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CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO
SESSÃO N.° 8
EM 22 DE MAIO DE 1908
Presidencia do Exmo. Sr. Conselheiro Antonio de Azevedo Castello Branco
Secretarios - os Dignos Pares
Luiz de Mello Bandeira Coelho
Marquez de Sousa Holstein
SUMMARIO. - Leitura e approvação da acta. - Expediente. - O Sr. Presidente diz que, em conformidade com o artigo 20.° do regimento, a inscrição para antes da ordem do dia será apenas mantida durante duas sessões. - O Digno Par Luiz Palmeirim envia para a mesa um requerimento pedindo documentos pelo Ministerio do Reino. - O Digno Par D. João de Alarcão participa que o Digno Par Antonio Emilio de Sá Brandão não tem comparecido ás sessões d'esta Camara por motivo de doença. - O Digno Par Sebastião Baracho concorda com a indicação da Presidencia, referente á inscrição antes da ordem do dia e pede que a publicação dos Annaes se faça com a devida regularidade. Lembra o que disse na sessão anterior ao Digno Par Teixeira de Sousa com respeito ao artigo 16.° do regulamento interno da Camara, lê um telegramma de Mesão Frio, pedindo providencias que acudam á crise duriense, refere-se ao concurso para a adjudicação do Theatro de S. Carlos, trata dos adeantamentos illegaes á Casa Real e a funccionarios do Estado, e, por ultimo, allude á questão da compartilha de lucros entre a Companhia dos Tabacos e os operarios.
Ordem do dia (continuação da discussão do projecto de resposta ao Discurso da Coroa). - Usa da palavra o Sr. Presidente do Conselho. 2.ª parte. - São eleitas a commissão de guerra e de instrucção publica. - Encerra a sessão e designa-se a immediata, bem como a ordem, do dia.
Pelas 2 horas e 10 minutos da tarde o Sr. Presidente abriu a sessão.
Feita a chamada, verificou-se estarem presentes 23 Dignos Pares.
Lida a acta da sessão antecedente, foi approvada sem reclamação.
Mencionou-se o seguinte expediente:
Officio da Associação Commercial do Porto, remettendo uns exemplares do relatorio da mesma associação referente ao anno de 1907.
O Sr. Presidente: - Em conformidade com o artigo 20.° do regimento, a inscripção para antes da ordem do dia tem sido mantida de umas sessões para as outras.
Parece-me, porem, que essa inscripção se não deve manter indefinidamente, mas apenas durante duas sessões.
É o que farei, se a Camara a isso se não oppuser. (Muitos apoiados).
Em vista da manifestação da Camara julgo que ella está de acôrdo com a norma por mim indicada.
O Sr. Carlos Palmeirim: - Mando para a mesa o requerimento seguinte:
Requeiro que, pelo Ministerio do Reino, me seja fornecido, com a maxima urgencia, o seguinte esclarecimento:
Se, nos termos do artigo 9.° do decreto ditatorial de 2 de setembro de 1901, já foi elaborado e approvado pelo Governo o plano geral de melhoramentos da capital.
No caso affirmativo, requeiro que me seja remettida uma copia do parecer que, segundo determina o referido artigo 9.°, devia ser emittido pela Camara Municipal de Lisboa e enviado ao Governo juntamente com o supracitado plano geral.
Sala das sessões, em 22 de maio de 1908. = Carlos Augusto Palmeirim.
O Sr. D. João de Alarcão: - Participo que o Digno Par Sr. Antonio Emilio de Sá Brandão não tem comparecido ás sessões, e continuará a não comparecer por motivo de doença; logo, porem, que se restabeleça, voltará á Camara.
O Sr. Sebastião Baracho : - O nosso regulamento interno da Camara não explica se conserva ou não, para dias ulteriores, a inscripção antes da ordem do dia. Afigura-se-me, porem, que a duração d'essa inscripção deve ter um limite, aliás ella seria preferentemente favoravel para os que não frequentam a Camara com assiduidade. Nestas condições, a resolução tomada pelo Sr. Presidente merece a minha approvação.
Visto que me estou occupando de assuntos de ordem interna da Camara, tomo a liberdade de lembrar ao Sr. Presidente que são decorridos vinte e dois dias depois que se abriu o Parlamento e que apenas está publicado o primeiro numero dos Annaes, cujo formato é, no seu todo, de uma pagina. Não sei, pelo que respeita a este anno, as causas determinantes da demora na sua publicação. No anno passado, sete meses depois de encerrado o Parlamento, ainda estavam Annaes a apparecer a lume, não obstante os funccionarios d'esta casa cumprirem á risca o seu dever, e os Dignos Pares devolverem em tempo os seus discursos. O retardamento proveio exclusivamente da Imprensa Nacional.
Chamo a attenção do Sr. Presidente para este assumpto, que é importante, a fim de evitar as irregularidades que se deram no anno preterito, recorrendo S. Exa. para isso, se tanto for preciso, a typographia ou imprensa que não seja a Nacional.
Folgo com a entrada nesta sala do Digno Par Sr. Teixeira de Sousa, a quem tenho de me referir.
S. Exa. contrariou a minha proposta, amoldada pela letra expressa do artigo
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2 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO
16.° do regimento, attinente a ameudar as sessões d'esta Camara, comquanto em outubro de 1906 o Digno Par possuisse identica maneira de praticar.
Procurando attenuar a sua incoherencia, allegou o Digno Par que apenas pedira que se realizasse uma sessão, no dia seguinte ao que fez uso da palavra, formulando esse pedido.
Não é positivamente assim, porque S. Exa. apenas compulsou na sessão transacta, para em taes termos falar, uma pagina dos Annaes de 1 de outubro de 1906. Se a tivesse voltado, outra seria a sua impressão.
Mas a verdade é que Homero por mais de uma vez dormitou, não admirando, portanto, que o Digno Par tambem dormite.
Os factos, no entretanto, passaram-se conforme o documento comprovativo que tenho á vista.
Ia ser posto pela mesa á votação o requerimento do Digno Par, quando S. Exa. appellou para a resolução da Camara nestes termos precisos:
O regimento manda que haja sessões todos os dias, excepto os de grande gala e os santificados.
Era precisamente o que eu recordava na minha proposta, que não mereceu as graças do Digno Par, a despeito de S. Exa. estar, nos tempos idos já recordados, completamente identificado com os principios que eu nella sustento este anno, repito, constitutivos do artigo 16.° do nosso regimento.
Attenta essa unidade de vistas, outrora sustentadas, era-me licito abrigar a esperança de que, se a minha moderna proposta tivesse agora obtido apenas um voto, esse seria o do Digno Par. Pois não só não lhe deu o seu applauso, mas até se insurgiu contra ella, correspondendo por esta forma, porventura original, ao eu ter no anno preterito approvado o seu requerimento.
Na sessão subsequente de 2 e de 9 de outubro, voltou o Digno Par ao assumpto, preconizando a necessidade de multiplicar as reuniões d'esta casa, e concluiu os seus reparos, allegando que, por muito que considerasse o Sr. Presidente de então, nem por isso deixaria de fazer valer os seus direitos como julgasse mais conviniente. Ainda neste ponto, eu estou de acordo com os bons preceitos sustentados em 1906 pelo Digno Par, porque, por muito que respeite o Sr. Presidente, não respeito menos os meus direitos, que sei e saberei fazer valer.
A questão é, por assim dizer, de lana caprinae, e eu não teria voltado a ella, se o Digno Par a isso me não tivesse impulsionado com as suas observações hodiernas tão pouco harmonicas com o seu proceder anterior.
Posto isto, vou-me dirigir ao Sr. Presidente do Conselho, pedindo-lhe explicações concernentemente a dois assumptos que vou versar. O primeiro diz respeito á crise duriense, acêrca da qual recebi o seguinte telegramma:
Mesão Frio, 21, 12 t- Pelo povo do concelho de Mesão Frio pedimos V. Exa. sua valiosa interferencia junto Governo. Douro agoniza fome. = José Botelho, José da Paixão Metello, Antonio Fragoso, José Gondar, Arnaldo Teixeira e José de Azevedo Lobo.
Segundo li nos jornaes, telegrammas identicos foram dirigidos a outros parlamentares, e li igualmente que o governo tinha adoptado medidas de momento, como multiplicação de obras publicas, para minorar a miseria do Douro.
Concordo plenamente e insto perante o Sr. Presidente do Conselho para que se acuda sem demora aos desgraçados, a cuja porta a desventura e a fome foram bater. Pense, porem, simultaneamente em debellar, o mais breve possivel, a crise, com o emprego de medidas que se recommendem para tal fim. Até agora, o caminho trilhado, nesse intuito, tem sido o mais escabroso possivel. Não me accusa, entretanto, a consciencia de ter sido um dos collaboradores em tão improficuas providencias. Agora, como anteriormente, é minha crença de que, nas medidas que se adoptarem, haja primordialmente a attender:
A que a fraude seja combatida intensamente em todas as suas manifestações, tanto entre nós como no estrangeiro;
A que a marca regional do producto seja gratuita e obrigatoria;
E á obrigação de excluir o alcool artificial da lotação dos vinhos nacionaes.
No exercicio de uma lei que consignasse esta sã doutrina, estou convencido de que a questão vinicola melhoraria consideravelmente, em todo o paiz. Porque, convem accentuá-lo, a crise não se faz sentir apenas na região duriense. Alastra e generaliza se a todas as outras regiões.
É referente a S. Carlos o outro assumpto de que tenho de me occupar.
Como sincero legalista que sou, estimei que a adjudicação do theatro fosse feita por concurso. Sinto, todavia, que o Sr. Presidente do Conselho mais uma vez affirmasse, com o caso sujeito, a sua incoherencia, só appelando em ultimo extremo para o concurso, e com acompanhamento da palinodia que entoou.
As bases publicadas no Diario do Governo, para preenchimento d'essa formalidade, merecem, por certo, mais de um reparo. Hoje, porem, apenas me referirei á que tem o n.° 24, e é assim concebida:
A empresa é obrigada ao deposito de réis 7:000$000 como garantia das condições de exploração a que se sujeita, sendo obrigada a reforçar o deposito quando se mostrar inferior áquella quantia.
Este deposito e todo o material que existir no theatro pertencente á empresa ficarão considerados como penhor e caução ao exacto cumprimento das condições da exploração, pagamento dos artistas e á execução dos contratos celebrados pela empresa.
A verba de 7:000$000 réis é insufficientissima como garantia, e tanto mais que, ao que parece, ella está sujeita a fluctuações, consoante a letra do artigo citado.
Ninguem ignora, entre os velhos frequentadores, como eu sou ha mais de trinta annos, d'aquelle theatro, que modernamente, e no começo da epoca, a empresa cobra não menos de réis 90:000$OQO dos seus assinantes.
Ora, francamente, garantir tão avultada somma, apenas com 7:000$000 réis, não tem desculpa nem attenuante alguma.
Poder-se-ha objectar que essa cifra tem o cunho de tradicional, estando a coberto com os precedentes. Mas quando ella outrora salvaguardava os interesses que garantia, a cobrança do começo do anno era-lhe proporcional, e não como na actualidade.
Desejo, pois, saber que medidas complementares adopta o Governo, para que a garantia exigida ao futuro empresario esteja na devida proporção com os interesses a resguardar.
Posto isto, recordarei que ainda não estou de posse de nenhum dos documentos que requeri pelos diversos Ministerios. Faço esta advertencia para de futuro d'ella tirar as illações correspondentes, se a abstenção, a que alludo, se prolongar demasiadamente.
Aproveitando a presença do Sr. Ministro da Fazenda, dir lhe hei que, entre as informações que reclamei pelo seu Ministerio, teem para mim prioridade e preferencia as relativas aos adeantamentos illegaes feitos á Fazenda da Casa Real, e bem assim a outros quaesquer funccionarios do Estado.
Careço de estar documentado devidamente para quando esse assumpto apparecer á tela da discussão, porque nelle tenciono entrar, devendo as contas e as responsabilidades a exigir incidir sobre todos os beneficiados e seus cumplices, sem distincção de hierarchia.
Com relação á Companhia dos Tabacos, e aos seus enviezados processos, nas suas relações com o Estado e com os seus operarios, necessito de varias informações de que a primeira sobresae do meu requerimento pelo Ministerio da Fazenda - articulado n.° 10 - cujo teor é o seguinte:
Na assembleia geral em que foi apreciado o relatorio do exercicio de 1906, da Compa-
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SESSÃO N.º 8 DE 22 DE MAIO DE 1908
nhia dos Tabacos, resolveu esta fazer uma distribuição supplementar de dividendo, aos accionistas, empregando para isso parte do excesso extra-legal dos seus fundos de reserva. Pergunto:
a) Compartilhou, segundo a letra da lei, o Estado, d'essa distribuição? Por tal operação, quanto lhe coube?
è) Em conformidade tambem com os preceitos legaes, tiveram a sua quota parte, na distribuição, o pessoal operario e não operario da Companhia?
c) Se o Estado e o pessoal operario e não operario deixaram de participar da distribuição, que providencias adoptou o Governo para que fosse integralmente cumprido o estatuido no artigo 5.° da lei de 23 de marco de 1891, isto é, a que tinha applicação no exercicio de 1906?
Não tem o Sr. Conselheiro Espregueira responsabilidade - do acto praticado, a que o requerimento enunciado se refere; mas, nem por isso, deixa de ser idoneo para facultar as importantes informações de que eu me faço porta-voz na sua reclamação.
É indispensavel, em homenagem á moralidade, que se emende o erro crasso da distribuição, considerando lucros correntios o fundo de reserva.
E, quando esse desideratum se não possa obter, compartilhem, pelo menos, o Estado e o pessoal operario e não operario, em proporções legaes, da distribuição referida.
Não menos util e conveniente é que a companhia satisfaça as importantes quantias com que deve entrar no Erario, a titulo de contribuição bancaria.
Conforme em seu tempo evidenciei, o melhor que havia a fazer era realizar o resgate do monopolio e estabelecer a régie.
Não quiseram attender-me e, perante semelhante obstinação, eu procurei melhorar o contrato vigorante. Mas do mal o menos.
Nesse intuito, quatorze emendas apresentei, cuja rejeição foi completa.
A Companhia dos Fosforos, competidora na habilitação ao monopolio tabaquista, declarou, em officio inserto nos Annaes d'esta Camara, que perfilhava, sem a minima discrepancia, todas as minhas propostas.
E todavia a preferencia foi dada á primitiva companhia monopolizadora, expressada por uma votação, em que eu unica e exclusivamente votei contra. É fruta do tempo.
Mas dizia, e insisto, em que a Companhia privilegiada tem de satisfazer o imposto bancario.
Não obstante o accordão, que lhe é favoravel do tribunal arbitral, de 1903, a Companhia mais uma vez foi desattendida das suas pretensões, pelo Supremo Tribunal Administrativo, que, em accordão de 5 de dezembro de 1906, se pronunciou nestes significativos termos:
Considerando que este tribunal, tendo assentado a sua jurisprudencia em successivos accordãos, que todos são negando provimento nos recursos da Companhia, não comprehende mesmo como no occordão do Tribunal Arbitral se assevere o contrario do que nos referidos accordãos consta;
Considerando que este Supremo Tribunal nada tem que ver com o procedimento e decisões dos outros tribunaes, a não ser com os que lhe são inferiores, e d'estes ha recurso para elle;
Considerando que é expressa e clara a doutrina da lei de 23 de maio de 1891:
Accordam os do Supremo Tribunal Administrativo em sustentar a jurisprudencia que estabeleceu, negando provimento no recurso, e confirmando a sentença requerida e accordão da Junta, para todos os effeitos, com custas pela recorrente. - Cau da Costa = T. Vasconcellos = Vilhena = Hintze Ribeiro = Alarcão = M. Paes.
Reconforta a leitura d'este accordão, por pugnar pelos legitimes interesses do Thesouro, mas não é isso sufficiente. Carece de que o Sr. Ministro da Fazenda declare explicitamente se o accordão foi cumprido na sua integra, dando entrada no Erario as quantias de que a Companhia era devedora, por contribuições não satisfeitas, de industria bancaria.
A hora para se passar á ordem do dia está muito adeantada, e não é natural que eu hoje possa obter resposta do titular da pasta da Fazenda, acêrca d'este e dos outros assumptos em que S. Exa. tem superintendencia; mas a elles voltarei até que consiga ser elucidado sobre o que deixo exposto, e ainda sobre a questão que vou ventilar, referentemente ás pretensões e abusos da Companhia monopolista, para com os seus operarios.
Trata se nem menos de um acto de complacencia - permitta-se-me o suave eufemismo - do Sr. Conselheiro Espregueira para com a poderosa Companhia. Esta, em litigio com os operarios manipuladores do Porto, teve duas sentenças contrarias por parte da commissão arbitral que ali funccionou, em conformidade com o artigo 12.° da lei de 27 de outubro de 1906. O Sr. Ministro da Fazenda achou por melhor, para contrariar as resoluções da commissão arbitral e simultaneamente favorecer a Companhia, suspender violentamente a regalia operaria, constante do artigo 12.° já mencionado. E este acto de nepotismo, maior relevo tem, porque a suspensão imposta alveja exclusivamente os operarios do Porto. Os de Lisboa, que não teem obtido sentenças favoraveis, em detrimento da Companhia, continuam no disfruto da commissão arbitral. Contra tão odiosa violencia, a que não falta mesmo o caracteristico, de excepção, protestaram os operarios manipuladores portuenses, num officio assim redigido:
Illmo. e Exmo. Sr. Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da Fazenda. - Tendo a classe dos manipuladores de tabaco d'esta cidade conhecimento, por recentes informações, que a ordem de suspensão de todos os processos sobre a applicação do artigo 6° da lei de 21 de outubro de 1906 somente foi dada em relação ao Porto, não pode a mesma classe deixar de, por tal motivo, manifestar o seu espanto.
Ha em Lisboa, como ha no Porto, duvidas a resolver em juizo arbitral por erroneas interpretações dadas pela Companhia dos Tabacos ao disposto no referido artigo da citada lei de 27 de outubro de 1906. E se até aqui se tornava inexplicavel a ordem de suspensão de julgamento dos processos, essa ordem, desde que apenas foi dada para esta cidade, attinge proporções verdadeiramente extraordinarias.
Dir-se hia que houve o proposito de fazer sustar duas sentenças arbitraes sobre outros tantos pleitos que ultimamente foram julgados nesta cidade, e isto porque taes sentenças são desfavoraveis para a Companhia.
Exmo. Sr.: a anormalidade, evidente e palpavel, de que se vem falando, não pode manter-se, sob pena de se praticar uma clara e manifesta transgressão da lei. Urge que V. Exa. dê immediatas providencias no sentido de terminar com este estado de cousas, fazendo entrar na lei quem d'ella se pretende desviar de modo tão arbitrario.
E é isso o que instantemente solicitam de V. Exa. os manipuladores de tabaco no Porto.
De V. Exa. attentos veneradores obrigadissimos.
Porto, 11 de maio de 1908. = Pela classe dos manipuladores de tabaco no Porto, os Delegados, Ignacio de Sousa = Manuel dos Santos Rosas = Manuel Vaz.
Causa, em todo o ponto, lastima que os operarios tenham, e com sobeja razão, de lembrar por forma tão pungente e incisiva ao Sr. Ministro da Fazenda, quão afastado S. Exa. se encontra dos sadios preceitos da rectidão e da justiça. No seu legitimo desabafo, os opprimidos lembram que houve, quiçá, o proposito por parte do Sr. Ministro da Fazenda, de fazer sustar duas sentenças arbitraes, por ellas serem desfavoraveis para a Companhia.
Comprehende-se, pelo que fica exposto, que o Sr. Ministro da Fazenda não medrou em credito e em respeitabilidade com o acto praticado. Pelo contrario. Pela parte que me é concernente, reputo indispensavel saber quaes os fundamentos ou os pretextos invocados por S. Exa., para que se procedesse por semelhante forma.
Não sei se o Sr. Ministro appellou. já, na questão que se debate, para o desembargo da Procuradoria Geral da Coroa, que constitue bordão indispensavel para os tropegos e avariados, a que é completamente estranho o cultivo da legalidade. Se de facto o Sr. Ministro suppõe que passará incolume, por se acobertar com tal anteparo, está completamente enganado.
O recurso a esse degenerado expediente não me impedirá de lhe pedir estreitas contas pelo arbitrio commettido, lamentando neste momento que, por forma tão evidentemente repulsiva, sacrificasse o prestigio do poder, favorecendo uma companhia poderosa, com menoscabo dos legitimos in-
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teresses de laboriosos trabalhadores, honestos e dignos.
E mais nada por hoje.
(S. Exa. não reviu).
O Sr. Presidente: - Como já decorreu o tempo destinado a trabalhos antes da ordem do dia não posso dar a palavra ao Sr. Presidente do Conselho sem resolução da Camara.
Vozes: - Fale, fale.
O Sr. Presidente do Conselho do Ministros e Ministro do Reino (Ferreira do Amaral): - Como tenho de usar da palavra na ordem do dia, nessa occasião, em breves palavras, responderei ao Digno Par Sr. Baracho.
ORDEM DO DIA
PRIMEIRA PARTE
Continuação da discussão do projecto de resposta ao Discurso da Coroa
O Sr. Presidente do Conselho de Ministros e Ministro do Reino (Ferreira do Amaral); - Como não pude, antes da ordem do dia, responder ao Digno Par Sr. Baracho, declaro, em primeiro logar, que o Governo tem a peito debellar a crise da alimentação, facilitando a entrada de cereaes, e tem de tomar outras providencias sobre a questão vinicola, que é muito complexa.
Quanto á questão do Theatro de S. Carlos, o meu desejo seria que a lei não se oppusesse á adjudicação directa, a quem já tivesse provado saber dar conta do seu recado. Entende-se, porem, que isso não é legal, e o Governo acatou as indicações da opinião manifestada.
Referiu se o Digno Par á insufficiencia da verba designada para caução no programma do concurso; mas a tal observação tenho que ponderar que essa clausula é quasi a reproducção da que se encontrava no programma anterior.
Passando a replicar ao discurso do Digno Par Sebastião Baracho, na materia em ordem, do dia, começarei por dizer que o meu estado de saude me impedirá, provavelmente, de ser tão extenso quanto desejava na resposta a dar a S. Exa., que produziu uma larga oração, na qual, tratando de variados assuntos, dedicou tambem boa parte das suas considerações á critica do programma ministerial, em que notou deficiencias.
Isso me obrigará, pois, a procurar rebater as considerações de S. Exa. com a singela, mas sincera argumentação derivada da verdade e da justiça.
Uma das accusações dirigidas pelo Digno Par ao Governo, foi a de que no programma ministerial não figurava a remodelação da lei de imprensa, que tantas reclamações suscitou.
Ora, em primeiro logar, uma declaração de caracter generico tenho que fazer.
O Governo não quis avolumar o seu programma. Annullou tudo que em ditadura se havia legislado com offensa dos direitos individuaes.
Quanto á lei de imprensa, parace-me que a melhor reforma a introduzir nessa lei seria a que, com o voto das associações respectivas, pudesse encontrar no Parlamento facil approvação.
A minha opinião, porem, não seria favoravel á intervenção do jury commum, como por vezes tenho ouvido alvitrar. Não o seria, porque para o jury ser de jornalistas, dada a difficuldade perfeitamente humana, de calar as paixões politicas, o julgamento ficaria suspeito por via de regra, e seria mesmo mais perigoso para os delinquentes do que o do tribunal collectivo.
Dada a especialidade do crime, só um jury muito versado na lingua portuguesa, e nos habitos jornalisticos, poderia pronunciar-se de uma maneira digna de confiança.
Se o jury se fosse buscar á Academia das Sciencias, ou entre o professorado das escolas superiores, talvez ajuda offerecesse garantias. O que não pode é deixar de haver uma lei que eduque, no ponto de vista da forma, os que teem de dirigir a opinião publica, e que faça a todos assignar aquillo que escrevem.
Se a sociedade se compusesse só de homens com um criterio perfeito, e por elles proprios formulado, seguramente nenhuma lei de imprensa seria precisa; mas para uma sociedade como a portuguesa, desorientada, mesmo nas camadas que se devem suppor mais illustradas, alguma lei reguladora da liberdade da manifestação do pensamento é essencial, e assim em toda a parte se tem julgado, ainda nos mais avançados países.
A melhor lei de imprensa está na educação, mas esta, infelizmente, ainda escasseia mais em Portugal do que a illustração.
A vida internacional precisa tambem, para se manter, que os insultos aos Chefes de Estado estrangeiros não sejam permittidos; a ordem e o principio da autoridade, inseparaveis das sociedades constituidas, necessitam em toda a parte que se respeite o Chefe do Estado, que tem os seus Ministros responsaveis; a lei da imprensa tem, pois, tambem que inspirar-se n'estas necessidades essenciaes.
Nesta ordem de ideias, uma lei de imprensa não se pode, a meu ver, gisar num Parlamento, nem ser proposta por um Governo. Tem de ser formulada nas suas bases geraes numa assembleia de homens de letras, e só assim se poderá fazer passar em Côrtes com exito provavel na sua applicação pratica, desde que o Parlamento a corrija no ponto de vista politico, em tudo quanto possa obter a sancção do país, que exige antes de tudo a responsabilidade pelas opiniões emittidas e publicadas.
Outra observação critica do Digno Par Sr. Baracho foi a referente á falta da promessa de uma boa lei de responsabilidade ministerial.
Emquanto o julgamento dos Ministros tiver de fazer-se na Camara dos Pares, a lei da responsabilidade será sempre, a meu ver, uma difficuldade pratica no ponto de vista da justiça, que será unicamente funcção, para o justo castigo dos delinquentes, da atmosphera politica dominante d'essa assembleia, em que a paixão mais predominará seguramente do que a serena e placida applicação da justiça.
Restaria, naturalmente, que os accusados fossem julgados pelos tribunaes ordinarios, para o que seria essencial que a magistratura judicial estivesse completamente isolada de quaesquer funcções politicas, que fosse absolutamente incompativel com ellas, que formasse uma colectividade perfeitamente á parte, não saida da classe dos delegados, como hoje é.
Emfim, era preciso fazer uma completa remodelação de tudo quanto existe, não julgando o Governo que a sua missão devesse ter tão largas aspirações reformadoras e entendendo que já não pequena era a tarefa que as circunstancias lhe impunham, porventura mesmo superior ás suas forças, para tentar mais altas aspirações de caracter exclusivamente politico, que não eram immediatamente exigidas pela opinião publica, para satisfazer a qual, quando o Parlamento assim o julgue, ha a facil ascusação criminal, que a Camara dos Deputados autorize.
Mas ha mais: os Ministros são em regra Pares ou Deputados. Poderia, ou deveria, o direito commum ser applicavel a Ministros para os crimes de ordem politica e deixaria o Par ou Deputado, por ser Ministro, de ter o seu privilegio, ou esse privilegio é só perigoso para os Ministros e não para aquelles?...
A verdadeira maneira de apurar responsabilidades politicas, de onde derivem responsabilidades criminaes, que a opinião publica julgará, é exactamente a forma de proceder do Digno Par Sr. Baracho, que não se poupa a um trabalho verdadeiramente colossal, de estudar a fundo todas as questões que interessam o país, buscando documentar as convicções e expor, a sua opinião, com que se pode discordar (e muitas vezes isso me tem succedido) mas que tem por si a eloquencia da sinceridade e da convicção.
Referiu-se o Digno Par aos aconte-
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cimentos de 5 de abril, que mais ningnem do que eu lamento, e muito do fundo da alma, por todos os motivos e até, como já tive occasião de dizer, porque foi o unico desgosto - mas esse bem fundo e grave - que me trouxeram as eleições, que foram feitas com a maxima liberdade, votando toda a gente em quem quis e como quis, sem que, mesmo nas assembleias onde sé deram os casos desastrosos a que me estou referindo, houvesse razão para duvidar da genuinidade legal do acto eleitoral.
Houve numerosos mortos e feridos na assembleia de S. Domingos; houve um grave conflicto na assembleia de Alcantara; houve ainda conflictos de somenos importancia em Santos. Nenhum d'estes conflictos o Governo podia prever, tão placido tinha corrido o periodo da preparação eleitoral, em que as paixões tantas vezes se exaltam!
Vieram os conflictos de 5 de abril lançar uma nota, para mim, mais do que desagradavel, e que é seguramente o maior desgosto da minha vida publica.
O Governo mandou proceder a rigoroso inquerido, tendo para isso nomeado um general absolutamente livre de qualquer preoccupação partidaria.
Depois que o encarreguei da missão de inquerito, muito propositadamente não tenho procurado vê-lo, não tenho dado pressa, nem recommendado vagar, para que se não pudesse suppor que tinha numa cousa ou noutra o menor empenho.
O meu unico empenho é que se faça clara luz em todo o succedido, que se não omitta pormenor algum, que se faça, emfim, um inquerito serio e justo, que nada se omitta do que for preciso para se apurar a verdade, e que o relatorio do general Gouveia seja a base de todo o procedimento posterior, contando que esse relatorio se não fará esperar, seguro de que elle será a expressa definição da verdade, devendo acrescentar que logo no dia seguinte ao das occorrencias lamentaveis, que mais uma vez muito deploro, o proprio commandante da guarda municipal, que é um official distinctissimo e pundonoroso como os que mais o são (Apoiados), solicitava do Governo o inquerito a que se mandou proceder.
Com effeito, tem o Digno Par toda a razão quando affirma que ordens geraes emquanto não cancelladas se consideram em vigor, e, por isso, eu dei ordem ao commandante da guarda municipal para considerar cancelladas todas as ordens do meu antecessor que não estavam de acordo com as leis reguladoras da forma por a que se deve fazer a policia, e que para o caso em questão estão definidas nas ordens do exercito em condições bem diversas da doutrina da ordem alludida; mas, de facto, taes ordens não estiveram mesmo em vigor, durante o tempo em que o actual commandante da guarda municipal tem exercido esse cargo.
E a prova d'esta affirmação está nos termos da ordem transmittida pelo commando geral ás differentes unidades, na vespera do dia das eleições.
Essa ordem era concebida nos seguintes termos:
"Guarda municipal de Lisboa - Aos commandantes dos esquadrões das companhias -Ordem confidencial n.° 3 - r.- Sua Exa. o Commandante Geral determina:
1.° Prevenindo o caso de no proximo dia 5 haver necessidade de prestar o serviço de guarda ás urnas eleitoraes e outros, os effectivos das forças constantes do mappa da ordem confidencial n.° l serão alterados pela nota indicada na nota junta.
2.º...........................
3.°...........................
4.° As forças destinadas ás guardas das urnas serão, em regra, compostas de um sargento, um cabo e doze soldados.
5.° Cora a devida antecedencia se chamará a attenção de todos os sargentos para as ordens que regulam estes serviços e todos os mais actos eleitoraes, insistindo nas seguintes obrigações:
a) Verificar se a uma ou cofre que a contém está devidamente fechada e sellada e fica collocada em logar proprio para se exercer a devida vigilancia e segurança, para o que se devem entender com os presidentes das mesas e autoridades administrativas.
b) Em caso de desordem, proceder com a maior circumspecção, procurando serenar os animos por meios suaves e suasorios; e, quando assim o não consigam e sendo ameaçadas e em perigo as forças do seu commando, empregará força, mas somente recorrerá a meios extremos depois de haver intimado os tumultuarios a que dispersem, e esta intimação seja desattendida.
6.° A todas as forças que forem chamadas a desempenhar qualquer serviço durante o acto eleitoral se recommendará a maior prudencia na sua execução, sem prejuizo da firmeza e energia que igualmente se deve manter, observando-se o disposto na alinea b) do numero anterior.
Quartel do Carmo em Lisboa, 4 de abril de 1908. = O 2.° Commandante, Simão Maria Ventura.
(O Digno Par Sr. Sebastião Baracho, interrompendo, pede a publicação d'este documento no "Diario do Governo" ou no "Summario-", ao que o orador accede).
Como se vê, trata-se de instrucções precisas e pelas quaes tinham de regular se as praças, quando chamadas ao serviço da guarda das urnas como era de prever que succederia, e pelo texto d'essas instrucções se explica a minha affirmativa de que a falta de cancellamento da ordem a que o Digno Par se referira não significava que ella estivesse realmente em vigor, repetindo mais uma vez que d'essa ordem, justificadamente censurada, affirmam os officiaes antigos da guarda, só uma vez se fez leitura ás praças - no dia em que foi promulgada.
Esta circumstancia, porem, para o caso em questão, é secundaria.
O que tem mais importancia é a ordem cuja leitura fiz á Camara.
Sobre o assunto, entregue como está o caso ao inquerito, cuja ultimação conto que se não fará esperar, nada mais me cumpre dizer, porque não desejo perturbar a acção da justiça; o que posso affirmar á Camara, e em satisfação ás instancias do Digno Par, é que não será preciso que o Governo seja incitado a cumprir o seu dever. Logo que o inquerito seja findo, será de todos conhecido e proceder-se-ha como a lei determina, sem attenções ou considerações que não sejam o exacto cumprimento da lei e do que a justiça definir.
Tendo tratado do caso principal, devo ainda responder, com espirito de justiça, ao modo geral pelo qual a policia exerce a sua acção, devendo dizer ao Digno Par que o Governo, tanto reconhece que é preciso regularizar o serviço da policia mais de acordo com o que fora de Portugal se passa, que tenciona apresentar á Camara uma proposta de lei com que conta melhorar esse ramo de serviço, exactamente no sentido das observações de S. Exa.
Com effeito, a policia tem por vezes modos brutaes; não está habituada aos processos modernos; tem impaciencias e reminiscencias da rudeza dos antigos habitos militares.
Mas é preciso confessar tambem que o povo está por seu lado pouco habituado a obedecer ás indicações salutares dos mantenedores da ordem publica.
Tenho comtudo, dado repetidas instrucções para que taes habitos se corrijam, e creio poder affirmar que neste ponto teem as cousas melhorado consideravelmente, sendo me tambem agradavel constatar que a antiga attitude hostil das classes menos protegidas da fortuna se tem suavizado consideravelmente.
Neste ponto de vista, e com relação á guarda municipal, até ha poucos dias era frequente o facto de magotes de populares insultarem, ou pelo menos ridiculizarem os soldados, dos quaes chacoteavam, quando mesmo os não
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offendiam corporalmente, estabelecendo-se pequenos conflictos, que a prudencia da guarda municipal evitou serem graves.
Ha já dias, porem, que estas provocações cessaram, e que as relações entre a guarda municipal e o povo da capital parece terem entrado em franca melhoria, se não em completa normalidade.
Não posso ir mais adeante nas minhas affirmativas porque não desejo antecipar juizos; a justiça dirá a sua ultima palavra e a intervenção do Governo será só para a proteger no exercicio livre da sua missão julgadora.
No dia seguinte aos acontecimentos de 5 de abril, finalizou o acto eleitoral sem novidade; mas levantaram-se tumultos nas ruas, promovidos por pessoas das ultimas camadas sociaes.
Dados os acontecimentos da vespera, e a excitação dos animos contra a policia e a guarda municipal, foi o exercito encarregado de manter a ordem, o que fez com difficuldade, ainda que sem resistencia, porque os bandos que se formaram dispersavam, mal avistavam a tropa.
Durante a noite continuou o barulho, e ainda no dia seguinte, até que pela altitude do exercito e pela prisão de grande numero dos individuos que nas rusgas foram apanhados, cessou a desagradavel impressão que seria natural causar um movimento, que se não explicaria decerto em occasiões normaes.
Fui censurado por ter deixado continuar por tanto tempo os desordeiros impondo o panico aos cidadãos honestos, dizendo-se então que bastaria uma duzia de policias a tomar as embocaduras das ruas, para que terminasse a anomala situação criada pela pressão dos discolos e maltrapilhos, que constituiam o grosso da manifestação.
Para fazer uma apreciação justa dos factos, e necessario não os considerar em absoluto.
É essencial julgá-los pelas circumstancias de occasião, ponderar-se que a situação que o Governo encontrou, e que não criou, era absolutamente anormal.
O país acabava de sair de uma revolução armada; a guarda municipal e a policia civil, ás quaes se deveu, no seu primeiro impulso, o mallogro do movimento revolucionario, não tinham seguramente as sympathias dos que se haviam revolucionado; o conflicto do dia 5 mais aggravara a situação; ninguem podia saber o que estaria por detrás de uma expansão dos elementos que appareciam nas ruas; se se mettesse nessa occasião a policia a funccionar nas ruas, como normalmente succede, os resultados seriam seguramente novos conflictos sangrentos, e novas lutas, que era preciso, por todas as formas, evitar.
Foi isto que se conseguiu pelo systema das rusgas, que, executadas pela policia, protegida por troços de cavallaria do exercito, fizeram em pouco tempo voltar á normalidade o socego da capital, sem derramamento de sangue, alem do já havido, e que tão profundamente abalou o meu coração de português.
Convencido de que o movimento havido derivara de animadversão contra os elementos policiaes, que até os proprios elementos conservadores por vezes fomentaram com o exagero das suas criticas, o que pretendi a todo o custo, evitar foi que na occasião de mais movimento nas ruas da capital taes conflictos comprehendessem não só os discolos, mas as pessoas que por dever dos seus lavores se achassem occasionalmente nos logares onde os discolos se agglomeravam em bandos.
O processo que empreguei para manter a ordem não teria sido o mais rapido no suppor de quem critica; o que seguramente evitou foi mais derramamento de sangue, mais um desgosto para o coração de todos nós, mais uma irritação segura contra, os elementos de ordem, que é preciso que existam em todas as sociedades constituidas.
É certo que em seguida aos acontecimentos, a que me tenho referido, se aggravou a atmosphera do mau-estar, que encontrámos, e que parecia ir pouco a pouco melhorando em relação aos primeiros dias de existencia do actual Governo.
Boatos espalhados por toda a gente, uns inconscientemente, e pelo mau gosto de falar e parecerem bem informados, outros para fins bolsistas, outros ainda para conservar a agitação, e porventura provar a impossibilidade de fazer de Portugal um país constitucionalmente governavel, outros, finalmente, pelo susto que desde o attentado de 1 de fevereiro se havia apoderado da maioria das pessoas que viviam na capital, tudo isso concorreu para o estado de ansiedade que avassallava os animos, e que se traduzia na desconfiança de todos e de tudo, eco que se repercutia nos mercados bolsistas estrangeiros, não ainda assim com a intensidade com que se manifestava nos estabelecimentos de credito, tanto do Estado, como particulares dentro do país.
Todos os dias chegavam ao conhecimento do Governo noticias desagradaveis, com relação a alterações de ordem publica, que não provinham só de elementos policiaes ou de elementos nacionaes, e a Camara pode calcular como foi attribulada a existencia do Governo nesse tempo, e quanta prudencia foi preciso desenvolver, a par da necessaria demonstração de que a força publica estava ao lado da ordem e da manutenção da Constituição em toda a pureza das suas condições livres e ao mesmo tempo em toda a pureza do regime da ordem, unica condição de progresso, de paz e de vida social possivel.
O estado de cousas que a largos traços tenho esboçado, só melhorou consideravelmente quando o país entrou, pela abertura do Parlamento, em pleno funccionamento da Constituição do Estado; a melhoria de condições geraes definiu se pelo brilho do acto da acclamação, cujo eco em todo o país e no estrangeiro restituiu a todos a confiança e a esperança de que, mantendo-se todos os poderes do Estado dentro da sua lei fundamental, o país o que pretende e deseja é que aquella lhe garanta: administração, liberdade e paz.
Aconselha o Digno Par que das manifestações externas de adhesão á monarchia se não deve abusar. Em pleno acordo com este modo de pensar, nunca o Governo provocou taes manifestações. Ellas teem brotado espontaneas da reacção que se tem operado em Portugal contra a ideia de necessidade de mudança de instituições, e tendo tambem não pouco contribuido para isso a sympathia inspirada pelo joven Monarcha e a confiança que a todos inspira a sua decidida vontade de cumprir a lei, e sempre a lei.
Não se pense que o que estou affirmando se baseia em intenções de cortesia ou lisonja palaciana; não é esse o meu feitio. É um facto por todos constatado e devidamente apreciado, devendo ainda, e a proposito, affirmar que não ha o menor risco de que este Governo seja o que em tempos se capitulava de um Governo palaciano. É um Governo que governa para o país, servindo com um Rei que só em igual intuição se inspira.
No dia em que surgisse o menor desacordo no modo de conseguir este desideratum, o Rei e o Governo saberiam qual o seu dever.
O Governo encontrou o país em pleno desassocego; tudo era anormal.
O attentado de 1 de fevereiro, que encheu de pavor e indignação toda a gente, a revolta armada, apenas suffocada, os odios politicos e quasi pessoaes em plena laboração dissolvente, uma enorme porção de presos politicos pejando os calabouços, a incerteza e a duvida em todos os espiritos, o credito do país arrastado lá fora, a ponto de ser preciso, para evitar desgostos, não tornarmos conhecida a propria nacionalidade, todos os elementos que ficam sempre em actividade perigosa depois de uma revolução, ainda mesmo quando vencedora, se manifestaram pelas mil formas desordeiras e insolentes que
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sempre de esperar... são em taes individuos.
Compare-se essa situação com a actual, que, apesar de não ser de todo desannuviada, é por certo bem melhor do que a que eu, encontrei; o país julgará se o Governo tem procedido mal.
Não se julgue por estas palavras que o Governo quer a si proprio attribuir qualquer parcela do exito já obtido. A obra foi de todos; todos para ella contribuiram, sem distincção de partidos ou de ideaes; todos para ella concorreram com a quota parte dos seus esforços patrioticos.
Mas não se diga, porque não é justo, que o Governo contrariou, pela sua incapacidade, esse movimento nacional, que fará na historia a rehabilitação do povo português, e para os que nella trabalharam, que foram todos, a consciencia segura de terem cumprido o dever.
É possivel que outra orientação no Governo trouxesse mais rapidos e efficazes resultados; que os processos de repressão violenta que muitos preconizavam fossem os mais adequados ou que a mais larga distribuição de amnistia, como a outros se afigurou, melhor traduzisse a vontade do país.
O Governo procedeu como julgou melhor; o Parlamento julgará se bem procedeu.
O Governo entendeu que os reus de crimes militares podem ser perdoados depois de julgados, quando assim se julgue dever fazer, como succedeu com os marinheiros insubordinados, que já em parte tinham, expiado a sua culpa; mas não julgou dever aconselhar amnistias aos militares, que ainda não tinham sido julgados, porque entendeu, e ainda entende, que seria um tal procedimento um erro disciplinar das mais lamentaveis consequencias, e uma affronta aos que, no meio da agitação que havia sacudido tão gravemente o país, tão notavel exemplo haviam dado da sua lealdade, da sua disciplina e do seu amor pela patria querida, e pelos creditos da corporação, que tão altamente confirmaram no espirito publico nacional e na apreciação que tão justa e gloriosamente no estrangeiro completaram.
É possivel que hoje se diga que em alguns pormenores, no "modus faciendi", o Governo não procedeu ajustando a sua forma de acção ao que o rigor dos formalismos exige, como por exemplo quando confiou a manutenção da ordem na capital ao general da 1.ª divisão, dando-lhe o cominando geral de toda a força publica, incluindo a dos elementos de policia tanto militares como civis, o que só é de habito fazer-se quando se declara o estado de sitio. O Governo, porem, longe de arrepender-se do que fez, só tem a louvar-se de o ter feito, porque assim conseguiu centralizar todos os esforços, demonstrar a boa harmonia existente entre todos os elementos de confiança para a manutenção da ordem, estabelecer neste empenho a solidariedade entre o exercito e a policia no ponto de vista da ordem publica, educar a policia na melhor forma de proceder para com o povo, e, finalmente, fazer acabar a incompatibilidade perigosa entre os elementos policiaes e a população da capital, com o que só houve a ganhar, e não pouco, nos resultados obtidos a favor da ordem.
No numero dos boatos que se espalharam por toda a parte, e a proposito de tudo, o que tomou maior vulto foi o de que uma porção de officiaes queria, em desforço de discussões de imprensa e conversas de cafés, reproduzir contra os jornaes mais avançados as scenas que em Barcelona tantas difficuldades trouxeram aos governos da nação vizinha.
Seguro estava o Governo de que taes boatos eram absolutamente infundados; mas tal segurança não existia na opinião publica, e tanto assim era que muitas e repetidas communicações recebi de directores de jornaes que pelo telephone me avisavam de que alguma cousa havia no sentido da realização de taes boatos, e de que se preparavam para resistir pela força a qualquer ataque.
Assegurei-lhes que nada havia e mandei guardar as redacções d'esses jornaes, não, repito, porque estivesse convencido da veracidade de taes informações, mas para demonstrar que, na obrigação de manter a ordem e a confiança publica, o Governo não tinha distincções politicas a fazer entre os cidadãos portugueses.
Ordenei mais severas prevenções porque não quis dar corpo aos boatos adrede espalhados para manter irrequietos os espiritos por alguns conflictos pessoaes que se pudessem dar isoladamente nas ruas, provocados por quaesquer ditos, conflictos que depois se generalizassem, e, dado o estado dos animos, se generalizassem sem facil forma de obstar ás perigosas consequencias de taes conflictos entre os elementos civil e militar.
Num dia em que taes boatos mais se accentuaram, ordenei uma formatura geral das forças nas das e assim demonstrei que toda a força estava disciplinada, obedecendo á voz do seu general sem a menor hesitação, e dando á povoação ordeira da capital a impressão de que eram falsos todos os boatos em contrario, absurdos, e que a força publica continuava como até ali, e como sempre, a inspirar a todos a mais completa e inteira o confiança, demonstrando por esta forma a sua nunca desmentida lealdade.
Diz-se que este procedimento alimentou o panico, mas o que posso affirmar é que, ao contrario d'isso, d'ahi por deante os boatos terroristas foram pouco a pouco desapparecendo, a serenidade veio pouco a pouco voltando aos espiritos, e as cousas melhoraram.
Poderá dizer-se que o Governo fazia obra por boatos. Tal accusação poderia colher se tivesse que lutar com uma situação normal; mas o certo é que o Governo tinha que defrontar-se com uma situação que se seguia a uma outra em que bem claro se mostrou que desprezar por completo os boatos é um erro capital e que mais vale, ou menos perigoso é para o resultado, dar-lhes demasiada importancia do que votá-los por completo ao desprezo.
Emquanto o cumprimento do meu dever me conservar á frente do Governo, qualquer que seja o juizo que se forme da minha incapacidade como estadista, sou o primeiro a confessar que prefiro que me achem demasiadamente cauteloso a ter que arrepender-me por ter sido excessivamente incredulo.
E, se o argumento dos resultados obtidos, nem sempre é provativo, por se não poder saber quaes seriam os que se obteriam do procedimento contrario, como os que se obtiveram não são desagradaveis, a minha consciencia affirma-me que, se o meu procedimento podia, na opinião de muitos, ser melhor, o que empreguei tambem não produziu inconvenientes que possam trazer-me remorsos de imprevidencia, que decerto teriam na opinião desapaixonada mais merecidas criticas.
Nesta ordem de ideias tenho usado em tudo as cautelas que no estrangeiro se usam, e se aqui estão ellas em opposição com o que estavamos habituados a ver, não excedem o que em toda a parte se pratica, e que em toda a parte se não estranha, qualquer que seja a constituição vigente.
Creio ter respondido á primeira parte do discurso do Digno Par, passando agora a responder á segunda.
Dois caminhos havia a seguir para normalizar a situação constitucional do país: ou completar a dissolução da Camara dos Senhores Deputados pela reunião do Conselho de Estado que a autorizasse com o seu voto, ou reuni-la, dando por nullo o acto da dissolução, a que havia faltado uma formalidade essencial.
Optei pela primeira solução porque, dada a intenção de acalmação que tem animado todos os actos do Governo, reunir, no momento em que as paixões mais exacerbadas estavam, uma Camara em que numerosamente se achavam representados todos os elementos
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contraditorios que estavam em luta, era o mesmo que provocar conflictos immediatos, talvez não com o Governo, mas entre os elementos interessados. D'ahi nasceria, naturalmente, a impossibilidade de obter d'essa Camara as medidas constitucionaes precisas para a vida constitucional, e a clara necessidade, ou de uma restauração do elemento preponderante na Camara, o que considerei um perigo, ou a decisão d'esse conflicto por meio de uma dissolução. Mas nessa dissolução definir-se-hia a opinião do Chefe do Estado contra a vontade da maioria, e, entre este perigo ou aconselhar o Chefe do Estado a que legalizasse o que já estava de facto feito e consultar o país sobre a nomeação do Governo existente, pareceu-me o segundo procedimento o mais honesto e o mais sincero.
Se me perguntam se para as vantagens politicas do Governo o outro procedimento seria o mais habil, direi que sim. Não era porem, a uma habilidade politica que o Governo visava; era ao sereno exercicio da Constituição que elle aspirava. Dentro da antiga camara poderia o Governo organizar uma situação politica que lhe desse existencia autónoma, mas não era essa nem a sua aspiração nem a sua intenção; e, como a sua missão não é nem pelos partidos constituidos ou constituendos, nem contra uns ou contra outros, mas pela manutenção da Constituição, julgo ter interpretado da forma mais sincera a vontade do país, o que as eleições liberrimas a que presidi por completo confirmaram.
Se o Governo tivesse aspirações a larga carreira na administração publica, seguramente o outro alvitre seria o mais asado a taes pretensões; se o Governo quisesse, ou isso estivesse nos seus intuitos, intervir no prolongamento da vida ou na cessação da existencia dos partidos tradicionaes, talvez seguisse caminho diverso, mas a sua intenção não tem taes ambições; a aspiração do Governo é viver emquanto tiver a confiança da Camara, e os que foram eleitos exigirem d'elle este sacrificio; é deixar que o país se governe através do seu Parlamento, e segundo a vontade das suas maiorias. Nem mais, nem menos.
A minha aspiração é que no estrangeiro se saiba que Portugal é um país monarchico-representativo, onde a tudo sobreleva a opinião das maiorias parlamentares; o meu desejo não é nem formar partidarios, nem conservar-me no poder, a despeito da vontade do país, definida pelo procedimento das maiorias parlamentares; o meu intuito é cumprir desinteressadamente o meu dever patriotico, e a isto resumo a aspiração unica do meu sentir.
Não é um Governo que possa dizer-se (como de muitos se tem dito, não discuto se com justiça ou sem ella) nascido de intrigas palacianas, ou que por ellas queira ou diligencie manter-se; é um Governo nascido de um conselho seguido pelo Chefe do Estado, no uso liberrimo das suas funcções de escolher os seus Ministros; é um Governo que não saberá ser senão o que a Constituição exige que seja, e por isso a vontade popular foi consultada e nella principalmente se apoia a sua existencia.
Diz-se que a lei eleitoral por que mais uma vez se elegeram os representantes do povo está longe de permittir confiança na legitimidade d'essa representação.
Pode ser que assim seja; mas a verdade é que todas as leis eleitoraes são boas quando se executam com sinceridade, como na ultima eleição succedeu, e tanto assim que nem una só das parcialidades politicas deixa de ter representação e que os eleitores volaram em quem quiseram, e como quiseram.
Deu-se á propaganda eleitoral a maxima tolerancia; a Camara eleita representa genuina e claramente o sentir politico do país que vae á uma e ali affirma a sua vontade.
Pode não ter agradado o resultado da eleição a muitos que ficam em casa quando se trata da propaganda eleitoral e dos trabalhos que ella representa; mas quem está eleito é quem os eleitores quiseram eleger.
Por isso, e na forma por que se fez a eleição, desapparece o peccado original de haver mais uma vez eleições pela lei vigente, unico argumento que a meu ver se poderia com justiça adduzir contra o procedimento do Governo, e que ainda assim só colheria, se pudesse conceber-se que da antiga Camara se poderia arrancar a votação de uma lei eleitoral, o que seguramente ninguem acredita.
Para mim, uma lei eleitoral moldada segundo as indicações geraes da de 1884, é o que de mais perfeito se pode applicar ao nosso país. Nella se estabelecem os circulos plurinominaes e os uninominaes, nella se regulam em justo equilibrio as pretensões demasiadamente regionalistas com as que é necessario produzir para que as opposições possam fazer-se representar.
Nesta ordem de ideias, o Governo apresentará opportunamente a sua proposta de lei, que o Parlamento apreciará como melhor entenda.
Tambem o Governo cumprirá a sua promessa de indicação de quaes os artigos da Carta que suppõe precisarem de alteração e que a Camara tambem apreciará como melhor entenda.
Neste ponto, desde que o poder judicial seja só obrigado a cumprir os decretos dimanados do poder legislativo, e que as Camaras se possam reunir por direito proprio, em determinadas condições, parece-me que pouco mais se poderá exigir, a não ser uma cousa que tem de exigir-se para todos os artigos reformados ou não reformados, e é que todos se cumpram por quem tem de cumpri los e que o povo não permitta que fiquem sem execução uns ou outros.
O Governo não julgou opportuno aconselhar a amnistia para os criminosos sob a acção do artigo 253.° do Codigo Penal.
Hoje todas as nações, mesmo as mais adeantadas, defendem a ordem social, contra essa especie de crimes e, por isso, Portugal não pode constituir-se em excepção, pelo menos emquanto não possuir uma policia como a da Inglaterra, que inspire inteira confiança em tudo e a todos.
Tomei, porem, nota dos nomes dos condemnados que o Digno Par suppõe credores de clemencia e mandei indagar do seu paradeiro e qual tem sido o seu procedimento, segundo o qual o Governo terá de opinar se é ou não opportuno seguir a indicação do Digno Par.
(Observando o Digno Par Sr. Sebastião Baracho que esses individuos não dependem de amnistia, pois estão á disposição do Governo, o orador repete que se informará das condições em que se adiam, sob o ponto de vista do seu comportamento).
Entende o Digno Par que o Governo deve trazer á Camara com o bill de indemnidade do Ministerio João Franco, o do Ministerio José Dias, e especialmente o decreto da criação do almirantado.
Sem discutir, porque seria superfluo, se a lei do almirantado carece de ser submettida ás Côrtes, não estando tal lei em vigor, parece-me por demais trazê-la á discussão parlamentar, tão largo já é o elenco d'este genero que o Parlamento terá de julgar.
Se, porem, os escrupulos da Camara exigirem que assim se faça, e que se aumente assim o trabalho da Camara com uma diligencia inutil, o Governo não tem duvida alguma em trazer á camara o bill que desde 1893 figura no guarda-roupa constitucional, como peça obrigatoria, de que ainda ninguem se occupou e que se torna cada vez menos preciso votar, tão differente é hoje a legislação da que então se deveu á iniciativa do Ministerio de que eu fiz parte, e tão convencida está toda a gente de que em nada foram excedidas as autorizações parlamentares.
Censurou o Digno Par as despesas com a policia preventiva, e fez reparo em que ellas ainda fossem acrescidas com um credito supplementar.
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O que eu achei da verba orçamental estava quasi esgotado, não em pagamentos feitos, mas em despesas autorizadas, e ainda não pagas, o que não admira, dada a data da queda do Governo transacto e os acontecimentos que a precederam.
No estado em que tomei conta da pasta do Reino, e nas exigencias de um tal estado de assuntos de ordem publica, ninguem julgará, decerto que as despesas tenham sido improductivas ou de qualquer forma excessivas.
A policia preventiva é em todos os países, hoje, uma necessidade indispensavel, quasi mesmo tem de ser uma organização de caracter internacional. E ninguem pensa em fazer d'ella um elemento vexatorio de espionagem politica, mas tem de existir, e cada vez mais imperiosa é a necessidade da sua existencia, por todas as razões que a defesa da sociedade exige.
Em toda a parte existem os elementos dissolventes que o Digno Par suppõe não existirem em Portugal.
Deus queira que assim seja. Os factos, porem, podem não dar razão a S. Exa.; e prevenir é muito melhor do que remediar.
Assim ainda ultimamente se julgou em França com a criação das brigadas volantes, apesar da opposição que no Parlamento teve a criação de tal elemento de segurança.
É innegavel que o desideratum constitucional completo seria que os municipios estivessem regidos por corpos gerentes eleitos na devida epoca.
Não é, porem, contra a lei o que se está passando, porque os corpos administrativos são obrigados a gerir os negocios da sua competencia emquanto
são substituidos. A sua administração faz-se portanto regularmente, e sem obice algum legal que invalide os seus actos.
O que não é legal é que não tivessem sido eleitos na epoca propria, e d'isso não teve responsabilidade o Governo.
Poderia, é certo, ter já mandado proceder a eleições, mas não o tem o Governo feito, porque lançar o país numa eleição municipal na occasião em que por toda a parte a crise economica traz constantes ameaças de ordem publica, e fazê-lo quando os povos não reclamam contra o estado de cousas actual, não seria nem prudente nem essencial.
Se o Parlamento, porem, se pronunciasse por uma qualquer votação, indicando que julga opportunas as eleições municipaes, logo o Governo seguiria a indicação parlamentar, sem a menor difficuldade.
Diz o Digno Par que, como pretexto dos cadastros, se fazem visitas domiciliarias vexatorias, e que o decreto respectivo é uma razão de vexames sem utilidade pratica.
Citou, entre outros casos, o de visitas feitas, a casa do industrial Sr. Grandella e á sua fabrica, por forma contraria aos preceitos que a liberdade individual exige.
Mais uma vez se dão, a respeito dos juizos que de mim fazem, os propositos mais contraditorios.
A uns mereço o conceito de emerito "makavenco"; para outros sou autor, ou pelo menos, responsavel de vexames contra a pessoa do Sr. Grandella.
Não tenho senão a agradecer ao Digno Par ter-me dado occasião para aclarar os factos.
Quando teve logar o centenario da India, a cuja commissão organizadora tive a honra de presidir, encontrei no Sr. Grandella um dos auxiliares mais activos e mais dedicados; travei com elle relações nessa occasião, e fiquei grato aos serviços que me prestou com o mais patriotico e dedicado desinteresse. Nunca conversei com elle em politica.
Admirei sempre no Sr. Grandella a sua actividade, o seu genio audacioso que conseguiu, num meio como o nosso, fundar os seus armazens e servir com elles as classes menos abastadas.
Por aqui ficaram as minhas relações de estima, que conservarei emquanto me não provarem que d'ella não digno pelos seus actos.
O Sr. Sebastião Baracho (interrompendo): - O Sr. Grandella é um cavalheiro.
O Orador: - Nestas condições, póde-se suppor que se tivessem mandado fazer vistorias ao Sr. Grandella com intuitos vexatorios?
O decreto dos cadastros não veio trazer vexames para ninguem; trouxe para o serviço o auxilio, dos fiscaes do impostos, interessando os, a par das suas diligencias normaes, num serviço que em toda a parte existe, e que se refere a saber-se quem vive nas diversas casas de moradia, e o movimento normal da população.
Nada d'isto é vexatorio (que se saiba ou indague) a não ser para quem gozar do "privilegio" de não ter domicilio certo.
A diligencia, portanto, em casa do Sr. Grandella não teve por base o cadastro, mas foi motivada, certamente, por qualquer razão de serviço fiscal, que nada tem absolutamente que ver com o decreto alludido.
Estou cansadissimo, e só por um grande esforço posso tão longamente responder ás considerações do Digno Par Sr. Baracho; tão longas foram ellas que, seguramente, alguns pontos, alem dos que se referiram ao Ministerio do
Reino e Presidencia do Conselho, me terá esquecido tratar, do que peço ao Digno Par desculpa e o que farei em qualquer outro dia, em que S. Exa. me recorde as considerações a que por lapso tiver deixado de alludir.
Sobre os assuntos respeitantes aos outros Ministerios, os meus collegas darão a S. Exa. todas as explicações exigidas; mas não desejo terminar sem afiançar ao Digno Par que só se a Camara o não quiser é que não acabará a anomalia constitucional que o Conselho Superior de Defesa Nacional representa, porque, quando mesmo não haja tempo para a votação de uma reforma do exercito, o Governo ha de provocar ao Parlamento um voto a emittir sobre esse Conselho e suas resoluções, voto que dará á lei respectiva a interpretação que ella deve ter e é que tal Conselho, quando constituido, só terá funcções consultivas; e, como o Parlamento é que tem o direito de interpretar as leis, o aleijão constitucional que o Conselho representa terá que sair da legislação do país, para credito de todos nós.
E não será só isso que o Governo diligenciará obter do Parlamento, mas a annullação de attribuições de igual jaez, que a criação do Conselho Superior de Instrucção Publica a este incumbe e que por completo se afastam das normas constitucionaes em vigor. (Apoiados).
Para concluir, direi mais uma vez: a conducta do Governo tem-se moldado no que ha de mais liberal; tem tido para isto que lutar com habitos inveterados que estavam longe d'esta orientação.
É possivel que o meu procedimento por isso não tenha agradado ás exigencias extremas de uns e outros. Tenho a satisfação, porem, de affirmar que tenho servido com toda a dedicação que posso, e com desinteresse, que não peço para me agradecerem, porque faço o meu dever, mas que desejo que m'o reconheçam, para assim ver compensada pela benevolencia da Camara as duras provas a que tenho estado sujeito no exercicio da minha difficil missão.
Vozes: - Muito bem.
(S. Exa. não reviu).
O Sr. Presidente: - Como a hora vae muito adeantada, parece-me melhor passar-se á segunda parte da ordem do dia, ficando o Digno Par Sr. Francisco José Machado, se S. Exa. assim o entender, com a palavra reservada para a proximo sessão.
O Sr. Francisco José Machado: - Ao entrar hoje na Camara estava tão longe de tomar parte no debate actual como de ir á China. Pedi, porem a
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palavra, porque a isso me levaram algumas considerações expendidas pelo Sr. Presidente do Conselho; mas, acatando as justas ponderações do Sr. Presidente da Camara, nenhuma duvida tenho em que a palavra me seja reservada para a sessão seguinte.
ORDEM DO DIA
SEGUNDA PARTE
Eleição de commissões
Feita a chamada, corrido o escrutinio, e tendo servido de escrutinadores os Dignos Pares Srs. Arthur Hintze Ribeiro e Conde de Villar Secco, apurou-se terem entrado na uma 22 listas, sendo 1 branca, ficando portanto eleitos por 21 votos para a commissão de guerra, os seguintes Dignos Pares:
Conde do Bomfim.
Conde de Tarouca.
Manuel Raphael Gorjão.
Antonio Eduardo Villaça.
José E. de Moraes Sarmento.
Francisco F. Dias Costa.
Francisco José Machado.
Francisco Maria da Cunha.
Luiz Augusto Pimentel Pinto.
Luiz de M. Bandeira Coelho.
Marino João Franzini.
Sebastião de Sousa Dantas Baracho.
Feita a chamada, corrido o escrutinio e servindo de escrutinadores os mesmos Dignos Pares, apurou-se haverem entrado na uma 22 listas, das quaes 1 branca, ficando eleitos por 21 votos para a commissão de instrucção publica os seguintes Dignos Pares:
Francisco Antonio da Veiga Beirão.
José Estevam de Moraes Sarmento.
Gonçalo X. de Almeida Garrett.
Joaquim de Vasconcellos Gusmão.
D. Antonio Maria de Lencastre.
Conde de Monsaraz.
Fernando Mattoso Santos.
João Marcellino Arroyo.
Alexandre F. Cabral Paes do Amaral.
Frederico Ressano Garcia.
Antonio Candido Ribeiro da Costa.
Antonio Eduardo Villaça.
O Sr. Presidente: - A sessão seguinte será na segunda feira. 25, com a mesma ordem do dia.
Eram 4 horas e 45 minutos da tarde.
Dignos Pares presentes na sessão de 22 de maio de 1908
Exmos. Srs.: Antonio de Azevedo Castello Branco; Eduardo de Serpa Pimentel; Marqueses: Barão de Alvito, de Avila e de Bolama, de Pombal, de Sousa Holstein; Arcebispo de Calcedonia; Condes: de Arnoso, do Bomfim, de Mártens Ferrão, de Monsaraz, de Lagoaça, de Paraty, de Sabugosa, de Villar Sêcco; Visconde de Asseca; Pereira de Miranda, Teixeira de Sousa, Campos Henriques, Hintze Ribeiro, Palmeirim, Eduardo José Coelho, Fernando Larcher, Mattoso Santos, Veiga Beirão, Dias Costa, Ferreira do Amaral, Francisco José Machado, Francisco José de Medeiros, Francisco Maria da Cunha, Ressano Garcia, Baptista de Andrade, Gama Barros, Jacintho Candido, D. João de Alarcão, João Arroyo, Teixeira de Vasconcellos, Gusmão, José de Azevedo, Moraes Sarmento, José Lobo do Amaral, José de Alpoim, Julio de Vilhena, Luciano Monteiro, Pimentel Pinto, Bandeira Coelho, Affonso de Espregueira, Raphael Gorjão, Sebastião Telles e Sebastião Dantas Baracho.
O Redactor,
JOÃO SARAIVA.