86 DIARIO DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO
dente, cumprindo a prescripção regimental, leio a minha moção de ordem, que é a seguinte:
"A camara aguarda a apresentação dos decretos publicados pelo governo no exercicio de funcções legislativas, ordinarias e extraordinarias para os emendar e rever no que precisarem de emenda e revisão, e passa á ordem do dia."
Sr. presidente, não espere v. exa. e não espere a camara que eu faca um discurso, nem para justificar a minha moção, nem para justificar o modo de votar ou de não votar o projecto que se discute.
Seguramente os discursos são uteis e bem cabidos quando no parlamento ha parcialidades politicas que pretendem o poder. Então os discursos servem para criticar os actos do governo, corrigir-lhe as demasias e, pela vehemencia da palavra, contel-o-nos limites das suas attribuições; mas no momento actual, quando as parcialidades politicas com elementos para governar estão mudas e silenciosas, e não se encontram representadas n'esta casa, qualquer discurso seria uma excrecencia inopportuna e, por mais de um motivo, inutil e superflua.
Se os interessados em fallar estão calados não hei de ser eu que venha supprir a sua mudez e o seu silencio. Limitar-me-hei, pois, e simplesmente a algumas palavras, tantas quantas apenas bastem para exprimir a v. exa. e á camara o meu modo de apreciar o projecto.
Se vejo bem, ha no projecto duas partes verdadeiramente distinctas e diversas: uma é a que se refere á responsabilidade de que o governo deseja ser relevado por ter assumido funcções legislativas, ordinarias e extraordinarias ou constitucionaes, como impropriamente se le no projecto; a outra a que se refere ao exame que as côrtes hão de fazer a todas as medidas dictatoriaes, declarando-as, comtudo, em vigor até nova resolução do parlamento.
Ora, tanto uma como outra d'estas disposições me parecem inteiramente inuteis e desnecessarias. E vou ver se posso expor nitidamente á camara a rasão d'esta minha apreciação. De, que responsabilidade é que o governo quer ser relevado? É da responsabilidade moral, isto é, d'aquella que lhe é imposta pela opinião publica por ter praticado diversos e numerosos actos contrarios á constituição, infringindo-a nas suas mais vitaes e essenciaes disposições até ao ponto de suspender-se ou supprimir-se o poder legislativo?
É d'esta responsabilidade que o governo quer ser relevado?
Mas d'esta responsabilidade não póde o governo ser relevado aqui. O tribunal da opinião publica é mais vasto e mais amplo do que o recinto d'esta casa, e não é aqui que se póde liquidar ou julgai1 essa responsabilidade. Então de que responsabilidade é que é governo quer ser relevado? É da responsabilidade politica, isto é, d'aquella cujo julgamento póde determinar a queda ou a conservação do governo?
Tambem não me parece, porque essa responsabilidade costuma liquidar-se com uma moção de confiança ou de desconfiança, e não é este o caso de que se trata. De que responsabilidade é, pois, que o governo deseja ser relevado?
É da responsabilidade constitucional? Creio que sim, e isto mesmo está confirmado pelo relatorio do projecto, relatorio que diz textualmente que n'este projecto sómente se trata da responsabilidade constitucional em que o governo incorreu por ter usurpado as funcções pertencentes ao poder legislativo.
(Leu.)
Mas qual é esta responsabilidade constitucional?
Esta responsabilidade não póde ser outra senão a que está escripta na carta constitucional, artigo 103.°, que diz que os ministros d'estado serão responsaveis:
1.° Por traição.
2.° Por peita, suborno ou concussão.
3.° Por abuso do poder.
4.° Por falta de observancia da lei.
5.° Pelo que abusarem contra a liberdade, segurança ou propriedade dos cidadãos.
Evidentemente os paragraphos d'este artigo em que o governo está incurso são os 3.° e o 4.°, e tambem uma parte do 5.° É n'este artigo e seus paragraphos que está determinada a responsabilidade do governo. Mas depois do artigo 103.° está na carta o artigo 104.°, que diz que uma lei particular definirá o modo de tornar effectiva esta responsabilidade ministerial, lei particular a que em direito publico e na linguagem do parlamento se costuma chamar de responsabilidade ministerial. Mas onde é que está essa lei? Desde que a carta constitucional foi promulgada até hoje se espera pela sua promulgação e ainda até agora não appareceu. Sabido é que todos os gabinetes que se têem apresentado n'esta e na outra casa do parlamento trazem no seu programma a promessa da apresentação de uma proposta de lei de responsabilidade ministerial. Creio mesmo a este respeito que algumas propostas têem sido já apresentadas, e até o actual governo, no primeiro dia que se apresentou ás côrtes, juntamente com a promessa de uma lei liberal para a imprensa, declarou que apresentaria uma lei sobre responsabilidade ministerial. Mas acaso podem os srs. ministros dar-me noticias d'essa lei? Tem-na lá por casa? Cá por fóra não saiu, nem existe. Os srs. ministros legislaram muito, dentro e fóra da constituição, mas sobre responsabilidade ministerial não sei que alguma cousa fizessem.
Para que é, pois, que os srs. ministros desejam agora ser relevados da responsabilidade em que incorreram se sabem que nenhuma lei existe por onde se lhes possa tornar effectiva essa responsabilidade?
Ora, supponham v. exas. que a camara dizia de si para si: vamos a julgar estes patriotas dictadores para conhecer-se se elles procederam bem. É obvio que um julgamento não implica uma condemnação, póde ser até uma glorificação, como foi, por exemplo, a do valente militar o sr. Augusto de Castilho. Os srs. ministros podiam tambem ser glorificados. Como e onde haviam de s. exas. ser julgados? A camara sabe que eu não estou architectando uma hypothese de pura imaginação, pois que não vae passado muito tempo em que sobre actos ministeriaes de outra qualidade, não direi de outra gravidade, mas de outra natureza, se opinou na camara dos senhores deputados que taes actos não podiam ser julgados porque não havia lei para esse julgamento. Ora, se não havia lei para esses, tambem não a ha para estes, que são, não direi mais graves, mas de natureza mais especial.
Se falta, portanto, a lei ministerial, se falta o processo regulador d'essa lei, para que quer o governo ser relevado da responsabilidade em que incorreu? Para que? Para que, se não ha meio de responderem pelo que fizeram, mesmo no caso do parlamento lh'o exigir?
E n'estas circumstancias, de que serve o voto da camara? Para que serve este projecto? Eu não o voto, porque não serve para nada, e pelo principio de votar sempre contra o que é inutil, votaria desde já contra o que elle dispõe.
Acresce ainda outra circumstancia.
Supponhamos que effectivamente havia meio de tornar real a applicação da lei de responsabilidade ministerial ao governo por ter assumido os discricionarios poderes dictatoriaes que assumiu.
Ainda assim, não vejo fórma de votar conscenciosamente este projecto. Digo-o com sinceridade.
Para que assumiu o governo o exercicio das funcções legislativas? De certo para promulgar medidas de caracter extraordinario e urgente, porque são estas as duas condições ou requisitos que as podem desculpar ou justificar. Não ha outros motivos, embora a metaphisica da sociologia moderna pretenda descobrir outros.