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N.º 10

SESSÃO DE 8 DE FEVEREIRO DE 1896

Presidencia do exmo. sr. Luiz Frederico de Bivar Gomes da Costa

Secretario - os dignos pares

Jeronymo da Ganha Pimentel
Visconde de Athouguia

SUMMARIO

Leitura e approvação da acta. - Correspondencia. - O digno par conde de Thomar dirige perguntas ao governo ácerca de irregularidades havidas no funccionamento da commissão de recenseamento eleitoral em Melgaço. Responde-lhe o sr. ministro do reino, e o digno par agradece a resposta. - O digno par visconde de Athouguia, sendo a primeira vez que usa da palavra n'esta camara, promette manter as tradições honradas de seu pae. Conclue, participando que está constituida a commissão de commercio e industria.

Ordem do dia: discussão do parecer sobre o bill de indemnidade.- O digno par arcebispo-bispo do Algarve manda para a mesa uma moção, e justifica-a. É admittida, e fica em discussão conjunctamente com o parecer. Responde-lhe o sr. presidente do conselho de ministros. - O digno par conde de Bertiandos precede de algumas considerações a apresentação de uma moção. É admittida, e declarada em discussão conjunctamente com o parecer. Responde-lhe o sr. ministro do reino. - O digno par Marçal Pacheco manda para a mesa, e justifica, uma moção. É admittida, e fica em discussão conjunctamente com o parecer. Responde-lhe o sr. presidente do conselho de ministros.- O digno par bispo-conde de Coimbra discursa sobre o assumpto em ordem do dia. - O sr. ministro dos negocios estrangeiros pede que seja consultada a camara sobre se consente que se ausente do paiz, em commissão de serviço de nosso enviado na côrte de Londres, o sr. conselheiro Frederico Arouca. Consultada a camara, delibera affirmativamente.-É dada a palavra ao digno par o sr. conde de Lagoaça, que á tinha pedido para apresentar um projecto de lei; mas demorando-se s. exa. na leitura do respectivo relatorio, e tendo dado a hora, é levantada a sessão. Designa-se a immediata, bem como a respectiva ordem do dia.

Abertura da sessão ás duas horas e vinte minutos da tarde, estando presentes 20 dignos pares.

Foi lida e approvada sem discussão a acta da sessão anterior.

(Assistiram ao começo da sessão os srs. presidente do conselho e ministros do reino e da guerra, e entraram durante a sessão os srs. ministros das obras publicas, da marinha e dos negocios estrangeiros.)

Mencionou-se a seguinte:

Correspondencia

Um officio do sr. José Caetano Rebello, agradecendo o voto de sentimento da camara pelo fallecimento de seu do o digno par Antonio Pequito Seixas de Andrade.

Para o archivo.

O sr. Conde de Thomar (para negocio urgente): - Sr. presidente, como tive a honra de dizer a v. exa. particularmente, desejo tratar de um negocio urgente, que é o seguinte.

Recebi hontem um telegramma de Melgaço, de um cavalheiro que não conheço, mas que supponho ser um influente politico na localidade, no qual me pede que levante n'esta camara a questão de que vou dar conhecimento.

Fiquei admirado por ter sido escolhido para esta distincta commissão, mas creio que o facto de haver unidade de pensamento na camara dos senhores deputados, e não haver lá opposição, e de eu ter tomado uma ou outra vez a palavra n'esta camara, me fez ser considerado como membro da opposição.

O telegramma a que me refiro é o seguinte:

"Melgaço, 7, 12h,25m da noite.- Reina anarchia administrativa n'este concelho, governador civil mantem exercicio camara municipal, vereadores eleitos, eleição annullada, accordam supremo tribunal administrativo publicado Diario do governo 30 janeiro. Administrador concelho impediu hontem funccionamento commissão eleitoral, prendendo sem motivo vogal Araujo.- Hoje forca armada portão paço concelho impediu funccionamento, commissão coacta. Pedi providencias exmo. ministro reino. Não respondeu. Peço v. exa. levante estas questões camara dignos pares. = Presidente commissão, Ribeiro Lima."

Como já tive a honra de dizer, não conheço a questão; por isso fui consultar o Diario do governo, e effectivamente vi que ha um accordão do supremo tribunal administrativo, cujos ultimos considerandos são os seguintes.

(Lê.)

Vê-se, portanto, que ha um certo fundamento por parte do cavalheiro que me dirigiu o telegramma, o sr. Ribeiro Lima, visto que ha um accordão do supremo tribunal que manda repor as cousas no pé em que estavam.

Vê-se que a auctoridade exorbitou, e provavelmente não cumpriu ás ordens que superiormente lhe foram, dadas.

Queixa-se o expedicionario do telegramma de que o sr. ministro do reino não respondera ao seu telegramma.

É evidente que eu não posso saber o que s. exa. fez; mas o que peço, sendo interprete dos desejos d'aquelle cavalheiro, é que s. exa. de algumas explicações sobre o assumpto, e informe ao mesmo tempo se effectivamente houve por parte da auctoridade exorbitancia; e que se ella empregou força armada, quando não podia empregal-a, e sendo assim essa auctoridade seja devidamente castigada, fazendo-se justiça a quem a pede.

O sr. Ministro do Reino (João Franco Castello Branco): - Dá as explicações pedidas pelo sr. conde de Thomar; conforme o telegramma que recebeu do sr. governador civil de Vianna do Castello, parece que o individuo nomeado para membro da commissão do recenseamento, pela camara cessante, e cuja nomeação tinha sido annullada pelo tribunal competente, se apresentou, querendo tomar parte nos trabalhos do recenseamento.

Foi a isso que obstou a auctoridade administrativa, que tem obrigação de fazer executar as decisões das differentes instancias administrativas.

Ora, desde que a nomeação tinha sido annullada, evidentemente aquelle individuo não podia exercer funcções que, pela decisão da secção districtal, lhe tinham sido tiradas.

O governador civil communicou-lhe que mandará um relatorio sobre os factos passados.

Tão depressa elle chegue, tral-o-ha a esta camara, se o digno par assim o desejar.

Ainda acrescentaria que, como o digno par sabia muito bem, pela lei eleitoral que está em vigor, quer os representantes da auctoridade quer outros individuos, a quem

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sejam incumbidas quaesquer funcções nos actos eleitoraes têem penalidades muito severas, que os prejudicados podem fazer-lhes applicar sempre que elles pratiquem actos irregulares.

Na lei encontram-se meios efficazes de punir esses actos.

É o que tinha a dizer por agora.

(O discurso de s. exa. será publicado na integra quando haja revisto as provas tachygraphicas.)

O sr. Conde de Thomar: - Agradeço ao nobre ministro do reino as explicações que me deu e que me apressarei era transmittir ao interessado, a quem não conheço como já declarei.

O sr. Ministro do Reino (Franco Castello Branco):- Esqueceu me dizer ao digno par que, segundo me consta a camara, cuja eleição foi annullada pelo supremo tribunal administrativo, ainda está em exercicio.

Nem no telegramma nem no discurso do digno par se fez referencia a esse facto, sobre o qual vou pedir informações e fazer com que seja applicada a lei.

O sr. Visconde de Athouguia: - Pela primeira vez que tenho a honra de fallar n'esta casa, seja-me permittido dirigir um cumprimento de profundo respeito a v. exa., sr. presidente, e a todos os dignos pares.

Havendo entrado n'esta camara em virtude do direito hereditario e sem precedentes politicos, cumpro um dever, manifestando, em additamento ao juramento que prestei perante a presidencia, o firme proposito, que me anima, de seguir as tradições ligadas ao meu nome.

O visconde de Athouguia, meu antecessor, para mim de tão saudosa memoria, mereceu a estima e a confiança dos dignos pares do seu tempo. Igual estima e igual confiança ambiciono tambem.

Estas palavras têem apenas por fim prestar uma homenagem de respeito para com aquelle que me legou a honra de usar da palavra n'este logar.

De v. exa. e da camara espero desculpa de me ter desviado do fim para que pedi a palavra, o qual é participar que se constituiu a commissão de commercio e industria, nomeando para seu presidente o sr. Antonio de Serpa Pimentel, e a mim para secretario.

(O orador não reviu.}

Foi lida na mesa a participação, que é do teor seguinte:

Participação

Tenho a honra de participar á mesa da camara dos dignos pares que está constituida a commissão de commercio e industria, tendo eleito presidente o digno par exmo. sr. conselheiro Antonio de Serpa Pimentel, e a mim para secretario.

Sala das sessões da camara, 9 do fevereiro de 1896.= Visconde de Athouguia,

ORDEM DO DIA

O sr. Presidente: - Passa-se á ordem do dia. Vae-se ler o parecer relativo ao bill de indemnidade.

Leu-se na mesa e entrou em discussão o parecer n.° 3 sobre o projecto de lei n.° 4, do teor seguinte:

PARECEU N.° 3

Senhores.- A vossa commissão examinou o projecto de lei vindo da camara dos senhores deputados, relevando o governo das responsabilidades em que incorrera assumindo o exercicio de funcções legislativas e constitucionaes nos annos de 1894 e 1895.

Todos os actos praticados pelo governo, assumindo o exercicio d'estas funcções, devem ser especialmente examinados pelo parlamento, que por essa occasião discutirá se convem alteral-os em relação aos interesses e conveniencias da nação. No momento actual, e pelo projecto de lei vindo da outra camara, só se trata de relevar o governo da responsabilidade constitucional.

É certo que as circumstancias que presidiram a todos os actos da dictadura governamental foram graves, e foi de certo fundando-se nessa gravidade e nas conveniencias publicas que o governo tomou tão grandes responsabilidades, como a de assumir funcções legislativas e algumas sobre materia constitucional.

Mais de uma vez se têem dado entre nós factos de similhante natureza. As camaras legislativas, funccionando regularmente, como no momento actual, e podendo emendar o que nos actos dictatoriaes póde carecer d'essa emenda, e aperfeiçoando os que podem carecer d'essa perfeição, têem sempre relevado o governo da responsabilidade em que incorrêra pelos ter praticado.

É isso mesmo o que determina o projecto de lei vindo da outra camara, e que a vossa commissão vos propõe que approveis, entendendo que esta providencia deve anteceder a discussão especial dos diversos actos, de cuja responsabilidade se trata.

Sala das sessões da camara dos dignos pares do reino, 5 de fevereiro de 1896.== A. A. Moraes Carvalho = Cau da Costa = Conde da Azarujinha = José Baptista de Andrade = José Maria dos Santos = Jeronymo da Cunha Pimentel =A. de Serpa, relator. = Tem o voto dos dignos pares: = Francisco Costa =Sá Brandão = Thomás de Carvalho.

Projecto de lei n.° 4

Artigo 1.° É relevado o governo da responsabilidade em que incorreu: assumindo o exercicio de funcções legislativas, ordinarias e constitucionaes; prorogando o praso legal da reunião das côrtes geraes da nação para o dia 1 de outubro de 1894, pelos decretos de 31 de janeiro e 4 de maio do mesmo anno; encerrando a sessão das camaras legislativas por decreto de 28 de novembro de 1894; dissolvendo a camara dos senhores deputados por decreto de 28 de março de 1895 e differindo a reunião das côrtes geraes da nação até o dia 2 de janeiro do corrente anno.

§ unico. Continuarão em vigor, até nova resolução das camaras, as providencias de caracter legislativo promulgadas pelo governo, de 28 de agosto de 1893 a 30 de dezembro de 1895 inclusivamente.

Art. 2.° Fica revogada a legislação em contrario.

Palacio das côrtes, em 3 de fevereiro de 1896.= Antonio José da Costa Santos, presidente = Amandio Eduardo da Mota Veiga, primeiro secretario = José Eduardo Simões Baião, segundo secretario.

O sr. Presidente: - Estão inscriptos os dignos pares.

(Leu.)

Tem a palavra sobre a ordem o sr. arcebispo bispo do Algarve.

O sr. Arcebispo bispo do Algarve: - Poucas palavras direi, sr. presidente, sobre o ponderoso assumpto submettido á deliberação da camara. Guardaria mesmo completo silencio se não julgasse conveniente expor, embora o mais succintamente possivel, as rasões justificativas do meu voto em objecto de tanta magnitude, como o que está em discussão.

A estreiteza do tempo, as precauções impostas pela minha saude bastante deteriorada, e, principalmente, a bem notoria pobreza dos meus recursos intellectuaes, não me têem consentido fazer um exame minucioso do projecto que prende agora a nossa attenção.

Supponho, entretanto, sr. presidente, estar sufficientemente habilitado para, com firmeza e desassombro, emittir sobre elle o meu humilde parecer.

No interregno parlamentar assumiu o governo faculdades que, pelo codigo fundamental da monarchia, pertencem sómente aos corpos colegisladores, com a sancção do Rei:

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publicou decretos dictatoriaes com força obrigatoria, a qual, segundo a constituição do reino, é privativa da lei, em cuja confecção devem collaborar as duas camaras e o augusto chefe do estado; em sumiria, o poder executivo arrogou-se attribuições que são da exclusiva competencia do poder legislativo.

Foi, por isso, sem duvida, infringida e contrariada a constituição do reino em uma de suas mais importantes e graves disposições.

Tal é, sr. presidente, o facto que provocou e deu origem ao presente projecto, pelo qual se pretende que, attentos os motivos n'elle ponderados, o governo seja havido como relevado da responsabilidade em que incorreu, substituindo-se ao parlamento no exercicio de funcções, que do parlamento são proprias.

E deveremos nós, sr. presidente, nós, que constituimos um dos ramos do poder legislativo, approvar o projecto?

Serão realmente de attender as rasões allegadas, para que o governo seja relevado da responsabilidade em que incorreu?

Parece-me, sr. presidente, se medirmos e bem avaliarmos as exccpcionaes condições em que o governo se viu collocado, e não esquecermos a situação embaraçosa e difficil que lhe foi creada por acontecimentos verdadeiramente extraordinarios e anormaes, que elle não determinou, nem promoveu, a resposta não póde deixar de ser affirmativa.

Estão na memoria da camara e do paiz inteiro esses acontecimentos, que, por certo, todos nós lamentamos e sentimos; é recente a sua data; escusado julgo, por isso, reproduzil-os agora, iudividual-os, até mesmo para não fatigar inutilmente a benevola attenção de v. exa., sr. presidente, e a d'esta illustradissima assembléa.

É incontestavel, pelo menos para mim, que as occorrencias, a que vagamente estou alludindo, e que são pelo governo invocadas como justificativas do seu procedimento, foram em tal maneira urgentes e angustiosas, que a sua continuação podia vir a entorpecer a conveniente administração dos negocios publicos e fazer paralysar o regular funccionamento da vida do estado.

Em tão apertada conjunctura, um de dois expedientes tinha o governo de adoptar: ou caír, abandonando assim o desempenho das altas funcções de que estava investido, ou recorrer aos meios e faculdades extraordinarias, exigidas e reclamadas pelas circumstancias tambem extraordinarias, em que ao tempo se encontrava.

Mas, sr. presidente, cair, deixar os conselhos da coroa, eximir-se ao cumprimento do dever que o seu elevado cargo lhe impunha, no intuito sómente de attender ao seu socego e commodos pessoaes, embora em prejuizo e com sacrificio dos interesses geraes do paiz, isso, sr. presidente, equivaleria um tristissimo exemplo de lastimavel fraqueza, cujos resultados não podiam deixar de accentuar-se funestissimos para a ordem e tranquillidade publica e para o respeito devido ao principio da auctoridade.

Desde que o governo sossobrasse diante das difficuldades e em presença dos attrictos levantados por uma corrente de paixões mais ou menos desordenadas, ficaria estabelecido um precedente que eu, pelo amor que tenho ao meu paiz, não desejo ver n'elle elevado á categoria de indicador constitucional para a queda ou organisação de ministerios.

Assim o comprehendeu o governo, e ainda bem, porque, assumindo a dictadura, e arrogando-se faculdades que as leis ordinarias lhe não conferiam, obstou a que se perturbasse ou suspendesse o regular funccionamento dos differentes serviços publicos, e conseguiu com a sua energia, com as suas providencias, com as medidas que adoptou, afastar de sobre o paiz os perigos que este podia correr, externa e internamente.

Se, em vez de marchar por esse caminho, que, em similhantes ou analogas conjuncturas, e ein circumstancias mais ou menos difficeis, têem seguido outros governos, em diversas epochas, não só entre nós, mas em differentes paizes, regidos tambem pelo systema constitucional, o governo succumbisse, desfallecesse ou encarasse, indifferente e impassivel, os estorvos que lhe impeciam a acção; se o governo se mostrasse fraco e possuido de timidez, eu não sei, sr. presidente, se haverá quem, despreoccupado e isento de paixões, attentando nas crises terriveis que a nação atravessava, deixasse de entrever n'essa demonstração de fraqueza enormes e grandes desvantagens para o credito publico, então lá fóra bastante abalado, e para o nome portuguez, sobre cujo prestigio se acastellavam densas e cerradas nuvens. Isto pelo que diz respeito aos perigos externos. Internamente eram elles bem notorios e palpaveis.

Eu creio, sr. presidente, que não haverá cidadão cordato, ordeiro, verdadeiramente amigo do seu paiz, e sinceramente devotado ao bem commum, que não se apavore nem se assuste diante da insistente e pertinaz propaganda do doutrinas deleterias, que por ahi se pregoam, das theorias nefastas e lethaes, que tão affincadamente e por todos os meios se vulgarisam e defendem, doutrinas e theorias que não só ultrajam a fé e pervertem os costumes, mas visam tambem a levantar o estandarte da rebellião, provocam e geram invejas, odios e luctas, hostilisam e insurgem-se contra o principio da auctoridade, por mais alto que esteja collocado o seu representante, despedaçam os laços da familia, contestam o direito de propriedade, e levam a indisciplina e o desespero ao seio das classes sociaes, especialmente da classe operaria.

Abrindo caminho facil ás paixões populares, os pregoeiros e defensores d'estas doutrinas, arrancam despiedosamente á sua tarefa, illudindo-o com promessas irrealisaveis e fallazes, o pobre operario, que, entre as agruras do seu viver, tão cheio de contradicções e dissabores, só nas verdades e pratica da religião, e na consoladora esperança de um destino alem tumulo, póde encontrar efficaz lenitivo, adquirir a força bastante para resignadamente se conformar com a sua sorte, e ainda para melhoral-a pelo trabalho honesto e assiduo, e pelo esforço intelligente e dedicado.

E quem haverá ahi, sr. presidente, que não veja em tudo isso uma das feridas mais sangrentas, uma das chagas mais fundas e mais vivas, de que enferma a moderna sociedade?!

Sob o pretexto de tomarem a defeza das classes proletarias e desvalidas, julgam os sectarios d'este falso e perigosissimo systema, que o remedio mais efficaz para extinguir ou debellar os seus infortunios está, sabe v. exa. e a camara, onde? No nivelamento de todas as classes, na destruição de tudo o existente, na formação de uma sociedade nova sobre os descalabros e as ruinas da sociedade actual!

Terrivel e medonho remedio, este, sr. presidente!

Imaginando combater um mal com outros males muito maiores, nada mais fazem do que comprometter uma causa sympathica e santa, pela qual todos nós nos interessámos; e compromettem-na, porque do absurdo e do monstruoso não póde vir nunca remedio a cousa nenhuma; vem, sim, os pavores, os sustos, os sobresaltos, os receios de hoje pelo dia de ámanhã, e esse labyrintho inextricavel de encontrados alvitres, que ameaçam perturbar e confundir todas as relações que formam e constituem a vida social dos povos cultos.

E existirão, porventura, entre nós indicios ou symptomas d'esse canos, d'essa lastimavel confusão?

Prouvera a Deus que não existissem; mas, infelizmente, existem, e bem recentes e dolorosos, tão dolorosos, que todos nós, sem duvida, os sentimos e reprovámos.

Tão manifestos e tão violentos se accentuam elles, que, para não progredirem nem se avolumarem, se torna mister que os governos do paiz, sem trepidarem, um momento sequer, no emprego dos meios mais adequados para

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a manutenção da ordem e do respeito devido ao salutar principio da auctoridade, adoptem com prudente energia e coragem inabalavel os processos de administração mais consentaneos ao bem publico, e que melhor promovam a prosperidade do paiz, sem deixarem de seguir, como norma e como guia, a justiça e a caridade, que, sendo duas virtudes essencialmente christãs, são tambem os dois poios do mundo moral, as duas grandes forças que o equilibram. Esquecida uma d'ellas, não será para admirar que o equilibrio se rompa e o cataclysmo estale, envolvendo e sepultando em suas minas tanto innocentes como culpados.

Sr. presidente, nas breves considerações que venho de expender, parece-me que deixo justificado o meu voto pela approvação do presente projecto.

Não louvo nem podia louvar com enthusiasmos o recurso á dictadura, porque não deixa elle de traduzir e de significar uma infracção constitucional, embora originada em circumstancias extraordinarias, que melhor fôra não terem existido.

Mas, dadas essas circumstancias, e qualquer que seja o governo que n'ellas se encontre, nenhuma duvida tenho, nem jamais terei, em por minha parte o relevar da responsabilidade que houver contraindo.

Votando, porem, o projecto em discussão, não prescindo do direito nem preterirei o dever de, quanto o permittirem minhas acanhadas faculdades, apreciar e discutir os differentes decretos dictatoriaes, logo que venham a esta camara, declarando desde já que, se em alguns d'esses decretos não forem introduzidas as emendas, alterações ou modificações, que tenho por convenientes, justas e reclamadas pelos mais imperiosos e legitimes interesses da igreja, urgentes necessidades do serviço religioso e administração ecclesiastica, hei de recusar-lhes a minha approvação. Combatel-os-hei com toda a energia de que for capaz, sem, comtudo, soltar em tom de guerra ou de aberta hostilidade palavras ou expressões de amarga censura, que, podendo melindrar os membros do gabinete, desdissessem ou, por sua vez, contrariassem a brandura e serenidade tão proprias da minha indole, e até do caracter que me reveste.

Não procederei, não podia proceder assim.

São tão evidentes as demonstrações que os actuaes conselheiros da corôa têem dado da sua illustração, da sua energia, desinteresse e abnegação na gerencia dos negocios publicos, que eu, sr. presidente, tenho por mais acertado e mais justo attribuir os inconvenientes e defeitos, que porventura se encontrem n'esta ou n'aquella medida dictatorial, antes ao aperto das circumstancias em que o governo se viu collocado, do que a menos zêlo da sua parte ou á falta de sentimentos accentuadamente patrioticos, que grave offensa seria contestar lhes ou até pôr em duvida. (Apoiados.)

O reconhecimento d'estas qualidades e dotes nos illustres ministros inspira-me a confiança de que farão quanto seja possivel, e hão de por sua parte contribuir para que alguns dos mencionados decretos sejam corrigidos e modificados por fórma que d'elles se elimine e desappareça a nota de - menos consideração para com a Igreja - emquanto deixa um d'elles de ter na conta de idoneos para o exercicio do magisterio nos lyceus, e até nas escolas de ensino primario, os individuos habilitados com o curso superior professado nos seminarios diocesanos; a nota de menos attenção e pouca solicitude pelos interesses espiri-tuaes de muitos cidadãos, nascidos e educados no seio do catholicismo, emquanto priva os soldados da nossa armada dos necessarios sacerdotes para lhes ministrarem o ensino e soccorros da religião, a qual, conjunctamente com o amor patrio, foi em todos os tempos um dos mais poderosos elementos e um dos principaes factores da grandeza e prosperidade do paiz e dilatação do nosso imperio colonial; (Apoiados.) e, finalmente, a nota de injustiça, ou, pelo menos, o desfavor manifestado para com os aspirantes ao sacerdocio que, luctando já com difficuldades enormes para chegarem ao termo da sua carreira litteraria e conseguirem o alistamento na sagrada milicia, vêem hoje sobremodo aggravadas essas difficuldades com a sujeição incondicional e absoluta ao serviço militar, do qual não podem isentar-se, satisfazendo a taxa da remissão, por serem, como é sabido, pobrissimos na sua quasi totalidade.

D'aqui derivam, sr. presidente, grandes inconvenientes, um dos quaes, como é clarissimo, ha de necessariamente reflectir-se na menor frequencia dos seminarios, e, por conseguinte, no mais reduzido numero dos servidores da Igreja.

Se no esquecimento e no abandono, a que entre nós têem sido votados os ministros da religião catholica, que é a religião do estado, viam muitos - e viam bem - o principal motivo da repugnancia havida para com a carreira ecclesiastica, e uma das cousas que mais tem contribuido, não direi sómente para as desconsiderações e descortezias, mas até para as aggressões e violencias com que o padre, geralmente humilde e modesto, resignado e soffredor, é acolhido e tratado em alguns dos centros mais populosos do paiz, e particularmente - para vergonha e affronta da civilisação! - (Apoiados.) na capital do reino fidelissimo; hoje, sr. presidente, mantendo-se, como se encontra, o decreto de 27 de setembro ultimo sobre recenseamento militar, não se curando de supprir a lacuna que n'elle existe, accentuar-se-ha muito maior a repugnancia ao estado sacerdotal, cujas fileiras hão de escassear e rarear mais e mais.

Se d'este facto resulta alguma vantagem para o individuo, para a familia e para a sociedade, que responda a consciencia de todos quantos consagram affectos aos elevados sentimentos da religião e do patriotismo.

Vou terminar, sr. presidente; mas, antes d'isso, permitta-me v. exa. e consinta-me a camara que eu reitere agora a declaração por mim feita na primeira vez que tive a honra de fallar n'esta casa do parlamento.

No cumprimento dos meus deveres como representante do paiz e membro, ainda que o mais obscuro, d'esta camara, hei de acatar e seguir escrupulosamente as inspirações da minha consciencia, sem que nunca me deixe dominar pelo exclusivismo de bandeiras partidarias, em nenhuma das quaes estou alistado.

Não faço parte nem pertenço a nenhum dos grupos partidarios que se disputam o poder.

Não tenho politica, na accepção vulgar d'esta palavra.

A minha politica v. exa. a sabe; o meu partido, que eu devotadamente abraço e sigo, é o partido da ordem, o da liberdade legal, o da justiça, o da moralidade, o do amor ao meu paiz, o do affecto ás verdades religiosas e prescripções da igreja, o da obediencia e respeito ao meu rei e ás auctoridades legitimamente constituidas.

Hei de prestar sempre o meu debil apoio a todos os governos, quaesquer que sejam os cavalheiros que o constituam, ou os partidos que representem, comtanto que pelos seus actos se tornem dignos da estima e consideração publica, mantenham e usem do poder no interesse e com vantagem do paiz, respeitando sempre estes dois principios: auctoridade e liberdade; auctoridade sem atropellos nem despotismos, liberdade sem abusos nem criminosas licenças.

Este meu apoio será tanto mais decidido e tanto mais franco, quanto maior e mais desvelada for a protecção que os governos prestarem aos interesses religiosos do meu paiz. Tenho dito.

Mando para a mesa a minha moção de ordem.

(O orador foi muito cumprimentado.)

Foi lida na mesa, admittida e ficou em discussão conjunctamente com o parecer, a moção que é do teor seguinte:

Moção

A camara reconhece a urgencia das circumstancias que

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determinaram o governo a assumir a dictadura, reserva-se, porém, o direito de em occasião opportuna discutir e apreciar as differentes providencias decretadas dictatorialmente e continua na ordem do dia.

Sala das sessões, 8 de fevereiro de 1896. = Antonio, arcebispo bispo do Algarve.

O sr. Presidente do Conselho de Ministros (Hintze Ribeiro): - Sr. presidente, nada tenho a responder ao nobre prelado que acaba de fallar, o sr. arcebispo bispo do Algarve, pois que as palavras que s. exa. proferiu foram mais de approvação ao governo, pelos actos que praticou, que de discrepancia ás doutrinas politicas que temos sempre sustentado; faltaria, porém, a um dever de estima pessoal e de respeitosa deferencia pelo caracter e pela largueza de vistas de s. exa., se eu não me levantasse para agradecer as considerações tão justas e tão elevadas nos seus conceitos, que s. exa. formulou ao definir o que foi a dictadura do governo.

S. exa. poz muito nitidamente a questão politica.

O governo não desconhece a responsabilidade que assumiu, substituindo-se ao poder legislativo.

Não só no que toca a materia legislativa ordinaria, mas ainda a preceitos constitucionaes, o governo teve, pelo imperio das circumstancias de momento, de assumir faculdades que lhe não competiam e que eram exclusivas do poder legislativo.

S. exa., porém, nitidamente definiu a situação, quando ponderou que o governo não tinha o direito da escolha, visto que as circumstancias lhe impunham rigorosamente o cumprimento do seu dever. O governo, ou havia de faltar ao que deve ao chefe do estado e ao paiz, ou havia de, com inteiro desassombro, sem se arreceiar das consequencias, seguir o caminho que as circumstancias lhe apontavam. Ou havia de declinar as obrigações do seu cargo, ou manter a ordem e assegurar os interesses mais vitaes da nação.

Foi o que elle fez.

E, sr. presidente, seja-me permittido dizel-o, quando, em assumpto tão grave, tão complexo - porque foi longa a dictadura do governo, porque foiçam muitas as providencias adoptadas-, se ergue uma auctoridade como a do digno par e nos diz com a sua voz auctorisada, e, alem d'isso, com o seu superior criterio, que applaude assim os actos do governo; quando, ha mais de um anno, se acha encerrado o parlamento, e o governo exerceu a dictadura, não direi com o applauso de todo o paiz, mas com a sua acquiescencia e com o apoio da corôa, seja-me licito dizer, repito, que n'isso está a nossa mais completa justificação.

De resto, direi a s. exa. que póde contar que da parte do governo encontrará o mais vivo desejo de cooperar com os membros das duas camaras para que os decretos dictatoriaes se tornem o mais proficuos possivel, com o auxilio do criterio mais auctorisado.

O governo não é intransigente nos decretos que publicou. Não tem a pretensão de crer que a sua obra é impeccavel.

Pelo contrario, o governo folga em que o parlamento a discuta e remodele, segundo o melhor criterio, e assim ficará melhor garantida a acção benefica que se procurou produzir com a sua promulgação.

Agradecendo, portanto, ao nobre prelado do Algarve as suas expressões tão conceituosas, permitta-me que lhe diga ainda uma cousa.

É que as suas palavras echoaram tanto em meu sentir e no meu pensar, que foram para mim a convicção mais plena de que é perfeitamente justificavel a dictadura, e que d'ella advirão os beneficos resultados que calculámos para o paiz.

(O orador não reviu.)

O sr. Conde de Bertiandos: - Nos termos do regimento, mando para a mesa a minha moção de ordem, que passo a ler.

(Leu.)

Sr. presidente, eu creio que não são necessarias muitas palavras para mostrar quanto é justa esta moção.

Não é possivel que a camara, constituida como está pelo proprio decreto que vae sanccionar, releve o governo da responsabilidade em que incorreu.

Não póde o proprio peccado absolver o peccador, nem convem que seja o cumplice que justifique o seu cumplice.

Bem diz o sr. conde do Casal Ribeiro no seu livro, livro que desejaria ver adoptado para compendio na universidade, a fim de que não viessem depois para o mundo official idéas tão cerebrinas sobre direito constitucional como são aquellas que parece predominam hoje.

Bem diz o notavel publicista: filhos da dictadura e paes da propria mãe.

Eu, francamente, desejaria ver o governo absolvido depressa, para entrar n'um caminho legal e constitucional, mas o que estamos fazendo é uma comedia, e a este respeito peço a v. exa. e á camara licença para contar uma pequena historia.

Conta-se que um antigo rei, no tempo em que havia tyrannos, todos os annos mandava pedir a um convento frade que o ouvisse de confissão; o frade ia, mas, como o rei não promettia emendar-se, não o absolvia e seguia do palacio para o cadafalso, até que de uma vez um leigo do convento, ao ouvir na portaria o costumado recado, fingiu-se frade e foi confessar o rei. Confessou-o e absolveu-o.

Quando voltou ao convento perguntaram-lhe logo os frades: Como é que te arranjastes com o rei? Respondeu o leigo. Muito facilmente. Elle estava á porta do inferno, dei-lhe um empurrão e metti-o lá para dentro.

Ora, sr. presidente, é isto que nós vamos fazer, porque nós não somos os competentes. O illustre prelado, no seu discurso magnifico, cujas idéas são dignas de ser attendidas por todos, dizendo que devemos votar o bill, mostrou que nem todas as medidas, a que elle dizia respeito, mereciam a sua approvação, especialmente as que diziam respeito á classe, que s. exa. aqui representa; ora, eu creio que, se as differentes classes tivessem aqui os seus representantes e todos quizessem fallar, talvez dissessem o mesmo relativamente aos seus especiaes interesses e direitos.

Sr. Presidente, eu declaro a v. exa. que estimaria muito ver esta camara constituida legalmente, e não comprehendi bem o que disse ha pouco o nobre presidente do conselho: que todos os actos da dictadura foram indispensaveis e necessarios para a manutenção da ordem publica, e por isso se justificam.

Pois então é necessario para a manutenção da ordem publica o desapparecimento immediato do elemento electivo d'esta camara, demais a mais todo ou quasi todo composto de amigos do governo?

É indispensavel para a manutenção da ordem publica que os srs. conde de Samodães e outros igualmente dignos pares não venham á camara, porque pertencem a companhias subsidiadas pelo governo?

Pois porque houve um barulho na camara dos senhores deputados, castiga-se a parte electiva da camara dos pares e alguns dos seus membros vitalicios?

Só na China é que se faz uma cousa similhante: quando o filho do imperador dá a lição, diz-se que está sempre alguma criança ao pé, para levar as palmatoadas que o principe mereça.

A camara dos senhores deputados fez barulho, saia a parte electiva da camara dos pares, e já sem mais demora!

Isto não entra na cabeça de ninguem!

Não comprehendo, sr. presidente, mas o que eu desejava era que chegasse o dia de entrarmos na legalidade.

Assim não entrâmos nunca.

A responsabilidade do governo é muito grave, preci-

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de juizes competentes para a julgar, e eu tenho medo que elle fique sempre debaixo do peso d'ella.

Eu leio á camara um artigo do codigo penal, que é digno de attenção.

(Leu.)

O crime é d'esta ordem, é desta gravidade, e nós ha vemos de consentir que o governo fique sem absolvição?

Venham, pois, os juizes competentes, releve-se a responsabilidade em que incorreu, entremos na legalidade façamos alguma cousa a bem d'este paiz.

Sr. presidente, isto não é um ataque ao governo; a approvação da minha moção não é um cheque, é até o meio de lhe poder ser levantada a interdicção, não vejo outro.

O que o governo tomou sobre si, não foi apenas a responsabilidade que tomam todos os dictadores.

No parecer diz-se:

(Leu.)

Perdõem-me os dignos pares que assignam este parecer, mas isto não é exacto.

O governo não deixou apenas de cumprir a constituição, o governo alterou-a, rasgou-a.

O illustre estadista, a quem ha pouco me referi, diz no livro que já citei que os illustres ministros são sete Pombaes.

Não concordo com. s. exa. n'esta parte.

O marquez de Pombal era um homem do seu tempo, e creio até que depois de morto mudou de idéas, porque vejo os partidos avançados considerarem-no como seu chefe; ruas, emfim, emquanto viveu era absolutista; mas, repito, era homem do seu tempo, e este governo não é de tempo nenhum, ninguem sabe o que é, nem que idéas tem.

Eu calculo que o governo não desgostou que o comparassem ao ministro de El-Rei D. José, e eu quero contental-o, descance o governo: vou comparal-o com um imperador romano, não por causa da pena de morte para os crimes politicos, porque isso é cousa que nunca ha de ser cumprida, e que não mostra nem força nem tambem mau coração da parte dos illustres ministros.

Esse imperador romano, a que me refiro, quiz uma vez ver onde tinha sido gerado, e, pegando n'uma faca, abriu o ventre da mãe.

Foi o que o governo fez á carta, em nome da qual nós todos estamos aqui, a essa carta constitucional, que tinha entrado aos hombros de valentes heroes, com as faces tisnadas pelos combates, que hoje está velha, mas que, apesar dos seus cabellos brancos, não é menos digna do respeito e da consideração de seus filhos.

Como quer o illustre prelado do Algarve que não haja anarchia num paiz em que o governo é anarchico?

Nós estamos em revolução, sr. presidente.

Pois que!

Havemos de dizer que o governo fez bem, muito bem, em decretar essas medidas dictatoriaes, porque eram necessarias á firmeza das instituições e á ordem publica?!...

Mal vae ao Rei, mal vae ás instituições, mal vae á ordem publica, sr. presidente, desde que se não cumpra a constituição do estado, e desde que esta camara, que é o baluarte das nossas instituições, seja tratada com menosprezo.

A moção que eu li podia ser approvada sem ser um cheque para o governo; mas, imaginemos que o era. Não seria melhor para um governo que já está mal ferido, em vez de caír hypnotisado pelo lampejo brilhante do faiscar das espadas do nosso exercito, caír aqui, dentro d'esta camara, que não tem pretensões, é certo, de derrubar governos, mas que ás vezes fará grande serviço á patria, lembrando ao Cesar que ageite a capa para caír bem e correctamente.

É caso para dizer:

"Saiba morrer quem viver não soube."

E, sr. presidente, dito isto, vou terminar, certo que não melindrei pessoalmente nenhum dos membros do governo, que eu respeito, tendo por cada um d'elles toda a consideração que me merecem homens dignos e honrados.

Digo isto, porque não quero desauctorisar a minha voz e porque desejo ter auctoridade para dizer que é necessario entrarmos todos em caminho diverso d'aquelle que se tem seguido.

Não sei o que fará a camara, mas creio que andaria bem avisada se votasse a minha moção.

Demais a mais, nós estamos aqui poucos; precisâmos ver aqui muitos dos dignos pares que estão ausentes por motivos politicos, e que, certamente, desde que esta camara se constituisse legalmente, viriam ajudar-nos cá.

Portanto, seria esse um bom serviço que fariamos ás instituições e á ordem publica. De outra fórma não temos força para dizer a ninguem que entre na ordem, quando nós proprios estamos na desordem.

Mando para a mesa a minha moção, terminando por aqui as minhas considerações, para não cansar mais a attenção da camara.

O sr. Presidente: - Vae ler-se a moção mandada para a mesa pelo digno par o sr. conde de Bertiandos.

Leu-se na mesa. É do teor seguinte:

Moção

A camara convida a tomar parte nas suas discussões e votações os membros electivos, os quaes não foram dissolvidos, assim como todos os vitalicios que porventura a não tenham frequentado por motivo no disposto sobre incompatibilidades no decreto de 25 de setembro de 1895, o qual não póde attingir nem um nem outros dignos pares, visto precisar elle para ser sanccionado que o apreciem com inteira e plena liberdade de discussão e de voto todos quantos legalmente constituem esta camara; e passa á ordem do dia.

Sala das sessões da camara dos dignos pares do reino. = Conde de Bertiandos.

O sr. Presidente: - Os dignos pares que admittem á discussão esta moção tenham a bondade de se levantar.

Foi admittida, e ficou em discussão conjunctamente com o projecto.

O sr. Presidente: - Tem a palavra o sr. ministro do reino.

O sr. Ministro do Reino (Franco Castello Branco): - Sr. presidente, pedi a palavra, mais para responder em nome do governo, a algumas considerações feitas pelo digno par e seu amigo, o sr. conde de Bertiandos, do que para propriamente defender o projecto em discussão.

A dictadura do governo fôra sufficientemente, e com toda a certeza, eloquentemente justificada pela palavra conceituosa, elevada, cheia de auctoridade, do illustre arcebispo-bispo do Algarve; e por parte do governo, pela palavra eloquente do honrado presidente do conselho.

Faria, pois, breves e ligeiras considerações.

O digno par começara o seu elevado discurso, referindo-se ao livro publicado recentemente por um dos ornamentos d'esta camara, por um dos homens de mais auctoridade, de mais valor intellectual e moral do nosso paiz. (Muitos apoiados.)

Ninguem tem mais respeito pelas elevadas qualidades de caracter do sr. conde de Casal Ribeiro, do que elle, orador, nem mais respeito e consideração pelos serviços relevantissimos por s. exa. prestados ao paiz, e pelas elevadas qualidades de talento e de saber que ornam aquelle digno par.

Mas, fosse qual fosse a consideração, - e era a maior possivel- que lhe podesse merecer aquelle illustre homem d'estado, o orador tinha na vida publica do proprio sr. onde de Casal Ribeiro exemplos e precedentes, que inteiramente o justificam d'aquillo que fizera; e parecia-lhe que justificavam inteiramente tambem, os dignos membros

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D'esta camara, de poderem conhecer do projecto que estava em discussão e de sobre elle emittirem o seu voto.

Dissera o digno par que o sr. conde de Casal Ribeiro tinha caracterisado perfeitamente a situação em que se encontrava o parlamento em face dos seus novos membros quando vinham julgar da sua dictadura, nesta phrase: "os membros do parlamento eram filhos da dictadura e paes da propria mãe".

Foi exactamente n'estas condições que o sr. conde de Casal Ribeiro encetou a sua vida parlamentar em 1852, sendo eleito deputado em virtude de um decreto dictatorial publicado em dictadura, e vindo depois em nome d'esse decreto absolver o governo por essa dictadura, e appoiar esse decreto dictatorial e a sua propria eleição. (Muitos apoiados.}

O facto que está apontado é da historia constitucional incontroversa e indiscutivel. (Apoiados.)

O digno par censurara a dictadura do governo.

Parecia-lhe desnecessario acrescentar mais palavras ás que proferira o sr. bispo e arcebispo do Algarve em justificação dos actos praticados pelo governo; mas não tem duvida nenhuma em confessar-se réu d'este crime.

Que esta dictadura não tinha precedentes, dissera o digno par.

Na nossa historia constitucional havia casos mais graves sobre o ponto. Havia, por exemplo, as dictaduras de 1836 e de 1842.

A primeira dictadura substituirá por inteiro a carta constitucional, e a segunda, restaurando-a, tambem substituiu por inteiro a constituição.

Citava estes factos simplesmente para mostrar que não era sem precedentes to acto praticado pelo governo.

O governo acceitava completa, inteira e plenamente a responsabilidade dos seus actos; e, se a dictadura feita pelo governo tinha justificação, consistia em não ter sido uma dictadura mesquinha que tivesse unicamente em vista organisar serviços de qualquer secretaria ou modificar por qualquer fórma uma pequena engrenagem da situação do governo.

O governo, em virtude de acontecimentos que todos os membros da camara conheciam e que se deram no mez de novembro de 1894, entendeu, como muito bem acabava de demonstrar o digno par, o sr. bispo e arcebispo do Algarve, que não havia senão dois caminhos a seguir, ou fazer dictadura ou retirar-se. E, fazendo dictadura, o governo entendeu que devia procurar dar a mais larga publicidade, fazer bem conhecidos por todos, e com toda a franqueza, as suas idéas e os actos que precisava praticar e julgava necessarios para restabelecer o prestigio das instituições parlamentares.

Parallelamente a este acto do governo, as opposições parlamentares tinham appellado tambem para o paiz, e procurado nos comicios a demonstração clara e palpavel de que essa opinião era contraria ao governo.

Todos conheciam os factos que se deram então, e não havia de ser o orador, parte na causa, quem viesse aqui dizer a importancia e o valor de taes comicios, e qual a attitude do paiz em face de um programma de dictadura larga, clara e franca, que pelo governo foi apresentado.

Estavamos nos principios de 1896, passára já um anno depois d'esses factos, e o socego, a tranquillidade e o apoio tacito, mas evidente, que os actos do governo mereceram ao paiz; eram a prova de que este o absolvia da dictadura que praticou. E se os factos assim o demonstraram, aos membros do parlamento devia agora dizer tambem que entendia que o governo era merecedor d'essa absolvição. E não duvidasse alguem da competencia dos membros d'esta camara para julgarem de tal assumpto; e, sobretudo, não accusassem o governo de desprezar esta camara.

Pois o governo desprezava esta camara e era perante ella que vinha pedir que o relevasse da responsabilidade em que incorrera pelos actos que praticou!?

Parecia-lhe que ninguem desrespeita outrem quando o constitue juiz dos seus actos.

Ficava sem absolvição o governo, dissera o digno par.

Era outro facto que dava muito cuidado á consciencia meticulosa do digno par.

O orador não tinha absolutamente remorso algum nem lhe ficava nenhum escrupulo pelo facto de não estarem presentes os pares electivos, que mais de uma vez têem sido substituidos por actos dictatoriaes, nem por estarem ausentes os membros d'esta camara, que, por motivos de ordem politica, que não póde apreciar, não tinham feito como s. exa., isto é, não usaram de um direito que a carta constitucional e a propria nomeação lhes garantiam.

Pensa como o digno par, que era muito melhor que todos os membros desta camara aqui estivessem para com elles se discutir a responsabilidade dos actos ministeriaes; mas s. exa. comprehendia que, a não ser que o governo se parecesse com esse tyranno antigo, ha pouco citado, não podia conseguir tal cousa; seria, portanto, necessario empregar a coacção physica. Mas effectivamente o governo não praticara acto algum que os desviasse de virem a esta camara; e por certo a sua presença não estaria em contradicção nem com a logica politica, nem com os interesses do paiz, nem com qualquer d'estes principios superiores que podem determinar a vontade humana.

No emtanto o digno par entendera, e a seu juizo muito bem, que devia tomar assento na camara de que era membro, pedir contas das responsabilidades do governo e julgar dos seus actos, conforme fosse melhor para os interesses do paiz.

Dissera o digno par que este era um governo anarchico.

Quem fizera então a anarchia?

Fôra o governo, quando no anno de 1894 abriu o parlamento e se apresentou perante elle para dar conta dos seus actos e fazer com que d'elles podesse conhecer e julgar, ou fôra, pelo contrario, o elemento politico que entendeu dever substituir ás discussões regulares, normaes, perfeitamente regimentaes, os tumultos, as desordens constantes, seguidas, até ao ponto de, no fim de cinco ou seis dias, se tornar completamente impossivel o andamento regular dos trabalhos parlamentares?

O facto fôra este: a camara abrira-se o anno passado, e logo na primeira sessão da junta preparatoria, em que se não tratava de outro assumpto que não fosse a constituição da camara, não tendo o governo interesse em qualquer discussão, as cousas caminhavam por tal forma que foi necessario encerrar a sessão. Passado pouco mais de um mez, tendo o governo tido em ambas as casas votações importantes de apoio politico por parte dos seus membros, as opposições começaram praticando os actos a que se referiu.

Queria o digno par que o governo se retirasse n'essa occasião?

Podia concordar com o digno par, se de tal o convencesse, que as medidas decretadas pelo governo não tinham sido bem recebidas, porque tinha em fraco conceito as suas faculdades, o seu saber, inclinando-se a que era grande o numero de vezes que errava, mas havia um ponto em que não concordava. Referia-se ao governo ter assumido a dictadura.

Não cria que outros homens que se sentassem n'aquelles logares procedessem de uma maneira diversa; e agora, que se tratava de julgar o governo por ter encerrado a camara em nome de um principio nobre, respeitavel, como era o da ordem e do prestigio da auctoridade, não podia crer que o digno par tivesse uma opinião diversa da sua.

(O discurso de s. exa. será publicado na integra quando haja revisto as notas tachygraphicas.)

O sr. Presidente: - Tem a palavra o sr. Marçal Pacheco.

O ar. Marçal Pacheco (sobre a ordem}: - Sr. presi-

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dente, cumprindo a prescripção regimental, leio a minha moção de ordem, que é a seguinte:

"A camara aguarda a apresentação dos decretos publicados pelo governo no exercicio de funcções legislativas, ordinarias e extraordinarias para os emendar e rever no que precisarem de emenda e revisão, e passa á ordem do dia."

Sr. presidente, não espere v. exa. e não espere a camara que eu faca um discurso, nem para justificar a minha moção, nem para justificar o modo de votar ou de não votar o projecto que se discute.

Seguramente os discursos são uteis e bem cabidos quando no parlamento ha parcialidades politicas que pretendem o poder. Então os discursos servem para criticar os actos do governo, corrigir-lhe as demasias e, pela vehemencia da palavra, contel-o-nos limites das suas attribuições; mas no momento actual, quando as parcialidades politicas com elementos para governar estão mudas e silenciosas, e não se encontram representadas n'esta casa, qualquer discurso seria uma excrecencia inopportuna e, por mais de um motivo, inutil e superflua.

Se os interessados em fallar estão calados não hei de ser eu que venha supprir a sua mudez e o seu silencio. Limitar-me-hei, pois, e simplesmente a algumas palavras, tantas quantas apenas bastem para exprimir a v. exa. e á camara o meu modo de apreciar o projecto.

Se vejo bem, ha no projecto duas partes verdadeiramente distinctas e diversas: uma é a que se refere á responsabilidade de que o governo deseja ser relevado por ter assumido funcções legislativas, ordinarias e extraordinarias ou constitucionaes, como impropriamente se le no projecto; a outra a que se refere ao exame que as côrtes hão de fazer a todas as medidas dictatoriaes, declarando-as, comtudo, em vigor até nova resolução do parlamento.

Ora, tanto uma como outra d'estas disposições me parecem inteiramente inuteis e desnecessarias. E vou ver se posso expor nitidamente á camara a rasão d'esta minha apreciação. De, que responsabilidade é que o governo quer ser relevado? É da responsabilidade moral, isto é, d'aquella que lhe é imposta pela opinião publica por ter praticado diversos e numerosos actos contrarios á constituição, infringindo-a nas suas mais vitaes e essenciaes disposições até ao ponto de suspender-se ou supprimir-se o poder legislativo?

É d'esta responsabilidade que o governo quer ser relevado?

Mas d'esta responsabilidade não póde o governo ser relevado aqui. O tribunal da opinião publica é mais vasto e mais amplo do que o recinto d'esta casa, e não é aqui que se póde liquidar ou julgai1 essa responsabilidade. Então de que responsabilidade é que é governo quer ser relevado? É da responsabilidade politica, isto é, d'aquella cujo julgamento póde determinar a queda ou a conservação do governo?

Tambem não me parece, porque essa responsabilidade costuma liquidar-se com uma moção de confiança ou de desconfiança, e não é este o caso de que se trata. De que responsabilidade é, pois, que o governo deseja ser relevado?

É da responsabilidade constitucional? Creio que sim, e isto mesmo está confirmado pelo relatorio do projecto, relatorio que diz textualmente que n'este projecto sómente se trata da responsabilidade constitucional em que o governo incorreu por ter usurpado as funcções pertencentes ao poder legislativo.

(Leu.)

Mas qual é esta responsabilidade constitucional?

Esta responsabilidade não póde ser outra senão a que está escripta na carta constitucional, artigo 103.°, que diz que os ministros d'estado serão responsaveis:

1.° Por traição.

2.° Por peita, suborno ou concussão.

3.° Por abuso do poder.

4.° Por falta de observancia da lei.

5.° Pelo que abusarem contra a liberdade, segurança ou propriedade dos cidadãos.

Evidentemente os paragraphos d'este artigo em que o governo está incurso são os 3.° e o 4.°, e tambem uma parte do 5.° É n'este artigo e seus paragraphos que está determinada a responsabilidade do governo. Mas depois do artigo 103.° está na carta o artigo 104.°, que diz que uma lei particular definirá o modo de tornar effectiva esta responsabilidade ministerial, lei particular a que em direito publico e na linguagem do parlamento se costuma chamar de responsabilidade ministerial. Mas onde é que está essa lei? Desde que a carta constitucional foi promulgada até hoje se espera pela sua promulgação e ainda até agora não appareceu. Sabido é que todos os gabinetes que se têem apresentado n'esta e na outra casa do parlamento trazem no seu programma a promessa da apresentação de uma proposta de lei de responsabilidade ministerial. Creio mesmo a este respeito que algumas propostas têem sido já apresentadas, e até o actual governo, no primeiro dia que se apresentou ás côrtes, juntamente com a promessa de uma lei liberal para a imprensa, declarou que apresentaria uma lei sobre responsabilidade ministerial. Mas acaso podem os srs. ministros dar-me noticias d'essa lei? Tem-na lá por casa? Cá por fóra não saiu, nem existe. Os srs. ministros legislaram muito, dentro e fóra da constituição, mas sobre responsabilidade ministerial não sei que alguma cousa fizessem.

Para que é, pois, que os srs. ministros desejam agora ser relevados da responsabilidade em que incorreram se sabem que nenhuma lei existe por onde se lhes possa tornar effectiva essa responsabilidade?

Ora, supponham v. exas. que a camara dizia de si para si: vamos a julgar estes patriotas dictadores para conhecer-se se elles procederam bem. É obvio que um julgamento não implica uma condemnação, póde ser até uma glorificação, como foi, por exemplo, a do valente militar o sr. Augusto de Castilho. Os srs. ministros podiam tambem ser glorificados. Como e onde haviam de s. exas. ser julgados? A camara sabe que eu não estou architectando uma hypothese de pura imaginação, pois que não vae passado muito tempo em que sobre actos ministeriaes de outra qualidade, não direi de outra gravidade, mas de outra natureza, se opinou na camara dos senhores deputados que taes actos não podiam ser julgados porque não havia lei para esse julgamento. Ora, se não havia lei para esses, tambem não a ha para estes, que são, não direi mais graves, mas de natureza mais especial.

Se falta, portanto, a lei ministerial, se falta o processo regulador d'essa lei, para que quer o governo ser relevado da responsabilidade em que incorreu? Para que? Para que, se não ha meio de responderem pelo que fizeram, mesmo no caso do parlamento lh'o exigir?

E n'estas circumstancias, de que serve o voto da camara? Para que serve este projecto? Eu não o voto, porque não serve para nada, e pelo principio de votar sempre contra o que é inutil, votaria desde já contra o que elle dispõe.

Acresce ainda outra circumstancia.

Supponhamos que effectivamente havia meio de tornar real a applicação da lei de responsabilidade ministerial ao governo por ter assumido os discricionarios poderes dictatoriaes que assumiu.

Ainda assim, não vejo fórma de votar conscenciosamente este projecto. Digo-o com sinceridade.

Para que assumiu o governo o exercicio das funcções legislativas? De certo para promulgar medidas de caracter extraordinario e urgente, porque são estas as duas condições ou requisitos que as podem desculpar ou justificar. Não ha outros motivos, embora a metaphisica da sociologia moderna pretenda descobrir outros.

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Uma medida dictatorial desculpa-se pela sua necessidade e urgencia; consequentemente, para a desculpar é mister conhecel-a.

Mas onde estão os actos dictatoriaes que o governo praticou para eu os apreciar e tomar d'elles conhecimento? Como hei de eu dizer que o governo merece ser relevado da sua responsabilidade, se não sei o que elle praticou? Não o sei eu e não o sabe a camara. Estão esses actos submettidos a nossa apreciação e exame? O governo apresenta-se a pedir que seja relevado de uma responsabilidade em que incorreu por medidas que publicou, mas que ainda não foram sujeitas á sua apreciação. Como ha de esta camara deferir a esse pedido sem conhecimento de causa? Não póde ser.

Dir-me-hão que podemos ler nos jornaes ou no Diario do governo o que os srs. ministros publicaram; mas se assim, fosse não era preciso estarmos nós aqui; bastava que o governo dissesse pela imprensa que pedia á camara para o relevar de tudo quanto fizera e apresentasse o rol das medidas que tornou, para ser illibado da sua responsabilidade.

Nós responder-lhe-íamos tambem pela imprensa, e estaria tudo concluido... Eu assim não sei julgar.

Quando mão tenho factos ou actos, sobre os quaes incida o meu juizo e a minha apreciação, a menos que não seja uma questão de confiança, declaro que não sei pronunciar-me com consciencia. E no proprio relatorio da commissão vem este meu modo de ver claramente expresso, embora por uma fórma delicada, como tudo que sáe da penna do distincto relator, pena tão fina e tão subtil, que menos parece penna que um agudo e fino estylete. O illustrado relator escreveu o seguinte.

(Leu.)

E escreveu muito bem.

S. exas., os srs. ministros, podem desapparecer ámanhã d'essas cadeiras, e se eu lhes der adiantadamente a desculpa que pedem, ninguem me assegura que os actos que praticaram venham aqui á apreciação da camara, e, sendo assim, não se me apresentará ensejo para emendar-se o que careca de emenda, nem para rever-se o que careça de revisão. Este processo é novo, mas nem por ser novo deixa de ser absurdo. Porque o facto é este: pede-se que eu releve o governo dos actos que elle praticou, e eu não posso relevar o governo sem conhecer o acto do qual o relevo.

Ainda por este motivo não posso, pois, deixar de votar contra esta primeira parte do projecto.

Seja-me licito agora dizer tambem brevissimas palavras sobre a outra disposição contida no projecto. Pretende-se que os decretos publicados pelo governo, no uso da dictadura, Continuem em vigor até serem revogados pelas côrtes. É outra inutilidade, como já tive occasião de dizer. Com effeito, não está v. exa., não estou eu e não estamos todos nós saciados de ouvir dizer aos srs. ministros que os decretos dictatoriaes têem força de lei emquanto não são revogados, pelas côrtes? Não tem esta mesma doutrina sido resolvida por cada uma das camaras, já nesta, já na dos senhores deputados? Não vimos nós ultimamente o poder judicial em todas as suas instanciais, o poder judicial, que é pela carta constitucional o poder incumbido de applicar as leis, sentenciar tambem esta mesma doutrina de que os decretos dictatoriaes obrigam a todos os cidadãos d'este paiz, mesmo em materia de impostos? Pois se tudo isto já está dito, resolvido e sentenciado, pois se esta doutrina já tem os fóros de cousa assente e indiscutivel, para que é então esta nova affirmação escripta mais uma vez na segunda parte do projecto? É inuti e desnecessaria. Voto, portanto, tambem contra o projecto n'este ponto.

Mas, sr. presidente, se as rasões que deixo expostas me aconselham a votar contra, outras rasões existem, e de, ordem politica, que me determinam a votar & favor.
É evidente, sr. presidente, que se toda a camara perfilhasse este meu modo de ver, o projecto seria rejeitado, e esta rejeição implicaria uma crise politica. Produzida a crise politica, se o augusto chefe do estado quizesse seguir as indicações parlamentares, como sempre tem seguido, teria de entregar a missão de organisar gabinete, que succedesse ao actual, a algum dos chefes que constituem a actual opposição, isto é, teria de chamar o br. conde de Thomar, o sr. conde de Bertiandos, o sr. conde de Lagoaça ou este humilde vassallo de Sua Magestade.

Ora, por informações, que tenho como fidedignas, creio saber que nenhum d'estes meus collegas está resolvido a considerar opportuno o momento de assumir as redeas do mando... N'estes termos comprehende v. exa., sr. presidente, as circumstancias melindrosas, angustiosas e criticas em que eu collocaria o augusto chefe do estado! Como monarchico, que sou, não desejo nem devo contribuir para tão funesto resultado.. .

O sr. Conde de Lagoaça: - Não tenha receio.

O Orador: - S. exa. está disposto a assumir as redeas do governo?

O sr. Conde de Lagoaça: - Eu, não.

O Orador: - S. exa. diz que não; pois ahi está o perigo. Todos os chefes podem dizer o mesmo, e é isso que é preciso prever e evitar.

Não é preciso que se seja sempre uma aguia em politica; nem todos têem obrigação de prever e prevenir o futuro; mas é preciso todos terem obrigação de observar os factos e as circumstancias e ponderar bem quaes são as consequencias do acto que se vae praticar.

Perante estas considerações politicas eu atrevo-me a crer que talvez o melhor seja ainda a conservação do gabinete, e isto parece tanto mais acertado quanto ainda está na memoria de todos que os adversarios do governo, quando eram n'esta casa mais numerosos e mais temerosos do que actualmente são, foram os primeiros a affirmar que este ministerio era a nata dos ministerios.

Não se podia governar melhor, diziam, nem se quer tão bem, e, portanto, que continuassem e se conservassem.

Era este o testemunho insuspeito dos seus mais crueis e poderosos adversarios.

Pois que fiquem e se conservem!

No meio dos encontrados e oppostos motivos, que acabo de expor, com rasões que me aconselham a votar contra o projecto e com outras que me incitam a votar a favor, v. exa. comprehende, sr. presidente, que não tenho senão a seguir o caminho da abstenção. Não voto, pois, nem pró nem contra.

Mas, sr. presidente, abstendo-me de votar entendi dizer a v. exa. e á camara quaes as rasões desta abstenção e dizel-as, aqui, n'este logar, no parlamento, por julgar que a todos os homens publicos, que têem logar n'esta casa, cabe o indeclinavel e imperioso dever de fallar daqui ao paiz e ao Rei. Ao paiz, para que este faca a todos justiça inteira e completa com conhecimento exacto de causa. Ao Rei, para que elle, inspirando-se nas suggestões do seu alto criterio, possa bem orientar-se no caminho mais conveniente a seguir, na defeza dos interesses superior es que estão confiados á sua elevada magistratura.

O sr. Presidente do Conselho de Ministros (Hintze Ribeiro): - Está acostumado, de ha muito, a admirar a subtileza, a argucia fina do intigerrimo parlamentar, o digno par o sr. Marçal Pacheco; hoje, porém, o digno par fôra contradictorio comsigo mesmo.

O sr. Marçal Pacheco concluíra o seu discurso, declarando-se pela abstenção; todavia, o digno par lançara a absolvição sobre o governo; pois o que se deduzia das suas palavras era a necessidade de manter o governo no seu logar.

Portanto, em relação ás questões politicas e ás responsabilidades que o governo assumiu, o digno par não se abstinha: apoiava o governo, desejando a continuação da sua existencia.

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O sr. Marçal Pacheco: - É a falta de melhor.

O Orador: - Era então um applauso relativo quando não fosse absoluto.

Concluia-se que, ponderadas todas as responsabilidades, não eram ellas tão grandes, que o governo não devesse ficar.

Dissera o digno par:

"O governo pede para ser relevado de que? De ter investido com o parlamento na sua constituição organica? Para isso ha apenas um tribunal para o absolver: é a opinião publica."

O sr. Marçal Pacheco (interrompendo}: - Perdão. O que eu disse foi que o julgamento da responsabilidade moral competia á opinião publica.

O sr. Presidente do Conselho de Ministros (continuando):- Mas, se não é da responsabilidade moral, mas da politica, acrescentara o digno par, basta para isso uma moção de confiança ou desconfiança.

Mas, quando se chega ao termo de uma dictadura prolongada, não era uma simples moção que podia relevar as responsabilidades do governo.

O sr. Marçal Pacheco (interrompendo): - E a constitucional?

O sr. Presidente do Conselho de Ministros (Hintze Ribeiro) (continuando): - Essa era a do artigo 103.° da carta, que dizia:

(Leu.)

Mas, perguntara ainda o sr. Marçal Pacheco, como se apura essa responsabilidade?

Essa responsabilidade não se apura sem uma lei e é justamente essa lei que não existe.

O digno par fôra tão injusto para com o governo que chegou a dizer que, fazendo parte do seu programma politico a apresentação de uma proposta de responsabilidade ministerial, o governo de tudo se lembrara menos d'essa proposta.

Diria ao digno par que essa proposta já fôra apresentada na camara dos senhores deputados, tivera ahi o parecer da respectiva commissão, e agora mesmo, por iniciativa do governo, estava sujeita á apreciação da camara.

O sr. Marçal Pacheco: - Entre tantos decretos por que não publicou esse tambem em dictadura?

O Orador: - Não se decretou em dictadura, porque mal iria ao governo decretar em dictadura uma lei que o havia de julgar pelos seus actos. Dir-se-ía mesmo que essa lei tinha sido feita de molde a conseguir a sua absolvição.

Supponhamos, dissera o sr. Marçal Pacheco, que a camara não decide absolver os ministros da responsabilidade em que incorreram. O que acontece? Não acontece absolutamente nada, porque não ha lei por onde se lhes possa pedir contas dos seus actos.

Responderia que não era tanto assim, porque a camara tinha de apreciar as resoluções ministeriaes, quer em relação aos actos de responsabilidade politica, quer em relação aos actos de responsabilidade de administração.

Com respeito á falta de uma lei especial de responsabilidade ministerial, diria a s. exa. que não ficavam prejudicadas as attribuições do parlamento para com os ministros que houverem commettido infracções constitucionaes, pois que a carta constitucional especifica nos artigos 103.° e 37.°, e ainda em um outro, quaes as attribuições das camaras e as responsabilidades dos ministros.

Depois, comprehendia muito bem o digno par que o governo não podia commungar com o parlamento na adopção de providencias de caracter legislativo, usando da sua iniciativa, discutindo, explicando os seus actos, sem que primeiro que tudo o parlamento se houvesse pronunciado sobre se podia allivial-o da responsabilidade em que incorrera, pelo facto de se ter substituido ao proprio parlamento.

Primeiro que tudo, se havia peccado, era necessario expurgai-o. Era necessario saber-se se esse peccado fôra commettido com rasões justificativas que podessem abonar a sua absolvição.

Sem isso, nada podia passar-se regularmente.

Na ultima parte do seu discurso, o digno par perguntava como era que podia ser relevado o governo, sem primeiro se saber o que elle fez?

Como era que o parlamento havia de relevar o governo da responsabilidade em que incorreu, sem examinar precisamente os actos pelos quaes têem de aferir essa responsabilidade?

Mas não era bem assim. Havia duas cousas inteiramente distinctas.

Uma cousa era a responsabilidade do governo por ter usurpado funcções legislativas, qualquer que fosse o modo, o fim ou a natureza dos factos que praticasse, mediante essa usurpação, e outra cousa era a essencia, a natureza especial das medidas dictatoriaes adoptadas.

Podiam essas medidas ser boas; mas perguntava se por este facto deixou de haver uma infracção á constituição, desde que o governo se arrogou faculdades legislativas? Não.

Havia sempre uma responsabilidade, independente de serem boas ou más as medidas dictatoriaes.

Se, pelo contrario, o governo tivesse circumstancias imperiosas, que o levassem a substituir-se ao parlamento, e só essas o podessem justificar, e todavia, no meio das faculdades que se arrogara, procedesse mal, decretasse medidas que não são convenientes, nem uteis, era relevado da primeira responsabilidade, mas nem por isso deixariam essas medidas de ser reprovadas pelo parlamento, ou modificadas essencialmente, desde que ellas não correspondessem aos interesses da nação.

Já o digno par podia ver que eram duas cousas perfeitamente distinctas. N'uma, era o governo relevado da responsabilidade em que incorreu pelo facto de infringir preceitos constitucionaes, não convocando as côrtes quando devia, não as convocando dentro do praso legal, prorogando esse praso, encerrando a sessão das camaras legislativas, dissolvendo a camara dos senhores deputados, quando pela constituição não podia fazel-o, etc.

Tudo isso eram responsabilidades inteiramente aparte das responsabilidades inherentes ás medidas diciatoriaes promulgadas.

Por conseguinte, que as medidas fossem boas ou más, isso ficava para exame ulterior; mas, em todo o caso, o parlamento tinha de relevar o governo, pelo facto de não ter cumprido o preceito constitucional, pelo facto de ter assumido funcções que lhe não competiam, que eram proprias e exclusivas do parlamento.

Claramente, nenhuma das cousas era inutil: nem era inutil a primeira conclusão a que o parecer chegou, relevar o governo pela usurpação das faculdades legislativas, - nem ficava prejudicada, pela adopção desta conclusão, a segunda parte, -que era relativa ao exame especial das medidas que se decretaram dictatorialmente, para o effeito de as converter em lei, ou de as modificar pela melhor fórma que se julgasse conveniente.

Podia, portanto, o digno par formular o seu voto como entendesse já em relação ás responsabilidades que resultaram para o governo, pelo facto de decretar medidas com caracter dictatorial, já em relação ás medidas especiaes que o governo promulgara.

Em uma e outra cousa o voto de s. exa. era sempre auctorisado.

S. exa. podia formulal-o com inteiro desassombro e como melhor entendesse, mas havia uma cousa que lhe pareceu não ser constitucional: a abstenção do digno par, desde o momento em que se tratava de um facto politico, que s. exa. já tinha apreciado.

O sr. Marçal Pacheco: - Estando na sala, não posso deixar de votar; mas o que faço é retirar-me.

O Orador: - Finalmente, que o digno par apreciasse

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as medidas dictatoriaes como entendesse, que lhes desse ou não o seu voto; entretanto s. exa. mostrara-se favoravel á continuação d'este governo, e o orador não podia deixar de encarar este facto senão como uma manifestação de applauso ou de acquiescencia, pelo menos, aos actos do governo.

(O discurso do digno par será publicado na integra, quando s. exa. haja revisto as notas tachygraphicas.)

O sr. Presidente: - Vae ler-se a moção mandada para a mesa pelo digno par o sr. Marçal Pacheco.

Leu-se na mesa e é do teor seguinte:

Moção

A camara aguarda a apresentação dos decretos publicados pelo governo no exercicio do funcções legislativas, ordinarias e extraordinarias, a fim de os poder emendar e rever no que precisarem de emenda e revisão, e passa á ordem do dia.

Sala das sessões, 8 de fevereiro de 1896.== O par do reino, Marçal Pacheco.

O sr. Presidente: - Os dignos pares que admittem á discussão esta moção tenham a bondade de se levantar.

Foi admittida e ficou em discussão conjunctamente com o projecto.

O sr. Presidente: - Tem a palavra o sr. conde de Lagoaça.

O sr. Conde de Lagoaça: - Sr. presidente, eu não queria tirar a vez ao digno par, o sr. conde de Thomar.

O sr. Presidente: - Estão inscriptos sobre a materia o sr. bispo conde de Coimbra e o sr. conde de Thomar.

Vou dar a palavra sobre a ordem ao sr. conde de Lagoaça que prefere.

Tem s. exa. a palavra.

O sr. Conde de Lagoaça: - Desisto da palavra.

O sr. Presidente: - Tem a palavra o digno par, o sr. bispo conde de Coimbra.

O sr. Bispo Conde de Coimbra: - Sr. presidente, sinto muito que me chegue a palavra tão tarde e depois de terem fallado oradores de tanto respeito, de tanto talento e de tanta auctoridade, e perante os quaes eu não podia tomar outro partido senão o de estar calado.

Todavia peço a v. exa. e á camara que me permitiam fazer algumas humildes considerações sobre o assumpto em questão.

Sr. presidente, é bem sabido que a nossa constituição politica concede aos bispos do continente o serem pares do reino por direito proprio sem restricção alguma, e como taes podem discutir e votar livremente em todas as questões que aqui se ventilarem quer sejam politicas ou não politicas, pelo que ninguem póde reparar ou queixar-se de que os bispos do reino venham votar a esta camara quando e como entenderem, (Apoiados.) porque têem o mesmo direito que têem os outros dignos pares. (Apoiados.)

Comtudo, como eu tenho a honra de ser par do reino ha vinte e tres annos, sem nunca ter votado n'esta camara questões politicas, porque tenho sido sempre mais bispo que politico, ou por outra, sou só bispo e não politico de partido nenhum, como podem provar os papeis publicos de ha mais de trinta annos, appellidando-me ora de reaccionario, ora de liberal, ora de progressista, ora de regenerador, pela simples rasão de que não sou nem de Pedro nem de Paulo, nem de Cephas, como diz a Escriptura, mas só de Jesus Christo e do seu vigario; e como agora venho votar a favor do governo digo-o já, n'uma questão politica das mais importantes que podem vir a esta camara, condemnar ou absolver uma infracção da lei do estado, eu peço a v. exa. e peço á camara que me permittam dar algumas explicações sobre o meu procedi mento na presente conjunctura, explicações que são pedidas não só pela coherencia que desejo sempre observar em todos os actos que pratico, e pela satisfação que d'elles gosto de dar ao meu paiz e principalmente á minha diocese, mas tambem pelo muito respeito e veneração que tenho por v. exa. e por esta camara.

Estas explicações, sr. presidente, são applicaveis tambem, posso dizei-o, aos meus illustres collegas que tenho a honra e a satisfação de ver aqui presentes, com excepção do sr. bispo arcebispo do Algarve, que as deu já por s. exa. com o seu talento, com a sua eloquencia e auctoridade que eu ha muito tempo lhe reconheço e que muito respeito.

É verdade tambem que os outros meus dignos collegas, todos tão illustrados e com tantos meritos, não precisam de interprete e, se o precisassem, não escolheriam por certo de todos o mais humilde e incompetente, e de palavra mais pobre e mais inculta, e que só póde ser desculpada pela circumstancia, já bem triste, de ser eu de entre s. exas. o mais antigo n'esta casa do parlamento.

Sr. presidente, permitia v. exa. que eu observe antes de tudo que desde a nossa transformação politica em 1834, ou antes de 1850 para diante, que é o tempo desde que tenho conhecimento, foi sempre costume pedirem os governos aos bispos que viessem votar nas questões politicas em que entendiam que precisavam dos seus votos e do seu apoio; e do mesmo modo tem sido sempre costume em geral attenderem os bispos estes pedidos; porque a indole da Igreja e dos seus ministros é sempre dar força e apoio á auctoridade e obedecer no que for possivel ao imperante civil e ao governo constituido. E ainda que as opposições muitas vezes se magoam, quando vêem os bispos virem em apoio do governo, é certo que ellas, quando estão no poder, tambem pela sua parte pedem e querem sempre que lhes façam o mesmo.

Mas no caso presente não se dá nada d'isto. O governo não precisa dos votos dos bispos para o absolverem e sustentarem n'esta questão, e pelo menos a mim, e apesar de que já estou ha bastante tempo em Lisboa, ainda nenhum dos srs. ministros me fallou em votar ou deixar de votar o bill delicadeza que muito lhes agradeço e que teve sempre tambem para commigo, alem de outros, o grande estadista Fontes Pereira de Mello, que ainda hoje é uma saudade pungentissima para o paiz e para todos aquelles que conheceram e admiraram os seus talentos, a sua eloquencia, os primores da sua cortezia e a nobreza e elevação do seu caracter. (Apoiados.)

Mas, sr. presidente, se eu e os meus venerandos collegas não vimos votar com o governo por elle precisar dos nossos votos n'esta questão, permitta v. exa. declarar que não vimos tambem para aggravar o partido politico que bem ou mal entendeu dever abster-se dos actos parlamentares. Digo-o de mim, e posso dizel-o tambem dos meus collegas.

E já que fallei n'este ponto, que é tão difficil e delicado, seja-me licito exprimir o sentimento que tenho por não ver aqui esse partido.

Não sei nem quero saber de quem é a culpa e nem quero por isso criminar o governo nem o mesmo partido, e de modo nenhum quero desculpar uns ou censurar outros; o que não posso é deixar de lamentar o facto de não cooperarem nos trabalhos parlamentares homens tão importantes pelos seus talentos, pelo seu conhecimento dos negocios publicos e pela sua carreira politica, começando pelo seu illustre chefe a quem devo muito respeito e muita gratidão e a cujos sentimentos honrados faço aqui a devida justiça como pede a minha consciencia.

Praza, pois, a Deus, e são estes os meus ardentissimos votos, que sem prejuizo dos interesses politicos nem de uns nem de outros, e sem quebra da dignidade, do decoro e do amor proprio de cada um, tudo se possa compor e conciliar de modo que esse partido possa vir ás sessões parlamentares e entrar no caminho regular da rotação parti-

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daria, porque assim o pede o bem do paiz e das instituições.

Sr. presidente, peço perdão a v. exa. e á camara por metter a pregar paz e concordia onde não tenho auctoridade para o fazer alem d'aquella que me podem dar os meus cabellos brancos, mas n'isto obedeço não só á propensão natural do meu genio e ao dever e natureza do meu ministerio, mas tambem ao que me indicam as minhas convicções sobre os verdadeiros interesses do paiz e da sua politica.

É bem conhecida de todos a tenaz, a activissima e constante propaganda que se está fazendo nos jornaes mais avançados das doutrinas as mais impias, e mais deleterias e subversivas, chegando-se até a proclamar como lema de governo -nada de religião, nada de propriedade, nada de familia, amores livres -.

Bem sei que os homens mais importantes do partido democratico avançado reprovam e condemnam similhantes doutrinas, mas se vier outro 31 de janeiro, haverá força para evitar as consequencias e os effeitos naturaes dessas doutrinas em vista do radicalismo e da anarchia que para ahi vae?

Em presença, pois, dos perigos que estamos correndo já no presente, e que muito mais nos ameaçam no futuro, perigos e riscos que estão apparecendo a cada passo debaixo dos pés, e desenganando a todos de que andamos já em cima de um vulcão, é muito para desejar que os partidos monarchicos se unam e trabalhem cada um no seu campo, para proverem de remedio á segurança da patria e de nós todos, e para não nos deixarem levar com a monarchia nem a religião que até politicamente é um grande elemento da ordem, uma grande força, uma grande esperança e um grandissimo esteio social; nem os doces e santos laços da familia que na juventude, na virilidade, na velhice, e em todas as condições da nossa vida constituem o que ha de mais puro, consolador e sublime para a alma, para o espirito e para o coração; e nem finalmente o sagrado direito da propriedade que, bem regulado, é o estimulo mais forte para o trabalho e actividade individual, e para essas grandes obras e commettimentos que fazem a grandeza e o explendor das nações.

Quando ainda ha pouco os valentes e briosos officiaes e soldados do nosso exercito acabavam de levantar lá fóra a honra nacional á custa das fadigas, das inclemencias, e dos perigos de todos, e do sangue e da vida de alguns, é triste, sr. presidente, permitta-se-me dizel-o, que nós no remanso da paz estejamos amesquinhando essas glorias e cavando talvez a ruina da patria, com tão lamentaveis conflictos, represalias e paixões, e peior ainda com essa campanha prejudicialissima do descredito de uns contra os outros (Apoiados), porque, se na decadencia em que vamos, chegarmos ao descredito de tudo e de todos, eu não sei quem ha de ter respeito e auctoridade para governar este paiz, se elle de todo se não tornar ingovernavel.

Praza a Deus, outra vez o digo, que todos se inflammem no amor da patria, e que, depondo paixões, despeitos e instigações do amor proprio, nos congreguemos em volta dos verdadeiros interesses do paiz e da bandeira da monarchia, que de mais a mais está sendo representada hoje por um rei moço e illustrado, e que, pelo seu animo forte e varonil e pelo seu amor e dedicação á sua patria, está conquistando muitos respeitos dentro e fóra d'ella; e por uma minha virtuosa e santa, que dignissima herdeira da corôa de Santa Isabel, a todos mette no coração com a sua bondade, e a todos edifica com o seu exemplo. (Apoiados.)

Sr. presidente, desculpe-me v. exa. e a camara esta digressão que insensivelmente me ía levando para muito longe do meu fim, e parece me estar já ouvindo perguntar-me de todos os lados e com razão; se os bispos não vêem á camara para apoiar e sustentar o governo com os seus votos, nem para combater ou apoiar a opposição, o que vêem elles então fazer?

Vou ter a honra de responder já.

Entre as disposições de alguns decretos dictatoriaes ha algumas, já referidas pelo meu illustre collega sr. bispo do Algarve, que precisam de ser modificadas, para não prejudicarem a igreja, o desempenho do ministerio pastoral e a vida religiosa do povo portuguez.

Vimos, pois, não para nos envolvermos nas questões politicas e partidarias, a que somos e desejâmos continuar a ser estranhos, vimos pedir essas modificações e auxiliar e defender, quanto em nós estiver, a causa da religião, que é tambem a causa da patria.

Se assim não fizessemos, o que diriam de nós os nossos parochos e clerigos e os fieis de todo o reino, e como ficaria molestada a nossa consciencia e solicitude pastoral se, em nossa ausencia e com o nosso consentimento tacito fossem convertidas em lei essas disposições?

Vimos pedir que o não sejas, e cercâmos o nosso pedido de toda a cordura e humildade, que é propria do nosso ministerio, e ainda de todas as cautellas para que ninguem veja em o nosso procedimento sombra de politica partidaria ou de imposição, por que tudo isso está muito longe do meu animo e do dos meus collegas aqui presentes, a quem me refiro e que me auctorisaram para assim o declarar.

Aqui estão, pois, sinceramente explicados os motivos e intuitos com que vimos votar o bill de indemnidade, e votamol-o amplamente, generosamente e sem condições no ponto em que agora se põe, por que não duvidâmos de que o governo e a camara, cooperando reciprocamente, deixarão de attender ás nossas pretensões que, alem de justissimas como são, se reduzem a muito pouco.

Sr. presidente, abria se agora aqui um largo campo para eu fazer as considerações que me suggere o estado actual da sociedade, e o quanto é necessario recorrer á religião como um dos elementos e factores mais importantes para o remediar, e d'ellas se deduziria tambem logicamente quanto são fundadas as nossas supplicas, mas não quero tomar tanto tempo á camara, nem abusar mais da bondade e paciencia com que me está ouvindo, e que, reconhecido, muito agradeço.

Limitar-me-hei por isso a pedir ao governo e á camara que não se arreceiem de attender os bispos, porque nós não queremos nem desejâmos se não o bem da religião e da patria, e desempenhar o nosso ministerio por fórma que soja o mais util e proveitoso para ambas, e de modo nenhum aspirâmos a predominios temporaes que foram e não voltam, ou a exclusivismos politicos, a influencias partidarias, a supremacias da igreja sobre o estado ou á formação de partidos novos.

São já de mais as divisões politicas da nossa querida patria, e não pouco têem contribuido para a sua ruina. Quem for, pois, verdadeiramente amigo d'ella e desejar o seu bem, deve tratar de a unir e não de a dividir mais ainda.

Não devo, porém, occultar que por occasião da ultima eleição de deputados se manifestaram em algumas localidades umas certas tentativas que em certo modo parecem oppostas a estas doutrinas; mas essas tentativas, embora sejam muito para louvar e agradecer pelas boas intenções de que eram filhas, não foram, ao que me parece, inspiradas, favorecidas e protegidas pelos bispos, e não lograram bom resultado.

Tambem por outro lado o governo, se antes d'estas tentativas e de modo por que pretenderam realisal-as, lhe pedissem que apoiasse a eleição de deputados e defendesse a causa religiosa, talvez não recusasse este apoio, e tanto isto 6 verdadeiro, que o sr. ministro do reino, cujo talento e eloquencia, e cuja energia e dotes governativos muito respeito e admiro, chegou a pedir-me, o que agradeço a s. exa., que intercedesse eu para que consentisse

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em ser eleito deputado o meu respeitavel amigo, sr. dr. Antonio Brandão de Braga, que, pelos seus sentimentos religiosos, pelo seu talento e profundo saber, pelos grandes serviços que tem prestado á causa da religião e da igreja, tem e merece o requisito e a admiração de todos os que o conhecem.

E pena foi, e muito grande, que por falta de saude hão podesse vir á camara este honrado e valoroso campeão da causa catholica, e que se as nossas condições fossem as mesmas da Allemanha, seria em Portugal o mesmo que foi lá o chefe do catholicismo.

Volto outra vez ao ponto em que estava, e de novo peço ao governo e á camara que não ponham duvida em attender nós, porque nós não queremos senão constituir com a nossa união e influencia, porque a temos, um apoio e uma força, que ajude os governos, quaesquer que sejam os partidos a que pertençam a governar bem e christamente, e a evitar que a pressão de influencias oppostas, ou a tendencia das proprias inclinações os desviem d'este caminho.

No mais podem os partidos degladiarem-se nos seus campos politicos; deitarem ministerios abaixo e levantar ministerios acima, porque os bispos portuguezes, comquanto não sejam, nem devam ser, indifferentes ao bom governo do seu paiz, não querem envolver-se de modo nenhum n'essas luctas e paixões partidarias, uma vez que não offendam a religião e a moral, e que não pretendam usupar-nos o sagrado deposito dos direitos que nos foram confiados, e que defenderemos á custa da propria vida.

Sr. presidente, a hora está a dar, e eu vou terminar já, dizendo só o seguinte:

Sem querer contrariar nem maguar ninguem, tenho combatido sempre a doutrina de querer ligar a religião aos thronos, para quando os thronos caírem não soffrer nada a religião.

Do mesmo modo desejo que os bispos estejam sempre ligados aos ministerios de todos os partidos pelo auxilio que lhes prestarem, e pelos serviços e considerações que d'elles receberem, mas nunca ligados pela politica e paixões partidarias, para, quando os ministerios caírem, não caírem tambem os bispos da sua influencia e prestigio, e para não darem logar a represalias politicas.

Tenho dito.

(O orador foi muito comprimentado.)

O sr. Presidente: - A hora está muito adiantada; em todo o caso vou dar a palavra ao sr. ministro dos negocios estrangeiros, que a pediu para antes de se encerrar a sessão, e que por ser ministro tem a primasia, e depois dal-a-hei, se houver tempo, ao digno par o sr. conde de Lagoaça, que, segundo me declarou, a pretende obter meramente com o fim de mandar para a mesa um projecto de lei.

Tem a palavra o sr. ministro dos negocios estrangeiros.

O sr. Ministro dos Negocios Estrangeiros (Luiz do Soveral): - Peço a v. exa. que consulte a camara sobre se consente que o digno par o sr. Frederico Arouca se ausente do paiz por algum tempo, por motivo de ir no desempenho de serviços publicos á côrte de Londres.

Consultada a camara, resolveu affirmativamente.

O sr. Presidente: - Tem a palavra o sr. conde de Lagoaça, a fim de mandar para a mesa o projecto de lei que não póde apresentar antes da ordem do dia, visto que a hora está a dar.

O sr. Conde de Lagoaça: - Sr. presidente, eu tinha promettido na anterior sessão apresentar hoje um projecto de lei, tendente a dar postos de accesso aos dois militares que mais se distinguiram na recente guerra de Africa.

Infelizmente vim hoje tarde e não ouvi as explicações que o sr. ministro da guerra deu ás considerações que aqui fiz na anterior sessão sobre este assumpto.

Eram tres horas quando cheguei, mas havia-se entrado já na ordem do dia, certamente porque o assumpto de que se ia tratar era momentoso e não se queria perder tempo.

Porém, antes de mandar o meu projecto para a mesa, queria dar á camara algumas explicações ácerca das considerações que faço no relatorio que precede o meu projecto e que vou ler.

(Leu.)

O sr. Presidente: - Deu a hora. A sessão não está prorogada, e o digno par não póde continuar no uso da palavra, ou na leitura do relatorio do projecto de lei que s. exa. tem de mandar para a mesa.

(Pausa.)

Vou portanto, encerrar a sessão, visto que o digno par continua a ler, e attenta a manifestação da camara, não podendo tambem dar a palavra ao sr. ministro da guerra.

O sr. Conde de Lagoaça: - Então mando para a mesa o meu projecto de lei.

O sr. Presidente: - A ordem do dia para a proxima sessão, que será na segunda feira, 10, é a continuação da que estava dada para hoje.

Está levantada a sessão.

Eram cinco horas e mais alguns minutos da tarde.

Dignos pares presentes a sessão de 8 de fevereiro de 1896

Exmos. srs. Luiz Frederico de Bivar Gomes da Costa; Marquez das Minas; Arcebispo Évora; Arcebispo-Bispo do Algarve; Bispo Conde de Coimbra; Condes, da Azarujinha, de Bertiandos, do Bomfim, de Cabral, de Carnide, de Lagoaça, de Macedo de Magalhães, do Rostello, de Thomar; Bispos, de Beja, de Bragança, de Vizeu; Visconde de Athouguia, da Silva Carvalho; Moraes Carvalho, Sá Brannão, Serpa Pimentel, Arthur Hintze Ribeiro, Cau da Costa, Ferreira Novaes, Vellez Caldeira, Cypriano Jardim, Sequeira Pinto, Ernesto Hintze Ribeiro, Margiochi, Jeronymo Pimentel, Gomes Lages, Baptista de Andrade, José Maria dos Santos, Pessoa de Amorim, Marçal Pacheco, Sebastião Calheiros e Thomaz Ribeiro.

O redactor = João Saraiva.

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