse a concessão.
Sr. presidente, citando esse livro, fez o sr. Corvo varias considerações ácerca da fertilidade do territorio que possuimos junto ao Senna, e declarou que as minas d’esta região ficavam fora da concessão, que as concedidas eram apenas as de Tete.
O sr. ministro da marinha, citando o mesmo livro, afiirma-nos que as minas concedidas são tanto as do Senna como as de Tete!
Perguntarei ao governo, á camara, a cada um dos dignos pares de per si, o que tem este livro com a concessão? Para que vem elle explicar o que devia ser claro, e o que no decreto não está? Qual é, pois, a opinião do governo no caso sujeito? Acceita a do sr. Crrvo, ou fica predominando a do sr. Thomás Ribeiro? Porque não explica o sr. ministro das justiças, como habil jurisconsulto que é, o pensamento do governo e os artigos do decreto?
O que se conclue, pois, de tudo isto é que o governo não sabe quaes são as minas, não sabe qual é o terreno que concede, nem sabe se esse terreno lá existe!.. . Sr. presidente, eu tenho insistido em querer saber definidamente qual o territorio em que temos posse effectiva, porque só assim a concessão poderá realisar-se. Se cedermos o que não possuimos, a concessão ficará no papel. Os motivos que teem determinado esta minha insistencia têem rasão justificada nas explicações e esclarecimentos que os dois ministros teem dado á camara. O sr. ministro da marinha, fallando da extensão e grandeza das nossas colonias, fez-nos conhecer que a nossa soberania respeitada outr’ora nessas longinquas e extensas regiões, tem sido muito circumscripta pela propaganda, pelo gentio feroz e selvagem, que destruiu já os importantes mercados de Zumbo, onde se fazia grande commercio.
O sr. Corvo, remontando á descoberta de Moçambique e á posse que successivamente fomos tendo n’aquella. provincia, que é mais do que um grande reino, explicou como as tribus pacificas e lavradoras, sujeitas ao dominio do imperador do Monomotapa, cujo sceptro era a sua enchada de oiro com o cabo de marfim, tinham commercio com Portugal, e reconheceram a sua soberania; explicou tambem como mais tarde essas tribus, não podendo resistir aos exercitos de um conquistador negro, ficaram escravisadas, e o seu territorio dominado pelos vencedores. É desde então que o dominio portuguez n’aquellas regiões começou a ter maiores dificuldades a combater, e a ser menos respeitado; é por isso que a nossa soberania, que se estendia muito pelo sertão, está muito mais restricta hoje.
Acrescentou o sr. Corvo a estes esclarecimentos, que deu á camara, muitos outros, e até nos disse, para provar o pouco que nós ali podiamos hoje, que um regulo fizera a um inglez concessão de algumas minas ou terreno em que Portugal tem soberania, e que o governador de Moçambique pretendeu fazer respeitar o direito de Portugal, mas que foram baldados os seus esforços, respondendo-se-lhe
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que a soberania era o dominio. O governador de Moçambique teve de ceder, para não se expor a desastre igual, ou similhante, ao que teve a expedição da Zambezia.
É, pois, firmado nas opiniões dos srs. ministros, nos esclarecimentos que ambos teem dado á camara, que eu me convenço que é difficil conhecer definidamente qual é o territorio n'aquellas paragens em que temos posse effectiva, para poder avaliar a concessão e a sua realisação.
É, pois, tambem apoiado na opinião e nas asseverações dos mesmos ministros, que eu concluo que elles mesmo, e o proprio governo, não sabem o que concederam.
Sr. presidente, se as minhas duvidas sobre a primeira concessão feita pelo n.° 1 são grandes e justificadas, como acabo de expor á camara; se os dados officiaes e esclarecimentos faltam para se comprehender o alcance desta extensissima concessão, as minhas duvidas ácerca da concessão de que trata o n.° 2 não são menores, e as explicações do sr. ministro não me satisfizeram mais, nem tão pouco me esclareceram.
Analysemos este n.° 2, e vejamos se somos mais felizes, e se podemos comprehender o que o governo concedeu:
«2.° O privilegio exclusivo por vinte annos da exploração, com machinas aperfeiçoadas, de qualquer outra mina de oiro na referida area.»
Sr. presidente, o que quer dizer este artigo? O que quer dizer esta redacção? Quererá dizer que se dá um privilegio exclusivo a um individuo ou a uma companhia, para com machinas aperfeiçoadas poder fazer explorações durante vinte annos, ficando aos indigenas, ou a qualquer cidadão portuguez, o direito de explorar com machinas não aperfeiçoadas? Sem duvida a redacção d'este artigo faz sup-por que qualquer indigena ou cidadão portuguez póde fazer explorações com machinas não aperfeiçoadas. Foi esta a primeira interpretação que o sr. Thomás Ribeiro deu, quando respondeu aos srs. marquez de Sabugosa e conde de Rio Maior.
Affirmou que o pensamento do governo foi respeitar a industria dos indigenas que iam ás minas buscar algum oiro para vender em Moçambique.
Agora respondendo á minha pergunta, declara já o sr. Thomás Ribeiro, que o privilegio não póde ser interpretado assim. Isto significa que sobre o mesmo ponto tem já duas opiniões, e que ámanhã terá tres, quatro, ou mais, se lhe convier.
Mas, como eu estou tratando este assumpto no interesse do paiz, peço ao sr. ministro que declare como se deve entender este privilegio; se exclue a tal industria caseira de que s. exa. falla, ou se a permitte?
Pergunto, pois, ao sr. ministro qual é a opinião definitiva do governo pelo que respeita a este privilegio exclusivo?
Se debaixo d'este ponto de vista a concessão não é clara nem explicita, torna-se mais confusa ainda, interpretando-a á face da doutrina do artigo 4.°
A concessão de que trata o n.° 2.é de minas que não foram concedidas pelo n.° l; portanto, de alguma mina ainda não conhecida, e que vier a ser descoberta.
Pergunto agora ao sr. ministro: tendo a companhia de fazer trabalhos em grande escala nas minas que lhe foram concedidas pelo n.° l, irá pesquizar outras, satisfazer a todas as condições de legislação sobre minas, e fazer no praso de dois annos, da data em que se assignar o contrato definitivo, trabalhos desenvolvidos?
Uma de duas: ou n'esta concessão ha uma parte occulta, que a camara não vê, ou ella é inutil e irrealisavel.
A concessão do n.° 4 está no mesmo caso, visto que a doutrina do artigo 4.° estabelece que todos estes privilegios caducam no fim de dois annos, se não houver trabalhos em grande escala.
Uma companhia para fazer estas explorações é necessario que seja poderosa, que tenha capitães enormes; e a não ser assim não sei como se possa fazer trabalhos em todas as minas conhecidas, e ao mesmo tempo fazer pesquizas e explorar no praso de dois annos.
Sr. presidente, pelas ponderações que tenho feito ácerca das concessões dos n.ºs 1 e 2, vê-se que o governo não tem opinião formada, e não sabe mesmo o alcance d'aquellas concessões. Essa mesma ignorancia, essa mesma duvida e essa mesma hesitação tem elle pelo que respeita ás outras designadas por outros artigos do decreto de 26 de dezembro de 1878.
Quer v. exa. saber, e a camara, a interpretação dada pelo sr. ministro da marinha ao n.° 4? Eu lh'a vou expor.
Essa interpretação, a ser real, prova claramente que mesmo o proprio governo não tem a mais leve idéa sobre concessão que fez.
Como a bacia hydrographica do Zambeze é extensissima, e como, pelas declarações dos dois ministros, sabia que o nosso dominio não se estende por toda aquella bacia, perguntei o que era a bacia hydrographica do Zambeze; qual era o territorio em que Portugal ali tinha posse effectiva; qual a demarcação deste territorio que se concedeu ao sr. Paiva de Andrada.
Sabe v. exa., e a camara, qual foi a resposta do sr. ministro ás perguntas convenientes que eu lhe fiz? Sabe v. exa., e a camara, como o sr. ministro da marinha descreve a bacia hydrographica do Zambeze?
Sabe v. exa. o que o sr. Thomás Ribeiro entende pela bacia hydrographica do Zambeze, e como a define? Diz que a bacia hydrographica do Zambeze são as aguas vertentes!
Sr. presidente, vir um ministro da corôa declarar em pleno parlamento, que a bacia do Zambeze são aguas vertentes, se não significa esta asserção pouco estudo, revela pelo menos falta de consideração pelo saber e illustração da camara. Esta resposta não se commenta, deixa-se á apreciação da camara e ao juizo do publico.
Perguntei o que significava aquella concessão, e como se entendia?
Que limites tinha aquella bacia do Zambeze?
O que é que nós ali possuimos?
Quaes os terrenos occupados por esse gentio, outr'ora pacifico, hoje guerreiro, de que nos fallou o sr. Corvo?
E qual a resposta do sr. Thomás Ribeiro?
A camara pôde, porventura, da definição dada pelo sr. ministro da marinha perceber o que é a bacia hydrographica do Zambeze?
Algum digno par saber-me-ha explicar como por aguas vertentes se deva entender a bacia do Zambeze?
Sr. presidente, como por esta definição do sr. Thomás Ribeiro não se póde entender a concessão, eu vou dizer á camara o que é essa bacia, e assim virá a conhecer o que o governo concedeu.
A bacia do Zambeze é immensa, não está ainda explorada, nem mesmo conhecida toda, e uma grande parte não nos pertence; existem n'aquella região vastos terrenos, de que não temos posse effectiva, e é sobre esta area immensa que o governo faz uma concessão tão lata! Eu vou ler á camara o livro que serviu para a prelecção scientitica que nos foi feita aqui pelo sr. Corvo, na parte que nos póde interessar n'este momento. E como não possuo a extraordinaria memoria do sr. ministro, que aliás muito admiro, prefiro, fazer a leitura do livro no que diz respeito á bacia hydrographica do Zambeze.
Este livro, a que me refiro, é a Geographia e estatistica geral de Portugal e colonias, pelo sr. Pery, trabalho magnifico, em que se encontra a mais larga e desenvolvida noticia de Moçambique, dos seus terrenos, da sua cultura, da parte explorada, e que resume em si todos os elementos, até hoje conhecidos, d'esta importante provincia. Referindo-se á bacia hydrographica do Zambeze, diz:
«Zambeze. A bacia d'este rio, um dos mais consideraveis da Africa, tem uma superficie approximada de 91:750 leguas quadradas e abrange as immensas planicies do inte-
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rior do continente, habitadas por tribus sujeitas a alguns potentados, dos quaes o principal é o Matiamvo.»
Aqui tem v. exa. a concessão que o governo acaba de fazer para uma exploração na bacia liydrographica do Zam-beze, quando a maior d'ella está sujeita a potentados indigenas, pertence a tribus nomadas, selvagens e guerreiras, que estão de posse d'este terreno, e que o governo, se quizer tornar boa a concessão, tem de mandar para lá todo o exercito de Portugal, e para que se possa tornar effectiva a posse d'aquelle territorio nem todo o exercito bastaria, passados alguns annos.
Sr. presidente, isto não precisa de commentarios, basta unicamente fazer um singelo enunciado da vastissima concessão, para se avaliar a imprudencia e imprevidencia do governo; e a camara e o paiz avaliarão se o governo podia ou devia, nas proximidades da abertura do parlamento, fazer uma surpreza d'esta ordem. (Apoiados.)
Eu perguntaria se estando o parlamento proximo a abrir-se o governo deveria proceder por esta fórma? (Apoiados.}
Eu perguntaria se haveria algum governo, a não ser presidido pelo sr. Fontes, que se atrevesse a fazer a um individuo só uma concessão tão vasta, tão importante?
Por mais respeitavel que seja o concessionario não póde dar garantia de que se realise a concessão, como a não póde dar ninguem individualmente.
Sr. presidente, parece-me que a analyse d'esta parte do decreto de 26 de dezembro de 1878 não é favoravel ao procedimento do governo, que não póde deixar de se taxar de irregular, e abusivo até.
Se a analyse d'esta parte do decreto condemna o governo, a do restante não lhe é mais favoravel.
Vejamos o que diz o artigo 2.°
«Artigo 2.° Fica auctorisado o governador geral da provincia de Moçambique a conceder aos referidos Paiva de Andrada, e ás companhias que elle organisar, terrenos baldios e incultos pertencentes ao estado, situados na região da Zambezia até á extensão de 100:000 hectares, e á medida que lhe forem requeridos, observando se as disposições legaes em vigor».
Perguntado o sr. ministro da marinha em quanto ao modo de só entender a doutrina deste artigo á lace da legislação vigente, declarou que o governador faria concessões successivas até aos 100:000 hectares de terreno.
Esta declaração tem nada mais nada menos o inconveniente de não se poder realisar a concessão dos 100:000 hectares de terrenos.
Como as explicações do sr. ministro da marinha a este respeito são inacceitaveis, desejaria ouvir o sr. procurador geral da corôa, que é o fiscal da lei, e estou certo que não concordará com o sr. Thomás Ribeiro, e cue explicará este artigo á face do direito estabelecido, de fórma que não haja duvidas. Segundo as explicações do sr. ministro o acto do governo não importa a postergacao das leis em vigor.
Como, pois, combinar a auctorisação dada ao governador por este decreto com a legislação em vigor?
Como poderá este funccionario fazer as concessões á proporção que o concessionario as for pedindo até 100:000 hectares de terreno?
Sr. presidente, v. exa. sabe perfeitamente, e o sr. procurador geral da corôa sabe melhor do que eu, que os terrenos baldios e incultos só podem ser alienados ou pelo governo da metropole, ou pelos governadores geraes, e que estes pela legislação vigente só têem poder de alienar até 500 hectares pela venda, e pelo aforamento até 1:000 hectares.
No primeiro caso não podem conceder mais de 500 hectares, e no segundo de 1:000.
Portanto, salvaguardando as disposições legaes em vigor, os governadores, n'este caso, não podem fazer senão cinco concessões, porque a lei lhes marca que feita a primeira concessão, e verificado depois de cinco annos que os terrenos foram cultivados e aproveitados, poderá fazer a segunda.
Procedendo-se da mesma fórma com a segunda poderá fazer a terceira, e assim successivamente.
Como pela lei em vigor o governador não póde ceder mais de 1:000 hectares, segue-se que o concessionario Paiva de Andrada, se satisfizesse as prescripcões da lei, aproveitando o terreno, só poderia obter do governador no praso de vinte annos a concessão de 5:000 hectares.
Não ha nenhum artigo n'este documento, que se discute, que não se preste a muitas interpretações, e por consequencia que não tenha o perigo de trazer no futuro questões e conflictos, que são sempre desagradaveis.
Nós já sabemos o que nos tem custado os conflictos que temos tido com algumas companhias.
Estas difficuldades que podem advir de uma concessão tão embrulhada, e que admitte tão variadas interpretações, são pequenas a par de outras que hão de ser trazidas pelas immensas despezas que é necessario fazer para que a concessão se realise.
Este ponto é o principal, occupemo-nos d'elle com seriedade.
O artigo 3.° do decreto diz que «a companhia será considerada portugueza para todos os effeitos, e que o governo garante a concessão que fez».
Esta concessão não se póde realisar senão por duas formas, ou dar á companhia, que deve ser uma companhia poderosa, vantagens e privilegios que pertencem exclusivamente ao estado, e iguaes áquelles que o governo inglez concedeu ás companhias que converteram a Australia e o Canadá em colonias importantissimas e florescentes da Inglaterra, ou gastar o governo, para garantir e tornar boa a concessão, sommas enormes, e fazer despezas com que a metropole não póde.
No primeiro caso, os privilegios e garantias que concede, são os taes direitos magestaticos de que tanto nos fallou o sr. Thomás Ribeiro.
No segundo, temos de preparar um exercito em condições para satisfazer ao fim, e isto não se faz sem muito e muito dinheiro.
Em qualquer destas hypotheses o procedimento do governo é censuravel e illegal, por que attribuições d'esta ordem são exclusivas do parlamento.
Quem deu ao governo o direito de se substituir á constituição do estado? Ignora, porventura, o sr. Fontes, que ao parlamento compete exclusivamente votar as despezas e os impostos, e marcar as forças de mar e terra ordinarias e extraordinarias? Quem deu ao governo o direito demandar um exercito para Moçambique para garantir os interesses da companhia? Quem deu ao governo o direito de alterar a lei fundamental do estado, muito principalmente não havendo caso algum extraordinario que exigisse medidas urgentes e remedio prompto, e na proximidade da abertura do parlamento? (Apoiados.)
Este acto do governo fóra da lei é uma surpreza leviana que desconsidera o parlamento e que ataca as instituições. (Apoiados.}
Quem deu, pois, ao governo o direito de proceder assim, e de fazer uma concessão tão lata e de tamanho alcance?
Ao governo não lhe assiste n'este caso direito algum, e não obstante tem a ousadia de postergar direitos e de ir crear forças consideraveis no ultramar para sustentar um acto seu fóra da lei, ou então de ceder ao concessionario, ou á companhia que elle organisar, direitos que pertencem á soberania, direitos magestaticos, como tinha a companhia das Indias, essa companhia que o sr. Corvo elevou até ás nuvens, e que o sr. Thomás Ribeiro deprimiu a tal ponto, que não teve duvida de asseverar que ella tinha trazido graves desgostos á Inglaterra, tendo-a até feito passar por abjeccões?
É verdade que ao passo que o sr. Thomás Ribeiro nos dizia que tinha nas suas mãos documentos que provavam
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essas abjecções, affirmava o sr. Corvo que a essa companhia devia a Inglaterra as riquezas da Australia e a prosperidade do Canadá!
Sr. presidente, divergencias constantes, desaccordos a todos os momentos, contradicções no modo de cuidar das colonias, é o espectaculo que nos está dando o governo neste debate.
Quererá o governo continuar a governar sem coherencia de principios e sem systema de administração? Em logar de coherencia de principios, de systema de administração, de zêlo pelas cousas publicas, o governo dá-nos apenas ás contradicções que nós presenciâmos aqui todos os dias! (Apoiados.)
Ao mesmo tempo tambem que o sr. Corvo affirmava que só por meio de companhias se poderia colonisar a Africa, dizia o sr. Thomás Ribeiro que, se Portugal votasse bastantes meios no seu orçamento para o ultramar, seguindo o exemplo da França, que gastava com as suas colonias, não entrando as de Argel, 6:000 contos, elle ministro procederia por administração do estado, e não pensaria mais em companhias!
Note a camara, que o sr. Corvo affirmava que, ainda que Portugal tivesse muitos meios, muitos recursos, não teria outro systema a seguir para a colonisação senão o da organisação de companhias e emprezas, que na Africa fossem, com a esperança do lucro com o trabalho e capitães, levar a civilisação áquellas paragens; e o sr. Thomás Ribeiro dizia que, havendo meios, votando o parlamento sommas em proporção da França e Hollanda, muito se conseguiria das colonias sem se precisar de companhias!...
São tantas e tão repetidas as contradicções, que vae sendo inutil mencional-as. Não obstante, sobre certos pontos, merecem ser registadas.
Sr. presidente, tendo o governo de garantir a concessão, carece de meios. N'este caso desejo que o governo declare á camara quaes são as garantias de que póde dispor dentro das leis vigentes, para dar ao concessionario, ou á companhia, sem alterar a constituição do estado, e quaes as medidas ordinarias ou extraordinarias que está resolvido a pôr em execução?
Em quanto calcula o governo a somma que será obrigado a despender para dar a protecção devida e necessaria ao concessionario, e ás companhias que elle organisar, para que ellas possam levar ao fim os seus intuitos?
É preciso ter meios para os poder dar, recursos para as aproveitar.
Sabe o governo se tem esses meios para dar, e se o paiz quer dispor dos recursos que tem? Nenhuma companhia por certo, deve pôr em risco capitães, sacrificar vidas, e vencer ásperas dificuldades, se não tiver garantias eiTica-zes que a protejam.
A questão principal é, pois, a questão de meios, é a questão de despezas.
Sobre este ponto desejava eu que os srs. ministros declarassem explicita, terminante e cathegoricamente á camara o seu pensamento, porque e esta uma das partes mais importantes da questão, ou antes a mais importante.
Sr. presidente, eu entendo que as leis, que os decretos, que qualquer documento publico, quer lhe chamem contrato, quer concessão, que dimane do governo, deve ser redigido com toda a madureza, circumspecção e seriedade. Eu entendo que n'esses documentos todas as palavras devem ser pesadas, meditadas, calculadas e avaliadas por modo que evitem que haja a mais leve duvida na sua interpretação.
Entendo-o assim, tanto mais quanto é certo que as declarações do actual governo, para mim, não têem valor de qualidade alguma, não as tenho na menor consideração, antes pelo contrario creio que ellas exprimirão o inverso do que os srs. ministros affirmarem.
É isto que eu tenho visto, é isto que eu tenho presenciado aqui, partindo o exemplo do sr. presidente de ministros.
Não pareça á camara que a minha asserção é inexacta, ou meramente gratuita; eu assevero isto, porque similhantes factos têem sido frequentes, ainda n'uma das sessões do anno passado, tratando-se d'uma lei importante, eu pedi ao governo que explicasse qual a interpretação que devia ter um certo artigo que era copiado da legislação anterior, e que eu entendia, como se tinha entendido até ali pelo proprio governo.
Levantou-se então um dos srs. ministros, combateu a minha interpretação, e no furor do seu enthusiasmo foi tão longe, que asseverou que a sua gloria consistia em deslocar do poder central prerogativas que lhe pertenciam, e que aquella a que se referia era uma que passava para as juntas gera es!
Isto proclamava elle em plena assembléa; e, não obstante, logo que o parlamento se fechou, esse mesmo ministro assignava pela sua propria mão dois decretos, mandando inteiramente o contrario do que o governo aqui tinha dito!
Hei de trazer aqui á camara uma interpellação sobre este facto, e terei mais uma occasião de mostrar que o governo está seguindo um caminho perigoso e errado.
Quando se praticam actos d'esta ordem, quando um governo não respeita por fórma alguma as declarações feitas pelos seus membros nas casas do parlamento, praticando factos que estão completamente em opposicão com ellas, e mostrando assim que as suas palavras nada significam, que valor, que importancia poderemos dar ás declarações dos srs. ministros?
É por isso que eu julgo indispensavel que estes documentos sejam de tal modo redigidos e claros, que não possam suscitar duvidas nas suas clausulas, porque só procedendo com toda a cautela é que se previnem futuras difficuldades e conflictos.
Sr. presidente, deixarei este ponto, para me occupar da parte que annulla a concessão; refiro-me á illegalidade com que ella foi feita.
Até aqui demonstrei, e parece-me que até á evidencia, que o governo não sabe, nem conhece, o que concedeu pelo decreto de 26 de dezembro de 1878.
Acrescentarei mais, que nem um só dos dignos pares será capaz de avaliar pelo decreto em discussão a magnitude da concessão.
Tenho tratado a questão debaixo do ponto de vista do interesse publico, e encarando a concessão pelo que respeita a legalidade, ainda é do interesse publico que eu me occupo.
A legislação para o ultramar, e pela qual é regulado o caso sujeito, é baseada nos verdadeiros principios de justiça, não esquecendo o progresso das colonias e o seu melhoramento, e bem assim as vantagens futuras e remotas de Portugal.
É sob este mesmo ponto de vista que eu vou mostrar que a concessão é illegal nos termos em que está feita, e que as disposições da legislação do ultramar se lhe oppõem manifestamente.
Sr. presidente, lendo e cotejando os differentes decretos, leis e regulamentos, que regem para o ultramar, não encontrei n'elles nem uma só disposição, dentro da qual se justifique esta concessão.
Tratarei primeiro da concessão dos baldios e terrenos incultos até 100:000 hectares.
Na legislação para as colonias não ha senão dois meios para fazer as alheações de terrenos baldios e incultos - ou directamente pelo governo da metropole, ou pelos governadores geraes das provincias ultramarinas.
A legislação que estabelece os principios que devem regular essa alheacão é a carta de lei de 21 de agosto de 1856.
Em vista da letra e do espirito das disposições desta lei
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a primeira cousa de que o governo precisa, para fazer per si qualquer concessão de terrenos no ultramar, é cercar-se de todos os esclarecimentos e informações que possam elucidal-o sobre o valor, importancia, extensão, vantagens da alheação, e de todos os esclarecimentos emquanto aos meios e condições do concessionario.
Esses esclarecimentos e essas informações não podem ser ministradas senão pelos governadores d'aquellas provincias, e por isso a lei o exige, assim como que seja ouvido o conselho ultramarino, e o procurador da corôa deve ser tambem ouvido para examinar se haverá na concessão offensa á lei.
O governo, que devia basear-se nas informações officiaes, não as pediu e não as teve.
A consulta do conselho ultramarino, que se chama hoje junta consultiva, foi contra, e o parecer do procurador da corôa não foi pedido, porque se sabia que seria adverso.
Procurou munir-se o governo dos meios praticos para proceder com perfeito conhecimento de causa, e para saber o que se concedia?
Alem de respeito á lei seria este um acto de bom senso.
Deixar de ouvir o procurador geral da corôa, magistrado competentissimo, e cuja opinião auctorisada deve ser sempre escutada nos negocios importantes, é caso novo e digno de reparo.
O governo importou-lhe pouco com o fiscal da lei, e sob sua exclusiva responsabilidade, per si, e de sciencia propria, resolveu a pretensão do sr. Paiva de Andrada, fazendo ao paiz a surpreza de publicar, na vespera de abrir as côrtes, um decreto contendo concessões illegaes e inconvenientes. (Apoiados.)
Analysemos o decreto em face da legislação.
Confrontemos com as disposições legaes o artigo 2.° do decreto de 26 de dezembro de 1878.
Por esse artigo auctorisa-se o governador geral de Moçambique a conceder até 100:000 hectares de terrenos, quando a lei não permitte tal concessão pelo modo que o referido decreto estabelece; o governo só póde fazer essa concessão dentro das disposições da respectiva legislação; e desde o momento em que ordene aos governadores que façam a concessão de terrenos, ha de ser salvaguardando as disposições legaes, e, portanto, não excedendo cada uma das concessões a 1:000 hectares.
Terrenos não se podem conceder sem se possuirem, e por isso entendi eu dever perguntar se effectivãmente nós possuimos os 100:000 hectares de baldios no ponto em que eram pedidos, e fiz n'este sentido uma pergunta ao sr. ministro da marinha. S. exa. mostrou-se hesitante em responder, mas por fim declarou que não possuiamos esses terrenos reunidos, mas sim separados, ao passo que o sr. Corvo nos mostrava uma nodoa no mappa geographico, e nos dizia: «Aqui tem a camara os 100:000 hectares reunidos, marcados com todo o escrupulo».
Isto declarava s. exa. apontando para o mappa, e acrescentava que tinha sido elle que os tinha marcado escrupulosamente. O sr. ministro da marinha, porém, asseverava o contrario, dizia que os 100:000 hectares de terreno que temos na Zambezia não são juntos, mas separados.
Esta nova contradicçao entre os srs. ministros demonstra a necessidade de serem pedidas informações aos governadores; informações que a lei exige que se peçam, mas que effectivamente não foram pedidas, nem os governadores consultados ácerca da conveniencia ou inconveniencia da concessão.
Que sejam tristes e desagradaveis estas contradiccões pouco importava, pelo que respeita acs ministros; importa, porém, pelo qno o publico perde e póde soffrer.
Anterior a esta concessão tinha sido pedida outra analoga pelo inglez Walker, concessão que foi recusada sem que o governo desse explicações a esse respeito.
Porque se não fez a concessão ao inglez Walker? Não tinha, elle caracter de seriedade? Os terrenos, que pedia não eram menos do que os que pediu o sr. Paiva de Andrada? Não se promptificava tambem a organisar companhia? Porque não mandou o governo ouvir o procurador geral da corôa a respeito d'essa concessão, que era muito mais modesta, e que se limitava ao pedido de 50:000 hectares, e por consequencia demandava uma companhia menos poderosa, e muito menos capitães?
A camara precisa saber os motivos por que o governo recusou a concessão do inglez sem ouvir o procurador geral da corôa, e fez. sem ouvir o mesmo magistrado, a concessão ao sr. Paiva de Andrada.
Custa-me cansar a camara, mas não posso deixar de pedir a sua attenção para o disposto nas leis e decretos que vou ler:
«Carta de lei de 21 de agosto de 1856:
«Artigo 1.° Todos os terrenos baldios do ultramar, pertencentes ao estado, poderão ser alheados por algum dos modos estabelecidos no artigo 5.° d'esta lei.
«§ unico. São exceptuados:
«1.° Os terrenos que forem necessarios para logradouro dos povos do concelho, presidio ou outra subdivisão territorial a que pertencerem;
«2.° Os terrenos que, sendo proximos de porto de mar ou rios navegaveis, convier destinar á sementeira ou plantação de arvores para o estado;
«3.° As matas já existentes, especialmente as situadas na vizinhança da costa e portos de mar ou rios navegaveis, que pela qualidade e abundancia de suas madeiras devam ficar reservadas para d'ellas se cortarem, e mais commodamente extrahirem as que forem precisas para o serviço do estado;
«4.° Os terrenos que encerrarem minas, cuja alheação será regulada pela respectiva legislação especial;
«5.° Em toda a linha da costa maritima uma zona de oitenta metros de largo (36,3636 braças) (36 4/10 approximadamente), partindo do ponto onde começa a vegetação para o interior;
«6.° Todos os terrenos, em geral, que o governador da respectiva provincia em conselho entender que devem ser reservados por conveniencia publica.
«Art. 4.° A alheacão dos terrenos baldios do ultramar, pertencentes ao estado, póde ser concedida, ou na metropole pelo governo, qualquer cue seja a area pretendida, na conformidade do artigo 26.° da presente lei, ou na capital da respectiva provinda pelo governador d'ella, em conselho, não excedendo os limites marcados nos artigos 24.° e 25.°
«Art. 5.° Os terrenos baldios do ultramar pertencentes ao estado podem ser alheados por contrato de compra e venda, ou de emprazamento, celebrado na conformidade das disposições da dita lei com as condições especificadas nos artigos seguintes.
«Art. 24.° Os governadores das provincias, em conselho, são auctorisados para alhear de cada vez a cada pretendente até 500 hectares do terrenos (1,033055 braças quadradas) (1,003055 braças quadradas approximadamente), devendo a area dos que alhearem variar a baixo d'este limite, conforme as pessoas dos mesmos pretendentes, de sorte que nenhum obtenha area maior do que a que parecer que poderá aproveitar, segundo os meios que tiver á sua disposição.
«Art. 25.° Os mesmos governadoies das provincias, em conselho, são tambem auctorisados para alhear até 100 hectares (206611 braças quadradas)(206611 braças quadradas approximadamente) de terrenos a qualquer individuo, ou sociedade estrangeira, para estabelecimento de habitações ou fabricas.
«Art. 26.° O governo, ouvido o conselho ultramarino, poderá alhear a qualquer individuo ou sociedade nacional ou estrangeira areas de terrenos maiores, que as fixadas por osta lei, para os governadores das provincias em con-
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selho, quando a alheação tenha por fim o augmento da colonisaçao e agricultura.»
Decreto de 4, de dezembro de 1861:
«Artigo 1.° É auctorisado o governo, ouvido o conselho ultramarino, a conceder de aforamento terrenos baldios ou outros incultos, pertencentes ao estado, nas provincias de Angola e Moçambique, a quaesquer sociedades, companhias ou individuos nacionaes ou estrangeiros, para a cultura do algodão ou de outros generos e para os estabelecimentos respectivos.
«§ 1.° A concessão será directa e independente de hasta publica, e nos termos e formalidades prescriptas no capitulo 4.° da lei de 21 de agosto de 1856.
«§ 2.° O fôro é fixado em 10 réis por hectare.
«§ 3.° A extensão dos terrenos que se concederem será regulada em harmonia com os meios de que dispozerem os concessionarios, e com a natureza e situação dos mesmos terrenos.
«Art. 2.° Em cada uma das provincias de Angola e Moçambique o governador, geral respectivo, em conselho, fica auctorisado a fazer as concessões de que trata o artigo antecedente, nos termos do mesmo artigo, comtanto que não exceda a 1:000 hectares o terreno correspondente a cada uma das ditas concessões.»
Decreto de 10 de outubro de 1865:
«Artigo 1.° As concessões para aforamento de terrenos baldios ou outros pertencentes ao estado, nas provincias de Cabo Verde, Angola, Moçambique e estado da India, auctorisadas pelo decreto (segundo) de 4 de dezembro de 1861, artigos 1.° e 2.°, carta de lei de 7 de abril de 1863, e decreto com força de lei de 23 de maio do corrente anno, terão effeito sómente quando os concessionarios se mostrem habilitados com as meios necessarios para a intentada cultura.
«Art. 2.° Se a concessão proceder por acto do governo da metropole, na fórma do artigo 1.° do sobredito decreto, não poderá verificar-se antes de estar satisfeita a condição do artigo antecedente, e de ser devidamente communicada ao governador geral respectivo.»
Por lei só são alheaveis os terrenos baldios, que não são exceptuados pelo artigo 1.° e seus §§. A alheacão concede-a o artigo 4.° ao governo e aos governadores, em conformidade com os artigos 24.°, 25.° e 26.°, e os artigos 5.° e 6.° estabelecem o modo como se deve fazer a alheação.
De todas estas disposições da lei de 21 de agosto de 1856 resulta que os governadores não podem fazer concessões senão dentro dos limites da legislação, e que o governo não os póde auctorisar dispensando as disposições da lei.
Portanto, a auetorisação concedida no decreto de 26 de dezembro do anno findo não se coaduna com as prescripções da lei de 21 de agosto, nem com as do decreto de 4 de dezembro de 1861. Isto é pelo que respeita aos governadores. Pelo que respeita ao governo elle tem de ouvir o conselho ultramarino, e tem de attender ás disposições do artigo 1.°, fazendo as excepções que ali se marcam; mas estas excepções não se podem fazer sem os dados officiaes, que o governo não tinha, e, portanto, ao governo não lhe era permittido fazer a concessão, e porisso declinou de si a responsabilidade, e auctorisou o governador. Poderia o governo auctorisar o governador a que saisse fóra das disposições da lei?
Não, por certo; e n'este caso, não podendo o governador fazer concessões de mais de 1:000 hectares de cada vez, se os terrenos tiverem sido aproveitados, e 20 annos só teria concedido 5:000 hectares. N'esta hypothese, ou o governo illudiu o concessionario, ou a concessão tem alguma cousa occulta.
A illegalidade, se pela lei de 21 de agosto de 1856 resalta aos olhos, torna se evidente em face do decreto de 4 de dezembro de 1861, e do decreto de 10 de outubro de 1865, ambos com força de lei. Estatue-se no artigo 1.° do decreto de 4 de dezembro de 1861, que o governo poderá fazer concessões a companhias ou particulares, e no § 3.° estabelece que essas concessões devem ser reguladas segundo os haveres dos concessionarios; e pelo artigo 2.° que limita o poder dos governadores, julga-se indispensavel attender á doutrina d'este paragrapho.
A lei de 10 de outubro de 1865, nos artigos 1.° e 2.° estabelece tambem mui claramente esta mesma doutrina. Tanto um como outro decreto estabelecem que concessões d'esta ordem só se devem fazer a individuos habilitados, e que tenham meios; e conhece-se se estão ou não habilitados por via de deposito. O governo na concessão que fez dispensou o deposito, não attendeu aos meios do concessionario, não sabe mesmo se elle está habilitado, e, portanto, procedeu fóra da lei, e a concessão está nulla. Isto é pelo que respeita aos baldios; pelo que respeita a minas, o governo tinha de fazer essa concessão em harmonia com a lei de 4 de dezembro de 1869, que diz:
«Artigo 45.° São propriedade do estado:
«1.° As minas abandonadas;
«2.° As já conhecidas e não exploradas e situadas nos terrenos do estado ou
sujeitos á soberania portugueza.
«§ 2.° Fica salvo ao governo o direito de fazer concessões directas d'estas minas a sociedades ou companhias para uma exploração em grande de uma certa zona mineira. »
N'esta lei estabelece-se não só quaes são as minas pertencentes ao estado, mas as condições em que devem ser concedidas, e ali se estatue terminantemente que só podem ser concedidas a sociedades ou companhias.
Isto traduz-se claramente da fórma seguinte: que não podendo as minas de que tem a propriedade o estado, ser concedidas senão a companhias organisadas, qualquer individuo não as póde obter á face da lei. Qual era essa ou essas companhias que estão formadas ou organisadas pelo concessionario, e com meios bastantes para a exploração em grande? Qual o deposito que o governo lhe exigiu? Já se vê que esta questão debaixo do ponto de vista de legalidade não póde ser considerada senão como um acto de desprezo e de manifesta infracção da lei por parte do governo.
Passarei agora a fazer algumas considerações sobre outro ponto de que tambem se occuparam os srs. ministros da marinha e dos negocios estrangeiros. Analysou o primeiro destes srs. ministros a consulta da junta consultiva do ultramar, e declarou que essa consulta, era favoravel á concessão, lendo só o que lhe convinha; e omittindo o que lhe não convinha.
Analysarei tambem por minha vez a mesma consulta, e parece-me que hei de tirar uma illação inteiramente contraria á que s. exa. deduziu d'ella, a meu ver pouco de accordo com o verdadeiro sentido das considerações e conclusões n'ella contidas. A consulta diz o seguinte:
«A lei de 4 de dezembro de 1861, no artigo 1.°, diz que o estado póde conceder terrenos que estejam livres e desembaraçados; e o regulamento de 10 de outubro de 1866 estabelece as regras para a medição, confrontação e posse dos mesms terrenos, e pedindo o supplicante 100:000 hectares na bacia da Zambezia, para se poder fazer tal concessão seriam necessarios muitos esclarecimentos que verificassem se o governo de Vossa Magestade os possuia em tal quantidade, e nas circumstancias de poderem ser concedidos; e esta junta, em consulta de 28 do mez findo, disse n'uma pretensão analoga do inglez Walker, que pedia 50:000 hectares na Zambezia, que, á vista das informações dos governadores de Moçambique e Tete, não lhe podiam ser concedidos, porque não os havia juntos, mas sim separados; por conseguinte, a junta está habilitada para consultar que o governo de Vossa Magestade não dispõe, n'aquella zona, da cifra de terrenos desembaraçados como se pedem e desejam - 100:000 hectares.»
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Poder-se-ha dizer que esta opinião é favoravel á concessão feita pele governo? A junta cita a legislação, e diz que o governo necessitava munir-se de esclarecimentos, de informações officiaes antes de proceder.
Acrescenta que não ha os 100:000 hectares pedidos, e reunidos, e que, n'este sentido informaram já os governadores de Tete e Moçambique. A consulta pronuncia-se contra esta concessão e contra outra mais modesta de 00:000 hectares; e, não obstante, diz o sr. Thomás Ribeiro que a junta é favoravel á concessão!!
Note v. exa. que o governador de Moçambique e o de Tete oppozcram-se formalmente a uma concessão mais modesta do que a feita agora pelo governo, declarando que não havia ali os terrenos que se pediam, isto é, os 50:000 hectares.
Realmente não sei como o sr. Thomás Ribeiro póde encontrar na opinião dos membros da junta consultiva, composta de cavalheiros tão conhecedores d'este assumpto e das leis que o regulam, um parecer favoravel ao decreto de 26 de dezembro do anno finado. A interpretação dada por s. exa. a esse documento, não é mais do que um sophisma, e sophisma offensivo para esta camara, porque importa a supposição de que ella não leu ou não entendeu a consulta da junta consultiva.
Diz mais este documento:
«Emquanto ás minas, a lei de 4 de dezembro de 1869 tambem estatuo preceitos para a pesquiza das mesmas, e o competente processo para os descobridores, que as quizerem explorar; e no artigo 45.° diz que são propriedade do estado:
«1.° As minas abandonadas;
«2.° As já conhecidas e não exploradas, e situadas nos terrenos do estado ou sujeitas á soberania portugueza.
«§ 2.° Fica salvo ao governo o direito de fazer concessões directas d'estas minas a sociedades ou companhias para uma exploração em grande de uma certa zona mineira. »
Cita-se aqui a legislação vigente sobre minas, que determina expressamente quaes são as minas cuja propriedade pertence ao estado e de que elle póde fazer concessão, mas só a companhias ou emprczas devidamente constituidas.
A lei não permitte fazer similhantes concessões a qualquer individuo isolado, porque quer e exige garantias que elle só não póde dar.
A lei quer o deposito como garantia, e o governo n'esta concessão tão importante prescindiu d'elle!
Esta é a opinião da junta, bem claramente expressa, e o sr. presidente do conselho como vogal do conselho ultramarino tem a sua opinião compromettida no mesmo sentido.
Talvez se julgue que o sr. Fontes não tenha a sua opinião exarada em documento ofiicial sobre negocios d'esta ordem?
Pois tem, e bem clara. N'uma consulta, que me parece e datada do anno de 1862, diz «que é necessario acabar com estas concessões tão extensas, que a final não dão resultado algum, e por isso era de parecer que se deviam limitar a 50:000 hectares».
Todavia é o proprio sr. Fontes que faz agora uma concessão de terrenos no ultramar de nada menos de 100:000 hectares!...
N'aquella spocha entendia s. exa. que não se devia fazer concessão alguma senão atu o limite de hectares que já mencionei, e isso sómente a companhias que dessem garantias e tivessem os elementos necessarios para satisfazer ao fim das concessões querequeressem, e não a individuos; e hoje, esquecendo os principies que estabelecêra como membro do conselho ultramarino, principios que são os verdadeiros por que estes assumptos devem ser regulados, calca-os aos pés, a fim de praticar um acto que está na mais completa opposição com esses principios, obrigando os seus collegas a passar pelo vexame de subscreverem a illegalidades cujo alcance se não póde ainda saber ao certo. (Apoiados.)
N'este trecho que eu li á camara, ajunta consultiva indica a legislação sobre minas, segundo a qual o governo podia fazer a concessão. Diz, segundo essa legislação, quaes são as minas do governo que podem ser concedidas, e transcreve o artigo em que a lei declara que essa concessão só póde ser feita a companhias organisadas. Chama-se isto ser favoravel ao decreto, em que o governo faz a concessão a um individuo?
Nota a camara ainda este trecho frisante que lhe vou ler:
« Se, porventura, o supplicante organisar uma companhia seria e com bastantes capitães, poderia o governo de Vossa Magestade conceder-lhe, na fórma da legislação em vigor, qualquer das minas conhesidas e não exploradas dentro de certa zona, assim como certo numero de terrenos junto ás mesmas minas para estabelecimentos agricolas.
« Se a companhia, n'estas circumstancias, dirigir colonos para Moçambique, tomar posse de qualquer das minas que lhe conceda o governo de Vossa Magestade e se estabeleça com segurança em qualquer ponto da provincia, poderá com muita facilidade, no estado de selvageria eni que se encontram os sertões, adquirir por compra aos particulares e indigenas todo o terreno de que houver necessidade para qualquer destino que lhe queira dar. »
Não é clara a opinião da junta? Não manifesta ella o desejo de que a concessão seja feita a uma companhia seria? Não indica as vantagens que d'aqui devem resultar, e não indica mesmo como essa companhia póde chegar a adquirir mais terrenos? Não se deduz de todas as palavras da consulta, que a concessão deve ser limitada e modesta?
Como se lembra, pois, o sr. ministro da marinha de vir dizer á camara que a consulta é favoravel á concessão?
O sr. ministro da marinha vê-se obrigado, por lealdade para com o seu presidente, a defender esta concessão tão inaudita.
Está explicado tudo!
Eu faço justiça ao sr. Thomás Ribeiro, avançando que esta concessão não foi feita por s. exa.; porque s. exa. disse o anno passado que havia de estudar maduramente todas as questões concernentes ao ultramar, e que não daria um passo no seu ministerio que não fosse resultado d'esse estudo.
Sem se querer de leve offender o sr. ministro, não se póde deixar de confessar que s. exa. não estudou este assumpto grave e serio. Similhante concessão só póde ter sido feita por um espirito enfermo, na phrase do sr. presidente do conselho de ministros, e esse espirito enfermo é exactamente o sr. Fontes, porque os seus actos do certo tempo para cá e as suas palavras na camara mostram que o seu espirito está effectivamente padecendo de uma grave enfermidade.
Eu não quero cansar muito a camara sr. presidente, mas não posso dispensar-mo de ler as conclusões da junta consultiva.
Eil-as:
Conclusões da junta consultiva do ultramar:
«l.ª Que o governo de Vossa Magestade não deve conceder ao supplicante 100:000 hectares de terrenos na Zambezia, nem mesmo o exclusivo por vinte annos para a pesquiza e exploração de minas, porque estas concessões collocariara quasi toda a provincia nas mãos de um individuo ou de uma companhia, o que seria impolitico e perigoso;
«2.ª Que no interesse da provincia de Moçambique o governo de Vossa Magestade poderá conceder ao supplicante quaes quer das minas conhecidas e não exploradas, assim como qualquer porção de terreno junto ás mesmas, que estiver livre e desembaraçado, para se estabelecerem os mi-
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neiros e os colonos, que o supplicante promette introduzir em Moçambique para trabalhos agricolas;
«3.ª Que organisando o supplicante uma companhia com bastantes capitães, e mostrando esta, depois de uma grande exploração, que já são insuficientes as minas e terrenos concedidos, o governo n'este caso lhe concederá outros em harmonia com os capitães e força de exploração;
«4.ª Para todos os effeitos a companhia organisada será considerada como portugueza;
«5.ª Toda e qualquer concessão será precedida de um deposito pecuniario, que o governo julgar conveniente, e ficará sem. effeito a mesma concessão, se o supplicante no praso de dois annos não organisar a companhia e começar os trabalhos.»
A primeira conclusão mostra o receio que tem a junta sendo a concessão tão lata.
Sr. presidente, é a propria junta consultiva que reconhece que, sendo uma concessão tão importante, só uma companhia poderosissima poderia realisal-a e tirar vantagens.
N'este presupposto, entende que não deve o governo fazer a concessão, porque acha perigoso collocar tão grandes recursos nas mãos de uma companhia poderosa, e que naturalmente ha de ser estrangeira.
A segunda e terceira conclusões são conselhos prudentes e salutares; conselhos conformes com as leis, que querem que, só depois de se reconhecer que foram aproveitados os terrenos concedidos, se concedam outros; o mesmo principio tem applicação ás minas.
Darei ao governo os mesmos conselhos que lhe dá a junta, e que elle devia aproveitar; isto é, que conceda certas minas e certas porções de territorio em pequena escala, e que só depois de a experiencia e observação mostrarem que os concessionarios satisfizeram ás condições, e que são dignos de maiores concessões, se vão então fazendo, attendendo-se sempre aos capitães de que os concessionarios podem dispor.
Isto é rasoavel e racional; o que não é rasoavel, e que não é racional, é fazer-se desde já uma concessão immensa e de tal ordem que, ou se não realisa, ou, se se realisa, trará ao estado dissabores e conflictos. Concessões d'esta natureza, e tão amplas, não se fazem sem primeiro se pedir ás côrtes uma auctorisação especial.
Pela quarta conclusão, querendo a junta que a companhia seja considerada portugueza para todos os effeitos, teve em vista evitar conflictos como os que já tivemos.
A quinta conclusão é a necessidade do deposito, unica garantia que os individuos ou companhias podem dar da seriedade da empreza.
Eis-aqui está o que a junta ultramarina consigna no seu parecer.
Deixo estas conclusões á apreciação da camara, sem mais commentarios, e passarei a dizer alguma cousa a respeito da consulta do sr. Mártens Ferrão.
N'esta occasião peço ao sr. ministro da justiça que diga á camara, com a sua voz auctorisada, qual é a interpretação que tem a consulta de que s. exa. tem tambem a responsabilidade, porque aquella consulta foi feita em conferencia.
Faço-lhe este pedido, porque o espirito consciencioso do sr. ministro da justiça repellirá a interpretração falsa e errónea do sr. Corvo.
Alem de s. exa. restabelecer a verdade com a sua voz auctorisada, pois foi collaborador desta consulta, que diga o que pensa da analyse que fez o seu collega dos estrangeiros.
A camara terá satisfação em o ouvir, e folgará que s. exa., com a sua grande illustração, e conhecedor como jurisconsulto das leis, a esclareça sobre a legalidade do acto do governo.
Referindo-se á consulta do sr. Mártens Ferrão, o sr. Corvo, pretendendo attenuar a grande impressão que causou a preciação do sr. conde do Casal Ribeiro, que proclamava bem alto que os principios exarados naquelle documento deviam ser escriptos em letras de bronze e collocados nos gabinetes dos srs. ministros, disse, sophismando a verdade d’aquelles principios, que a hypothese para que a consulta foi dada era outra e differente da que se discute; e que não tinha applicação para o caso sujeito. Leu depois uns periodos, exactamente aquelles que effectivamente não eram applicaveis nem se referiam á questão que se debate. Leu o que não vinha a proposito, e omittiu o que tinha immediata applicação.
Eu vou ler agora o que vem a proposito, e o que é applicavel ao decreto que se discute, e convido o proprio auctor da consulta a que contradiga as minhas asserções. Aqui está o seu auctor, tem a palavra; terei, pois, muito prazer em o ouvir, e tenho a certeza de que s. exa. ha de sustentar os principios que ali estão exarados e estabelecidos como regra geral, não só para aquella hypothese, mas para a que se ventila nesta camara e lá fóra.
Escreveu o sr. Mártens Ferrão naquella consulta principios geraes e instructivos. Peço á camara que tome nota das suas palavras, que são precisas e claras. Para isso lerei alguns trechos d’essa consulta:
«Conceder o estado os melhores terrenos que possuia nas suas provincias, não a uma empreza organisada, que por fortes depositos assegure a sua constituição definitiva e a realisação dos fins que propõe, mas sem nenhuma d’essas condições, tem-me sempre parecido de grande inconveniencia para os verdadeiros interesses da provincia.
«Penso agora o mesmo. Onde deva haver emprezas de caminhos de ferro ou de navegação de rios, convem que o estado se não despoje de todos os seus terrenos, que muito lhe serão necessarios mesmo para concorrer para essas emprezas, que carecem de concessões das terras adjacentes.»
Na primeira parte estabelece o sr. Mártens Ferrão um principio geral, qual é - que concessões desta ordem só se devem fazer com as garantias devidas, e por isso é contra as concessões aos particulares, e indica a necessidade de emprezas organisadas e solidamente constituidas.
Na segunda diz, que onde possa e deva haver caminhos de ferro ou navegação, os governos não devem fazer taes concessões, porque essas companhias, ou o governo, podem precisar d’esses terrenos.
Pergunto eu ao sr. Mártens Ferrão: o primeiro principio geral não tem applicação á Zambezia?
Pergunto ainda: para explorar todas aquellas riquezas na Zambezia não será necessaria a navegação, não serão necessarios os caminhos de ferro?
Tem ou não este segundo principio applicação á Zambezia, em vista do que s. exa. estabelece nesta consulta?
Não são estes principios geraes?
S. exa. inspirou-se no espirito da legislação para o ultramar quando consignou n’aquelle documento as suas idéas.
Continuarei a analysar as doutrinas tão sensatas, tão justas e tão rasoaveis que o digno par aqui estabelece, e a que presto o devido preito.
Apresento á camara este outro periodo:
«Não significa isto que não devam ahi fazer-se concessões a outras emprezas, mas sim que não devam fazer-se sem que precedam informações da provincia que esclareçam sobre todos os pontos que convem que sejam tidos em consideração, mormente quando os pedidos são vastos.
«É minha opinião, por isso, que sobre pedidos e concessões similhantes convem que seja ouvido o governador geral em conselho do governo, informando o governo da provincia.
«É este o principal meio de instrucção que sobre similhantes assumptos póde obter-se, e a que por isso convem recorrer com systema.»
Julga s. exa. que as informações são indispensaveis, e
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que devem ser dadas pelas pessoas competentes, e por isso quer isto como principio, como regra geral.
O sr. procurador geral da corôa julga tão importantes os esclarecimentos que eleva esta regra a systema, querendo sempre que em negocios tão graves, como este, o governo não proceda sem todos os meios e informações devidas, ouvindo o governador geral da provincia em conselho, e que só proceda depois de obtidos todos os esclarecimentos.
Applicou-se este principio geral ao negocio da Zambezia?
Mandou o governo ouvir o governador geral da provincia sobre a concessão?
Procurou todos os esclarecimentos indicados pelo sr. Mártens Ferrão?
Eu não faço commentarios ao que de si é claro e intuitivo. Peço á camara que pondere as considerações do sr. Corvo, que as confronte com as asserções da consulta do sr. Mártens Ferrão, e que resolva na sua alta sabedoria.
Que poderia eu dizer mais frisante do que o que já está dito pelo sr. conde do Casal Ribeiro?
Nada.
Resta-me, pois, associar-me aos desejos do digno par, e com elle pedir que os principios d’esta consulta sejam gravados em letras de bronze e collocados nos gabinetes dos srs. ministros.
Vou ler ainda outro trecho d’esta excellente consulta:
«Por outra parte tenho sempre entendido, que similhantes concessões sem garantia de realisação são meros dons que o estado faz aos proponentes, para estes venderem, ficando o governo, durante o tempo concedido para a formação das emprezas, privado de poder tratar, sem por outra parte ter segurança alguma da realisação dessas companhias.
«Assim, para emprezas de tão largo periodo, tão importantes, e que tanto pedem ao estado em valores, é conveniente que se exija um forte deposito, que assegure a formação das companhias, aliás cobrir-se-ha a provincia de uma rede de concessões inefficazes, que afastarão emprezas serias; se o estado faz concessões, é preciso que para as fazer receba desde logo garantias valiosas e certas.»
Outro principio, outra regra geral do sr. Mártens Ferrão, na qual se pronuncia contra as concessões a particulares e lhe chama meros dons, e quer como unico meio de tornar efficazes as concessões, o serem feitas a companhias com capitães sufficientes e que dêem as necessarias garantias prestando um bom deposito.
Não terá esta doutrina applicação á Zambezia?
A concessão que o governo fez está, porventura, fora d’estes preceitos geraes?
Peço ao sr. Corvo que queira com toda a sua argucia e sciencia demonstrar o contrario.
O sr. Fontes, que tem já assignado estes principios n’outras consultas, parece ter assignado n’essa occasião sem ler, pois agora não os attendeu, fazendo a concessão a um particular, e isentando-o do deposito!
Concluo aqui a leitura deste interessante documento, e deixo á apreciação da camara as illações que d’elle se deduzem, que de certo não são as que d’elle tirou o sr. Corvo.
Concluirei tambem aqui as minhas modestas reflexões, declarando que a concessão é de tal ordem, que nem o governo sabe o que concedeu: que é iliegal e contraria á carta constitucional; que não foi feita pelo sr. Corvo, que teve de fazer uma scientifica prelecção, para ver se desfazia a má impressão que ella tem causado no publico; que nem foi feita pelo sr. Thomás Ribeiro, porque ainda agora lhe causa surpreza: emfim, que uma similhante concessão só podia ser feita por um espirito enfermo, e esse espirito enfermo é o sr. presidente de ministros, cujos actos de certo tempo para cá, e palavras no parlamento, mostram effectivamente que o seu espirito está padecendo de uma grave enfermidade.
Só enfermidade, e grave, poderá desculpar tamanha leviandade, e tão grande escandalo.
O sr. Mártens Ferrão: — Sr. presidente, a questão que se discute tem tornado caracter verdadeiramente politico, não a seguirei nesse caminho; tratal-a-hei unicamente como questão de administração colonial.
Nas limitadas reflexões que fizer, porque o debate vae longo, direi como entendo a concessão em vista das leis, que a devem reger, — e como aprecio a questão colonial especialmente das nossas possessões da Africa oriental; antes, porém, de entrar no exame d’estes dois pontos, cumpre-me occupar-me de um assumpto que muito tem sido tratado neste debate, e que tem para mim caracter quasi pessoal. Refiro-me á consulta da conferencia da procuradoria geral da corôa.
Este trabalho, de que fui o relator, tem o voto meu e de todos os meus collegas, tenho por isso n’elle completamente compromettida a minha opinião.
Sr. presidente, eu devo dizer primeiro que tudo, porque é bem que fique declarado, que sobre o assumpto especial, que está em discussão, não fui consultado, nem ha trabalho algum meu. Isto serve para determinar a intelligencia que possa ou deva dar-se a esse documento, que tem sido citado, e que versa sobre outra concessão pedida.
Assente isto, devo dizer com a franqueza e isenção que devem ter os homens publicos, que mantenho quanto nesse documento está escripto. (Apoiados.} Foi a expressão da minha convicção, e não a tenho alterado em nenhuma das considerações que ahi se acham feitas. Sigo quanto ali escrevi sobre a hypothese que foi consultada, e sobre todas aquellas a que possa ter applicação. Não significa nem mais, nem menos do que está escripto. Mas o facto é, que a consulta citada é em relação a uma provincia differente, e a um pedido tambem diverso.
O assumpto sobre que essa consulta versou era o pedido de concessão - para uma companhia de navegação entre um dos mais importantes portos da Allemanha, Hamburgo, — e Mossamedes, na nossa Africa occidental, tendo diversos portos de escala, nos quaes entrava o de Lisboa; — a organisação de um systema regular de emigração de colonos da metropole, e como subvenção pedia-se a concessão de 200:000 hectares dos melhores terrenos da provincia de Angola, especificando-se os pontos em que deveriam ser concedidos.
Este foi o objecto da consulta, mas contem ella principios geraes que, a meu juizo, é conveniente que regulem esta ordem de concessões em tudo quanto possam ser-lhes applicaveis.
Isto posto, como confirmação da minha opinião, devo dizer duas cousas em testemunho da verdade: primeiro, que o systema, que indiquei não havia sido o seguido nas differentes concessões, que se haviam feito pelo ministerio da marinha e ultramar, e supponho que não o tem sido depois; — segundo, que o que ali se acha exposto como considerações geraes, são verdadeiramente doutrinas, e não interpretação de principios legaes, que fossem ou sejam obrigatorios. (Apoiados.} Por consequencia os poderes publicos podem seguir ou deixar de seguir aquellas, indicações, porque são principios geraes de, administração, e não serei eu que, com os meus collegas, sou chamado a consultar sobre quasi todas as questões de administração, que venha aqui querer impor como obrigatorio o seguimento das opiniões, que no cumprimento dos meus deveres emitto sem outra indicação que a obediencia aos dictames da minha consciencia. (Apoiados.}
Tenho dito á camara o que entendo dever dizer sobre este assumpto; entro por isso no primeiro ponto que me propuz tratar; a analyse da concessão em vista das leis, que a devem regular.
Na ordem de idéas que me proponho seguir, não tenho que apreciar como a concessão poderia ser feita ou negada. Tenho o acto do governo, e trato de o confrontar com a lei
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para conhecer se foi legal; cumpre-me por isso analysal-o detidamente em cada uma das suas partes, e mostrar quaes são as disposições legaes, que tem de lhe ser applicadas, e a que elle por isso tem de ficar subordinado.
Este trabalho é difficil e fastidioso para a camara, mas é indispensavel.
Primeiro que entre na analyse de cada uma das concessões, devo fixar alguns principios geraes.
Considero a concessão necessaria e totalmente sujeita aos principios das leis vigentes por duas rasoes:
1.° Porque no artigo l.º da concessão o governo se refere ás leis em cujos termos a concessão é feita; e subordinou-a por isso expressa, e terminantemente a essas leis; os preceitos, pois, das leis, sob os quaes a concessão é comprehendida, têem de ser inexoravelmente applicados em cada artigo da concessão;
2.° Porque o governo não se referiu ao acto addicional, nem o applicou, e é evidente que não o tendo feito, as suas faculdades na concessão foram meramente administrativas e ordinarias, sem por isso poderem envolver dispensa, ou alteração, para o caso, d’esses preceitos legaes. Não haveria tribunal no paiz, que o julgasse de outra maneira.
O governo, invocando aquellas leis, e não tendo recorrido ao acto addicional, deixou a concessão para sor em tudo regulada pelo direito que assim tem de lhe ser applicado, para que possa tornar-se effectiva. (Apoiados.)
Com referencia á invocação da faculdade concedida no artigo 15.° do acto addicional, devo dizer que não julgo conveniente que os governos em actos como este recorram a ella; é, comtudo, essa uma questão de responsabilidade sua. Como principio, d’aquella faculdade só se deve usar nos negocios urgentes e graves; ou então para providencias geraes, reguladoras da administração, como foi ainda ha pouco a que regulou o trabalho livre nas nossas provincias de Africa.
Considero a concessão simplesmente feita em principio, porque cada uma das suas partes está pela lei sujeita a termos especiaes, que têem de se lavrar em conformidade com as disposições legaes, a que cada uma d’essas concessões tem de ficar expressamente subordinada, e sem o que não poderão ter execução.
Entendo igualmente que a concessão é uma só, não póde scindir-se á vontade do concessionario, e assim se este faltar ao cumprimento do artigo 4.° caducam todas de direito, sem excepção alguma.
É este o direito, porque não póde qualquer concessionario aproveitar só a parte benéfica; e isso mesmo se encontra no pedido da concessão, como se vê da consulta da junta consultiva do ultramar.
Tambem a concessão só póde tornar-se definitiva a uma ou mais companhias, não só porque é esse o unico meio possivel de satisfazer as obrigações tomadas pelo concessionario, como porque é obrigação legal para a concessão das minas, como se acha feita, como logo desenvolvidamente direi. E essas companhias têem de se mostrarem habilitadas segundo a lei portugueza, e a ella ficarem completamente sujeitas, sem privilegio algum de estrangeiras, quando mesmo o sejam.
As differentes concessões têem igualmente de ser delimitadas, quanto ás zonas das concessões que ainda não o estão, e taes são as 3.ª e 6.ª; bem como tem de ser declaradas as minas conhecidas e não exploradas, que forem sendo entregues, como direi logo.
Postos estes principios geraes, convem fixar a intelligencia de cada uma das concessões especiaes comprehendidas no decreto da concessão geral.
Primeiro ponto:
Concessão de terras.
Diz o artigo 2.°:
«Fica auctorisado o governador geral da provincia de Moçambique a conceder aos referidos Paiva de Andrada e ás companhias que elle organisar, terrenos baldios incultos, pertencentes ao estado, situados na região da Zambezia, até á extensão de 100:000 hectares, e á medida que lhe forem requeridos, observando-se as disposições legaes em vigor.»
O governo está auctorisado, pelo decreto de 4 de dezembro de 1861, a fazer concessões de terras, sem limitação determinada, pelos dois meios de aforamento ou de venda.
São as disposições expressas do citado decreto e da lei anterior de 21 de agosto de 1856.
Sendo a concessão feita nos termos das leis vigentes invocadas, e evidente que a concessão tem de ser realisada por meio de emphyteuse, que póde dizer-se, pela exiguidade do censo ou foro estabelecido na lei, é antes um reconhecimento de dominio do que outra cousa.
Perguntou o digno par o sr. Vaz Preto, se o governador geral terá de fazer a entrega successiva nos termos em que aos governadores geraes é facultada a concessão de terras, isto é, por parcellas de 1:000 hectares, ou por que maneira?
Direi qual é a minha opinião.
Se as entregas successivas tivessem de ser por parcellas de 1:000 hectares, a tradição levaria pelo menos com annos!
O governo, no artigo da concessão de que se trata, auctorisa o governador geral a lazer a entrega successiva; o governador procede, pois, em vista d’essa auctorisação, e por isso sem dependencia d’aquelle maximo; mas como no mesmo artigo se diz — que observará as disposições legaes em vigor; na concessão successiva tem de observar-se o que determina o decreto de 4 de dezembro de 1861, isto é, não poderá conceder novas parcellas sem que, com relação ás concedidas, se mostrem satisfeitos os preceitos legaes, que prescrevem, sob pena de perda ou de multa, o seu aproveitamento dentro de periodos certos.
Lerei os artigos, que têem de ter applicação, porque é preciso que sobre este assumpto se lance toda a clareza.
Diz o artigo 3.°:
«Os terrenos aforados em virtude do presente decreto serão devidamente aproveitados dentro d’um praso, que não excederá a cinco annos, e que será fixado nas concessões.»
Diz o artigo 4.°:
«O concessionario que, no fim de dois annos, não tiver em estado de regular cultura, pelo menos a quarta parte do terreno, que lhe houver sido concedido, incorrerá na perda do terreno, que não tiver aproveitado, ou pagará a multa de 100 a l$000 réis, por cada anno decorrido, e por cada hectar desaproveitado, nos termos do artigo 7.° da carta de lei de 21 de agosto de 1856.
«§ 1.° Se o concessionario pagar a dita multa, fica prorogado por mais um anno o praso de que trata o presente artigo; porém se no fim da prorogação não estiver ainda em estado de cultura a referida quarta parte, incorrerá o concessionario na perda do terreno inculto, o qual reverterá ao dominio do estado.
«§ 2.° Os prasos mencionados n’este artigo serão contados do dia, em que o concessionario tomar posse dos terrenos que lhe houverem sido concedidos.»
Na execução tem de se seguir as disposições do regulamento deste decreto com data de 10 de outubro de 1865; e como a lei de 1856 vigora no que não foi alterada pela lei de 1861, como se diz no artigo 7.°, não póde deixar de ter applicação para este caso o preceito terminante do artigo 27.° daquella lei, que «a ninguem se poderá vender, nem dar de aforamento outros terrenos, emquanto não tiver aproveitado, nos termos das leis, os já concedidos». Isto é, para este caso, nos termos dos artigos já citados.
Eu devo notar, que pelo artigo 22.° do decreto de minas de 4 de dezembro de 1869, esses terrenos podem ser nas zonas das concessões mineiras.
«Os terrenos agricolas que, pertencendo ao estado, fica-
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rem comprehendidos dentro de uma concessão mineira, serão objecto de concessão especial para serem aproveitados pelo concessionario, se assim o desejar.»
Eis aqui; sr. presidente, como entendo que tem de ser apreciada a concessão de terrenos que foi feita. Para se tornar definitiva é necessario que se mostre aproveitada e oxalá o seja!
Estas condições têem de ser exaradas nos termos respectivos.
Outro ponto.
Concessão das florestas.
Diz a concessão:
«6.° O direito de exploração das florestas pertencentes ao estado na região da Zambezia, segundo os preceitos estabelecidos ou a estabelecer por leis e regulamentos para a conservação das mesmas florestas.»
A primeira cousa que tenho a examinar é se o governo podia legalmente fazer esta concessão; e depois porque condições ou preceitos tem de se limitar.
Em Portugal as leis da desamortisação occuparam-se especialmente das matas sujeitas á desamortisação, determinando as que seriam conservadas; ha hoje o notavel relatorio da commissão geodésica, mas quanto a _cgislação é grande a deficiencia, porque esta materia importante não se acha regulada como convem, tendo de se applicar os principios do codigo civil especialmente do usufructo, que estão longe do corresponderem ao que e necessario sobre o assumpto geral de florestas. É, porém, com relação ás concessões nas nossas colonias d’Africa, que tenho a occupar-me d’este assumpto em geral.
A legislação n’este ponto não é tão clara e expressa como sobre a concessão de terrenos, mas é certo que nas concessões de terrenos está comprehendida a faculdade da concessão de arvoredos, porque é evidente que o governo póde ahi comprehender terrenos arborisados dos não reservados. (Apoiados).
Eu vou ler á camara o que dispõe a lei de 1856 no ponto em qu3, referindo se a concessões do terrenos, faz limitações com relação ás florestas.
Diz no artigo 1.°:
«Todos os terrenos baldios do ultramar, pertencentes ao estado, poderão ser alheados por algum dos modos estabelecidos no artigo 5.° desta lei (vencia ou aforamento).
«São exceptuados:
«3.° As matas já existentes, especialmente as situadas, na vizinhança da costa e portos de mar ou rios navegaveis, que, pela qualidade e abundancia do suas madeiras devam ficar reservadas para dellas se cortarem, e mais commodamente extrahirem as que forem precisas para o serviço do estado.»
Vê-se d’aqui que esta é a unica limitação feita, pois diz devam ficar reservadas; e tambem se vê que desde já aquella, alem de outras, tem de ser limitação applicada á concessão.
Sobre este ponto muito é preciso prevenir.
É para mim claro que a concessão da exploração das florestas caduca se o concessionario não cumprir o que determina o artigo 4.° da concessão, e por esse motivo, alem de outros, não lhe póde ser permittido começar qualquer exploração florestal antes de mostrar ter cumprido o que n’aquelle artigo 4.° se exige, como garantia para a effectividade e continuação da concessão.
Alem d’isso é preciso delimitar primeiro rigorosamente a zona florestal, cuja exploração tem de ser permittida, e igualmente regular a exploração, como deva consentir-se, o que é condição expressa da concessão, pois se diz ahi — segundo os preceitos estabelecidos ou a estabelecer por leis e regulamentos para a conservação das mesmas florestas.
N’este ponto póde dizer-se que ha tudo a fazer, sendo apenas principios reguladores os do codigo civil cobre usufucto, mas que são insufficientes. Nos regulamentos que o governo tem de fazer, tem, pois, de regular todo o assumpto, e a isso está sujeita sem restricção a concessão n’este ponto; ha pouco tempo ainda a Inglaterra regulou novamente as concessões florestaes no Canadá.
Apresentou-se aqui a idéa de que esta concessão estaria comprehendida no artigo da lei de minas, que auctorisa o aproveitamento das lenhas, matos, etc.:
«As emprezas de mineração podem prover-se de lenhas, carvão, matto, nos terrenos do estado ou dos concelhos, observando as leis e regulamentos.» É o artigo 41.°
Não sei se este foi o pensamento do governo, se o fosso a questão n’este ponto estaria terminada, visto tratar-se n’esse caso sómente de uma consequencia da concessão mineira.
Devo, porém, dizer com a verdade que sigo, que supponho que se trata de uma concessão de aproveitamento de florestas para exploração mercantil. (Apoiados.)
Sendo a concessão n’aquelle sentido restricto, não seria preciso especifical-a, porque decorria da concessão mineira, mas não tendo aquella restricção, o tratando-se de uma concessão distincta para exploração de florestas num fim mercantil, então é claro que subsisto e terá do se acautelar tudo quanto ponderei.
Só o governo póde declarar o sentido da concessão n’esta parte, se foi a um ou ao outro systema que se referiu, mas é necessario que se declare, porque e essencial.
Outro ponto:
Concessão de minas.
Com relação a este ponto, a questão de si é bastante complexa, envolve differentes questões, que é mister tratar de espaço.
Foi aqui levantada a duvida se Portugal póde te: dominio onde não exercer occupação, e que n’este caso a concessão foi muito fóra dos nossos dominios coloniaes.
Este ponto é grave, e eu tenho de o tratar, mas antes quero dizer como entendo os termos da concessão.
Porque as minas não são de uso facil e de producção inesgotavel, como a superficie e os productos que ella alimenta, a exploração das minas é no interesse commum sujeita a regras certas e definidas, como não succede com as outras explorações, em que a terra é productora, e que a vida, ou antes a força vegetal, faz reproduzir, e tornar assim de uso inesgotavel.
As minas são consideradas na legislação da maior parte das nações modernas como propriedade do estado, ou como propriedade mixta do estado e do dono da superficie, como é na Belgica pela lei de 1837; mas aquellas que as consideram em parte como dependencia da supperficie, limitam consideravelmente o exercicio desse principio.
O que é certo é que já no antigo direito as minas se julgavam pertencerem de direito ao estado, o regimen senhorial deixára-lhes esse caracter. Entre nós as minas pertenciam aos direitos reaes, e assim era em França e nos estados allemães, para o reconhecimento e concessão, o para a devolução pelo abandono, porque quanto a» mais, a lei concedia-as, e concede-as ao inventor, sem tempo limitado, o que não permitte é a sua posse sem exploração. O mesmo é estabelecido nos outros paizes.
A este direito fez-se excepção desde es decretos de 13 do agosto de 1832 e 25 de novembro de 1836, até á lei de 25 do julho de 1850 e decretos de 1852 e 1853, em que voltou a reconhecer-se o direito do estado, seguindo a base da lei franceza de 1810.
As minas que não se exploram depois de descobertas, ou que são abandonadas, revertem por isso para o estado, quer dizer, entram de novo no dominio effectivo da nação.
Em vista d’estes principios, todas as minas a que se referem as clausulas da concessão, isto c, as minas conhecidas e não exploradas, são do estado, salvo havendo concessões especiaes vigentes, que terão de ser respeitadas, emquanto não caducarem, isto se algumas ba.
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Com relação ás minas a que me refiro, é differente a legislação dametropole da das colonias; n’aquella ha a venda, nesta o decreto de 4 de dezembro de 1869, auctorisa a sua concessão.
Diz o artigo 45.°:
«São propriedade do estado as minas abandonadas; as já conhecidas e não exploradas e situadas em terrenos do estado ou sujeitos á soberania portugueza. Fica salvo ao governo o direito de fazer concessões directas d’estas minas a sociedades ou companhias para a exploração em grande de uma certa zona mineira.»
Como todos devem entender, a concessão de que se trata é feita ao concessionario para a transferir a uma companhia, pois é evidente que tão larga exploração, se se fizer, é empreza que só póde caber a uma companhia, e a concessão mesmo o suppõe. Emquanto, pois, a companhia ou companhias não se mostrarem constituidas, a concessão não póde tornar-se effectiva. É o cumprimento do artigo 45.° da lei que acabei de ler.
Não basta, porém, só que as companhias se achem constituidas, é mister que se legalisem em Portugal, nos termos que se dispõe na secção 13.ª da lei das sociedades anonymas de 22 de junho de 1867. É assumpto que muitas vezes tenho tratado, e que nenhuma duvida póde offerecer. Emquanto, pois, não se tiver constituido e legalisado a companhia ou companhias que hão de explorar as minas, a concessão não se póde tornar effectiva. Até ahi o concessionario tem direito á concessão, é certo, mas não lhe podem ser entregues pelo governador geral as zonas mineiras que fazem parte da concessão.
Outro ponto é mister tambem tratar, é o que deva entender-se por zona mineira, a que a lei de 1869 se refere.
Nem nas leis portuguezas vigentes sobre minas para a metropole, nem nas da maior parte das nações da Europa, se encontra estabelecida a concessão de zonas mineiras.
Apenas no direito belga se acha alguma coisa similhante:
— Póde fazer-se pedido em extensão, quando o pedido tem por objecto — seja a extensão da exploração da mina concedida fora dos limites da concessão primitiva, e nisto são conformes as leis de todas as nações; seja estendel-a nos mesmos limites ás minas de uma outra natureza. É, pois, ou extensão de territorio a territorio, ou de substancia a substancia, diz um jurisconsulto belga tratando d’este assumpto.
Mas no direito colonial acha-se geralmente estabelecido o principio da concessão de zonas mineiras.
Ainda ha pouco a Inglaterra, reformando a sua legislação colonial, o regulou para a vasta colonia do Canadá, no acto do parlamento, approvando o d’aquella colonia, em que desenvolveu o systema da concessão das terras do estado, e das concessões mineiras.
Estabeleceu-se que as minas de ouro, de prata, de ferro e de outros mineraes não seriam reservadas nas concessões de terras.
Nas terras medidas, porque lá estão medidos os maiores tratos de terreno, os lotes mineiros são vendidos pelo mesmo preço, que os terrenos araveis; ou concedidos por uma pensão não excedente de 2 ½ dos productos liquidos da exploração.
É assim que a disposição do artigo 45.° do nosso decreto de 4 de fevereiro de 1869, com referencia a zonas mineiras, se entende — exploração reservada nas zonas que se demarcarem. Não póde ter outra intelligencia, e assim é que tem de se entender o privilegio concedido de exploração pelos vinte annos com machinas aperfeiçoadas.
Essa concessão, como exclusiva de outras, é-o por vinte annos, é este o sentido da concessão 2.ª e da limitação que ahi se faz a machinas aperfeiçoadas. A concessão é, pois, unicamente exclusiva para a exploração que dependa do emprego de machinas aperfeiçoadas, o que é certo que é importante; mas é esta a intelligencia juridica do artigo da concessão.
Trato aqui apenas de dizer como em direito se deve entender aquella concessão, e as similhantes, que estão no mesmo decreto de concessão.
Escusado é tornar a repetir, que se o concessionario faltar ao que dispõe o artigo 4.° da concessão, não póde manter aquelle privilegio exclusivo, porque a concessão toda caducou, e não póde aproveitar o que é benefico, e recusar-se ao cumprimento do que é oneroso, quero dizer, do que lhe póde trazer, encargo.
É assim que entendo esta parte da concessão, e devo dizer mais, porque esta questão tem muitos pontos, que é preciso ir esmiuçando, que o concessionario tem de receber por inventario, ou por declaração successiva feita pelo governo da provincia, as minas conhecidas e não exploradas, de que trata a concessão, pois que estão ellas no dominio do estado.
Sr. presidente, esta concessão tem muitas condições, e o processo para ellas se realisarem ha de ser moroso e difficil, e difficil tambem será obter os capitães necessarios para aproveital-as!
Eu devo aqui juntar, que em regra os governos não têem sido nem são exploradores de minas de metaes preciosos. Não o foi Portugal com as minas de Minas Geraes. Na Australia, na California, no Canadá e agora na Nova Zelandia a exploração não tem sido, nem é, por conta do estado, mas apenas sujeitos ao imposto, os que legalmente as adquiriram ou adquirem; o mesmo succede tambem com uma parte das minas da Siberia.
Sr. presidente, foi levantada na camara uma questão grave, que é necessario tratar.
Disse-se que o governo estendeu a concessão das minas a terrenos em que Portugal não tem dominio, porque não tem ahi a posse, tal é o Zumbo, e o territorio no seu prolongamento para o interior.
Esta questão é grave e importante; levanto-a, porque foi aqui suscitada, aliás não trataria d’ella.
Não é nova esta questão; tem-se disputado a Portugal o dominio nas suas possessões ultramarinas onde não tem posse effectiva. Tenho opinião assente sobre este ponto importante. Eu entendo que Portugal tem dominio em todos os pontos do interior da provincia, que lhe pertencem por doação, acquisição, conquista, ou qualquer outro meio legal, que estejam ligados com o resto da provincia, embora nesses terrenos não exerça posse effectiva, ou tenha ahi occupação.
É mui differente o direito internacional que rege as relações das nações nas suas colonias com os povos barbaros, e muito mais com os povos selvagens e nomadas, que ali se encontram, do direito internacional que rege de nação a nação civilisada, em que os limites se acham fixados por tratados. (Apoiados.)
Nenhuma nação colonial acceitou aquella limitação dos seus direitos de soberania nas suas colonias.
Com todas as nações coloniaes succede o mesmo, porque são de ordinario vastos os territorios; porque a população é pouco densa; porque basta haver os centros ou presidios, a que essas regiões são declaradas pertencer, sendo certo que é frequente serem as povoações incertas, como são na chamados bares, que são especie de aldeias errantes; e principalmente porque com as tribus com quem se está em contacto, não ha tratados, e quando chegada haver pactos, faltam a elles na primeira occasião, e nem essas tribus mesmo têem direito certo sobre o terreno. Triste condição esta de tão grande parte da humanidade afastada do gremio da civilisação!
Em similhantes questões o que prevalece é o titulo de acquisição, do descobrimento e primeira occupação, de conquista, de cedencia, de compra ou troca, de doação, que teem sido os titulos reconhecidos das acquisições coloniaes. (Apoiados.)
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Primeiro que nenhuma outra nação da Europa Portugal estendeu os seus dominios na Africa oriental, alargou-se pelo interior, fundou ahi povoações, dispoz da propriedade, firmou dominio, alimentou o commercio com o interior, levantou fortalezas, dilatou os seus direitos fazendo tributarios, submettendo ou afastando os povos cujo solo atravessava. Esse direito não póde julgar-se prescripto ou perdido em frente de tribus selvagens a quem o direito europeu não reconhece a independencia de nação, porque lhes faltam os caracteres que originam esse direito e em que elle se funda.
Tão reconhecido foi sempre este estado que quando em muitos pontos do Africa se restaurou o dominio portuguez, entendeu-se apenas que Portugal recuperava a posse de seus direitos, antes reconhecidos.
O que tenho exposto como theoria de direito internacional acha-se reconhecido nos tratados. Quando pela convenção de 28 de junho de 1817 annexa ao tratado de 1815 se fixaram os limites desde Cabo Delgado até Lourenço Marques, não se fez mais do que tomar por base o direito existente e reconhecido, sem se distinguir se Portugal occupava effectivamente todas as paragens comprehendidas dentro dcsse3 limites; e effectivamente não as occupava todas, mas não obstante isso a Inglaterra não pretendeu estabelecer intermittencias nesse direito. Acceitou-o, e foi a base assente da convenção. E aquella convenção é de direito europeu, e não e outro o direito que a Inglaterra, a Hollanda e a Franca mantêem nas suas colonias.
Sobre este direito firmaram Portugal e a Inglaterra o tratado ainda, hoje vigente, sobre o qual principalmente se funda a alliança entre as duas nações — refiro-me ao tratado de 1661. Já Portugal não possuia muitas das suas conquistas, e a Inglaterra acceitava a cessão que o Rei de Portugal, ouvido o seu conselho, lhe fazia do direito que tinha sobre mui importantes possessões, muitas das quaes ou já não occupava do todo, ou em parte, e d’essa cessão se prevaleceu, para com fundamento n’esse direito ali estabelecer o alargar algumas das suas mais importantes colonias.
É, pois, sr. presidente, pelo direito preexistente, e não pelo facto da posse, que se ha de determinar o dominio portuguez no interior das nossas possessões da Africa oriental. (Apoiados.)
Um outro ponto foi tratado pelo digno par e meu amigo, o sr. Vaz Preto; e é o da protecção e defeza que entende que o governo tem de prestar ao concessionario ou ás companhias que formar, contra os riscos que podem correr as explorações em terrenos onde não ha segurança estabelecida. Esta circumstancia diminue em muito o valor da concessão, porque as companhias exploradoras terão de se proteger e defender a si.
No artigo 3.° diz o decreto da concessão, que as companhias, ás quaes se referem os presentes artigos, se forem estrangeiras, serão consideradas como portuguezes para todos os effeitos, que tenham relação com as concessões, ficando sujeitas ás leis e regulamentos portuguezes, e gosarão para as suas propriedades em terra e no mar das vantagens e protecção garantidas ás nacionaes.
Esta declaração basta para se reconhecer que nenhuma obrigação especial de garantia o governo contrahiu. Não é obrigado a fazer-lhes mais do que aos nacionaes, em cuja ordem as iguala. A concessão é puramente benéfica, e nenhuma estipulação ahi ha que imponha deveres especiaes de garantia sob a condição de indemnisação de perdas e dam-nos, que é do que se trata. Fóra d’isso é claro que sendo as companhias consideradas portuguezas não se lhes póde negar a protecção de que estas gosam.
Mas até que ponto vae esta obrigação? Não póde ir alem de que nos pontos em que o governo teu ha forças e possa d’ellas dispor, proteja os concessionarios, como a outros quaesquer nacionaes. E o que diz o artigo, e é o que resulta do caracter que a lei lhes attribue.
Na falta de estipulação expressa, ou de natureza onerosa das emprezas, não póde haver obrigação que vá mais longe. Mas se isto é assim como questão de direito, é para mim certo que o governo no proprio interesse da colonia não póde deixar de procurar pôr em estado de defeza e de prestarem auxilio os presidios, para evitar as depredações e o ataque a tudo quanto é portuguez. Se os governos não tratarem de garantir a segurança nas colonias, mal irá para estas, e garantindo-a, essa garantia não importa só um beneficio aos concessionarios, mas ao paiz, porque a primeira condição para o desenvolvimento e prosperidade de uma colonia é a segurança (Apoiados.)
Para a prosperidade colonial é mister que se possam trazer os productos das mais longinquas distancias aos mercados; mas é necessario mais, hoje principalmente é necessario abrir e proteger mercados no interior.
Entre as innumeras vantagens que a Europa deve tirar das suas relações com a África, são talvez maiores as da importação dos seus productos n’aquella vasta parto do mundo, do que mesmo as da exportação.
A Europa precisa abrir novos e vastos mercados aos seus productos, e ha de ir abril-os na Africa, onde encontra vastas tribus estranhas a todas as commodidades da vida, e que á medida que forem entrando no convivio da civilisação, offerecerão um vasto consumo aos productos de todas as industrias, e que por muito tempo pagarão com as materias primas; dupla vantagem para a sua exploração instante.
Sr. presidente, tenho tratado com o escrupulo e a franqueza que me impõe o dever de homem publico todos os pontos que se referem á intelligencia da concessão, e que têem sido, ou que me parece, que podem ser questionados. Não a tenho nem limitado, nem ampliado.
Esta intelligencia tem de fixar-se; e de cumprir-se o que deixo dito para que a concessão possa tornar-se effectiva.
Sr. presidente. A hora está adiantada, e eu resumirei, por isso, algumas considerações, que ainda desejaria fazer sobre a questão colonial das nossas possessões da Africa oriental.
Serão necessarios grandes esforços e uma mui sensata direcção para que a provincia de Moçambique venha a adquirir o desenvolvimento commercial do que é susceptivel, e que tivera outr’ora, na epocha das nossas conquistas.
Quando emprehendemos as viagens de alem cabo, a costa de Sofala e de Moçambique tinha já pelo intermedio da população moura um largo commercio com a India.
Creando Portugal o grande imperio da India, e assenhoreando-se de quasi toda a costa da África, e da chave do golfo arabico, mais desenvolveu aquelle commercio. Os productos de Moçambique, principalmente oiro e marfim, eram exportados para a India, cujas mercadorias em larga escala vinham a ser negociadas em Moçambique; é este um facto certo na historia do commercio das Indias e da Africa oriental.
João de Barros e Couto narram que todos os annos vinha do Moçambique uma frota da India, e voltava, para o grande commercio que havia entre uma e outra d’aquellas regiões.
Esta consideração que faço para determinar as causas do commercio que Portugal encontrou, e de que se apossou na epocha das suas conquistas, não nasce simplesmente do conhecimento d’esses factos, é um ponto assente na historia do commercio colonial.
Scherer, um dos homens, que melhor e mais profundamente tem escripto sobre a historia commercial, claramente o nota.
A decadencia do nosso imperio na India precipitou o abatimento de Moçambique, a grande distancia da metropole não lhe deixou substituir por esta aquella direcção; os centros commerciaes achavam se mudados, e o systema colonial não facilitava alterações que utilmente podessem ser aproveitadas.
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Por outra parte a administração e o poder na propria provincia abateu rapidamente.
O trafico então veio precipitar a ruina, porque substituindo-se a todo o outro commercio, despovoou as costas e o interior, e converteu os povos, que em parte eram doceis, e se prestavam ao trato, em inimigos contra os europeus, e entre si, porque para o trafico faziam e entretinham a guerra selvagem de tribu a tribu.
Hoje, que esse profundo erro está riscado das leis, se bem que ainda não do uso daquelles povos, e que a abertura do istbmo de Suez encurtou tão consideravelmente as distancias, a costa oriental da Africa tem de voltar a ser explorada, porque as suas producções são e podem ser immensamente importantes, e porque a Europa precisa d’ellas, e principalmente de fazer introduzir por aquelle lado os seus productos no grande continente hoje alvo das suas explorações.
O que incumbe, pois, a Portugal fazer para não perder a occasião, que se offerece?
Eu subordino a tres pontos principaes a questão colonial da Africa: a administração das colonias e o regimen do trabalho; a boa distribuição das terras; e o systema commercial.
Estes tres pontos são as bases em que se funda o progresso colonial, e em que tem de assentar o das nossas provincias ultramarinas se as quizermos desenvolver. (Apoiados.}
Com relação á administração é necessario ir dando a cada colonia a vida local, que as suas condições possam comportar. Tem sido o grande movei das colonias inglezas.
N’este ponto alguma cousa já se tem feito, e com vantagem na administração de algumas das nossas colonias; e no desenvolvimento local notarei principalmente a lei de 29 de abril de 1875, que estabeleceu e regulou o trabalho livre nas nossas possessões de Africa.
É certo que na Africa oriental os effeitos d’esta lei menos se têem feito sentir; é essa a consequencia do profundo abatimento em que jazia; mas na Africa occidental, e especialmente n’uma das nossas melhores possessões, S. Thomé, os effeitos da lei e dos regulamentos que a applicaram póde apreciar-se, sabendo-se, que o movimento dos colonos ali contratados excede já a nove mil, segundo os mappas enviados. Ficaram assim desvanecidas as apprehensões contra o nobre pensamento de um dos caracteres mais illustres do nosso paiz, o sr. marquez de Sá da Bandeira, cuja falta tão profundamente é deplorada. (Apoiados.)
A esta camara cabe a honra da iniciativa d’essa lei da civilisação e de progresso, a que todos os poderes publicos se associaram. Honro-me de ter sido o relator d’ella, e devo aqui prestar testemunho ao ministro, o sr. Andrade Corvo, que, com a largueza e illustração do seu espirito, não só a sustentou e adoptou como governo, mas lhe deu impulso, e fez com que a sua pratica fosse uma realidade pela energia e perseverança com que a fez executar, contra as difficuldades que se lhe oppunham, e sobretudo contra a errada applicação que por vezes se pretendeu dar aos seus preceitos.
Posso e devo dar este testemunho, porque tenho seguido de perto esta questão.
Eu supponho que o ultimo regulamento sobre este assumpto vital, que ha pouco foi promulgado pelo actual sr. ministro da marinha, completará pela sua permanencia e vigorosa execução a obra tão bem começada. Um regulamento do trabalho na Africa, como o que se acha estabelecido para as nossas provincias, só por si, a meu juizo, sendo executado, vale por uma instituição.
Como administração é necessario ainda estabelecer a segurança, porque a segurança é o commercio, que sem ella não o ha.
Os governos não podem nem deveriam ser emprezarios ou commerciantes, esse é o mister das industrias e do commercio particular. Mas a administração tem de lhe dar segurança e meios faceis de transporte, aquella pela occupação por presidios dos pontos centraes; esta pelos meios conhecidos, mas difficeis, porque isso se obtem.
Estes são já meios de civilisação, mas não bastam. É em grande parte pelo meio das missões, ás quaes tanto se deveu n’outr’ora, que se ha de procurar adoçar os costumes da raça negra, com a qual tem de se realisar a civilisação da Africa, vista a difficuldade de acclimação ali da raça branca.
O regimen das terras foi sempre reconhecido como o mais importante para os povos em atrazo, e muito mais para as vastas regiões totalmente privadas da civilisação.
Em Moçambique, a instituição dos prazos da corôa foi util no principio, emquanto o abuso a não minou. Não eram mais do que a applicação ali da lei das sesmarias, que o senhor rei D. Fernando I havia estabelecido para o reino. Converteram-nos depois em estados, e esse foi o erro, e é tambem o que ha a receiar nas grandes concessões, quando se não assegure bem o seu util emprego.
Os prazos da corôa estão hoje extinctos de direito pela legislação de 1854, embora de facto ainda alguns existam, todavia não interrompe isso a devolução.
Hoje, nas nossas colonias d’Africa, o systema é o da concessão de terras pela fórma que largamente se tem exposto. Supponho que será conveniente a sua revisão. De provincia para provincia, conforme o seu desenvolvimento, é preciso introduzir disposições especiaes, accommodadas a essas circumstancias. É o que tem feito a Inglaterra.
De colonia para colonia, de epocha para epocha, tem modificado os seus meios. Entretanto, o systema que mais tem generalisado hoje, é o da venda das terras em lotes a preço fixo, e o emprego d’esses recursos em auxilio á colonisação. Não é em tudo um mesmo regimen que predomina no Canadá, na Australia, na Zelandia, no Cabo e no Natal. Os erros dos differentes ensaios são francamente reconhecidos pelos escriptores inglezes, mas á proporção que teem sido reconhecidos, têem tambem sido emendados.
No commercio, já notei que o estado não póde ser commerciante; dar-lhe leis accommodadas ás idéas economicas e ás condições de cada provincia, e fazei-as executar, prestar facilidades e segurança, eis a missão do estado para com o commercio. (Apoiados.)
Hoje não é o tempo das companhias soberanas, nem o systema commercial as permitte, alem de muitas outras rasões, que se lhes oppõem. Foi o regimen de outra epocha, e ahi, n’esse meio social, não podem ser absolutamente condemnadas; era o systema geral da epocha, e a corpos commerciaes assim organisados, foi necessario contrapor outros. Os grandes capitães mesmo só esse emprego procuravam, e impunham-no por isso.
A Hollanda teve as suas companhias das Indias orientaes e occidentaes, que duramente nos fizeram sentir a sua grande importancia. A Inglaterra não deveu pouco á companhia das Indias, não obstante os seus grandes defeitos. Portugal tambem teve companhias revestidas de auctoridade, ainda que não tão larga. Taes foram a que Choeffer cita, e cuja carta organica não tenho encontrado, e as do Pará, Maranhão e Paraiba, que tiveram organisação bem conhecida.
Notarei que ainda hoje a companhia do Hudson pertence aquelle systema, é porém, a unica se não me engano.
O systema hoje é outro, e não se póde pensar em companhias soberanas, que tiveram o seu tempo, mas que passou.
Sr. presidente, a hora já deu, e eu termino.
Direi sómente que a questão de Africa é para a Europa, pelas idéas de civilisação e pelas necessidades do commercio, uma questão da actualidade, e tão grande, e tão urgente por isso, como é o seu objecto. (Apoiados.}
Nenhuma nação ali colonial tem direito de a deixar de lado, a que o fizer terá de o expiar duramente e sem remedio. Portugal não o póde fazer, porque isso seria, como profun-
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damente notou o sr. ministro dos negocios estrangeiros, desconhecer que as colonias são uma base segura para a sua importancia no gremio das nações.
Tenho concluido.
(O orador foi comprimentado pelos srs. ministros e por muitos dignos pares dos differentes lados da camará.)
O sr. Presidente: — Os srs. ministros não podem comparecer á sessão de ámanhã; por consequencia a primeira sessão terá logar pá proxima sexta feira, 17 do corrente. E a ordem do dia é a que estava dada para hoje.
Está levantada a sessão.
Eram pouco mais de cinco horas da tarde,
Dignos pares presentes na sessão de 15 de janeiro de 1879
Exmos. srs.: Duques, d’Avila e de Bolama, de Palmella; Marquezes, de Angeja, de Ficalho, de Fronteira, de Monfalim, de Sabugosa, de Vallada, de Vianna; Condes, dos Arcos, de Avillez, de Bertiandos, do Bomfim, do Farrobo, da Fonte Nova, de Paraty, da Ribeira Grande, de Rio Maior; Bispos, de Bragança, do Porto; Viscondes, de Almeidinha; de Alves de Sá, de Asseca, de Bivar, de Monforte, de Ovar, de Portocarrero, da Praia, da Praia Grande, de Sagres, do Seisal, da Silva Carvalho, de Soares Franco; D. Affonso de Serpa, Ornellas, Mello e Carvalho, Sousa Pinto, Barros e Sá, D. Antonio de Mello, Couto Monteiro, Fontes Pereira de Mello, Serpa Pimentel, Costa Lobo, Barjona de Freitas, Cau da Costa, Xavier da Silva, Palmeirim, Carlos Bento, Sequeira Pinto, Montufar Barreiros, Andrade Corvo, Martens Ferrão, Mamede, Braamcamp, Pinto Bastos, Reis e Vasconcellos, José Lourenço da Luz, D. Luiz da Camara Leme, Vaz Preto, Miguel Osorio, Dantas, Ferrer, Ferreira Novaes.
Discurso do digno par conde do Casal Ribeiro pronunciado aã sessão de 11 do corrente, e que de via ler-se a pag. 46, col. l.ª, lin. 7.ª
O sr. Conde do Casal Ribeiro: — Sr. presidente. Corre felizmente placida esta discussão, que ao principie ameaçava de tornar-se agitada e violenta. Congratulo-me com v. exa. congratulo-me com a camara a que tenho a honra de pertencer, porque ouviu, escutou e attendeu os prudentes e rasoaveis conselhos partidos do alto da presidencia, lembrando a todos a moderação e tranquillidade de animo, com que convem entrar no exame da importante questão de administração que está pendente.
Não virei eu alterar ou perturbar tal disposição, prescrutando de que lado houve maior culpa ou provocação, que podesse tender a dar ao debate um caracter diverso d’aquelle que lhe convem.
N’este momento não posso deixar de applaudir a moderação com que o sr. ministro da marinha defendeu o acto que referendou.
Só em um ponto me permittirá o nobre ministro observar-lhe que bem podia ter dispensado toda aquella parto da sua oração, em que se referiu á rectidão das intenções com que procedeu, por isso que de tudo quanto se tem dito nesta casa não ouvi cousa alguma, que podesse beliscar a mais melindrosa susceptibilidade.
As honradas intenções do sr. ministro e as de todos os seus collegas são axiomaticas, não prestam flanco a duvidas, não carecem de demonstração.
Trata-se agora simplesmente, chãmente, comesinhamente da questão da Zambezia. Tratemos, pois, da Zambezia, simplesmente da Zambezia, como convem, placidamente, separadamente, e sem a envolver com qualquer outro episodio ou incidente.
Ha tempo e opportunidade para tudo. Outras questões, outros assumptos politicos ou administrativos, de importancia mais ou menos grave, prenderão a nossa attenção, e virão a ser tratados no momento que lhes competir.
Em tempo, em occasião opportuna examinaremos se cabe alguma responsabilidade grave ao sr. ministro dos negocios estrangeiros pelo andamento e solução que deu a uma pequena questão internacional, que se levantou entre Portugal e Hespanha, a proposito de um conflicto de pescadores no Algarve.
Apesar de não ter ainda todos os documentos sobre a questão, o conhecimento que d’ella supponho possuir assegura-me que terei a fortuna de me encontrar então ao lado do nobre ministro e meu antigo amigo, o sr. Andrade Corvo, porque o seu proceder foi correcto, como tem sido correcta toda a gerencia dos negocios externos a cargo de tão elevada capacidade e robusta intelligencia.
Mais tarde e opportunamente teremos occasião de examinar sem aggravo para ninguem, sem offensa de nenhuma intenção, se, porventura, tem sido igualmente correcta, igualmente sã, igualmente rasoavel, a politica que tem promovido o recrutamento do partido republicano dentro do poder e pelos meios do poder. (Apoiados.) E digo isto sem o menor intuito offensivo a individuo algum.
Promoveram-se oficialmente candidaturas republicanas, e quando os candidatos francamente declaravam a sua crença politica, e que não podiam rejeitar os suffragios que se lhes dessem, nobremente procediam. O que não póde affirmar-se é que procedesse bem o governo que taes candidaturas promovia, não por causa dos individuos, mas por causa dos principios d’elles, e dos principios que esse governo mantinha e devia manter illesos. (Muitos apoiados.)
Mas, sr. presidente, a tempo trataremos disso; agora não; agora Zambezia, pura, exclusivamente Zambezia, nada mais, nada menos, á vista dos documentos, chãmente, simplesmente, modestamente.
Mas, sr. presidente, o que é a questão da Zambezia?... É fastidioso ler, e mais fastidioso repetir leituras. Mas nesta questão não ha mais que ler, reler e tornar a ler o parecer da junta consultiva do ultramar, assignado por cavalheiros muito serios, muito dignos, muito respeitaveis, muito competentes na materia, que officialmente foram consultados, e deram sobre o caso imparcialmente e rectamente o seu parecer Para que havemos de recorrer a esta ou áquella expressão, era que se aprecia, elogiando o caracter do concessionario, cousa que não vem para o caso?...
De que se trata é das conclusões, e as conclusões dizem isto:
«1.° Que o governo de Vossa Magestade não deve conceder ao supplicante 100:000 hectares de terrenos na Zambezia»... Eu ouvi a resposta e logo responderei á resposta, «nem mesmo o exclusivo por vinte annos para a pesquiza e exploração de minas, porque estas concessões collocariam quasi toda a provinda nas mãos de um individuo ou de uma companhia, o que seria impolitico e perigoso .»
«3.° Que organisando o supplicante uma companhia com. bastantes capitães, e mostrando esta, depois de uma grande exploração, que já são insufficientes as minas e terrenos concedidos, o governo n’este, caso lhe concederá outros em harmonia com os capitães e força da exploração.»
A junta consultiva não disse que não convinha explorarem-se as colonias, nem mesmo condemnou em absoluto as concessões.
Quando, porém, se fizessem, lembrou regras convenientes, e eil-as:
«Conclusão 5.ª — toda e qualquer concessão será precedida de um deposito, etc.»
Já não leio o decreto, sr. presidente, já não leio o decreto que fez a concessão; é inutil. Toda a camara, todo o paiz o conhece; compare-o quem quizer com as palavras do parecer da junta consultiva. (Muitos apoiados.)
É certo que o governo não é obrigado a seguir os pareceres das corporações consultadas; mas é certo tambem
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que este parecer, se vale muito pela auctoridade das pessoas que o firmam, muito mais vale pela rasão clarissima e pelo clarissimo bom senso que preside á sua redacção.
E, todavia, apesar d’estes argumentos, note-o a camara, foi referendado o decreto concedendo 100:000 hectares de terreno e a exploração das minas, das minas de carvão, de oiro, de cobre, de ferro, de chumbo, e as florestas, e tudo quanto estava no solo, abaixo do solo, e acima do solo. (Riso e apoiados.)
Sr. presidente, pois conformaram-se com o parecer da junta!
E em vez de seguir o parecer da junta, concedem até 100:000 hectares de terrenos?!... Que cautela!..., até!... Pois se não ha lá os 100:000 hectares, pois se as informações officiaes dizem que elles não existem nas condições de serem concedidos, pois se houve outro pretendente que pediu 50:000, e não se lhe deram por não haver tanto ter reno, como vão dar agora até 100:000?... Realmente aqui ha poesia. (Riso.) Até 100:000 hectares!... 100:000 hectares onde não ha 50:000!... Este é verdadeiramente o tal direito embryonario a que se referiu o sr. ministro da marinha.
Nas minhas reminiscencias juridicas, cujo estudo vae longe, não encontro, não quero encontrar, não posso encontrar, nem mesmo sei investigar o que seja direito embryonario?...
Onde iria o sr. ministro da marinha buscar o seu ideal de direito embryonario?!... (Riso, pequena pausa.)
Está ou não o governo obrigado a cumprir e sustentar o decreto?.. . Póde
negal-o?... Não póde o concessionario vir ámanhã requerer ao governador de Moçambique que lhe faça entrega de 1:000, mais 1:000, mais 1:000; até 100:000 hectares de terreno?... (Apoiados.) Pôde; e o governador ha de dar-lhos. (Apoiados.) Se não é contrato perfeito, é uma especie de quasi contrato, como diziam os jurisconsultos romanos.
Se negarem a entrega d’esses terrenos não terá o concessionario direito para pedir uma indemnisação? E se transferir o seu direito a empreza ou companhia não transferirá tambem o direito á indemnisação? (Apoiados.)
Até 100:000 hectares!... Não lhe deram de vez os 100:000; não, porque lá vem o precavido até!... Precaução admiravel!.. . Ou antes poesia (Riso.), pois que esta questão não póde tratar-se senão pelo lado poetico. (Riso.) Até 100:000 hectares onde não existe tanto terreno! ... Para que! ...
Parece que se espera alguma revolução cosmogorica, algum phenomeno geologico, alguma erupção vulcanica, algum movimento das forças da natureza (Riso.)} que eleve montanhas, que abra valles cortados por novas torrentes e aptos a receber conveniente exploração agricola, ficando então aproveitaveis os espaços concedidos, recentemente creados, e já previamente doados ao sr. Paiva de Andrada!... (Riso.) Pois o que é isto, senhores, senão poesia, poesia e tudo poesia!. .. (Riso. — Pausa.)
E é para isto, sr. presidente, que se chama á autoria a memoria veneranda do marquez de Sá! D’aquelle grande vulto respeitavel, de cujas opiniões podémos algumas vezes discordar, concordar outras, mas que admirámos sempre, porque algumas vezes mesmo o vimos nesta casa com lagrimas marejando nos olhos, sinceras lagrimas, pelas torturas que soffriam alguns miseros negros, que nem elle nem nós conheciamos, em um obscuro recanto de uma das nossas t colonias.
É que o marquez de Sá era, alem de tudo, um grande coração, uma bellissima alma. (Muitos apoiados.) Assim como era tambem um valente soldado, um distinctissimo homem de sciencia, um dedicado patriota. (Apoiados.)
Deixem, pois, em paz a sombra veneranda do marquez de Sá, que não precisa que ninguem a honre, e que ninguem póde deslustrar.
E trouxeram aqui essa veneranda sombra a proposito da questão de saber se concessões de tal ordem se faziam por decretos ou portarias, a proposito de uma ninharia burocratica! ...
E cuida o sr. ministro da marinha que seria maior a sua responsabilidade constitucional, se em vez de mandar lavrar decreto houvesse ordenado portaria?... Pois era a mesma, precisamente a mesma a responsabilidade.
Questão de formulario, que para nada vem e para nada. importa.
Falla-se no desenvolvimento das colonias. Todos o queremos, todos queremos o aproveitamento das riquezas latentes n’essas regiões, que os nossos maiores, cheios de fé, cheios de devoção á patria e á crença, foram descobrir e conquistar para a nossa nacionalidade. N’esta parte estabeleceu o illustre ministro uma theoria, que todos lhe acceitam.
Eu entendo que as colonias são para as nações, nem mais nem menos, do que os filhos são para as familias. Se um pae descuidoso, desnaturado, abandona o filho, a sociedade deve tomar conta dessa creança, e dar-lhe educação, a fim de que seja um homem util. O mesmo póde acontecer aos paizes que têem colonias e que não cuidarem d’ellas; e não digo que o façam de um modo phantasioso, de uma maneira magnifica e esplendida, mas dentro dos seus meios e com os seus meios. (Apoiados.) Porque, se o pae tem obrigação de educar o filho; não é da mesma forma obrigado, sendo um simples burguez ou um pobre operario, a collocal-o em elevada posição social; cumpre-lhe cuidar do filho dentro dos limites dos seus recursos, porque, quando se faz o que se póde, não se é a mais obrigado.
Assim firmes no nosso direito de occupação e de descoberta; fazendo em prol das colonias tanto quanto humanamente podermos, e póde ser bastante, temos desempenhado plenamente o nosso dever.
Será preciso, para manter as colonias, que se empreguem estes meios, que se realisem estas concessões? E, porventura, o sr. ministro da marinha inventou este meio? Este meio é de creação sua? Não. O que fazia o illustre ministro, se o sr. Paiva de Andrada se não lembrasse de lhe dirigir aquelle requerimento?.. . Ficava a Zambezia por explorar, porque, ou o sr. ministro não tinha os meios de que precisava para o desenvolvimento daquella porção de territorio portuguez, ou não apparecia ninguem no paiz que lhe fizesse o obsequio de supprir essa falta de meios, offerecendo-se para realisar os melhoramentos coloniaes reclamados.
O que faria o nobre ministro se não existisse neste mundo o sr. Paiva de Andrada?... Se este cavalheiro não se apresentasse?... Tinha de mandar apregoar em praça, por algum pregoeiro da sua secretaria, logar que não sei se lá existe: «Quem quer a Zambezia?!. .. » (Riso.)
Era preciso dar a Zambezia a alguem, e então... quem quer a Zambezia para bem do paiz e da humanidade?! (Riso.)
Sr. presidente, isto não deve ser assim, e tambem é perigoso que se diga, porque póde ouvir-se.
O sr. Pinto Basto: — E ouve-se.
O Orador: — No dia immediato a este pregão da Zambezia, póde algum representante de potencia estrangeira fazer sobre o caso quaesquer observações, a que o sr. ministro dos negocios estrangeiros terá de responder, certamente com muito boas rasões, porque é homem para isso.
O sr. Ministro dos Negocios Estrangeiros: — Peço a palavra.
O Orador: — Depois de tudo isto, o que é a questão da Zambezia?...
Dizem os srs. ministros que estão dentro da legalidade, que não saíram, nem um ponto, das leis vigentes.
Ha duas legalidades diversas: uma, para os cidadãos; outra, para o governo.
Os cidadãos podem fazer tudo o que a lei não prohibe.
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O governo só póde fazer o que a lei lhe permitte.
Ora a lei permitte fazer concessões, mas limitadas por condições, o essas condições foram omittidas no caso presente. Logo a concessão feita ao sr. Paiva de Andrada é uma concessão illegal.
De tal ordem são as rasões que o provam, que até quadram bem dentro das formas do syllogismo, d’esta fórma elementar da logica.
E se por hypothese se admittisse que as auctorisações facultadas ao governo para o regimen das colonias, podessem abranger actos taes como esta concessão da Zambezia, seria preciso, seria urgente acabar desde já com legislação tão ampla, e limitar razoavelmente os poderes do governo no assumpto. E mais ainda; emquanto taes auctorisações durassem, seria preciso que os governos soubessem usar d’ellas com bom criterio o prudencia, como aconselhava a junta consultiva do ultramar.
Eu associo o meu voto ao projecto do lei apresentado pelo digno par o sr. marquez de Sabugosa, revogando o decreto que fez a concessão de que se trata. Porém não me contento com isto.
O projecto restringe-se a uma hypothese; o eu entendo que convem generalisar uma doutrina: que é necessario, que é inadiavel fixar as regras e garantias com que taes concessões possam fazer-se.
Mas, sr. presidente, este projecto está feito tambem, está magistralmente formulado na consulta dos doutos fiscaes da corôa, que já foi presente a esta camara. Formulem em artigos de lei os paragraphos d’essa consulta; e a lei está feita. E se não querem tanto, se não é preciso converter em lei a consulta, então não se contentem de imprimil-a; que seja esculpida em pranchas de bronze, e cada prancha enviada a cada gabinete de ministro, para que a tenha sempre presente os ministros que são ou os que vierem a ser, pois creio que é licito suppor que em uma epocha, mais ou menos afastada, haja outros ministros neste paiz.
É preciso que a consulta dos fiscaes da corôa, monumento de sabedoria e rectidão, corrija quaesquer exagerações imaginativas, que possam occorrer aos ministros, salva sempre a pureza das intenções, quando tenham de resolver questões graves de administração.
E, sr. presidente, a questão da Zambezia tal como agora se apresenta não é cousa alguma mais nem menos do que o producto da imaginação escandecida de um cavalheiro aliás estimavel, cujas boas qualidades tive occasião de apreciar quando estive em Paris, producto de imaginação que o sr. ministro da marinha abraçou em enthusiasmo poetico, e julgou poder traduzir em acto pratico.
A questão da Zambezia é isto, sr. presidente; é isto e nada mais. Mas diga-se a verdade toda, o parlamento, o paiz, os partidos mesmo não podem acolher de bom grado surprezas similhantes. Um dia dão-se a um as dokas, os cães, o porto de Lisboa, o caminho de ferro para Cintra, e não sei quantas cousas mais. Mais tarde dá-se a outro Cacilhas e seus adjacentes. Agora dão a Zambezia. E onde estão as dokas?... Onde está o caminho do Gacilhas?... Assim perguntaremos d’aqui a dois annos quaes são os fructos da exploração dos terrenos, das minas e das florestas da Zambezia. Mas no entanto o parlamento nas vésperas da sua abertura foi surprehendido com esta esplendida surpreza!...
Sr. presidente, eu calo-me, e calo-me com magua, sinceramente o digo. Calo-me, porque não tenho mais a dizer sobre a questão, e de outra questão não quero tratar agora.
Fallei em meu proprio nome, sem nada mais representar do que uma isolada individualidade. Não tenho, portanto, direito de dirigir perguntas aos partidos. Mas sem lhes dirigir perguntas, e respeitando as rectas intenções de todos, respeitando os compromissos partidarios e as tradições da camaradagem, eu posso, sem dirigir perguntas, suppor que estas surprezas causam mais de um desgosto nas honradas filas da honrada e leal velha guarda regeneradora. E posso tambem divisar vestigios de espanto na mocidade, n’essa mocidade que, cheia de vigor e talento, entra na vida publica, e á qual pertence o futuro, porque os homens da geração que vem atrás de nós, e que pelo seu merito e trabalho hão de conquistar as posições que hoje occupâmos os velhos; esses homens, essa geração brilhante, carece de antever o porto a que a conduzem antes que chegue a terminação da viagem.
Sr. presidente, isto não á una proclamação, é um grito de dor, e de dor profunda, que me sáe d’alma. Entendam-o como quizerem. Os affectos pessoaes subsistem; e mais ainda, para fallar assim, para cumprir este penoso dever, eu tive de fazer violencia a tudo quanto mo é mais caro aos sentimentos da familia, da familia para onde me está attrahindo a tendencia, a vontade; da familia, que é o descanço, a paz, o alvo, o ideal. (Apoiados.)
Sr. presidente, é duro, mas é assim; é um veterano da velha guarda, já licenciado na reserva, é um veterano que neste conflicto diz: «não marcho! não marcho! não marcho ».
E agora convoquem, se quizerem, em conselho de guerra o partido regenerador: formulem o libello; por mim não offereço nem contestação, nem defeza; allego apenas a circumstancia attenuante de bom comportamento anterior, se porventura elle consta da nota de praça e do registo dos serviços.
Rectificação
Na sessão n.° 4, de 11 de janeiro de 1879, pag. 41, lin. 62, onde se lê: = Ora a verdade é que o pedido foi superior á concessão = deve ler-se: = 0ra a verdade é que a concessão foi superior ao pedido =.