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CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

SESSÃO N.° 10

EM 18 DE AGOSTO DE 1905

Presidencia do Exmo. Sr. Antonio Candido Ribeiro da Costa

Secretarios - os Dignos Pares

Seabra de Lacerda
Almeida Garrett

SUMMARIO.-Leitura da acta. É approvada, depois do Digno Par Sebastião Baracho pedir que na acta da sessão de hoje se consignem umas palavras que proferiu em seguida ao Sr. Presidente annunciar, ante-hontem, que não havia numero para a Camara poder funccionar. - O Sr. Presidente commemora o passamento dos Dignos Pares Francisco de Castro Mattoso Côrte Real, Visconde de Chancelleiros, Miguel Dantas e do antigo Deputado e jornalista Emygdio Navarro, e propõe que na acta se exare um voto de sentimento por tão lamentaveis occorrencias. Associam-se ás palavras do Sr. Presidente o Sr. Ministro do Reino, por parte do Governo, e o Digno Par E. Hintze Ribeiro. O Digno Par Veiga Beirão associa-se á proposta do Sr. Presidente, e requer que a sessão seja encerrada em signal de luto, depois de terem usado da palavra os Dignos Pares inscriptos. Os Dignos Pares Costa Lobo, Baracho e Costa e Silva tambem se associam á commemoração feita pelo Sr. Presidente.- São expedidos uns requerimentos mandados para a mesa pelo Digno Par Sebastião Baracho, e é mandada publicar no Diario do Governo uma consulta do Supremo Conselho de Justiça Militar, com relação ao desastre de Cunene, a pedido do mesmo Digno Par. - Encerra-se a sessão e apraza-se a seguinte.

Pelas 2 horas e 50 minutos da tarde, verificando-se a presença de 22 Dignos Pares, o Sr. Presidente declarou aberta

Deu-se conta do seguinte expediente:

Officio do Ministerio da Marinha, sobre documentos requeridos pelo Digno Par Marquez de Sousa Holstein.

Á secretaria.

Officio do Ministerio do Reino, sobre documentos requisitados pelo Digno Par Dantas Baracho.

Á secretaria.

Dois officios do Ministerio da Marinha, sobre documentos pedidos pelo Digno Par Teixeira de Sousa.

Á secretaria.

Telegramma do Sr. Fernando Munró dos Anjos, communicando o fallecimento de seu pae, o Digno Par Polycarpo Pecquet Ferreira dos Anjos.

Foi lida a acta da sessão antecedente, e approvada depois do discurso do Digno Par Sebastião Baracho.

O Sr. Sebastião Baracho: - O discurso d'este Digno Par vae publicado na integra, no final d'esta sessão, em appendice.

O Sr. Presidente: - As declarações do Digno Par constarão da acta da sessão de hoje. Não podiam constar da ultima acta porque essa foi da sessão realizada antes do intervallo parlamentar.

Da reunião do outro dia não ha acta; e as palavras do Digno Par foram proferidas já depois de encerrada a reunião.

Falleceu antes de hontem o Vice-Presidente d'esta Camara, Conselheiro Francisco de Castro Mattoso Côrte Real.

Representante de uma antiga e illustre familia, assignalada por grandes serviços á causa publica, irmão do Sr. Presidente do Conselho, o Digno Par fallecido honrava esta Camara pela sua illustração e pelo seu caracter.

A sua voz era ouvida sempre com attenciosissimo respeito; a sua palavra nunca deixou de ser correcta, ponderada, de bom conselho. Ornamento da magistratura judicial, que está de luto pela sua marte, o Conselheiro Castro Mattoso notabilizou-se ali pela sua sciencia de jurisconsulto e pela sua rectidão de julgador.

O seu fallecimento representa uma grande perda para o paiz, ao qual podia continuar a prestar os serviços das suas superiores faculdades, e para esta Camara, onde, n'este logar, que occuparia distinctamente, daria largas provas da sua prudencia, do seu espirito liberal e da sua fidalga e primorosa educação.

Antes, no interregno parlamentar, não nos poupou a morte.

A relação infindavel dos nossos mortos accrescentou-se com os nomes de tres Dignos Pares que, ao encerrar dos nossos trabalhos, eram, como o conselheiro Castro Mattoso, a satisfação, a honra e o orgulho d'esta Camara.

Abre a lutuosa serie o Digno Par Miguel Dantas Gonçalves Pereira.

Debuxa-se em linhas simples o perfil d'este Digno Par. Era um homem trabalhador honrado, a da mais intemerata lealdade pessoal e politica.

Dedicou-se á vida publica, e serviu-a lealmente sob uma das bandeiras em que se agrupam, na nossa terra, os que pugnam pela prosperidade e engrandecimento da patria commum: não perdendo nunca de vista os interesses da sua terra natal, que amou profundamente, e á qual a sua memoria ficou vinculada por benemerencias que não serão esquecidas.

Seguiu-o na morte, a curta distancia de tempo, o Digno Par Visconde de Chancelleiros.

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Evocando a figura que este grande e glorioso nome nos recorda, sentia por si e por toda a Camara uma dôr intensissima: a de havermos perdido para a honra d'esta casa e para o esplendor da sua tribuna, o grande, o poderoso, o extraordinario orador que elle foi!

A palavra espontanea e infatigavel; a voz volumosa, extensa, ora alteando-se ás apostrophos mais vehementes, ora baixando ao tem familiar de uma conversa; a nobre e expressiva figura, a que a cabeça altiva e revolta dava o remate originalissimo; as replicas vivazes, em discursos seguidos ou em interrupções fulminantes; as altitudes que assumia, na irrepremivel inquietação dos nervos; o imprevisto do movimento e da linguagem: tudo isto dava ao Visconde de Chancelleiros um relevo que era só d'elle, um prestigio e uma influencia que o singularizavam, notavelmente, n'esta assembleia parlamentar.

Não era possivel ouvil-o nos dias dá sua grande eloquencia, quando este recinto era pequeno para a acção da sua palavra: não era possivel ouvil-o, n'esses rememoraveis dias, sem pensar no enorme, no assombroso tribuno que elle seria n'outro tempo e em diversas condições...

Não era um orador didáctico: podia aprender-se nos seus discursos, mas não era intenção d'elle ensinar. Tambem não era um orador doutrinario: nunca falava em nome de uma escola, de uma theoria politica, e nem sequer de um partido. Era um luctador, que propunha ou acceitava os reptos parlamentares segundo as necessidades e inspirações de momento, e que, nos rijos duellos que travava, por vezes formidaveis, nunca ninguem o viu extenuado ou vencido.

As vezes o seu espirito, pairando sobre os accidentes da nossa politica, aprazia se em generalizações amplas, e o seu penetrante espirito via longe e via profundamente: mas não era essa a feição mais usual do seu gosto e do seu talento.

Foi Ministro de Estado, teve as canseiras e as responsabilidades do poder; e se a sua estatura de homem de Estado não igualava a sua grandeza de orador, é certo que deixou assignalada a sua passagem na administração publica por actos que illustram e realçam a sua memoria.

Mas a tribuna d'esta casa, a nessa tribuna, é que ha de revestir por longo tempo o luto da sua morte ! Não ha de desapparecer da nossa admiração e da nossa saudade, nem queremos que desappareça o vulto é as feições d'esse insigne parlamentar, tão nobre pelas suas maneiras, tão fidalgo de alma e de caracter, que, abandonando os seus vastos dominios agricolas, no meio dos quaes era um exemplo util e uma lição viva, - surdia aqui frequentemente, impetuoso, irrequieto, como e uma força da natureza o impellisse ou agitasse, e, em sessões seguidas, illuminava, esta Camara com a surpresa, o fulgor, a valentia e a graça da sua palavra!

Que immensa pena que tudo isto tenha acabado, e acabado para sempre...

Sobre esta perda irremediavel, veio a de Polycarpo Pecquet Ferreira dos Anjos. Este nome ha de ficar representando o mais alto e edificante exemplo de virtudes domesticas e civicas, o mais perfeito modelo de homem de bem, em todo o sentido. Polycarpo Anjos não empregou na politica o melhor do seu tempo e da sua actividade, mas a vida publica esmaltava se aos reflexos do seu admiravel caracter, do seu caracter nobilissimo; e a commemoração do seu nome entre os respeitos e as saudades dos que o conheceram em vida, e até dos que só o conheceram na morte, é uma justa homenagem á limpida memoria do seu espirito, que era um espirito de verdade, e, do seu coração, que uma grande e larga bondade inspirou sempre...

São estes os Dignos Pares fallecidos no intervallo das nossas sessões; e não são poucos, desgraçadamente. E feita a commemoração d'elles, pede permissão é Camara, se é preciso pedil-a, para fazer o elogio de um illustre homem publico, que não tinha assento n'esta casa do Parlamento, mas que era incontestadamente um dos mais potentes e privilegiados espiritos da nossa terra. Referia-se ao Conselheiro Emygdio Navarro, para quem antes de hontem amanheceu o ultimo dia em Luso.

O seu talento era enorme. O coração, através dos seus impetos de luctador apaixonado, muitas vezes generoso e compadecido.

Abrangia no seu vasto espirito as ideias, os factos, os problemas, os interesses de toda a civilização moderna, variada e complicadissima. Era sobre tudo isto um distincto homem de letras, quasi um artista. Na sua aptidão parlamentar destacavam as principaes qualidades do seu genio, valente, positivo e claro. Mas onde essas qualidades se ostentaram em altissimo relevo foi na imprensa e na gerencia da pasta das Obras Publicas. A sua penna de jornalista, tersa, rigorosa, elegante, incomparavel, caida agora da sua mão inerte, passará muito tempo sem que appareça quem a levante e retome com a mesma força e com brilho igual: a sua obra de estadista perdura nos effeitos utilissimos do seu plano, que foi de um verdadeiro homem de Estado.

Merece uma commemoração sentida n'esta Camara, que de certo lhe não faltará.

Propunha que na acta da sessão de hoje ficasse o voto do nosso profundo sentimento por todas estas perdas, e que ás familias doridas se fizessem as competentes communicações.

O Sr. Ministro do Reino (Eduardo José Coelho): - Cumpre o doloroso dever de, em nome do Governo, se associar ao voto de sentimento e de homenagem proposto pelo Sr. Presidente á memoria dos Dignos Pares que nos precederam na funebre jornada.

O Sr. Presidente, como de antemão sabiamos, foi tão eloquente de verdade, de sentimento e de justiça para com os benemeritos extinctos, que, se por igual podemos todos nós acompanhal-o na magua, e na dor, impossivel é exprimir essa magua, essa dor, com palavras mais nobres e mais ajustadas á devida homenagem áquelles que ainda hontem eram nossos amigos e nossos companheiros nas lides parlamentares.

Não fará pois commemorações especiaes; a morte tudo nivela.

Do Visconde de Chancelleiros dirá porem, e somente, que pelos primores do seu caracter, pujança do seu talento, e até pelas tradições de familia, que constitue, por assim dizer, uma dynastia de homens illustres, era no Parlamento ouvido com respeito e veneração taes, que nunca poderão ser excedidos.

Dos Dignos Pares Polycarpo Anjos e Miguel d'Antas, dirá que elles receberam na investidura do pariato o justo premio e galardão dos relevantes serviços prestados ao paiz e á politica do seu partido.

Serviram as ideias da sua politica; mas é consolador recordar que não ha hoje uma palavra que seja preciso esquecer ou retratar, porque a mutua estima pessoal e respeito nunca soffreu quebra ou interrupção.

Falou o Sr. Presidente do passamento de Emygdio Navarro, fazendo justiça aos elevadissimos meritos e manifestações variadas das suas poderosas faculdades de trabalho e intelligencia. Associa-se, com profunda saudade, ás palavras do Sr. Presidente.

A morte de Emygdio Navarro e de Francisco Mattoso Côrte Real recorda-lhe uma triste coincidencia, a que vae referir-se, talvez com incorrecção de phrase, mas com muita sinceridade. Iniciara a vida publica ha quarenta annos, uma jornada longa, que para muitos representa uma vida inteira: era então seu superior hierarchico. Francisco Mattoso Côrte Real; e então iniciara a sua carreira academica Emygdio Na-

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varro. Quarenta annos teve um como convivio intellectual e pessoal, na carreira da magistratura, na vida parlamentar, nas duas casas do Parlamento que o constituem; e sempre amigo e mestre, não podia esquecer, neste momento doloroso, o que tanto lhe deve, na carreira da magistratura, na vida intima, e na carreira politica.

Aqui lhe presta, especial e pessoalmente, a mais rendida homenagem de gratidão. Mattoso Côrte Real foi honra e lustre da magistratura. Todos o reconheceram na vida, todos o proclamam agora.

Por isso, depois de ter cumprido o dever officioso de em nome do Governo se associar á homenagem prestada a todos os Dignos Pares extinctos durante o interregno parlamentar, quiz tambem prestar a sua homenagem pessoal á memoria d'aquelle seu illustre amigo a quem, como disse, deve muitas provas de benevolencia, amizade e gratidão.

De Emygdio Navarro dirá ainda que as contingencias da vida politica fizeram que o orador e elle andassem por vezes mais ou menos afastados; todavia o seu affecto por elle nunca se extinguiu e a sua admiração nunca esmoreceu. Quando teve a desventura partidaria de lhe succeder, ha cerca de 15 annos, no Ministerio das Obras Publicas, declarou á Camara que não tinha programma, apenas affirmou que se julgaria feliz se pudesse rastejar a obra, que durou e perdurou, d'aquelle illustre homem publico, d'aquelle alto espirito.

Triste coincidencia para o orador, o perder dois amigos: um que ha 40 annos o aconselhava nos primeiros passos da vida publica e outro que ha igual tempo iniciava a sua vida academica.

Se alguma coisa ha que possa servir de allivio á sua magua, que é sincera, é que elle, orador, não tem de recorrer a euphemismos, nem tem de rebuscar phrases, mais ou menos ambiguas, para demonstrar a constancia das suas relações com esses dois extinctos, no largo periodo de 40 annos.

A elles o ligou sempre o mais acrisolado affecto, e, se pranteia a sua morte, e especializa as razões particulares que deve á sua memoria, por igual lamenta o fallecimento de todos os outros illustres extinctos.

O Sr. Ernesto Hintze Ribeiro: - Pela sua parte, e por parte dos seus amigos politicos d'esta casa do Parlamento acompanha, muito sinceramente, a commemoração sentida que o Sr. Presidente acaba de fazer de antigos companheiros nossos n'esta Camara.

S. Exa. referiu-se á perda, para esta Camara, do seu vice-Presidente, o Sr. Conselheiro Francisco Mattoso da Silva Côrte Real.

Por todos os motivos se associa a essa commemoração.

Embora militassem em campos oppostos, sempre, nos debates politicos em que entrou, o Sr. Mattoso Côrte Real foi cortez e affavel no seu trato e nas discussões, e nem uma palavra lhe ouviu jamais que pudesse offender ou sequer melindrar as susceptibilidades de nenhum dos seus collegas.

Lhano no seu trato, sempre delicado; e na magistratura, onde ascendeu ao seu ultimo posto, como no Parlamento, deixou de si uma impressão que a todos nós é licito registar com magua e saudade.

Ha laços que se não desprendem, ao os laços intimos da familia.

Não vê presente o Sr. Presidente do Conselho, e bem natural é que S. Exa. aqui não esteja; mas a S. Exa. expressa o seu profundo sentimento pela morte de seu irmão.

Tambem o Sr. Presidente enalteceu, m palavras das quaes S. Exa. tem o segredo e o prestigio, a perda dolorosa de um collega nosso, o Sr. Visconde de Chancelleiros, um dos mais antigos membros d'esta casa do Parlamento, que n'ella tinha assento ha quarenta e tantos annos, parlamentar por direito proprio e pelas suas qualidades de orador e de polemista.

O orador lembra-se com que desvanecimento o Visconde de Chancelleiros citava a miude, nos debates em que entrava, e nas apreciações que fazia, a memoria de seu pae, o Barão de Chancelleiros, um dos vultos da historia das nossas luctas civis, muitas vezes eleito Deputado, e umas poucas de vezes nomeado Ministro.

O primeiro orçamento regularmente organizado da epoca constitucional tem a firmal-o o nome do Barão de Chancelleiros.

Nunca o esqueceu o seu filho predilecto, e sempre se orgulhou da sua tradição, que era honrar, como honrou, a tribuna portuguesa.

Alevantado na forma, vehemente por vezes na dicção, mas sempre correcto, attencioso e deferente

Original, absolutamente, na sua maneira parlamentar, com nenhum outro se confundia.

Era tão sua, tão caracteristica e peculiar a sua feição politica, que elle avultava entre todos nós, como sendo um symbolo especial d'esta casa do Parlamento, onde, aliás, tantos talentos ha, e tantos caracteres se teem assignalado.

O Visconde de Chancelleiros em absolutamente inconfundivel, inimitavel, nos debates parlamentares.

Tinha uma eloquencia sua, um calor, um enthusiasmo, uma apreciação, uma fina critica, uma orientação tão diversa da vulgar, que faziam d'elle uma das figuras mais proeminentes da politica portuguesa.

A par d'isto, nobre e fidalgo na sua maneira de tratar, pundonoroso em todos os actos da sua vida publica, ao mesmo tempo que possuido de um entusiasmo especial, de uma devoção articular pela questão economica, elle foi, talvez em muito, uma victima da sua propria iniciativa, no seu grande desejo de alevantar a agricultura portuguesa.

Não foi só o Visconde de Chancelleiros que nos faltou no intervallo paramentar; dois amigos o orador perde-a; dois grandes e dedicados amigos! Miguel Dantas, um amigo leal e seguro, que sempre na sua vida politica e salientou pela sua dedicação até ao sacrificio, devotado até á paixão, contanto até á intransigencia.

Um acto do seu partido era forçosamente bom; uma resolução do seu chefe era incontestavelmente a melhor.

Que grande força para as collectividades politicas possuirem caracteres com esta firmeza e confiança! Grande
exemplo e lição nos dias que vão decorrendo!

Polycarpo Anjos foi sempre o prototypo da lealdade e da honradez.

Muito intelligente, vendo as questões e as coisas sempre pelo prisma da verdade, sempre correctamente, praticamente, util e productivamente para o seu paiz, foi um trabalhador incansavel, ao mesmo tempo que um amigo lealissimo.

O seu conselho era de uma sinceridade tão limpida, que na sua palavra podiam acreditar todos, amigos e inimigos. Tão cheio de verdade, de acção e de justiça era o seu espirito e o seu animo.

O intervallo parlamentar deixou falhas nas nossas hostes, perdas nas nossas tribunas do Parlamento, absolutamente irreparaveis.

É por isso que, através dos embates da vida publica e dos prelios eminentes das nossas discussões parlamentares, podemos hoje accentuar a justa commemoração do nosso sentimento e do nosso pesar por essas perdas.

Mas o Sr. Presidente, alem d'estes que eram nossos collegas e amigos na Camara dos Pares, enaltecera ainda, em palavras que bem marcam e ficam, a morte de um grande luctador, de um grande espirito.

Refere-se a Emygdio Navarro. Dorida magua o orador sentiu com a noticia inesperada do seu fallecimento. Ao ausentar-se para o estrangeiro, quiz abraçal-o pela ultima vez: tinha como que o presentimento de que não mais o veria, presentimento que, infelizmente, se realizou; e no proprio dia

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em que tio subitamente lhe chegou a noticia da sua morte, acabava de receber uma carta sua, tão cheia de palavras generosas e ao mesmo tempo de conceitos politicos, e tão ditada pelo seu espirito elevado, que ainda mais lhe tornaram dolorosa a noticia da sua morte.

Foram companheiros em Coimbra e amigos, e de lá vieram para o terreno parlamentar, em campos absolutamente oppostos. Foi um intransigente; e talvez ninguem tão vivamente houvesse sido atacado na vida politica como o orador o foi por Emygdio Navarro; mas, tambem, com quanta nobreza de animo, com quanta franqueza affectiva elle o abraçou depois!

Tinha qualidades e defeitos, é certo; tinha luz e sombras: claros e escuros, mas muitos claros. Tinha qualidades tão vivas, que brilhavam tanto, que bem se sobrepunham aos defeitos passageiros. A luz que irradiava d'aquelle cerebro potente dissipava as sombras que lhe imputavam; colorido tão intenso, que brotava tão expressivo, tão sincero do seu coração generoso e aberto, que obscurecia os seus senões.- Era um grande espirito e um grande coração.

Acima de tudo tinha uma generosidade de sentir, uma espontaneidade de affecto que tudo subjugava. Era um homem de bem.

Como Ministro teve uma iniciativa efficaz e potente. Quantos melhoramentos, quantos serviços publicos elle determinou e abriu! Como parlamentar uma palavra sempre animada e quente, por vezes inspirada pela paixão, mas sempre luminosa. Como jornalista, assignalou com o fulgor da sua penna as mais brilhantes paginas de litteratura periodica. Era quem verdadeiramente e mais fundo sulcava o terreno de qualquer debate pendente, de forma a actuar no espirito publico de maneira unica.

Depois de Sampaio e Teixeira de Vasconcellos, quatro grandes jornalistas tem o orador conhecido, sem offensa de ninguem: Pinheiro Chagas, Antonio Ennes, Emygdio Navarro e Marianno de Carvalho.

Tres levou-os a morte.

Foi Marianno de Carvalho que ficou, que ainda hoje resta d'essa pleiade brilhante.

Entende de seu dever deixar assim, bem patente, a sua homenagem a esse notabilissimo espirito, porque a ninguem fica mal, em qualquer situação da sua vida, qualquer que seja o seu modo de pensar, esse proceder, quando inspirado pelos impulsos da consciencia; a ninguem fica mal um preito de justiça áquelle que engrandeceu e nobilitou o seu paiz.

Ahi fica pois o seu preito singelo, mas sincero.

(3. Exa. não reviu}.

O Sr. Veiga Beirão: - Em nome do partido progressista, associa-se aos sentimentos de condolencias que o Sr. Presidente tão eloquentemente expendera a proposito dos Dignos Pares fallecidos durante o intervallo parlamentar, e de um illustre publicista, que não fazia parte d'esta Camara.

Lembra ao Sr. Presidente, como é de uso nesta Camara, que em signal de sentimento, muito especialmente pela morte do Vice-Presidente, a Camara encerre por hoje os seus trabalhos.

(S. Exa. não reviu).

O Sr. Costa Lobo: - Associa-se aos sentimentos de dor tão eloquentemente manifestados pelo Sr. Presidente, e pelos oradores que o precederam, sobre a perda dos nossos collegas fallecidos durante o recesso parlamentar. Não pode deixar passar esta occasião sem consagrar uma saudosa homenagem á memoria de um d'elles, ao qual o ligavam estreitos laços de amizade. O Visconde de Chancelleiros representava uma familia nobre pelo sangue, e distincta pelos seus meritos e serviços nos annaes da vida nacional. Seu pae, o Barão de Chancelleiros, e seu tio, Sebastião José de Carvalho, são nomes imperecivelmente ligados á historia da implantação entre nós do regimen liberal. O Visconde de Chancelleiros manteve dignamente as tradições da sua familia. Escusa de recordar á Camara a elevação dos seus intuitos patrioticos, o brilho da eloquencia com que os propugnava, a sua dedicação pelo bem do paiz, o qual serviu sempre com zelo, sinceridade e abnegação. O echo da sua imaginosa palavra repassada de fervor, expressão de um judicioso e remontado pensar resôa ainda nos nossos ouvidos. N'elle a causa publica perdeu um prestimoso campeão, a sociedade um exemplar de homem de bem, o Parlamento uma das suas glorias, e os seus familiares um conforto nas horas do desalento ou da amargura. Para elle, orador, pessoalmente foi uma inconsolavel desgraça. A morte vae estendendo em volta da velhice uma solidão, cada dia mais rareada. Nunca este sentimento o feriu com tão pungente tristeza como n'este doloroso transe. O unico lenitivo para a angustia dos que como elle, orador, pranteiam o passamento d'este benemerito cidadão é o reflectir em que a sua memoria será sempre abençoada por quantos prezam a superioridade do engenho e a hombridade do caracter, alliadas a uma brandura de sentimentos, inspiradora de universal sympathia. Limita aqui a sua commemoração, porque receia não se poder dominar sufficientemente que não irrompa em manifestações de dôr que se não compadecem com a publicidade.

O Sr. Sebastião Baracho: - O discurso d'este Digno Par vae publicado na integra, no final d'esta sessão, em appendice.

O Sr. João Arroyo: - Pediu a palavra para se associar ao voto de sentimento proposto pelo Sr. Presidente á Camara, em palavras tão bellamente ditas, como profundamente pensadas, voto de sentimento a que se associaram alguns dos seus collegas d'esta casa do Parlamento.

Ao Visconde de Chancelleiros destina, como não pode deixar de destinar, o preito da sua sincera admiração, pelo aspecto verdadeiramente interessante, pelo fulgor realmente raro, pelo caracter assignaladamente expressivo e pittoresco da sua palavra, sempre patriotica e sempre viva.

A Polycarpo Anjos consagra, como não pode deixar de consagrar, a expressão da mais extremada consideração, porque o Digno Par era na realidade uma das mais distinctas, das mais bellas figuras do alto commercio da capital.

A Miguel Dantas dirige a sua saudação enternecida e affectuosa, porque não se pode esquecer de que elle foi um dos seus camaradas nas grandes luctas parlamentares que começaram em 1886, durante as quaes elle deu mais que assignalada demonstração do que representava para elle o credo do seu partido, vendo em todos os seus companheiros de lucta verdadeiros irmãos de armas, vendo no seu chefe áquelle que devia representar sempre o symbolo da justiça, lealdade e gratidão.

Grande lição era Miguel Dantas nos tempos e nos successos que se vão desenrolando!

Não pode deixar de dedicar ainda algumas palavras a Emygdio Navarro, porque o seu fallecimento foi para a opinião publica um facto digno de commentario particular.

É o facto de serem devolvidos 16 annos sobre a saida de Emygdio Navarro dos Conselhos da Coroa, que elle tanto illustrou com esforço da sua grande intelligencia e o nome de Emygdio Navarro entrar dentro d'esta sala, para uma commemoração trazida pela voz de quem representa o sentir de toda a Camara, isto é, pelo seu Presidente. As suas palavras se associaram em pleno accordo de opinião os representantes dos partidos.

Casualidade estranha essa!

Porque Emygdio Navarro, fallecido ainda n'um periodo não extremamente avançado em idade, morreu sem ter realizado o grande ideal da sua vida, que era ser nosso collega dentro d'esta

Entre os seus camaradas foi um ta-

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lento inconfundivel. Era por assim dizer um pontifice das letras, pelos predicados que distinguiam aquella penna verdadeiramente primacial. E, todavia, elle não conseguiu ser Par do Reino!

Não pôde fazêl-o o partido que elle durante tantos annos honrou com a sua camaradagem!

Não conseguiram fazel-o os chefes da situação que elle mais tarde ajudou com a sua penna e sustentou com o seu talento!

É que o odio, o odio torvo e mau, o odio que a frivolidade do espirito alimenta, o odio que a vaidade cega e estupida provoca o anima, o odio não perdoa...

O odio pode mais do que o merito!

Emygdio Navarro não conseguiu em vida realizar o seu ideal; mas foi Par do Reino depois de morto.

Foi trazido á nossa commemoração pela evidencia dos seus meritos, pela superioridade incontestavel que tinha nas letras patrias, pela indispensabilidade d'este culto posthumo.

Foi trazido aqui por essa força irresistivel do merito, ao mesmo tempo que era commemorada a morte de tres collegas nossos.

Emygdio Navarro foi, pois, Par do Reino depois de morto, tendo merecido a felicidade de ter n'esta Camara a esmaltar a consagração do seu alto valor a palavra do seu Presidente.

Que isto seja compensação na morte á injustiça que o acolheu em vida!

O Sr. Costa e Silva: - Tem a declarar que o partido regenerador-liberal viu tambem, com sentimento, a perda dos Dignos Pares a que a Camara acaba de prestar sentida homenagem, bem como a de Emygdio Navarro.

Associa-se, pois, ás manifestações de de pesar por tal motivo propostas.

O Sr. Arroyo : - Pede desculpa á Camara, por abusar da sua paciencia; mas, se não pedisse de novo a palavra, levaria para casa um remorso maior do que o desprazer de tal abuso.

É que commetteu um esquecimento involuntario, não se associando ás manifestações de pesar pela morte do Digno Par Castro Mattoso, de quem foi amigo em vida e do qual conserva a mais grata recordação.

O Sr. Presidente: - Julga interpretar os geraes sentimentos da Camara considerando approvadas por acclamação tanto a sua proposta como a do Digno Par Francisco Beirão. (Apoiados).

A seguinte sessão será na proxima-terça-feira, 22 do corrente, com a ordem do dia que estava dada para a de hoje.

Está levantada a sessão.

Eram 4 horas e 15 minutos da tarde.

Dignos Pares presentes na sessão de 18 de agosto de 1904

Exmos. Srs.: Antonio Candido Ribeiro da Costa, Marquez de Avila e de Bolama, Visconde de Monte São, Moraes Carvalho, Eduardo Villaça, Costa e Silva, Costa Lobo, Teixeira de Sousa, Eduardo José Coelho, Ernesto Hintze Ribeiro, Mattozo Santos, Veiga Beirão, Dias Costa, Francisco de Medeiros, Almeida Garrett, João Arroyo, Jorge de Mello, Silveira Vianna, José Vaz de Lacerda, Poças Falcão, Pedro Araujo, Sebastião Telles, Sebastião Dantas Baracho, Ornellas Bruges.

Os Redactores.

FELIX ALVES PEREIRA
(De pag. 107, a pag. 109, col. 1.ª e de pag. 110, col. 3.ª, a pag. 111, col. 3.ª)

ALBERTO BRAMÃO
(De pag. 109, col. 1.ª, a pag. 110, col. 3.ª

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APPENDICE Á SESSÃO N.° 10 DE 18 DE AGOSTO DE 1905 113

Discurso proferido pelo Digno Par Sebastião Baracho, que devia ler-se a pag. 107, col. l.ª, da sessão n.° 10 de 18 de agosto de 1905

O Sr. Sebastião Baracho: - Quando, quarta-feira, V. Exa. encerrava a sessão por falta de numero, eu expressava-me por estas formaes palavras: "É melhor acabar com isto de vez. É mais decente. Isto é absolutismo puro, ou antes, impuro".

Este meu desabafo não foi mencionado porque, consoante os usos da casa, quando não apparece numero legal de Dignos Pares para a Camara poder funccionar, os Annaes limitam se a registar o facto, addicionando, ás vezes, os nomes d'aquelles que responderam á chamada.

N'esta ordem de ideias, recordarei que, ante-hontem, apenas aqui compareceram onze Dignos Pares, segundo mencionam officialmente os Annaes.

Esta falta de comparencia dava-se precisamente no dia em que expirava o adiamento e antecedia o primeiro periodo parlamentar, que percorreu de 4 de abril a 12 de maio. Durou este, portanto, trinta e nove dias, em que houve nove sessões, das quaes apenas sete uteis. A notar ha igualmente que está para discutir a resposta ao Discurso
da Coroa, cujo debate não é dado prever quando se iniciará, visto os factos occorrentes indicarem que este Governo, longe de se prestar a dar contas dos seus actos n'esta casa, se prepara para breve cometter mais um attentado constitucional.

A par d'isto, a proposito vem consignar que, durante o intervallo parlamentar, o Governo se esmerou em dar provas do mais completo desprezo pelas regalias individuaes, pelos direitos dos cidadãos, pelas boas normas da administração publica, attingindo especialmente a meta nos ataques á liberdade de emissão de pensamento - para com o theatro e para com a imprensa.

No regimen draconiano a que esta foi submettida, ha sobretudo a considerar o que se pratica com o Mundo, jornal honesto e digno, com cujo director, o Sr. França Borges, tenho a honra de manter estreitas relações de amizade.

O Mundo não está sujeito unicamente á censura previa sob o euphemismo presidencial de leitura idem.

Vive elle tambem - e só elle - no regimen dos suspeitos, que nem na Polonia revolucionada existe n'este momento.

D 'esta torpeza hei de pedir estreitas contas aos seus actuaes responsaveis, e não sou mais explicito n'este momento, attentas as circumstancias especiaes do dia em que nos encontramos.

É, porém, indispensavel que os autores de tal. torpeza aqui venham, quanto antes, dar conta (Apoiado do sr. Teixeira de Sousa) dos seus actos, que bem patenteiam o regimen da actual compressão do absolutismo bastardo dominante.

Se não me foi licito ver inserto o meu protesto, lacónico e incisivo, que pronunciei na sessão de ante-hontem, formulado elle agora nos termos em que vae lavrado, terá a publicidade que eu desejava, para affirmar principios e para condemnar abusos que nos collocam-na mais infima situação, concernentemente ao direito que nos assiste de fiscalizar os actos dos governantes.

(S. não reviu).

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APPENDICE Á SESSÃO N.° 10 DE 18 DE AGOSTO DE 1905 115

Discurso proferido pelo Digno Par Sebastião Baracho, que devia ler-se a pag. 110, col. 3.ª, da sessão n.° 10 de 18 de agosto de 1905

O Sr. Sebastião Baracho:

Até mesmo depois de morto Debaixo do frio chão...

Permitta-me a Camara que assim me expresse, lembrando a canção popular que n'este momento tem toda a opportunidade, ao mandar para a mesa varios requerimentos por differentes Ministerios.

Está morto o Governo? Dará ainda acordo de si com novo attentado constitucional? É possivel, é mesmo provavel, perante a orientação predominante.

Não obsta isto, porem, a que eu procure obter os documentos precisos para fiscalizar, como é do meu direito, os actos ministeriaes.

Os requerimentos estão elaborados nos seguintes termos:

Requeiro que, pelos Ministerios que são especificados, me sejam fornecidos com urgencia os documentos que em seguida se de signam:

JUSTIÇA

Copia da representação dos Bispos, que motivou a portaria de 7 de julho de 1905.

FAZENDA

1.° Nota da receita bruta da exploração commercial do porto de Lisboa, desde 31 de dezembro de 1903 até 30 de junho de 1905.

2.° Um exemplar do relatorio da Companhia dos Tabacos de Portugal, relativo ao exercicio de 1904-1905.

1.° Relação nominal, por annos civis, dos individuos desterrados para Timor, ou para outro qualquer ponto das provincias ultramarinas, em cumprimento da lei de 13 de fevereiro de 1896.

Este nota deve obedecer mais aos seguintes preceitos:

a) Procedoncia judiciaria de cada desterrado e a colonia que lhe foi destinada pelo Governo para cumprimento do desterro;
b) Motivo da condemnação;
c) Designação dos fallecidos no desterro e onde;
d) Indicação dos que regressaram á metropole, se regressados houve, e quaes as causas determinantes do regresso de cada um.

2.° Um exemplar do Boletim Official de Angola, em que veiu transcripta do Diario do Governo de 14 de março de 1905 a exoneração do capitão de engenharia João Maria de Aguiar do cargo de governador do districto da Huila.

3.° Um exemplar do relatorio e contas da Companhia dos Caminhos de Ferro de Benguella, correspondente ao seu primeiro exercicio, que abrange o periodo desde a formação da Companhia até 31 de dezembro de 1904.

4.° Synopse dos decretos publicados pela Direcção Geral do Ultramar, durante o ultimo intervallo parlamentar.

ESTRANGEIROS

1.° Copia da correspondencia trocada com o Governo do Brasil, depois da revolta que se deu n'aquelle paiz, em novembro de 1904 - correspondencia a respeito do procedimento havido com numerosos subditos portugueses que, presos e conduzidos para a Ilha das Cobras, por occasião dos tumultos, foram mais tarde desterrados para o Acre e Alto Juruá, sem se lhes provar culpabilidade, nem serem sujeitos a processo regular.

2.° Copia da correspondencia trocada entre a chancellaria portuguesa e a brasileira acêrca das violencias e expoliações de que foram alvo differentes compatriotas nossos, e motivadas por varias expropriações, quando se procedeu no Rio de Janeiro as grande; melhoramentos urbanos, realizados moderna mente n'aquella cidade.

3.° Copia da correspondencia trocada entre as chancellarias britannica e aliem ã acêrca de assumptos respeitantes á Ilha da Madeira, e de vantagens especiaes ali asseguradas a subditos do Imperio Germanico.

OBRAS PUBLICAS

Nota dos pagamentos effectuados ao empreiteiro das obras do porto de Lisboa desde 31 de dezembro de 1903 até 30 de junho de 1905.

Mando tambem para a mesa a consulta do Supremo Conselho de Justiça Militar acêrca do desastre do Cunene e cuja publicação no Diario do Governo, para conhecimento de todos, eu solicito desde já.

A consulta ê assim concebida:

Foi presente ao Supremo Conselho de Justiça Militar o relatorio do inquerito a que se procedeu na provincia de Angola por virtude da portaria de 24 de novembro de 1904, acêrca das causas do desastre experimentado por um destacamento da columna de operações dos cuanhamas, determinando Vossa Majestade em portaria expedida pelo Ministerio da Marinha e Ultramar, em 8 de maio ultimo, que este tribunal consulte sobre tal assumpto.

Tendo o Governo de Vossa Majestade, em virtude das reiteradas instancias dos governadores da provincia de Angola, resolvido tornar effectiva a occupação da região entre o Cunene e Cubango. cuja necessidade, no parecer do Governo, subira de ponto pela revolta na região do Damara e pelos perigos que d'ella poderiam advir para a integridade do nosso territorio n'esta provincia, ordenou que se organizasse uma columna de operações para levar a cabo este emprehendimento, a fim de obviar aos actos de bandoleirismo, roubos a povoações indefesas, e ataques ás caravanas que do interior vinham commerciar ao litoral.

Para o desempenho d'essa missão foi escolhido o governador do districto da Huilla, o capitão João Maria de Aguiar, que, ao tempo em que o Governo tomou esta resolução, estava no reino; e sendo organizado por este official o relatorio de maio de 1904 (documento n.° 7) sobre o objectivo principal, caminho a seguir, systema de transportes, forças necessarias para se constituir a columna, e feito o respectivo orçamento da despesa, foram immediatamente satisfeitas as requisições por elle solicitadas.

Auctorizado o governador geral da provincia de Angola a mandar proceder á occupação militar da região Cunene-Cubango no districto de Huilla, estabelecendo os postos que julgasse indispensaveis para pacificar este territorio e impedir que os povos de Damara, nossos vizinhos, n'elle se occultasem, no caso de serem repellidos pelas tropas allemãs, foram expedidas ao mencionado governador as instrucções constantes do documento n.° 8, sem prejuizo das que julgasse conveniente transmittir ao governador do referido districto. Organizada a columna de operações, que o capitão João Maria de Aguiar julgou sufficiente (documento n.° 13), e tendo o governador geral participado em 26 de setembro ter ella passado o Cunene sem novidade (documento n.° 16), no dia 27, transmittia o telegramma do commandante da columna de operações, noticiando o revés experimentado pelo destacamento do cominando do capitão Pinto de Almeida (documento n.° 17).

O Governo resolveu mandar proceder a um inquerito acêrca das causas determinantes do desastre experimentado pelas nossas tropas, encarregando o governador geral da provincia de Angola d'esta commissão o coronel Manuel Antonio da Purificação Ferreira, que apresentou o seu relatorio em 25 de março ultimo e que, em muitos pontos, se não amolda ao determinado na portaria regia de 24 de novembro de 1904 (Documento n.° 21 b).

O que tudo visto e ponderado, entende este Supremo Conselho:

1.° - Que, não tendo sido o destacamento do commando do capitão Pinto de Almeida formado por unidades ou fracções constituidas, foi infringido o n.° 295, capitulo XI, do regulamento de serviço de campanha;

2.° - Que o mesmo numero do indicado capitulo foi infringido, e na parte relativa á falta de instruições precisas, por escripto, ao commandante do destacamento.

3.° Que o capitão Aguiar, dividindo quasi ao meio a força total do seu commando para fazer o reconhecimento do dia 25 de setembro, faltou ao preceituado no § 2.° do capitulo 2.° das instrucções provisorias para o serviço de campanha em Africa;

4.° Que o mesmo commandante não prestou a devida attenção ás informações acêrca das forças, recursos e attitude do gentio;

5.° Que não acceitou senão em parte muito limitada a collaboração dos auxiliares indigenas, que constituem um elemento essencial nas guerras do sertão;

6.° Que d'estas forças mandou collocar um posto avançado á direita do bivaque sem d'isso dar conhecimento aos officiaes de estado maior e aos da columna, de que resultou; ter-se feito fogo sobre este posto, por haver sido julgado inimigo, constituindo o facto uma das causas determinantes da fuga dos auxiliares;

7.° Que não soccorreu o destacamento em tempo util, a despeito de, no acampamento da columna, se ouvir, desde o começo do en-

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116 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

gajamento, fogo nutrido, persistente e de momento a momento mais proximo, o que patenteava que as nossas forças vinham retirando, em virtude, seguramente, de graves embaraços que encontravam no cumprimento da sua missão;

8.° Que não estabeleceu ou procurou estabelecer communicações permanentes, pelos meios de que dispunha, entre o destacamento e a base de operações;

9.º Que não verificou, ou fez verificar, se as munições da artilharia se adaptavam ás bocas de fogo respectivas;

10.° Que, em virtude d'esta falta, as peças de artilharia do destacamento estiveram in activas, ou pouco menos, durante o combate;

11.° Que tambem não verificou, ou fez verificar, se as foiças do destacamento iam devidamente e por igual municiadas;

12 ° Que d'esta omissão resultou que, durante o fogo, se :reconheceu effectivamente que as forças do destacamento estavam irregular e insuficientemente municiada;

13.° Que o commandante da columna tem a responsabilidade de se haverem disparado do acampamento dois ou tres tiros de granada, que attingiram as forças em retirada e já proximo do mesmo acampamento;

14.° Que d'este facto resultou, alem do desanimo nas tropas, a morte de alguns officiaes e praças do destacamento, que á custa de maximos esforços amparavam a retirada.

De tudo o que fica exposto conclue este Supremo Conselho:

1.° Que deve ser submettido a conselho de guerra o capitão de engenharia João Maria de Aguiar, por se achar incurso no artigo 117.° do Codigo de Justiça Militar.

2.° Que o julgamento se realize no reino, onde ha maiores garantias de imparcialidade do que no meio proximo onde se passaram os acontecimentos.

Vossa Majestade, porém, resolverá o que julgar conforme aos interesses da justiça.

Sala das conferencias do Supremo Conselho de Justiça Militar, em Lisboa, 15 de julho de 1905. - (a) José Frederico Pereira da Costa, general de divisão reformado, presidente; João Theodoro de Oliveira, vice-almirante reformado: Sebastião de Sousa Dantas Baracho, general de brigada; Augusto de Castilho, contra-almirante; José A. Pimenta de Avellar Machado, general de brigada; José Cesario da Silva, contra almirante; José Ricardo da Costa Silva Antunes, general de brigada reformado; José da Cunha Navarro de Paiva, juiz relator.

Está conforme. - Secretaria do Supremo Conselho de Justiça Militar, em Lisboa, 18 de julho de 1905.- (a) Gregorio Augusto de Sousa Mendonça, tenente do secretariado militar.

Dito isto, permita-me a Camara que eu me associe ás manifestações de sentimento por todos os fallecidos, cujo panegyrico foi feito eloquentemente pelo Sr. Presidente, a quem se seguiram outros oradores, não menos expressivos na maneira como celebraram os nossos mortos.

D'elles, dos cinco celebrados, destacarei tres nomes: o de Polycarpo Anjos, o de Miguel Dantas Gonçalves Pereira e o do Visconde de Chancelleiros Polycarpo Anjos era, por assim dizer, a segunda vida de uma dynastia commercial muito apreciada no para entre os da mesma profissão, e a que elle dava relevo pelo seu trato amavel, pela seriedade do seu caracter e pela sua honestidade.

Como politico, não passou por certo de um amador. Foi Deputado e era Par do Reino, e podia, e pôde, com a responsabilidade das duas representações.

Miguel Dantas fez se, a si, e deixa larga successão.

Emigrou, novo, para o Brasil e, tendo como religião o trabalho e como sacerdocio a probidade, adquiriu largos meios de fortuna, que soube distribuir que soube valorizar em proveito de muitos.

Foi politico, não de larga envergadura, em que a eloquencia é parte integrante, mas de utilidade para os seus conterraneos, para os seus constituintes, que n'elle tinham um procurador inexcedivel de zêlo e de boa vontade.

A elles, aos dois, commmemoro designadamente por terem sido dois honestos; e, na quadra que vamos atravessando, para registar é que se encontrem exemplares de tal jaez e do merito que e sobrelevava nos dois mortos.

O Visconde de Chancelleiros nasceu em 1833, ao desabrochar, entre nós, da liberdade. Era deputado em 1858, á data do fallecimento de seu pae.

Exerceu duas vezes o cargo de Ministro: em 1871, quatro mezes e poucos dias apenas; em 1892, tambem por um periodo relativamente curto.

Como politico, evidenciou-se primarialmente na cultura da palavra, que ninguem á possuia mais incisiva, mais espontanea e mais elegante.

Entrou n'esta casa por successão de seu pae, em 1861. Na brecha constantemente, flagelava os Governos que uns a outros se succediam, sem d'elle poderem obter as boas graças.

Os grandes agrupamentos politicos, emquanto os houve, não lhe mereceram sympathia. Batia-os, pelo contrario, sem descanso. Por isto se pode apreciar o conceito em que tinha a engrenagem rotativa com todas as suas avarias e desconcertos.

Gomo agricultor, foi por assim dizer escola dos seus collegas applicando á cultura vinicola os processos mais adeantados, que, se a elle não deram beneficios, foram exemplo para quem melhor os aproveitou.

Descendia o Visconde de Chancelleiros de politicos de polpa.

Seu tio, Sebastião José de Carvalho, foi Ministro em 1823.

Seu pae, Manuel Antonio de Carvalho, desempenhou um importante papel na transformação do regimen absoluto para o regimen constitucional.

Iniciou a sua vida publica alistando se no batalhão academico, organizado para combater a invasão franceza.

Em 1820, prestou culto e homenagem ás Côrtes gloriosas, que entre nó quizeram implantar genuinamente a liberdade.

Em 1823, foi nomeado para fazer parte da Regencia do Brasil, que devia olhar a successão do Principe, depois D. Pedro IV de Portugal, e que ali se sublevou contra o dominio metropolitano.

A intervenção ingleza harmonizou as dissidencias levantadas, e Manoel Antonio de Carvalho deixou portanto lê ir ao Brasil, onde a Regencia para que fora nomeado nada tinha já que fazer.

Foi elle Ministro da Fazenda em 827. Conforme disse o Digno Par Sr. Hintze Ribeiro, a Manuel Antonio lê Carvalho se deve a elaboração do primeiro Orçamento do Estado. É este, seguramente, um dos pontos que tão relevo ao seu Ministerio. O outro foi negar á Regente D. Isabel Maria ima commenda com 12:000 cruzados lê renda, com que ella se propunha galardoar os serviços do seu medico assistente.

Nos tempos hodiernos, é de molde a citação d'este facto, que mal se coaduna em o authenticado palacianismo corentio.

Foi Manuel Antonio de Carvalho Residente da Camara dos Deputados m 1835 de onde sahiu para Ministro .a Justiça; e foi ainda Ministro da Fazenda em 1838. Depois, foi elevado ao pariato, nomeado primeiro Barão de Chancelleiros e Conselheiro de Estado.

Descrevi, com certa minucia, a vida n'esta varão, porque, conjugada ella em a de seu filho, marcam as duas o argo periodo que decorre desde o dominio do absolutismo legal até á implantação da liberdade e á decadencia posterior que ella teve, e seu esmagamento actual.

O Barão de Chancelleiros nasceu em 1785, sob o influxo da formula absolutista legal da paternidade de Luiz XIV, que era d'este teor: L'État c'est moi. O que produziu a absorpção dos poderes nacionaes concentrada n'uma unica vontade, dil-o a Historia.

Foi na epoca d'este Rei, que teve momentos gloriosos, e por ultimo de accentuada decadencia, que foi lançada á terra a semente que produziu a revolução, a grande revolução de 1789. Luiz XIV morreu em 1715 e a falta de fiscalização que elle teve nos seus actos, e que houve para com os seus successores, produziu a transformação que deu o triumpho assignalado á soberania nacional.

Em 1789, Luiz XVI convocava os Estados Geraes para o elucidarem apenas com respeito a medidas a adoptar de feito financeira.

A compressão tinha sido, porem, tanta sobre o paiz, que os seus representantes, sacudindo o jugo que os humilhava, transformaram os Estados Geraes em Assembleia Constituinte que proclamava os direitos do homem -

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APPENDICE Á SESSÃO N.° 10 DE 18 DE AGOSTO DE 1905

verdadeira carta de alforria para povos escravizados.

Do alto da mesma Assembleia, Mirabeau gritava ás multidões: O direito é o soberano do mundo.

Foi com este aphorismo, que engrandece e exalta, que se formaram os Governos constitucionaes.

Á sombra d'elle, o Barão de Chancelleiros ainda assistiu á revolução de 52, que, entre outros nobres principios, criava a representação directa dos Deputados eleitos por circulos uninominaes.

Seu filho, que lhe succedeu em 1858, póde presencear a abolição da pena de morte e prestar culto á liberrima lei de imprensa de 1866, e á descentralização administrativa do grande liberal Antonio Rodrigues Sampaio.

Desde 1887, com a derogação da descentralizadora reforma administrativa de Sampaio, inicia-se a decadencia, que attingiu a maxima intensidade nos tempos modernos com as leis de excepção, que tanto comprimem e abafam iniciativas, com a legislação tyrannica que supprimiu a soberania da Nação.

Haja em vista a lei eleitoral vigente, em que o unico eleitor é o Ministerio do Reino, com a cumplicidade da alta magistratura, sanccionando latrocinios, como os de Azambuja.

É assim que se levantam barricadas, segundo o judicioso conceito do Sr. Ministro do Reino... como opposição.

Parallelamente com a formula franceza do absolutismo legal, usava-se entre nós da muito conhecida e assim concatenada: Posso, quero e mando.

Esta é, porém, na actualidade para uso de simples mortaes e não pode, comparar-se, sem a menor duvida, com a que modernamente circula, e é d'este teor:

Il n'y a que des princes, et des choses.

É certo que semelhante affirmativa não tem, nem pode ter a amplitude que se lhe attribue. Ainda ha homens dignos que repellem por completo tudo que os possa diminuir na sua individualidade, no seu brio e no seu decoro.

Mas a verdade é, Sr. Presidente, que o Visconde de Chancelleiros morreu precisamente quando a Liberdade,
repito, se encontra esmagada entre nós, quando o arbitrio e a corrupção estão arvorados em utensilios preferidos, se não unicos, de administração publica.

Não admira, portanto, que elle deixasse de frequentar, nos ultimos tempos, esta casa - elle cujas modalidades no ataque tão variadas eram. Desde o castigat ridendo mores até ás mais graves objurgatorias, elle sabia ferir as notas em toda a escala, tirando d'ellas os mais pujantes e assombrosos effeitos.

Era elle, seguramente, no presente, o patriarcha da eloquencia parlamentar.

Todos nós lhe devemos respeito, não só pelos seus talentos e erudição, que eram notorios, mas pela seriedade do seu caracter.

Soube elle fazer carreira seria na politica, seria na sua vida particular, seria no seu convivio como cidadão.

Prestemos-lhe portanto o tributo a que teem jus os privilegiados que, como elle, deixaram em muitos pontos da sua existencia lição e ensino.

(Sua Exa. não reviu).

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