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DIARIO DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO 35

foi a maior ultrage ás leis da religião e da moral. Então sr. presidente o povo de Lisboa amotinou-se e dirigiu-se ao paço em numero de tres mil pessoas, segundo nos diz o sr. Alexandre Herculano no seu livro. Dirigiu-se ao paço de S. Martinho ou paço do Limoeiro, levando á sua frente um artista chamado Fernam Vasques, que era alfaiate e pessoa respeitavel, e que pertencia a essa aristocracia que se não era de sangue era aristocracia do trabalho que herdou com o amor ao trabalho o amor da virtude.

Fernam Vasques dirigiu-se, pois com a sua tropa de homens operarios e de coração portuguez ao paço dos nossos réis, e quando chegaram, quizeram fallar a El-Rei; este não os quiz receber, e mandou um dos seus validos, ou privados, diz o sr. Herculano. Veiu o valido, e perguntou ao alfaiate o que queria; este respondeu-lhe que vinha protestar em nome do povo e acompanhado pelo povo, contra o ultrage que se queria fazer ás nossas leis e aos nossos brios, e pintou com as cores mais vivas e termos bem severos qual era o passo que o rei se aventurava a dar. El-Rei, depois de ouvir a resposta que lhe levou o valido, mandou dizer que no outro dia se encontraria com o povo em S. Domingos.

No outro dia o povo foi para o largo de S. Domingos, esperou, tornou a esperar; chegaram fidalgos, chegaram alguns empregados no paço, mas nada de apparecer El-Rei; então o alfaiate dirigiu-se a alguns dos fidalgos, áquelles provavelmente que favoreciam ou ajudavam o rei nos seus desvarios ou nos seus deboches, em uma palavra aos da camarilha, e disse-lhes que o povo ía ali para exprobar o procedimento do rei, e que se dirigia a elles pela sua alta posição (parecendo assim que já conhecia o dictado, inventado depois em França, de que - a neblose oblige), para lhe pedir que fizesse com que o rei não désse similhante passo. O rei porem, em logar de ir para S. Domingos, foi para Santarem, e ahi effectuou o seu casamento com D. Leonor Telles, e depois de illudir o povo e Fernam Vasques, mandou examinar quem eram os que tinham entrado naquella conspiração que era verdadeiramente patriotica, porque sendo eu como sou, inimigo de motins, não posso comtudo deixar, quando vejo erguer vultos gigantescos para praticarem actos de valor e de coragem, de me extasiar diante d’elles. Pois, sr. presidente, o que resultou do exame da conspiração, foi mandar-se enforcar o honrado Fernam Vasques, e abrir devassa contra todos aquelles que tinham concorrido para se ir pedir justiça ao rei!

Depois d’isto o que aconteceu?

Seguiu-se o reinado do celebre valido, que sobresaíu em maldade a terrivel cohorte de validos, de que reza a historia patria. Nefasta influencia das camarilhas que leva os réis incautos á perdição é a rotina.

Eu já disse em um documento que escrevi e publiquei, que as camarilhas foram a ruina das sociedades antigas, como são a peste das sociedades modernas.

Mas D. Fernando morreu. E depois o que aconteceu? Teve tambem o castigo a inspiradora de todos os males. D. Leonor Telles foi acabar a vida presa no convento de Tordesilhas, em Hespanha. Aquelles que tinham trabalhado para dar o throno de Portugal a D. Brites, casada com D. João I de Castella, foram os proprios que prepararam o castigo das suas traições

Mas depois d’este estado de cousas o que cumpria fazer? Povo e nobres, unidos como irmãos, disseram: «A corôa está vaga; não queremos que vá a principe castelhano».

E depois de morto o valido infame João Fernandes de Andeiro; o mestre de Aviz, á frente dos nobres briosos e dos patriotas do povo, salvou a patria da abjecção e da ruina.

Juntaram-se depois as côrtes em Coimbra, - onde tiveram logar os homens mais eminentes da epocha, e declaram Rei a D. João I, que era filho natural do Rei de Portugal, não era filho legitimo; mas João das Regras tratou de provar que aos filhos de D. Ignez de Castro não assistia direito, que a corôa em fim estava vaga, e que ao povo pertencia eleger o Rei; e assentou-se este grande principio da soberania nacional, quando se reconheceu e proclamou que ao povo compete dar a corôa, quando está vaga, ao Rei que livremente escolhe e elege.

Eu não quero que o povo esteja Constantemente a dar corôas; não quero que se amotine e queira estabelecer uma lei hoje para a derogar ámanhã, pois que nem os povos nem os réis podem cousa alguma determinar que seja legitima, sem que as deliberações assentem nos principios de justiça, que não é obra dos homens, mas que é attributo de Deus. Per me reges regnant et legum conditores justa decernunt.

Por mim governam os réis, e só o que é justo podem estatuir. Esta maxima de sabedoria infinita applica-se igualmente aos réis e aos povos. A justiça e o direito são cousas que estão acima de nós. A justiça vem do céu e exerce-se na terra. A justiça comparo-a eu a uma grande columna, cuja base repousa na terra, cujo capital toca no céu.

O astro que despontara fulgurante em o nosso horisonte politico, com a ascenção ao throno do Senhor D. João I, começou a perder seu brilho, quando esse velho decrepito, a quem as nossas historias chamam o Cardeal Rei, por desgraça d’este paiz veiu a empunhar o sceptro portuguez, logo depois da morte do nosso aventuroso, mas infeliz, monarcha D. Sebastião. Em má hora trocava o baculo pelo scepiro o velho cardeal, quando se murchavam todas as esperanças da patria pela derrota em Africa de El-Rei D. Sebastião, jovem principe illudido pelas glorias da conquista, e arrastado á perdição por uma camarilha ambiciosa e devassa, que visando apenas ao oiro de Castella, não duvidava conduzir o seu rei á beira do abysmo, e com elle a patria ao exicio da sua gloria. Os perfidos conselhos dos maus portuguezes arrastaram. D. Sebastião á ruina. O cardeal D. Henrique sentado no throno encontra-se immediatamente rodeado pelos ibericos de então. Redobram os esforços; cresce a ousadia; e o oiro de Castella logra completo triumpho. Convocam-se côrtes em Almeirim; mas a corrupção tinha lavrado nos espiritos em maior escalla. Christovão de Moura, portuguez degenerado, e Pedro Giron, hespanhol de nação, ambos por parte do rei de Hespanha, conseguiram pela valentia dos seus argumentos, e ainda mais pela largueza das suas promessas, collocar do lado de seu amo a parte mais nobre da assembléa que em vista de rasões tão poderosas, e de promessas tamanhas desistiram de defender os direitos da Senhora D. Catharina de Bragança, e abraçaram o partido de Castella. Só pois os procuradores por parto do povo se oppozeram, com louvavel dedicação, e vigor maior, clamando com força e energia que só queriam um rei portuguez; obtendo apenas, como recompensa do seu esforço, a permissão de lavrarena um protesto ou declaração, sobre pertencer á nação eleger o rei logo que vagasse o throno! E mais uma vez triumphava o grande principio da soberania nacional. O nobre exemplo dos procuradores do povo nas côrtes de Almeirim foi seguido por João Tello de Menezes, um dos cinco governadores do reino, e Phebo Moniz, que nas côrtes apresentou um projecto no qual se demonstrava o direito que ao povo assistia para eleger o rei, por morte do cardeal D. Henrique. A audacia pois da camarilha vendida ao oiro de Castella baldou todos os empenhos, e frustou todos os esforços dos bons e leaes portuguezes. As côrtes de Thomar vieram coroar a obra da iniquidade Filippe II, ahi jurou tudo que lhe conveiu, ahi prometteu tudo que poderia attrahir o animo dos incautos; quebrou porem todos os juramentos, falseando todas as promessas.

O terrivel jugo dos Filippes começou então a pesar sobre os portuguezes, e pesou durante sessenta anãos, até que chegou o dia 1 de dezembro, e com elle a restauração memoravel de 1 de dezembro de 1640, sendo então acclamando o Senhor D. João IV. Ainda depois da ascenção d’este monarcha ao throno não se enfraqueceu a audacia