8 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO
relator corrigiu em parte esta notavel deficiencia.
Não quero, Sr. Presidente, pôr uma nota irritante no debate. Parece que ha um vento de insania a inspirar-nos na intervenção que a cada um de nós cabe, na marcha das cousas publicas; um furor destructivo parece dominar em todos nós, e ser o inspirador das nossas acções.
Não quero dar mais uma camartelada neste empenho de destruir, em que vejo tanta gente, por varia forma, empenhada.
Mas, Sr. Presidente, o assunto é grave, é importante demais para que possa passar sem o meu reparo.
Mataram o Rei e mataram o Principe Real Português, o herdeiro da Coroa; foi constituido o actual Governo e reuniram-se as Côrtes.
Quem ler, porem, o Discurso da Coroa, supporá que a morte do Rei o do Principe se deu em condições naturaes, tal é a reserva, o cuidado, o esmero que se guardou na redacção artificiosa d'este diploma.
Felizmente que o parecer da resposta á fala do throno, em parte traduzindo o sentimento geral do país e da Camara, corrige tal deficiencia, censurando devidamente tamanho attentado. Todavia, Sr. Presidente, isto não é o bastante; eu desejaria que a commissão de resposta ao Discurso da Coroa fizesse mais alguma cousa, mesmo por deferencia até para com o Chefe do Estado.
Diz o Discurso da Coroa:
O mesmo sentimento humano e civico une a todos neste momento e neste recinto — a dor que revive do transito crudelissuno de meu Pae e Irmão, do nosso Rei e Principe.
Não me cabe tecer louvor á memoria do Monarhia extincto, nem tão pouco á esperança posta era Aquelle que lhe herdaria tradições e nome.
El-Rei veio ao Parlamento, e declarou que a elle, como filho e irmão das victimas de tão execrando attentado, não cabia fazer o seu elogio. Delegava pois ás Côrtes esse encargo ou o cumprimento d'esse dever.
Eu bem sei, Sr. Presidente, que pela palavra autorizada de V. Exa. e pelo voto unanime d'esta Camara, esse elogio foi feito logo na primeira sessão em que nos reunimos aqui. Mas eu desejaria ver na resposta ao Discurso da Coroa uma palavra de referencia que correspondesse áquella delegação do Chefe do Estado dada ao poder legislativo.
Não venho nesta occasião, Sr. Presidente, fazer o elogio do Rei D. Carlos I e de Sua Alteza Real, mas não posso deixar de dar perante V. Exa., e perante a Camara, e perante ainda o meu país, um como que depoimento historico, porque eu servi como Ministro ha doze annos com El-Rei D. Carlos e quero que esse depoimento fique aqui consignado.
Eu fui, Sr. Presidente, Ministro da Marinha e Ultramar durante quinze meses.
Servi com El-Rei D. Carlos e posso assegurar a V. Exa. e á Camara que, no exercicio d'essas altas funccões que me foram commettidas, tive occasião de apreciar e reconhecer as altas faculdades intellectuaes de que dispunha El-Rei, os recursos enormes da sua vastissima erudição, o seu alto patriotismo, o seu intenso amor de acertar e o desejo de bem conhecer a marcha governativa.
Estas qualidades, estes requisitos fundamentaes, primaciaes num Chefe de Estado, esses eu os reconheci sempre, ininterruptamente, sem uma sombra, sem outra qualidade que pudesse de leve prejudicá-las. O meu depoimento ahi fica, singelo e modesto, como expressão da verdade, e em obediencia aos dictames da minha consciencia.
Talvez não os dissesse noutra occasião; mas neste momento em que parece que ha pavor de se dizer qualquer cousa que possa ser elogiosa para a memoria de El-Rei D. Carlos, e que todos se arreceiam de incorrer nas furias, nas iras, que ainda desgraçadamente parecem subsistir depois da sua morte, neste momento, Sr. Presidente, eu ficaria mal com a minha propria consciencia se não fizesse este depoimento, singelamente do alto d'esta tribuna, em obediencia a um dever imperioso da minha consciencia.
Sr. Presidente: diz-se aqui, num paragrapho do discurso da Coroa:
No tocante á politica interna, transpôs-se uma crise que importa liquidar: promulgaram-se providencias de caracter legislativo, algumas das quaes o Meu Governo entendeu, no uso das suas faculdades dever sem demora abrogar, restabelecendo a normalidade dos direitos individuaes; outras a esta legitima estancia serão sujeitas; o vosso livre exame discriminará o que nessa decretação de caracter ditatorial mereça ou careça conservar-se como lei.
O Governo, pela boca de El-Rei, vem participar á camara que, no uso das suas faculdades, revogou taes e taes decretos da ditadura, deixando á camara o pronunciar-se sobre se outros devem ou não ser mantidos.
O Governo seleccionou por sua autoridade, no uso das suas faculdades, revogando uns e entregando outros á acção parlamentar.
Quem lhe deu esta faculdade? (Apoiados).
O Governo o que tinha a fazer, como disse, era isto: considerado que tudo era illegal, revogasse tudo. Era logico. Era um acto de ditadura, mas ditadura que as circunstancias podiam legitimar. E depois, trouxesse ao Parlamento um bill para esse acto.
Com que autoridade, no uso de que faculdade é que o Governo se permitte discriminar o que é constitucional e o que o não é o que deve permanecer e o que deve ser revogado?
No uso de que faculdades?
E qual é o bill que o Governo pede para si proprio para ser absolvido d'esse acto de ditadura que praticou revogando essas medidas?
São casos graves de direito publico constitucional: são as relações entre um e outro poder do Estado. Insiste o poder executivo em dizer que tem faculdades para revogar decretos sem os submetter á apreciação da Camara?
A commissão corrigiu isto no seu parecer, porque diz que as Côrtes hão de apreciar todas as providencias decretadas sem o concurso do Parlamento. É preciso explicarmo-nos com toda a clareza para que as nossas palavras não sejam alteradas.
Mas, Sr. Presidente, supponhamos — é uma hypothese para o effeito da argumentação — supponhamos, dizia eu, que as Côrtes queriam que subsistisse qualquer d'esses decretos ditatoriaes revogados pelo Governo!
Como se havia de proceder?
Teria de se fazer uma lei nova?
São absurdos que dimanam da confusão estabelecida entre os diversos poderes, e muito principalmente são as consequencias de o poder executivo usurpar direitos que são exclusivamente do poder legislativo.
Não posso tolerar, nem admittir que o Governo — este ou qualquer outro — venha arrogar-se perante o Parlamento o direito de fazer leis ou revogá-las. Taes faculdades só pertencem ao poder legislativo.
Se o Governo queria revogar alguns decretos feitos em ditadura, e adoptar outros tambem publicados ditatorialmente, o que tinha a fazer era apresentar-se aqui com o respectivo bill de indemnidade.
Diz-se em outro ponto do Discurso da Coroa:
Outra obra de momento e de futuro se impõe: a revisão da Carta Constitucional. O codigo organico de uma nacionalidade tem de passar por estes estadios de correcção, graus successivos de adaptação ás necessidades e aspirações do país.
Julga o meu Governo traduzir um sentimento imperioso no animo dos cidadãos portugueses proclamando a opportunidade de introduzir modificações convenientes nas normas que regulam o exercicio do poder, e determinando se a forma mais adequada ao funccionamento estavel e harmonico da vida publica.
A vós pertence iniciar essa reforma, seleccionando os artigos que tenham de submetter-se ás deliberações das Côrtes Constituintes.
E d'aqui deriva para o Parlamento outra pesada tarefa: uma lei eleitoral que inaugure