DIARIO DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO 55
S. exa. então queria fazer todos os caminhos de ferro num dia, ou, para melhor dizer, fingia acreditar que se podiam fazer como s. exa. disse; e digo fingir porque conheço a intelligencia de s. exa., que não me permittia que eu podesse suppor que estivesse convencido de que aquella lei era exequivel, e que podesse sujeitar-se ás condições d'ella, acreditando que houvesse companhias que podessem fazer face a uma despeza tão exagerada sem receberem subvenções senão no fim, ou que fizessem em taes condições propostas acceitaveis; foi tudo poeira aos olhos do paiz que o governo deitava, como eu então disse.
Se então se adoptasse o projecto que apresentei, os caminhos de ferro estavam já em construcção, em quanto que hoje ainda estão em projecto. Eu applaudo-me, não do resultado, mas de ter previsto o que na realidade havia de acontecer, porque tal proposta era inexequivel e inacceitavel.
Sr. presidente, eu vou acabar, e acabo por um louvor que vou dirigir ao sr. presidente do conselho e ministro da guerra. Louvo o meu nobre amigo o sr. Fontes, pela maneira por que procedeu num caso a que me devo referir, para descargo da minha consciencia. Sr. presidente, são ás vezes aggredidos os ministros pelo que fazem e pelo que deixam de fazer. Assim aconteceu com o facto da não execução da pena de morte a um réu, que foi condemnado a ella. O governo era accusado já. pela demora no cumprimento da lei, e nisso com muita rasão, e talvez tambem o accusassem por ter consentido na apresentação á corôa da commutação da pena por uma outra, que segundo dizem os jurisconsultos, não era a que se lhe seguia no codigo. Eu não entro nesta questão. Desde que os tribunaes entenderam que podia ser assim e homologaram a sentença, elles são os competentes para o decidir. Eu o que louvo é a docilidade do sr. ministro da guerra, que tendo a convicção de que era necessario um exemplo severo para manter a disciplina, e que portanto era preciso que se consignasse n'uma lei a pena de morte, creara ao mesmo tempo para si uma aura de popularidade no exercito, onde se dizia: aquelle sim, aquelle é capaz de nos vingar, aquelle ha de dar-nos a disciplina. S. exa., porem, esteve callado, e quando chegou a occasião, foi o primeiro a aconselhar a commutação da pena.
Sr. presidente, eu não me julgo propheta (e basta estar na minha terra para não o poder ser), mas já tinha previsto que a pena de morte não seria applicada, e que se havia de passar para as penalidades civis.
Permitta-me v. Exa., e a camara tambem, que leia parte do discurso pronunciado por mim, quando se tratou da approvação do codigo de justiça militar. Disse eu "Proponho que o projecto do codigo militar volte á commissão, a fim de regular a sua penalidade pela equivalente do codigo penal commum".
Veja a camara, que eu, não sendo jurisconsulto, já notava a existencia de uma lacuna n'este codigo, como agora é reconhecida pelos jurisconsultos, que declaram pertencer á classe civil a pena que o poder moderador mandou applicar por occasião de exercer a prerogativa que a constituição lhe" confere. Dizia eu mais:
"Eu não tenho muito receio que se approve a pena de morte, porque tenho a certeza que o actual sr. ministro da guerra, e todos os ministros da guerra que se lhe seguirem, não hão de matar ninguem. Acima d'elles está a opinião publica, no animo da qual não ha o mais minimo desejo de que ella se execute. Não tenho, pois, receio da pena de morte."
Por ora ainda não me enganei, e felicito-me por isso, e pelo sr. presidente do conselho ter correspondido ao que eu esperava.
" Mas sr. presidente, ainda ha uma outra garantia; ha o poder moderador, que não é aqui discutido, mas que como todos os poderes do mundo está sujeito á força da opinião, e que sabe que a sua verdadeira segurança está no coração do povo; sabe que ao fastigio do poder chega sempre a inveja; e que essa hydra occulta só se lhe corta o caminho com o amor e confiança dos povos; sabe que quando as coroas andam jogadas aos dados, ha uma que resiste a todas estas tempestades, porque tem a base no coração dos seus vassallos; sabe que os degraus do throno não têem sido manchados ha muito tempo com nódoas de sangue; sabe que ha monarchias que têem querido ir muito longe e têem baqueado; por isso estou certo que o poder moderador não ha de manchar as suas mãos, assignando uma ordem de execução de pena de morte. Vote-se essa pena, mas tenho fé que não se ha de executar. Não ha poder que tenha força para isso.
Felizmente está justificado Q que eu disse, e o sr. ministro da guerra, com muito applauso da parte sensata da nação, poupou a todos os corações um espectaculo repugnante e sangrento, incompativel com á nossa civilisação, e inutil por incapaz de manter a disciplina no exercito.
O sr. presidente do conselho ha de saber manteria disciplina no exercito, sem precisar recorrer a extremos dessa natureza. E, assim póde-se presumir como certo, que se a pena de morte, no primeiro caso em que devia applicar-se, póde ser dispensada, é de justiça que a lei seja emendada. Porque não havemos de reconhecer desde já que o codigo está éxageradamente organisado?
Eu espero que o nobre ministro, em virtude da convicção, que de certo o anima, de que a pena de morte é desnecessaria, venha trazer, em breve, ao parlamento, uma proposta para reformar o codigo de justiça militar. E, depois, a execução do codigo está mostrando quanto elle foi feito levianamente e que por isso carece de prompta emenda. Vou apresentar um exemplo disso.
Sr. presidente, deram-se em Coimbra factos desagradabilissimos. Havia ali uma auctoridade administrativa, cavalheiro que eu respeito e estimo, mas que, forçoso é confessal-o, tinha pouca actividade para o desempenho das funcções de que estava incumbido. Assim o reconheceu o sr. ministro do reino demittindo-a, ainda que mais tarde do que devia.
N'aquelle districto todos mandavam, excepto o governador civil. Este limitava-se, a maior parte das vezes, a assignar como vencido até em muitos recursos cuja execução podia suspender ou mesmo não effectuar, e cumpriam-se depois, como se fossem a expressão da sua vontade, julgando que com o seu signal de vencido se eximia á responsabilidade da execução. Eu não quero aggravar a situação d'aquelles cavalheiro que foi demittido, e respeitando a sua situação nada mais direi da sua má gerencia como auctoridade.
O que é certo é que, em consequencia dos exames do lyceu, foram nomeados para as commissões que iam fazer os exames, varios professores de differentes localidades; e entre elles um professor do Porto, que era considerado como um pouco mais severo ou áspero do que os seus collegas. Os rapazes que haviam de ser julgados por aquella mesa, fizeram um tumulto defronte da casa aonde se tinha alojado este professor, e que era fronteira ao governo civil; e toda a noite estiveram ali em grande numero, fazendo tal assuada e alarido, que a toda a gente sobresaltou; e só as auctoridades parece que nada ouviram!
O governador civil nunca appareceu. No dia seguinte o professor foi queixar-se a esta auctoridade, e pediu-lhe garantias para a sua segurança individual; foi então requisitada e veiu tropa. O governador civil, porem, não quiz tomar a responsabilidade de promover um conflicto serio, e pediu instrucções ao governo; o administrador do concelho tambem nada ordenou, porque estava n'uma situação identica á do governador civil, pois se este para obrar em caso de tanta responsabilidade, precisava ordens terminantes do governo, aquelle precisava-as da governador civil. As auctoridades, pois, pela sua brandura ou falta de acção, expozeram a tropa ao ridiculo espectaculo de se