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CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

SESSÃO N.° 11

EM 21 DE JANEIRO DE 1907

Presidencia do Exmo. Sr. Conselheiro Sebastião Custodio de Sousa Telles

Secretarios - os Dignos Pares

Luiz de Mello Bandeira Coelho
José Vaz Correia Seabra de Lacerda

SUMMARIO. - Leitura e approvação da acta.- Expediente.- O Digno Par Sr. Hintze Ribeiro occupa-se da doutrina de uma portaria, que dissolveu a gerencia do Banco Agricola e Industrial de Viseu, e que mandou eleger uma nova gerencia. Responde ao Digno Par o Sr. Ministro das Obras Publicas. - Volta novamente ao assumpto o Digno Par Sr. Hintze Ribeiro, e novamente lhe replica o Sr. Ministro. - Consultada a Camara, resolve que o Digno Par ainda se reporte a considerações do Sr. Ministro. - O Digno Par Sr. Visconde de Monte-São, manda para a mesa um requerimento pedindo documentos pelo Ministerio do Reino. É expedido.

Ordem do dia.- Continuação da discussão do parecer n.° 18, relativo ao projecto de lei que estabelece as bases para a reforma da Contabilidade Publica.-Usam da palavra os Dignos Pares Srs. Sebastião Telles e José Maria de Alpoim. Este ultimo pede que lhe seja permittido concluir na sessão seguinte.- Encerra-se a sessão, e designa-se a immediata, bem como a respectiva ordem do dia.

Pelas 2 horas e 35 minutos da tarde, o Sr. Presidente abriu a sessão.

Feita a chamada, verificou-se estarem presentes 22 Dignos Pares.

Lida a acta da sessão antecedente, foi approvada sem reclamação

Mencionou-se o seguinte expediente:

Officio do Ministerio da Guerra, remettendo autographos das Côrtes Geraes de 1906, já sanccionados.

Á secretaria.

O Sr. Ernesto Hintze Ribeiro: - Sr. Presidente: agradeço o comparecimento do Sr. Ministro das Obras Publicas.

Como o tempo antes da ordem do dia é limitado e curto, entro desde já no assumpto para o qual desejo chamar a attenção do Sr. Ministro das Obras Publicas.

S. Exa., em 9 d'este mês, firmou uma portaria concebida nos seguintes termos, que eu leio á Camara para completo esclarecimento da questão.

Sua Majestade El-Rei, a quem foi presente a proposta do governador civil de Viseu para restabelecer normalidade legal na administração do Banco Agricola e Commercial Visiense, que ha mais de um anno está sendo administrado por uma gerencia cujo mandato terminou em dezembro de 1905;

Considerando que os estatutos do mencionado banco dispõem que a administração
d'elle será confiada a uma gerencia eleita annualmente;

Considerando que effectivamente se fez eleição de nova gerencia, á qual foi dada posse por quem de uso e costume sempre foi dada;

Considerando que a gerencia eleita para 1905, sob pretexto de que essa posse não foi dada por quem de direito, e ainda por ter contestado a validade da eleição de um dos vogaes da referida nova gerencia, se recusou a entregar lhe a administração do banco, que ainda hoje conserva;

Considerando que assim, por culpa exclusiva d'essa gerencia de 1905, deixou de ter cumprimento o artigo dos estatutos já citados, estando o banco administrado por uma gerencia de facto, mas não de direito;

Considerando, que, em taes condições, pode o credito do banco resentir-se e serem prejudicados os interesses confiados á sua administração;

Visto o disposto no artigo 34.° da carta de lei de 22 de junho de 1867:

Ha por bem o mesmo Augusto Senhor:

1.° Dissolver a gerencia do Banco Agricola e Industrial Visiense, eleita para o anno de 1905,e composta dos seguintes vogaes: Bacharel Francisco Eduardo Peixoto. Bacharel Domingos Bento Alexandre de Figueiredo Magalhães. José Perdigão.

2.° Nomear uma commissão administrativa para gerir provisoriamente o mesmo banco, composta de:

Effectivos:

Bacharel Luiz Ferreira de Figueiredo, medico e proprietario.

Camillo Augusto da Silva Andrade, proprietario, Antonio Girão Guimarães, commerciante,

Substitutos:

Antonio José da Rocha, commerciante.

Hypolito de Vasconcellos Maia, proprietario. Leonel Cardoso de Menezes, proprietario.

3.° Ordenar que se proceda a eleição dos novos gerentes dentre de 15 dias.

O que se communica ao governador civil do districto de Viseu, para seu conhecimento e devidos effeitos.

Paço, em 9 de janeiro de 1907. = José Malheiro Reymão.

Está conforme. Direcção Geral do Commercio e Industria, em 9 de janeiro de 1907. = E. Madeira Pinto.

O artigo 34.° da lei de 22 de junho de 1867 invocado n'esta portaria diz o seguinte:

"O Governo, por proposta dos inspectores ou do respectivo governador civil, e ouvido o conselho fiscal, pode dissolver a gerencia dos bancos, nomeando quem interinamente a substitua, e ordenando a eleição de novos gerentes dentro de quinze dias".

Sr. Presidente: como não desejo apreciar de leve n'esta questão e mais me apraz convencer-me de que o Sr. Ministro das Obras Publicas longe de ter procedido mal andou bem, peço a S. Exa. que me diga se, alem das razões comprehendidas na portaria, outras houve que porventura eu não conheça e que determinassem a resolução por S. Exa. tomada.

Aguardo a resposta do Sr. Ministro das Obras Publicas para me dar por satisfeito, ou fazer as considerações que o assumpto requer.

(S. Exa. não reviu).

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94 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

O Sr. Ministro das Obras Publicas (José Malheiro Reymão): - Tem a dizer ao Digno Par e á camara que, em seu parecer, estão comprehendidas todas as razões que no seu animo imperaram para dissolver a gerencia do Banco Agricola e Industrial Visiense.

O Digno Par, o Sr. Hintze Ribeiro, leu á Camara a disposição em que elle, orador, se fundou. Houve uma proposta do Sr. governador civil em que S. Exa. detalhamente narrava os factos e as razões pelas quaes a gerencia eleita em 1905 não tinha considerado valida e legal a posse conferida.

O fundamento d'esta opposição foi uma reclamação apresentada por- um dos gerentes de 1905 contra a eleição feita pelos accionistas relativa a 1906, pois, segundo os estatutos do Banco, a estes pertence a escolha de um dos gerentes.

Dois vogaes da gerencia são nomeados pela Mesa da Misericordia de Viseu, por isso que ella tem dois terços do capital, outro, o terceiro gerente, e em consequencia da minoria da administração, é da escolha dos accionistas.

Os estatutos não determinam quem deve conferir a posse á gerencia eleita, mas pelas informações officiaes do processo que elle, orador, tem presente, e põe á disposição do Digno Par, vê-se que é pratica constante n'aquella localidade o ser a posse conferida á gerencia pelo provedor da Misericordia. Assim se fez, mas a proposito da escolha feita pelos accionistas interpoz um dos gerentes de 1905 uma reclamação contra a validade d'aquella eleição continua na administração d'aquelle estabelecimento, sem dar posse á nova gerencia.

É claro que lhe pareceu isto irregular, porque assim estava descoberta a forma de uma gerencia continuar na administração d'aquelle estabelecimento de tanta importancia.

Não deseja fazer accusações, nem levantar a mais leve suspeita sobre a forma por que tem sido gerido aquelle estabelecimento.

Pelo contrario sabe que elle tem sido administrado com grande cuidado, mas em todo o caso, no uso liberrimo do seu direito, a mesa da misericordia havia decidido nomear aquelles que deviam estar á frente do estabelecimento.

Usando das attribuições que lhe são conferidas pelo artigo 34.° da lei do 2 de junho de 1867, elle, orador, mandou proceder á eleição; depois de attender á exposição e proposta do governador civil do districto, depois de ouvir a gerencia anterior á de 1905-1906 e depois de se haver demonstrado á evidencia que aquella auctoridade empregara todos os seus esforços e bons officios para ver se punha termo a esta questão, que lhe parece mais uma questão de animosidade e indisposição local do que procedente de qualquer outra fundamento.

O proprio conselho fiscal disse que a questão era muito intrincada, muito complicada, e por isso não emittia o seu parecer.

Os estatutos não designam dia para a eleição; mas, no intuito de procurar cingir-se á lei e de regularizar n ad ministração do Banco, mandou que dentro de quinze dias se procedesse a essa eleição.

Põe á disposição do Digno Par todos os elementos que o levaram a to mar esta resolução, e está convencido de que S. Exa., com o seu illustrado criterio, são e justo, ha de fazer-lhe justiça.

(S. Exa. A não reviu este extracto ao seu discurso).

O Sr. Ernesto Hintze Ribeiro: - Sinto não poder dar-me por convencido com as explicações do Sr. Ministro das Obras Publicas.

Vejo que S. Exa. não teve outras razões que determinassem a sua resolução, alem d'aquellas que se acham comprehendidas na portaria que eu li. As considerações que S.. Exa. acaba de fazer, provam-no á saciedade.

Na minha opinião, prestando inteira justiça ás intenções do Sr. Ministro das Obras Publicas acredito mesmo que S. Exa. foi mal informado por quem, aliás, o devia informar bem mas o acto praticado pelo Governo é uma violencia e um atropelo.

É o que vou procurar demonstrar em muito breves palavras.

O artigo 34.° da lei de 2 de junho de 1867, lei que auctorizou a criação do Banco Agricola Industrial de Viseu, lei inspirada n'um alto espirito de desenvolvimento economico do nosso paiz, lei elaborada por um dos nossos homens de Estado mais respeitaveis, o Sr. Andrade Corvo, o que mais serviços prestou n'este ramo dos assumptos que teve de abranger na gerencia da pasta das Obras Publicas; o artigo 34.° d'essa lei representa uma faculdade, uma auctorização ao Governo, faculdade ou auctorização para dissolver as gerencias dos bancos agricolas e industriaes instituidos no paiz por misericordias ou estabelecimentos semelhantes, e por isso mesmo que é uma faculdade ou auctorização, representa para o Ministro que invocar essa disposição de lei, ou um acto justo, quando effectivamente ha razões imperiosas que determinam a disposição de uma gerencia, ou um acto condemnavel, quando nenhuma razão segura exista para determinar a sua resolução e que a possa legitimar.

O Sr. Ministro das Obras Publicas, citando o artigo 34.° como uma auctorização condicional, de que fez uso, se justifica, esse acto, não abusou; mas se não o justifica, parece-me que commetteu um acto arbitrario e violento.

Justiça faço ás intenções de S. Exa., que por deficiencia de informações assim procedeu para com o Banco Agricola de Viseu, cujos estatutos foram approvados por decreto de 9 de fevereiro de 1861.

O Codigo Commercial publicado pouco depois, sanccionou a criação dos bancos agricolas por meio das misericordias, e declara no artigo 17.° o seguinte:

(Leu).

Temos por conseguinte como base essencial do Banco Agricola de Viseu os seus estatutos, que estão em tudo conformes com a lei de 1867, e tanto que foram approvados pelo Governo.

Estes estatutos determinam no seu artigo 65.° que dois gerentes são eleitos pela mesa da misericordia, e um pela assembleia dos accionistas, presidida pelo accionista mais antigo.

O Codigo Commercial de 1889 confirma isto em todos os pontos, e explica como é que se entende no fim do anno a elaboração do relatorio geral dos actos da administração, dando conta dos contratos feitos, emfim, tudo, descrevendo a situação e movimento do Banco, durante o anno decorrido.

É claro que antes de se chegar ao fim do anno, a 31 de dezembro, não se pode ter o balanço nem os elementos necessarios á gerencia do Banco e, portanto, só depois do fim do anno é que o Banco pode proceder á elaboração d'esse documento, que ha de servir de base á deliberação dos accionistas em assembleia geral.

Foi o que fé fez em 1905 ou em 1906.

Colligidos todos estes documentos, e realizadas todas estas praxes, procedeu-se á convocação da assembleia geral para se effectuar a eleição, que como o Sr. Ministro da'? Obras Publicas disse, não teca dia marcado. Realizando se esse acto no dia 6 de julho, foi logo protestada.

Quem era o tribunal competente para apreciar o protesto?

O Tribunal Commercial era a unica entidade competente para se pronunciar sobre a, legalidade ou illegalidade d'esse acto.

O protesto fez-se, foi levado ao Tribunal do Commercio, o Codigo Commercial n'este ponto é claro e diz o seguinte no. seu artigo 186.°:

(Leu).

Isto são principios triviaes em materia commercial.

Que succedeu?

Realizou-se a eleição em 1905; e o

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protesto foi levado perante o Tribunal do Commercio.

Em 8 de junho o provedor da Misericordia de Viseu officiou participando que no dia seguinte era dada posse á nova gerencia eleita.

A gerencia respondeu que não: que não cabia nas attribuições do provedor dar posse á nova gerencia, e respondeu muito bem.

Não ha preceito algum que dê ao provedor auctorisação para dar posse ao corpos eleitos. O provedor não tem absolutamente nada com isso.

O provedor quiz dar posse á nova mesa. Podia invocar o costume, mas não uma attribuição legal; e a gerencia respondeu-lhe que elle não tinha essa attribuição; perfeitissimamente.

O provedor não replicou, mas servindo-se da circunstancia de que tinha presidido á assembleia geral, não como provedor, mas como accionista mais velho, lavrou no livro das actas o termo de posse, e foi com o livro ao gerente para que elle assignasse a acta.

Em primeiro logar o livro das actas não é o livro dos autos de posse; em segundo logar elle não podia lavrar esse auto.

A mesa recusou-se a assignar a acta, e procedeu legalissimamente.

O Tribunal do Commercio notificava á gerencia que estava que não desse execução alguma á deliberação tomada pela assembleia geral dos accionistas; e desde esse momento, em virtude do mandado do juiz, e do Tribunal do Commercio, a mesa não deu, nem podia dar posse á nova mesa eleita, emquanto o Tribunal do Commercio se não tivesse pronunciado acêrca do protesto apresentado.

Isto é de uma clareza absoluta.

Sobre isto decorreram seis mezes: do meado de julho até dezembro d'este anno.

Em dezembro d'este anno é que o administrador do concelho, por mandado do governador civil, mandou intimar os membros da mesa que estava ainda em exercicio para que, dentro de vinte e quatro horas, declarassem se se resolviam ou não, a dar posse á mesa novamente eleita.

A mesa em exercicio respondeu legalissimamente, que se não recusava; o que não podia era ir contra o mandado que recebera do Tribunal do Commercio, e conferir posse, emquanto a questão não estivesse resolvida pelo tribunal competente.

E acompanhou esta resposta de documentos: um o mandado de execução, e outro uma certidão de que a questão estava pendente no Tribunal do Commercio.

Diga-me V. Exa. se a mesa que estava em exercicio, que tinha sido notificada para não dar cumprimento á eleição dos accionistas, que tinha uma prova de que a questão pendente não fora resolvida pelo tribunal, podia ir de encontro ao mandado do Tribunal, dando posse á nova mesa eleita? Não podia.

Qual foi o resultado?

O resultado foi a portaria do Sr. Ministro das Obras Publicas mandando dissolver.

O acto do Governo foi praticado, quero crer, na melhor das intenções, mas decerto por insufficiencia de informações.

Em presença do que acabo de expor, que me parece claro e expressivo, o acto que o Sr. Ministro das Obras Publica praticou, é arbitrario e violento.

De .duas uma: ou o Governo podia e devia intervir ou não.

Se podia e devia, não se comprehende como deixou passar seis mezes sem intervir no assumpto e sem assegurar a posse á nova mesa eleita.

Se não podia nem devia, porque interveio?

A verdade é que o Governo não podia intervir n'este assumpto, e V. Exa., que é um magistrado por todos respeitado, com uma larga carreira judicial, que a todos se impõe pela consideração e admiração que lhe é devida, comprehende que havendo um mandado de um tribunal, que por lei é o competente para julgar da validade ou invalidade da eleição, um mandado do tribunal que notifica á gerencia que está em exercicio que não entregue a gerencia á nova mesa eleita sem que a questão esteja resolvida pelo Tribunal do Commercio, o Governo não pode intervir contra esta notificação do tribunal, contra a attribuição que pertence ao poder competente, dissolvendo uma gerencia e mandando proceder a uma eleição, só porque a gerencia que está, não fez mais do que cumprir o mandado do tribunal.

Pois não é este acto uma violencia, um arbitrio, um atropelo da lei?

Eu comprehendia que o Governo interviesse, dissolvendo a gerencia que estava em exercicio independentemente do que se passava no tribunal, mas só no caso de se provar que a administração exercida pela gerencia era nociva aos interesses do Banco, mas isso não succede, porque o conselho fiscal do Banco não é composto de individuos adstrictos ao Banco, mas de pessoas alheias ao Banco, quasi todos funccionarios publicos, segundo o que dispõe o § 20.° do artigo 32.° da lei de 1867.

Os unicos trabalhos da gerencia que foi dissolvida, inventarios, balanços, contas, relatorios, tudo foi sujeito ao conselho fiscal e este approvou com louvor.

É um conselho fiscal composto de individuos alheios a quaesquer considerações pessoaes, em quem o Governo delega e a lei commette o encargo de examinar, ver, julgar e dar o seu laudo, que vem dizer que a gerencia que estava ha pouco em exercido é digna de louvor.

É certo que o Sr. Ministro das Obras Publicas podia ter praticado esse acto na melhor das intenções, e naturalmente por ter sido mal informado.

Mas os factos como se passaram é que constituem o arbitrio e um acto absurdo e violento, porque o Governo não podia intervir na questão, visto haver um mandado, ao tribunal que por lei é o competente para julgar da validade da eleição.

Facilmente se comprehendia que o o Governo interviesse e dissolvesse a gerencia que estava em exercicio, e isto independente do que se passava no tribunal, e no caso de se provar que a administração que essa gerencia fazia era nociva aos interesses do Banco.

Mas isso não se dava. (Apoiados).

Mas ha mais, Sr. Presidente: o Sr. Ministro das Obras Publicas mandou proceder a uma nova eleição para o exercicio de 1906, que já findou.

Mas isto não pode ser, porque então o Sr. Ministro das Obras Publicas põe-se em conflicto com o poder judicial e com a chronologia.

Mas o Sr. Ministro das Obras Publicas ainda fez peor.

Mandou proceder a nova eleição em 1907 faltando assim ao que está preceituado nos estatutos.

O Sr. Presidente: - V. Exa. dá-me licença? Deu a hora de se passar á ordem do dia.

O Orador: - Eu termino em poucas palavras. V. Exa. e a Camara vêem que não ha nada, absolutamente nada, que justifique o acto praticado pelo Sr. Ministro das Obras Publicas e eu creio que foi por não ser bem informado; mas V. Exa. comprehende que a intervenção do Governo n'este assumpto foi uma violencia e um atropelo que nada justifica.

(S. Exa. não reviu).

Tendo o Sr. Ministro das Obras Publicas pedido a palavra, e consultada a Camara, esta resolveu affirmativamente.

O Sr. Ministro das Obras Publicas (Malheiro Reymão): - Agradece á Camara a benevolencia que teve, tanto mais que, pelos trabalhos da outra Camara, não poderá vir aqui em qualquer das proximos sessões.

O Digno Par Sr. Hintze Ribeiro, mais uma vez, demonstrou as suas qua-

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lidades de habilissimo jurisconsulto de valiosos recursos.

Uma cousa, porem, altera por completo ,a argumentação de S. Exa. É que o protesto se fez contra a eleição de um gerente, e a maioria é composta de dois gerentes que são designados pela mesa da Misericordia de Viseu.

N'estas condições, parecendo ao orador que havia uma manifesta irregularidade e violação da lei porque, ainda que se julgasse procedente o protesto, não podia deixar-se de conferir aposse á maioria da gerencia, resolveu assignar a portaria depois de ouvir o parecer das repartições competentes. Fel-o convencido de que era necessario acabar com uma irregularidade que se estava praticando em virtude de paixões locaes.

Assim abriu caminho a que o Banco tenha a gerencia que represente a vontade, o desejo e a confiança de quem n'elle tem interesses.

Nem o governador civil nem elle, orador, fez arguições contra a forma como eram administrados os cabedaes do Banco.

A commissão que foi nomeada administrará o Banco até que chegue a epoca de uma nova gerencia tomar posse d'essa administração.

(O orador não reviu este summario do seu discurso}.

O Sr. Presidente: - O Digno Par Sr. Hintze Ribeiro pediu a palavra, mas já passou a hora de se entrar na ordem do dia.

Vozes: - Fale, fale, fale.

O Sr. Ernesto Hintze Ribeiro: Peço a V. Exa. que se digne consultar a Camara sobre se posso fallar.

Consultada a Camara resolve affirmativamente.

O Sr. Ernesto Hintze Ribeiro: - Não abuso da attenção da Camara. Meia duzia de palavras me bastam.

Ha aqui um ponto fundamental que a Camara avalia claramente.

Effectivamente em 1906 foram eleitos dois membros para a gerencia pela Mesa da Misericordia e um pela assembleia dos accionistas.

O protesto foi contra a eleição do membro eleito pela assembleia dos accionistas.

Pergunto: pode-se dar posse aos outros dois, sobreestando só na posse aquelle relativo á assembleia dos accionistas?

No meu entender, não.

A gerencia compõe-se de tres membros, que só por si formam o corpo da propria gerencia.

Não pode administrar a gerencia só com dois membros eleitos de novo.

Mas supponhamos que eu não tenho razão, que effectivamente se deve dar posse só aos dois membros eleitos pela mesa, muito embora sobreestando na posse do seu logar o outro membro eleito pela assembleia dos accionistas, quem andou mal foi o Sr. Ministro das Obras Publicas, e quem o não informou a tempo.

Para que então a portaria de S. Exa.?

O que se devia ter feito immediatamente era dar posse aos dois eleitos pela mesa.

Ora, como foram eleitos em junho de 1906, como é que em janeiro de 1907 o Sr. Ministro acordou para dissolver a gerencia?

Não comprehendo.

Mas ha mais.

Em que termos é que S. Exa. accordou?

Qual a resolução que S. Exa. tomou?

Esta que vem, no final da sua portaria:

"3.° Ordenar que se proceda a eleição dos novos gerentes dentro de quinze dias".

Se a duvida de S. Exa. é só a respeito de um gerente, como é que a resolução tomada pelo Sr. Ministro abrange a todos?

Comprehende portanto V. Exa. que a solução do Sr. Ministro das Obras Publicas não foi nem a tempo, nem legal, nem acommodada ao que S. Exa. sustenta.

O Sr. Ministro das Obras Publicas diz que assim procedeu para evitar uma chicana inspirada nas paixões locaes.

Eu não conheço essas paixões, nem mesmo sei a que proposito ellas vêem n'este caso.

Trata-se da gerencia de um Banco, e se se reconhece que essa gerencia é acertada e digna de louvor, evidentemente não ha paixões da parte dos contrarios.

Pois se esses mesmos reconhecem a verdade, como é que se fala em chicana e em paixões locaes? Não tem absolutamente nada que ver com o assumpto.

O que tem que ver é o Codigo do Processo Commercial que no artigo 124.°, § 4.°, diz o seguinte:

(Leu).

Este é que é o preceito legal, desde que foi feita a notificação de que a gerencia que estava não podia dar posse aos novos eleitos, porque não podia haver uma gerencia incompleta que se compunha em parte de antigos e em parte de modernos. Desde que o Tribunal do Commercio mandava que não se entregasse a gerencia a outros, o Sr. Ministro das Obras Publicas poderá dizer que a sua intenção foi acabar com uma irregularidade, e acredito-o plenamente, quero crer mesmo que fosse levada a isso, n'este proposito; mas a verdade que resalta aos olhos de todos, que se extrae do texto das leis, e dos factos na sua evidencia, é que S. Exa., querendo cortar uma irregularidade, criou uma irregularidade maior ainda.

(S. Exa. não reviu).

O Sr. Visconde de Monte-São: - Mando para a mesa o seguinte requerimento:

Requeiro que, pelo Ministerio do Reino, me seja enviado o documento seguinte:

Copia da portaria pela qual é concedido á Empresa Societaria do Theatro de D. Maria II o emprestimo da quantia de 5:000$000 réis.

Sala das sessões, em 21 de janeiro de 1907. = O Par do Reino, Visconde de Monte-São.

Foi expedido.

ORDEM DO DIA

Continuação da discussão do parecer n.° 18, relativo ao projecto de lei que estabelece as bases para a reforma da contabilidade publica

O Sr. Presidente: - Vae passar-se á ordem do dia.

Tem a palavra o Digno Par o Sr. Sebastião Telles, que ficou com ella reservada da sessão anterior.

O Sr. Sebastião Telles: - Na sessão anterior quando deu a hora de se encerrar a sessão, estava eu referindo-me ao que no projecto se diz sobre a venda de titulos da divida publica, onde no artigo 16.° se prescreve que a venda de titulos da divida publica não seja effectuada sem a devida auctorização legal, prescrevendo-se mais ainda no paragrapho unico d'esse artigo que trimestralmente seja publicada uma nota da venda dos titulos da divida publica.

Julgo completamente razoavel esta disposição como um melhoramento introduzido no regulamento da contabilidade publicar por isso no actualmente em vigor não havia disposição alguma a este respeito.

Relativamente á prohibição da venda de titulos sem auctorização legal, acho tambem justa essa disposição, mas acrescentei que ella já vigorava e tinha sido cumprida, porque todos os titulos que foram vendidos tinham sido emittidos com amortização legal e inserta na lei de receita e despesa, que permitte emittir titulos de 3 por cento para caução dos emprestimos feitos ao Governo.

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Argumentava-se n'essa epoca que, uma vez que se tinha inserto essa disposição na lei, uma vez que se auctorizava a caução, admittia-se a hypothese de venda, e permittida ficava portanto a venda de titulos da divida publica.

Esta interpretação foi discutida com argumentos a favor e contra, mas o facto é que na pratica todos os Ministros que se seguiram se aproveitaram d'esta interpretação, vendendo titulos, como ainda o disse o Digno Par o Sr. Teixeira de Sousa no seu bello discurso.

Ora esta venda de titulos é inconveniente ou vantajosa?

Eu direi a V. Exa. que isso é conforme as circumstancias.

Se se derem circumstancias como aquellas que atravessámos, com uma crise financeira muito seria, em que os mercados estrangeiros estavam fechados, antes da assignatura do convenio, em que nem era possivel fazer se um emprestimo dentro do paiz, e em que a divida fluctuante só a grandes juros se poderia obter, eu pergunto: como é que se deve satisfazer aos encargos do Thesouro?

Eu digo: como se devia satisfazer aos encargos do Thesouro, quando exista, como todos sabem que existia, um deficit no orçamento?

Eram precisos quaesquer recursos e não os havia.

Se se desse uma suspensão de pagamentos o que succedia?

Era a bancarota. Ora exactamente para evitar esse desastre é que se recorria á venda de titulos, o que representa nem mais, nem menos do que um emprestimo externo, que se realizava em condições mais vantajosas que os emprestimos de divida fluctuante, visto que a cotação dos titulos era vantajosa.

Por conseguinte entendo que n'estas circumstancias todos os Ministros teem sempre andado muito bem, procedendo por esta forma, em circunstancias difficeis e extraordinarias.

Este processo devia estabelecer-se como admissivel para o caso excepcional, mas não pode ser admittido para cobrir despesas novas.

O criar despesas novas e induzir o Governo e o paiz a que se pode ir augmentando as despesas é que é um erro.

Mas o mesmo inconveniente se deve notar, quando se cobrem as despesas novas com um emprestimo externo, ou com a divida fluctuante.

O emprestimo externo não deve ser levantado para cobrir despesas novas, deve ser levantado unicamente para despesas productivas, assim como a divida fluctuante não pode ser levantada para cobrir indefinidamente despesas novas.

Hoje pelo regulamento de contabilidade os recursos pela divida fluctuante devem ser levantados só em quantidade limitada e definida pela lei do orçamento e no fim do exercicio devem esses recursos estar saldados.

A divida fluctuante é, considerada pela actual lei de contabilidade, um processo de administração unicamente empregado para obter com antecipação os recursos que mais tarde o Thesouro ha de arrecadar.

A conclusão que ha a tirar d'aqui é que emquanto houver deficit não se devem fazer nem criar novas despesas, porque essas despesas hão de ser cobertas ou pela divida fluctuante ou pela consolidada interna ou externa.

Isto é um principio que todos deviam seguir, mas que nenhum Governo tem seguido.

O Sr. Teixeira de Sousa: - Nem este?

O Orador: - Nenhum. Tem já attendido um pouco a esta regra o actual Governo, o que já é de alguma vantagem, mas o Governo que conseguir approximar-se mais d'este preceito é o de melhor administração.

Sr. Presidente: não quero alongar as minhas considerações n'este sentido, porque tenho de tratar de um ponto especial d'este projecto a que já me referi na ultima sessão.

Eu vejo n'este projecto vantagens, porque vem corrigir os inconvenientes que já tinha notado anteriormente no actual regulamento de contabilidade.

Essas vantagens são: o poder-se calcular com rigor as despesas do orçamento; a regularidade na publicação das contas do Thesouro, de maneira que ellas sejam conhecidas antes de entrar em discussão nas Camaras o orçamento do anno seguinte; a publicação das notas da divida fluctuante e da venda de titulos.

Aqui estão já vantagens que accentuam bem a utilidade d'este projecto.

Estas vantagens reconheço eu, porque remedeiam os inconvenientes que eu encontrava no regulamento de contabilidade em vigor; por isso não posso deixar de as accentuar.

Comtudo entendo que ficaria melhor se se fizessem algumas pequenas alterações, uma das quaes no artigo 10.° que diz que os orçamentos do Estado devem ser elaborados pelos Ministros, e enviados ao Ministerio da Fazenda até a data de 15 de setembro.

Achava que este periodo fosse alargado, passando a ser até a data de 15 de novembro, pelo menos; porque as contas do Thesouro são publicadas até 31 de outubro e se o orçamento se faz em l5 de setembro não pode aproveitar essa publicação de contas; emquanto que se elle se fizer em outubro pode perfeitamente aproveitá-los.

Outra alteração, que eu entendo que se devia fazer, era que juntamente com a nota da divida fluctuante se publicasse a nota dos soldos existentes em cofre, e que juntamente com a nota da venda de titulos da divida publica se fizesse uma nota dês emprestimos recebidos ou de quaesquer outros recursos extraordinarios.

Isto serviria para conhecer os recursos extraordinarios de que o Governo lançasse mão.

Estas duas disposições são tão pequenas que facilmente se poderiam addicionar ao regulamento.

A primeira d'essas disposições, aquella que consistia em passar a data de 15 de setembro para 15 de novembro, não se podia fazer sem alteração da lei.

Todavia não mando emendas para a mesa. O Sr. Ministro da Fazenda e o Sr. relator tomarão nota d'estas minhas observações; se acceitarem emendas admittirão estas disposições se as acharem convenientes, porque, repito, não mando para mesa qualquer emenda a esse respeito.

Tenho pena de não ver presente o Digno Par o Sr. Jacinto Candido, a quem tenho a honra de responder; porque, em vista de algumas considerações que ouvi a S. Exa., não me pareceu que estivesse tão descontente com o novo regulamento como ás vezes sustentava.

Disse o Digno Par que não concordava com o regulamento da contabilidade publica actualmente em vigor, e que comprehendia que se lhe deviam fazer modificações, mas que ellas não podiam ser completas e só deveriam consistir em alguns melhoramentos.

Ora evidentemente estes melhoramentos, a que eu me referi, são de molde a satisfazer o Digno Par.

S. Exa. entende que este regulamento de contabilidade publica devia consistir um diploma unico de codificação de toda a legislação existente sobre contabilidade publica.

Pode, pois, o Digno Par ficar satisfeito, porque effectivamente esta lei introduz alterações no regulamento existente, que levam decerto o Governo a fazer um regulamento novo, sem duvida, que será, portanto, a codificação de toda a legislação existente sobre contabilidade publica.

Ora a este respeito eu tenho ainda a fazer uma observação, a qual ainda não vi fazer durante esta discussão. É que temos um regulamento de contabilidade publica em que todos se queixam de que não é executado, porque

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se o fosse não teria os inconvenientes que se lhe attribuem.

Todos os annos o orçamento allude a alterações feitas ao regulamento de contabilidade publica introduzindo-lhe disposições novas, e por conseguinte resta saber quaes são as boas, se as novas disposições ou se as antigas.

Entende que o principio que se estabelece n'este projecto deve ficar permanentemente em execução, sem poderem ser alteradas em cada anno pelas leis de receita e despesa.

Pois se na lei orçamental se não podem modificar os quadros existentes, augmentar as despesas, acima de tudo deve estar o não se poder fazer em cada anno novos regulamentos de contabilidade publica.

Isto é o que eu entendo.

Ora eu vou agora referir-me aos pontos essenciaes do projecto, ou sejam o visto e o direito que teem ou deixem de ter os illustres Deputados da nação de fazerem propostas de augmento de despesa.

São estes os pontos capitães e que teem sido tratados por homens compe-tentissimos a todos os respeitos.

É claro que eu, indo agora fazer rapidas considerações sobre o assumpto, não pretendo de forma alguma resolve-lo, mas sim dizer qual a minha maneira de ver.

Eu, declaro francamente á Camara, entendo que o actual projecto é bom e que na pratica dará os resultados desejados.

Eu já por vezes tenho ouvido dizer aqui na Camara que o Tribunal de Contas tem muito trabalho, e que por esse motivo não pode satisfazer por completo todos os serviços de que está encarregado.

Ora, sendo assim, parece me que não ha razão de queixa por agora lhe tirarem uma das suas attribuições.

Tiram-lhe o visto, mas fica ainda com muitas attribuições.

É esta a minha opinião.

Outro ponto é o referente ao artigo do projecto que diz que os Deputados da Nação não podem fazer propostas de augmento de despesa no orçamento.

Dizem alguns Dignos Pares que este artigo do projecto é contrario á Carta Constitucional.

Não me parece que assim seja, e, pelo que ouvi ao Digno Par o Sr. Jacintho Candido, creio que S. Exa. é da minha opinião, pois que entende que esta parte do projecto não é má.

Tem havido todos os annos augmento de despesa no orçamento. Agora corta-se o direito de fazer propostas n'esse sentido; acabam, portanto, os augmentos de despesa.

Eu queria não só que esta disposição fosse applicada aos Srs. Deputados, mas tambem ao Governo.

D'aqui, pois, o que resulta é que no orçamento do Estado só se podem inscrever despesas votadas por leis anteriores, e não se podem augmentar as despesas.

Isto é um principio que existe em toda a parte e defendido por todos os escriptores que tratam da especialidade.

Se se disser que o orçamento é para fazer a previsão de todas as despesas e receitas que existem por leis já votadas, segue-se a opinião dos mestres e não se offende a Carta Constitucional.

O projecto como está redigido satisfaz a este fim.

A differença que existe é uma questão de forma ou de redacção.

Alem de tudo já existe no actual regulamento disposição equivalente.

Nós temos hoje no regulamento de contabilidade em vigor disposições per-feitamento analogas a esta: é a do artigo 63.° que diz:

"É prohibido incluir no orçamento geral do Estado toda e qualquer alteração nos quadros e vencimentos dos funccionarios e empregados das diversas repartições e serviços publicos, sem lei especial que a auctorize.

É igualmente prohibida a inserção de qualquer despesa nova sem lei que previamente a tenha auctorizado".

Então se é prohibido incluir, é claro que se não pode propor e pelo menos approvar.

Por consequencia, no fundo, a prohibição que aqui está é a que existia com uma differença: é que a lei era só relativa aos Deputados, e a que está no regulamento actual é relativa aos Deputados, aos Governos e a toda a Camara dos Dignos Pares.

Por consequencia, pergunto ao Governo se este artigo fica em vigor: e parece-me que sim, porque este projecto é a alteração da lei vigente; o que não é alterado, fica.

Parece que este artigo 63.º deve ficar.

A verdade é esta.

N'estas circumstancias acho que no projecto em discussão não ha nada de novo.

Pelo contrario, muito menos do que aquelle que está em vigor.

Não ouvi nunca ninguem queixar-se de que este artigo da lei de contabilidade fosse anti-constitucional.

O Sr. Teixeira de Sousa: - É para o Governo.

O Orador: - É para o Governo só?... As leis não são só para os Governos. São para o paiz, e são para todos.

Uma lei que diz a isto não se pode fazer" é para se cumprir. Se não se cumpre, faça-se outra.

Dou apenas a minha opinião, e deixo isto para ser resolvido por outros mais competentes.

Não quero alongar-me mais n'este ponto, não só pelas considerações que acabei de fazer, mas porque tenho que me referir a um ponto especial.

Esse ponto especial é o que diz respeito ás receitas especiaes.

Na proposta ministerial ha o artigo 16.°, que diz o seguinte:

"Nenhuma despesa pode ser determinada, sem que seja autorizada no Orçamento Geral do Estado, ou em lei especial que estabeleça a receita necessaria para lhe fazer face".

Este artigo é exactamente a reproducção do artigo 42.° do regulamento que está em vigor. A commissão de fazenda da Camara dos Srs. Deputados entendeu que devia ser supprimido assim como todos os que eram reproducção de legislação em vigor. E dizia ella: supprime-se esse artigo porque o regulamento actual fica em vigor com excepção das alterações feitas por este projecto.

Como o artigo 16.° da proposta ministerial é o que dizia o artigo 42.°, d'aqui se conclue que o artigo 42.° fica em vigor depois do projecto approvado.

O artigo 42.° diz que se podem fazer despesas conforme o orçamento e com as receitas criadas por leis especiaes. Isto é verdade, mas parece-me que não é bastante ainda. É necessario dizer-se que as receitas criadas por leis especiaes só podem ser gastas com as respectivas despesas especiaes fixadas na lei, e nunca absorvidas pelas receitas geraes do Estado.

Esta questão é muito importante e sobretudo em relação ao Ministerio da Guerra, porque n'este Ministerio ha tres fundos criados por leis especiaes; o producto da venda dos terrenos das fortificações desclassificadas, o producto das remissões dos recrutas; e o emprestimo de 4:500 contos de réis para compra de armamento. São tres fundos especiaes e um d'elles, o da remissão, é importantissimo.

Como é que se faziam as despesas por estes fundos especiaes? Era pela seguinte forma:

A receita era arrecadada pelo Ministerio da Fazenda e quando o Ministerio da Guerra tinha necessidade de gastar alguma quantia abria um credito especial que a lei do orçamento permittia abrir para a hypothese de despesas autorizadas por leis novas, isto é votadas depois do orçamento approvado.

Este artigo está reproduzido ha mui-

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tos annos em todas as leis de receita e despesa.

Todos os annos se arrecadam essas receitas das leis especiaes, e como ellas não figuravam no orçamento, eram consideradas todos os annos como leis no-

Isto era justo, embora á primeira vista o não pareça, porque no regulamento de contabilidade publica existe uma disposição que permitte essa applicação das receitas especiaes; é o artigo 45.° que diz:

"As despesas autorizadas por leis especiaes que tiverem de ser effectuadas em um periodo indeterminado, serão levadas á conta do exercicio do anno em que forem effectuadas, discriminando-se como despesas autorizadas nas contas publicas ou saldos das autorizações do anno anterior".

Em vista d'esta disposição arrecadavam-se as receitas, dispendiam-se durante o anno economico e os saldos eram considerados receita do anno seguinte.

Os creditos relativos ao producto da venda dos terrenos das fortificações desclassificadas, faziam-se sempre por este systema.

Os creditos relativos ao fundo das remissões de recrutas faziam-se tambem pelo mesmo systema emquanto se referiam ás receitas arrecadadas durante o exercicio. Mas, chegado o fim do exercicio, a Direcção Geral da Contabilidade do Ministerio da Fazenda applicava o artigo 62.° aos saldos das receitas provenientes da remissão que tinham sido arrecadadas e que não haviam tido applicação: annullava, portanto, essas receitas especiaes, confundindo-as com as receitas geraes.

Evidentemente esta disposição, era injusta, porque o artigo 62.°,refere-se só aos creditos autorizados no orçamento, e não a verbas das receitas especiaes.

Para evitar esta injustiça, antes de terminar o exercicio, abria-se um credito de todo o saldo para pagamento de despesas liquidadas e não pagas.

Então já não se applicava o artigo 62.° do regulamento de contabilidade, mas o artigo 57.°, que diz o seguinte:

"As quantias em divida de cada um dos exercicios findos serão satisfeitas pelo Governo, sem dependencia de novos creditos legislativos durante cinco annos, contados do termo do anno economico que der o nome ao exercicio".

Era evidentemente um sophisma porque as despesas não estavam liquidadas, mas era para evitar uma injustiça maior.

N'uma occasião disse ao chefe de contabilidade do Ministerio da Guerra, que é um funccionario distinctissimo, que isto tinha inconvenientes, e que podia dar logar a confusões, e que os saldos das receitas especiaes deviam entrar como saldo nas receitas do anno seguinte, em vista do disposto no artigo 45.°

Ao que elle me respondeu: - V. Exa. tem razão, mas eu não posso resolver cousa alguma.

É conveniente V. Exa. falar primeiro com o Sr. director geral da contabilidade, que n'essa epocha era o Sr. Conselheiro Carrilho, de quem de certo toda a Camara se lembra com saudades, porque era um funccionario superior muito amavel e competentissimo.

O Sr. Conselheiro Carrilho achou-me tambem razão, mas disse-me que não me podia responder sem falar com o Sr. Ministro da Fazenda, e foi preciso que o meu amigo o Sr. Affonso de Espregueira viesse deante de nós o nos dissesse positiva e terminantemente o que elle pensava acêrca do producto das remissões, que devia ser applicado unicamente ao fim a que era destinado.

E a proposito devo declarar que o Sr. Espregueira não pode comparecer a esta sessão, porque está doente de cama desde hontem.

Como o ia dizendo pareceu-me que estava resolvida a questão, por isso o Sr. Ministro da Fazenda dizia, que nada queria aproveitar-se do producto das remissões, e que elle devia ser applicado ao fim a que era destinado.

Veio um novo decreto de credito especial, e não se citava o artigo 45.°

Tive ainda algumas duvidas sobre esta forma, mas o chefe da contabilidade disse-me que era preciso falar novamente ao Sr. Conselheiro Carrilho e confesso que não tive paciencia; o que estava satisfazia ao principal fim que tinha em vista.

Os fundos das receitas especiaes ficavam em conta corrente no Ministerio da Fazenda á ordem do da Guerra.

As receitas especiaes eram arrecacadadas no Ministerio da Fazenda e não entravam no orçamento; ficavam em conta corrente entre os dois Ministerios, em ambos escripturadas.

Quando o Ministerio da Guerra precisava levantar parte d'esses fundos, era por creditos especiaes, e os saldas ficavam sempre, sem distincção de anno, nem de exercicio.

Mas por não apparecerem essas contas no orçamento, nem por isso deixavam de ser escripturados na conta do Thesouro e essas contas do Ministerio da Guerra não vinham cinco annos depois nas contas geraes; vinham na primeira edição d'essas contas publicadas no primeiro relatorio de Fazenda.

Eu insisto sobre este facto, porque quero frisar bem que nestas despesas de creditos especiaes do producto das remissões nunca deixou de ser applicado ás despesas legaes, fixadas na lei especial que as criou.

Eu sei que se tem dito que do Ministerio da Guerra sae dinheiro para outros fins, e eu desejo que fique bem assente que dos creditos especiaes não ha nenhum que não tivesse a sua applicação legal.

As verbas do orçamento do Ministerio da Guerra são todas gastas com os serviços a que se destinam, e até não chegam; por isso todos os annos se abonam creditos especiaes para o numero de praças a mais do fixado no orçamento, excesso auctorizado pela lei annual de fixação das forças do exercito.

Era esta a forma como eram applicadas as receitas especiaes, e a ruim parece-me de toda a necessidade que a essas receitas só se dê a applicação que lhes compete, e por forma alguma que se lhes dê uma applicação differente, principalmente no Ministerio da Guerra.

Mas que differença tem o novo projecto em discussão da lei em vigor?

Acaba com esta permissão das contas correntes, mandando inscrever no orçamento todas as receitas e despesas que n'elle devem ser inscritas, incluindo os fundos provenientes da remissão de recrutas, e de todas as leis especiaes.

Mas ao mesmo tempo fica em vigor o artigo 42.°, porque está na proposta ministerial, e o artigo 45.° que é uma consequencia d'este.

Qual a maneira de conciliar estas duas disposições?

É fazer o seguinte: inscrever no orçamento as receitas das remissões e nas despesas a mesma quantia.

As receitas especiaes ficam no orçamento separadas das receitas geraes, o que basta para obter clareza nas contas.

Quer dizer: durante os treze mezes de exercicio podem gastar-se todas as receitas.

Supponhamos que se chega ao fim do exercicio e se não tem gasto tudo.

Applica se então o artigo 3,° que diz que no fim de treze mezes caduca a validade de todos os recursos orçamentaes.

Antigamente queria applicar-se o artigo 62.° do regulamento em vigor sem razão, porque elle só se refere a verbas orçamentaes; mas agora applica-se o mesmo artigo 3.° ao fundo das remissões, com razão, por isso que elle está inscripto no orçamento.

O que resulta d'aqui?

Evidentemente que o fundo das remissões, que figura no orçamento, deve ser gasto durante os treze mezes de exercicio, ou caduca a auctorização.

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Por conseguinte é preciso que, alem d'esta disposição de entrarem os fundos das remissões nas receitas e despesas, ainda haja outra disposição que diga que os saldos serão considerados receita do anno seguinte, isto é, dizer o mesmo que o artigo 45.°, porque, como o fundo das remissões entra nas receitas e despesas por quantias iguaes, se se gasta durante o exercicio, muito bem, mas se não se gasta o saldo deve passar para o anno seguinte como receita.

Pergunto: o artigo 40.° do actual regulamento fica ou não em vigor?

Parece que sim, visto que pelo relatorio da commissão de fazenda da Camara dos Senhores Deputados entende-se que n'este projecto entram só as alterações ao actual regulamento e não ha alteração nenhuma n'este artigo.

Portanto parece que subsiste.

Alem d'isso, não pode restar duvida nenhuma que o artigo 42.° subsiste, porque entrou na proposta ministerial, e não no projecto de lei por não ser necessario, e d'este se deduz o artigo 45.°, que manda passar para o anno seguinte os saldos das receitas especiaes.

Quero crer que é esta a intenção do projecto.

Não me parece que o fim do Sr. Ministro da Fazenda seja abrir uma porta á, saida, mais ou menos consideravel, das receitas especiaes e especialmente do fundo das remissões, para materia differente d'aquella que por lei lhe está attribuida.

Eu digo isto porque já existia na Direcção Geral de Contabilidade a pretensão de absorver parte d'estas receitas para as receitas geraes do Estado.

O que disse da maneira, como se queria applicar o artigo 62.° ao fundo das remissões; o que disse tambem das difficuldades que cessaram só quando o Ministro da Fazenda, declarou que o fundo das remissões devia ter só a sua applicação legal; mostrava essa intenção.

A mim consta-me que no Ministerio anterior ao primeiro de que eu fiz parte houve um conflicto grave entre o Ministro da Guerra e o da Fazenda, a proposito do fundo das remissões, na parte incluida nas receitas geraes.

Existirá no projecto que se discute a intenção anterior da Direcção Geral de Contabilidade de incluir uma parte das receitas das remissões nas receitas geraes?

O que é preciso é que fique bem esclarecida esta duvida, porque acho que n'isso não ha vantagem nenhuma.

A verdade é esta: o principio das remissões é um principio socialmente condemnado em toda a parte.

E porque?

Porque é um privilegio das classes abastadas.

E tambem militarmente, porque priva o exercito dos melhores elementos para preencher o quadro de graduados.

Só pode ser admissivel quando produza vantagens para o exercito que de alguma maneira compensem os inconvenientes que lhe causa.

É o que existe na lei em vigor em que o producto das remissões ê destinado á, acquisição de material da guerra, á instrucção da segunda reserva e ao serviço do recrutamento.

É com o producto das remissões que, de 1896 até hoje, se tem adquirido todo o material de guerra que possuimos. Se não fosse o producto das remissões nós estariamos completamente desarmados. Tirar o producto das remissões de um destino especial, era contraproducente, porque então deveria primeiro inscrever se no orçamento verbas para material e para outros serviços que são satisfeitos pelo dinheiro da remissão.

Entendo que, approvado o projecto em discussão e convertido em lei, deve descrever-se no orçamento a verba correspondente ás remissões, tanto na receita como na despesa, e deve estabelecer-se que os saldos serão considerados receitas do anno seguinte e cê forma que todo o producto das remissões seja applicado a melhoramentos no exercito.

Julgo isto da maior conveniencia.

Julgo que não ha razão nenhuma que contrarie estas disposições.

Eu entendo que no regulamento de contabilidade publica deve ficar isto bem claro.

Se isto não é assim, acho a questão tão importante, que me vejo obrigado a propor uma emenda ao projecto.

É o que deve ser. Se ha duvida em que o artigo 40.° e o artigo 42.° permittem a interpretação que eu entendo, proponho a emenda. Não ha razão nenhuma para que o fundo das remissões, que pelas leis vigentes estava só á disposição do Ministerio da Guerra, passe agora a ter outra applicação.

O que sobrar da verba orçamental ha de passar em saldo para o anno seguinte, mas isto é doutrina simplesmente nova, que repugna ao projecto? Não, elle manda passar, em saldo, para o anno seguinte o que está mencionado no artigo 3.°

Juntamente com essa verba se devem tambem transferir os saldos das receitas especiaes.

Todos sabem que eu não quero criar 'difficuldades ao Governo, nem mesmo V. Exas. terão duvida a este respeito, ninguem as tem.

Vou fazer uma pergunta ao Sr. Ministro da Fazenda. Não para que V. Exa. me dê já a resposta., porque desejava que V. Exa. me respondesse depois de ter visto o assumpto, se, por acaso, tem alguma duvida a esse respeito.

Subsiste o artigo 45.°? Não subsistindo este artigo, pode a sua doutrina considerar-se como corolario do artigo 42.°?

Não sendo isto assim, ha outra disposição que leve ao mesmo resultado?

O Orador: - Peço a V. Exa. que, depois, isso fique expresso no regulamento de contabilidade publica.

Depois d'essa declaração não tenho que mandar emenda nenhuma para a mesa. Por consequencia dou-me completamente por satisfeito n'este ponto, e tenho só que pedir á Camara desculpa de ter tratado de uma questão especial do Ministerio da Guerra e de ter tomado tanto tempo á Camara.

Quanto ao projecto nada mais direi, porque apresentei as razões que na minha opinião devia expender a favor do projecto.

Não tenho, pois, duvida nenhuma em o votar, porque effectivamente é um melhoramento sobre o que existe.

O Sr. José de Alpoim: - Começa por notar que são quatro e meia da tarde; falta apenas uma hora para terminar a sessão.

As considerações que deseja fazer são longas e não cabem, por certo, no periodo marcado na hora regimental.

Procurará, limitar a uma parte do seu discurso se isso for possivel, referente á questão ou parte politica, d'este projecto.

Chega tarde e lembra se a este proposito de uma phrase attribuida ao nosso grande poeta Sá de Miranda, quando entrou á presença da sua noiva, já cançado dos annos e abordoado a um pau.

O falar tão tarde é exactamente uma prova de respeito que quiz ter para com a Camara, a fim de que, antes do orador, falassem os notaveis homens politicos que fazem parte dos grandes partidos que vieram illuminar a Camara com a luz do seu espirito e a clareza da sua erudição.

Não falaria em assumpto tão importante se não fosse a situação especial em que se encontra e o compromisso que tomou de emittir a sua opinião em todos os assumptos que se referissem á causa nacional.

Antes de entrar na ordem de considerações que se propõe apresentar, deseja referir se ao discurso pronunciado pelo seu amigo o Digno Par Sebastião Telles, q"e é o nosso primeiro escriptor militar, que foi seu collega no Ministerio, e em cujo trato intimo o orador teve occasião de apreciar os

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primores de espirito e a lealdade de j caracter de S. Exa. (Apoiados).

O Digno Par Sebastião Telles veio expor á Camara a sua opinião sobre o projecto, e fê-lo com aquella isenção e aprumo que caracterizam todos os actos da sua vida e que já assignalara quando falou acêrca do projecto de lei relativo ao Supremo Conselho de Defesa Nacional. Nas suas linhas geraes defendeu o projecto, mas, apesar d'isso, fez-lhe algumas reflexões e lembrou alterações que bem mostram que o assumpto não foi estudado pelo Governo com aquella gravidade, prudencia e siso que eram indispensaveis n'um documento de tão alta importancia.

S. Exa. mostrou que era necessario fazer algumas emendas ao projecto, para o tornar praticavel, de onde se conclue que elle, tal como está, se não pode acceitar e não attinge a perfeição que lhe attribuem aquelles que defendem o Governo.

E comtudo não pode duvidar-se, pelas suas affirmações e pela sua paixão partidaria, de que o Sr. Sebastião Telles está ligado com o Governo, obedecendo ás indicações do seu chefe. Elle, orador, até pensou em pedir ao Sr. Presidente que convidasse o Sr. Ministro da Fazenda, ou o Sr. Relator, a responder, por o Digno Par Sebastião Telles quasi haver falado contra. E se o não fez, é porque o Sr. Ministro da Fazenda se levantou a dar informações e esclarecimentos sobre pontos duvidosos da proposta. O Digno Par Sebastião Telles, por exemplo, 'chegou a achar impraticavel e nocivo para a boa organização do orçamento o preceito do artigo 10.° da proposta. Que ha de mais positivo contra um projecto? Achou que estava incompleto o artigo 15.°, querendo que se publicasse tambem a nota dos saldos em cofre. Entendeu que devia ser additado o artigo 16.°, desejando que se publicasse a nota dos productos dos emprestimos. Encontrou escuras outras disposições que prendem com as despesas militares. Que mais podia fazer, para mostrar que lhe não agrada o projecto do Governo, quem é da concentração? (Apoiados).

Cousa ainda curiosa! O Digno Par Espregueira foi o unico que, de frente, tocou na questão constitucional, de que os outros se arredaram, mas tambem não achou cousa valiosa o visto, a cujo encarecimento se consagra uma grande parte do relatorio do Governo! O Digno Par Sr. Mello e Sousa, no seu magnifico discurso, tambem pareceu desaffecto á commissão parlamentar de contas, tal como se acha organizada.

Ainda não houve um discurso incondicional, peremptorio, de pleno apoio, quer em resposta á oração tão erudita, tão notavel, esgotadora do assumpto, do Digno Par Sr. Moraes Carvalho ou á oração do Sr. Teixeira de Sousa, que, implacavelmente, com poderoso espirito critico, desfibrou a obra governamental, feita com uma precipitação estranha e defendida, na imprensa e no Parlamento, com citações e exemplos da Inglaterra. (Apoiados}.

Refere-se o orador ao modo de ser politico da Gran-Bretanha, á sua modalidade constitucional, ás suas instituições parlamentares, mostrando como é uma nação á parte, governando-se financeiramente por processos que não podem atemperar-se á feição de outros paizes e que, por isso, impõem aos homens publicos o cuidado de fazer a transplantação por forma que não produza effeitos contrarios.

Por exemplo, a transplantação do fiscal geral de Inglaterra para o nosso paiz fez-se de tal modo que, sendo exacto o que hontem leu sobre o orçamento da Russia, ali succede o mesmo que se vae agora fazer no nosso paiz: o director geral de contabilidade é o supremo inspector das finanças russas.

E assim uma instituição nascida n'um paiz liberal foi transplantada para Portugal, de modo que ficou a entidade de um paiz autocratico.

Em todo o projecto se vê isto. Abandona-se o que n'outros paizes existe e se semelha ao nosso - e referiu-se largamente á Belgica, ao seu Tribunal de Contas, ás faculdades financeiras, e até constitucionaes e politicas, do Tribunal de Contas na Italia, as quaes teem produzido bons resultados - para se substituir por outras instituições estrangeiras, que surgiram, aqui, abastardadas e degeneradas.

Porque é assim esta proposta?

Como nasceu no espirito do Governo esta ideia de reformar a contabilidade publica? Urge sabê-lo, porque a genese de uma lei explica muitas vezes as qualidades e os erros, as virtudes e os defeitos, a sua má acção ou insuffi-ciencia reformadora. Esta lei nasceu da concentração liberal, e teve a gestação precipitada e tumultuaria de muitos actos e providencias d'essa alliança politica á volta da qual ainda hoje se adensam sombras.

Permitta a Camara que, pela primeira vez, se refira a esse acontecimento, a essa especie de fusão. Fá-lo em breves palavras, sem recriminações ou rancores; nenhuns ha no seu espirito, absolutamente nenhuns, e portanto não podem aflorar-lhe nos labios em palavras.

Em 1904 o Sr. Hintze Ribeiro dissolvia violentamente a Camara dos Senhores Deputados, sob pretexto de tumultos parlamentares. Elle, orador, quando percebeu esse designio, pediu particularmente aos seus amigos que não levantassem na Camara o mais pequeno incidente para isso não poder explicar sequer o acto politico que se preparava.

Em plena Camara, n'um discurso e em interrupções que por signal irritaram o illustre chefe regenerador, apontou a violencia que se projectava.

Foram mesquinhos e insignificantes os tumultos; grandissimos que fossem, não bastariam para justificar a dissolução das Côrtes, acto tão violento que elle, orador, na primeira reunião partidaria, na mesma noite ou na immediata em que se dissolveu o Parlamento, foi quem propoz a reeleição, como um protesto, de todos os Deputados progressistas. A dissolução fez-se. Tratou-se então da união eleitoral e politica do partido progressista e franquista, sob base de principios que seriam a lei de contabilidade; a lei de responsabilidade ministerial; a lei eleitoral. Era a concentração-liberal de hoje.

Reuniu-se a commissão executiva do partido; celebraram-se assembleias partidarias; foram consultados os centros e as influencias principaes das provincias. De todas as bocas e de todas as penas saiu afirmação contraria a semelhante pacto, achando-se que o não justificava sequer o desforço contra um acto do partido regenerador, tão tradicionalmente hostil.

Houve absoluta unanimidade de votos, com o chefe progressista na frente. Achou-se que o programma era cousa somenos ao pé do grande e glorioso programma do velho partido. O orgão official progressista insurgia-se contra as propostas franquistas; e as palavras d'esse jornal são a traducção official das ideias que predominam nas regiões superiores do seu partido.

Fôra dado um voto de confiança ao chefe na reunião do dia 1 de maio. No dia 4 e no dia 5, o orgão official chamava á proposta do actual chefe do Governo "uma especie de incrustação que, como partidarios, julgamos e continuamos a julgar absolutamente inacceitavel".

Accrescentava ainda que as propostas do chefe franquista "tinham o caracter de uma especie de imposição que o partido progressista, por circumstancia alguma, está era condições de acceitar".

Eis a attitude perante um acto tão violento e inexplicavel, como o da dissolução do Parlamento praticado pelos tradicionaes inimigos do partido progressista.

Como se fez a concentração de hoje?

O ultimo Governo progressista dissolveu tambem por pretendidos tumultos em 1906 a Camara dos Deputados. Exactamente como o partido regenerador. O partido franquista ergueu con-

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tra isso uma violentissima campanha. Inegualavel em acrimonia e ardor!

Caiu esse Governo. Durante alguns dias a sua queda foi celebrada pelos jornaes franquistas com a mesma paixão das horas mais opposicionistas.

N'esses artigos havia referencias aos dissidentes; não diz as suas palavras, porque não é seu proposito aggravar, pela mão de outro, nem o chefe nem ninguem do partido progressista.

De repente, caido ha dias o Governo progressista, surge a concentração, celebrada com aquelle mesmo partido que dissolvera as Côrtes, que fora violen-tissimamente atacado, que fora aggredido já depois de se encontrar no chão!

Como foi que se fez então o que fora julgado uma infracção affrontosa e in-acceitavel?

Como se praticou com os amigos do actual chefe do Governo o que se recusara a esses mesmos, contra uma violencia em nome dos regeneradores?

Como passou a ser um programma soberbo o que pouco antes fora julgado um retalho miserrimo do glorioso programma progressista?

Ignora-o. Os factos são o que são.

A concentração existe; o mysterio dos seus fundamentos subsiste, mas não importa á sua vida. Acceita-a sem criticar as hypotheses de natureza politica, e até de má vontade pessoal, que e opinião publica formula á sua volta. Os governamentaes e progressistas dizem que os move o amor ás liberdades publicas, á lei, aos supremos interesses do Thesouro.

Porque os não moviam esses sentimentos, aos progressistas, quando o Sr. Hintze dissolveu o Parlamento?

As liberdades publicas!

Nós estamos vendo uma identificação dos concentrados, inteira e absoluta, com as doutrinas e os processos conservadores do Sr. Hintze Ribeiro, que, diga-se a verdade, é logico e coherente na sua attitude. Que differença ha entre uns e outros?

Sob o ponto de vista conservador, os tres partidos podem ser representados por uma medalha de metal, tendo n'uma das faces a effige do Sr. Hintze Ribeiro e n'outra, no reverso, as effigies do actual chefe do Governo, e do Sr. José Luciano de Castro, a par uma da outra, como nas peças de ouro chamadas de duas caras, do tempo da Senhora D. Maria I e do Senhor D. Pedro III, os rostos d'estes dois soberanos.

Não ha hoje um partido conservador retinto: ha tres partidos conservadores, quer nas providencias legislativas, como, por exemplo, a lei de imprensa, quer nos actos policiaes, porque o 4 de maio emparceira se com o 1 de dezembro, providencia e actos que elles, os dissidentes, condemnam severamente,

que acham nocivos á liberdade e ás instituições, e com os quaes, como manda a sua honra pessoal e politica, não se conformarão nunca.

Com respeito á lei e aos interesses do Thesouro, o que significa esta lei de contabilidade? Não revela respeito á Constituição do Estado, que offende: é um documento tumultuariamente organizado, elaborado com a precipitação febril que caracterizou os primeiros tempos da vida do Governo, com incoherencias e deficiencias, com o fatal systema de transportar do estrangeiro instituições cujo alcance se não mediu e cuja transplantação se não soube preparar.

E o Governo, apresentando este projecto, deu lhe logo a formula anti-liberal, anti-parlamentar. repugnante ás affirmações categoricas feitas pelo partido progressista, de uma autorização!

Não é possivel havê-la, mais caracterizada: "É o Governo autorizado a reformar a reforma de contabilidade publica" diz o artigo 1.° E no artigo 2.° acrescenta, accentuando este aspecto deprimente e desairoso para o Parlamento, que "fica revogada toda a legislação sobre contabilidade publica anterior á que for decretada no uso d'esta autorização". É espantoso... e claro!

A commissão de fazenda amputou as palavras autorizado e autorização, assim como reduziu de 68 a 49 o numero dos artigos da proposta de lei, o que tambem é significativo do modo leviano como ella foi organizada.

O acto do Governo está de pé e imprime feição moral e politica, mas, sob outras formas, a autorização ficou. E no primeiro projecto de lei da concentração liberal, de progressistas e franquistas colligados, accentua-se a caracteristica illegal anti-democratica, de uma autorização parlamentar. Em que situação moral ficou logo o ramo progressista da colligação? Nasceu de giba e intanguida a proposta, que se dizia escorreita e sadia, da reforma de contabilidade publica!

Uma auctorização! E porquê? Que razões impelliram o Governo para essa reforma, feita tão urgentemente e precipitadamente, contra todos os processos usados no estrangeiro para reformas tão melindrosas, como logo mostrará, e contra a nossa propria lei ou pelo menos contra habitos e tradições d'essas leis originadas? Não se cumpriam as determinações do regulamento de contabilidade publica e do Tribunal de Contas?

A primeira cousa a averiguar é a quem cabia a responsabilidade. E uma cousa fere logo a vista. É que, por maiores que fossem o zelo e circumspecção dos altos funccionarios da contabilidade e thesouraria, por maiores que fossem o cuidado e diligencia d'aquelle tribunal, todas estas virtudes sossobrariam perante o tumulto e atropelo das leis constitucionaes, perante a impossibilidade de uma fiscalização parlamentar, que é parte integrante, essencial, fundamental, da nossa lei de contabilidade.

No espaço de 16 annos, já elle, orador, o dissera, houve 10 dissoluções de Camaras, 19 adiamentos, 3 encerramentos da Camara dos Deputados. Não aconteceu isto, em semelhante prazo, n'um outro paiz qualquer do mundo!

Desde que se accentuou este desprezo pelo Parlamento, perderam-se todas as normas regulares de contabilidade. Contas de gerencia, contas de exercicio, contas geraes do Estado, que pelo artigo 106.° do regulamento, teem de ser enviadas annualmente ás Côrtes, não o foram porque houve annos, como o de 1895, em que não funccionou o Parlamento, e outros em que funccionou por periodos curtos, a ponto de, achando-nos nós em 1907, estarmos ainda a ser regidos pelo orçamento de 1904-1905.

D'essa politica chamada do engrandecimento do poder real, e que apenas foi do engrandecimento do poder pessoal dos Ministros, d'essa politica cuja principal responsabilidade cabe ao actual chefe do Governo, resultou a impossibilidade absoluta de o Tribunal de Contas poder organizar o relatorio e declaração geral a que se refere o artigo 312.° do regulamento.

A ultima conta geral do Estado enviada á Camara foi a de 1896-1897. Foi de 1895 por deante que a fatal politica se accentuou! A lei annual para o encerramento definitivo das contas do exercicio findo, a que se refere o artigo 121.° do regulamento, não podia ser votada, não só por falta de elementos apresentados á Camara, mas até apresentados aquelle tribunal, a que os Governos subtrahiam tambem os vistos previos das operações da Thesouraria.

Desfeita a Constituição do Estado, desrespeitados os Parlamentos, desattendidos os prazos dentro dos quaes ás Côrtes e ao Tribunal de Contas os Governos tinham de enviar elementos indispensaveis para a fiscalização, como é que esta podia fazer-se ? Á responsabilidade inicial, fundamental, é dos homens publicos que tiveram o poder e cabe essa em larguissima parte ao chefe do actual Gabinete. Que garantias ha de mudança?

Só a reforma de costumes politicos a pode operar!

Por maiores penalidades que se insiram na lei que se prepara, ellas se-

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SESSÃO N.° 11 DE 21 DE JANEIRO DE 1907

rão insufficientes se os governantes proseguirem como no passado.

Mas-dizem os amigos do Governo- uma lei de responsabilidade ministerial acautela e pune os governantes.

Admittamos que seja assim. Com a lei, porem, de responsabilidade ministerial que foi apresentada ao Parlamento, essa responsabilidade é uma ficção, é uma falsidade. Essa lei nem é liberal nem pode, pela forma como está elaborada, ter uma realização pratica, effectivas responsabilidades. Que importa então uma reforma de contabilidade em que os Ministros podem, sejam quaes forem as penalidades, proseguir nos erros e abusos do passado?

Faltam 7 ou 8 minutos para dar a hora.

Ia entrar n'um periodo de considerações tendentes a mostrar que nas ou trás nações não se apresentou uma reforma de contabilidade como agora, e que, no nosso paiz, em epocas glorio sãs da politica, se procedeu por maneira diversa.

Referir-se-ha largamente á maneira como procedeu Barros Gomes, o grande e luminoso espirito cujo fulgor encheu de gloria o nobre e velho partido progressista.

Elle seria incapaz de apresentar uma proposta de lei desacompanhada de todos os elementos de informação, de todos os esclarecimentos, precedida de um pallido e mesquinho relatorio. Tratará largamente do que fez Barros Gomes, de cuja sepultura se evola uma grande lição de honestidade, de austeridade politica, de nobre energia, de trabalho luminosissimo e probo. A Camara verá, na proxima sessão, a differença que ha entre os tempos de hoje e os tempos antigos. Os tempos ... e os homens.

(S. Exa. foi cumprimentado por varios Dignos Pares).

(O Digno Par não reviu}.

O Sr. Presidente: - Fica V. Exa. com a palavra reservada para a proxima sessão.

A seguinte sessão será na quarta-feira, 23, e a ordem do dia a mesma que vinha para hoje.

Está levantada a sessão.

Eram 5 horas e 25 minutos da tarde.

Dignos Pares presentes na sessão de 21 de janeiro de 1907

Exmos. Srs.: Sebastião Custodio de Sousa Telles; Marquezes: de Avila e de Bolama, do Sousa Holstein; Condes: de Arnoso, do Cartaxo, de Figueiró, de Paraty, de Tarouca, de Villar Secco; Viscondes: de Monte-São, de Tinalhas; Moraes Carvalho, Alexandre Cabral, Pereira de Miranda, Antonio de Azevedo, Eduardo Villaça, Santos Viegas, Teixeira de Sousa, Telles de Vasconcellos, Arthur Hintze Ribeiro, Palmeirim, Vellez Caldeira, Carlos Maria Eugenio de Almeida, Eduardo José Coelho, Ernesto Hintze Ribeiro, Fernando Larcher, Veiga Beirão, Francisco Machado, Francisco de Medeiros, D. João de Alarcão, Teixeira de Vasconcellos, Gusmão, Mello e Sousa, José Luiz Freire, José de Alpoim, José Vaz de Lacerda, Julio de Vilhena, Luciano Monteiro, Pessoa de Amorim, Poças Falcão e Bandeira Coelho.

O Redactor,

FELIX ALVES PEREIRA.

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