116 DIARIO DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO
e puniveis no actual projecto e n'outras leis anteriores; e, pela minha parte, devo dizer a v. exa., sr. presidente, que esta providencia do projecto é, porventura, a mais acertada e a mais sensata de todas ellas. O jury é uma instituição liberal e sympathica a todos os espiritos que são liberaes, e eu prezo-me de o ser, mas a verdade devo dizel-a acima de tudo. No nosso paiz o jury nem sempre tem correspondido ás esperanças que n'elle depositaram os seus mais estrénuos e ardentes defensores. Os factos de todos os dias têem-se encarregado de fazer a demonstração a este respeito.
Depois acresce uma circumstancia que eu considero importantissima, e é que, para o julgamento desta especie de crimes, de uma natureza tão delicada e tão complexa, pois que se referem a melindrosos e complicados actos da intelligencia humana, eu tenho mais confiança no criterio de um juiz togado, de uma cultura intellectual superior, do que na boa fé e na simples inteireza de consciencia do julgador de facto, o qual julgador sómente é chamado a exercer as suas funcções de espaços a espaços, ás vezes, de annos a annos. Portanto, sobre este ponto não tenho que formular nem reparos nem censuras. Concordo, plenamente, com a doutrina do projecto.
Vamos ao artigo 4.°
Este artigo determina que a imprensa não poderá occupar-se de factos ou de attentados de anarchismo. Nestes termos factos ou attentados póde conter-se uma disposição gravissima com a qual me não conformo, e que de modo nenhum me parece que deva ser approvada, ou uma simples providencia de bom senso, acceitavel e justa. Tudo depende da interpretação que se der a esta phrase: factos ou attentados de anarchismo. Peço, sobre este ponto, que se me afigura extremamente delicado, a attenção do sr. ministro da justiça. Tudo depende, torno a dizer, do modo como for interpretada a expressão que se encontra no texto do artigo. Esta expressão factos ou attentados representa uma sinonymia, uma equivalencia, ou traduz duas cousas diversas, os factos e os attentados? A camara comprehende que os attentados são já alguma cousa de violento e de material, ao passo que os factos podem significar as idéas, as doutrinas, as theorias, emfim, tudo quanto se relacione com o anarchismo.
E, n'este ponto, eu não partilho a opinião d'aquelles que entendem que o mysterio que envolva os attentados anarchistas, quando, infelizmente, elles se produzam, ha de exaltar mais as imaginações, do que a sua narração minuciosa e detalhada, feita pelos jornaes. Com effeito, o mysterio produz, muitas vezes, o exagero e a avolumação dos acontecimentos, mas neste assumpto, como em tudo, o que deve procurar-se não é o óptimo, em absoluto, é o relativamente melhor, ou o que, relativamente, tiver menos inconvenientes. Não occulto que o mysterio tem esta desvantagem de fazer acreditar em cousas mais tenebrosas e peiores do que a realidade d'ellas, mas a narrativa dos attentados, dramatica e dramatisada, ha de com certeza produzir em imaginações, fracas ou ardentes, consequencias mais desastrosas ainda. Sobretudo, ha de despertar as faculdades imitativas ou de imitação, tão proprias da natureza humana, e ainda mais nos povos do que nos individuos. Por isso, sr. presidente, eu não tenho a, menor duvida em considerar inconveniente a narrativa dos attentados e a de certos actos relativos a diligencias policiaes e aos debates dos julgamentos.
Não digo, porem, outro tanto, se se trata de meros factos do anarchismo apenas, porque para esses não acho inconveniente em narral-os e dar-lhes publicidade.
Trata-se, por exemplo das referencias ás doutrinas dos anarchistas, aos seus programmas, aos seus meetings, que inconvenientes maiores para a ordem social haverá em dar-lhes publicidade, em tornal-os conhecidos? E se é esta publicidade a que tambem fica prohibida á imprensa eu julgo inconvenientissima uma tal disposição. Porque, v. exa., sr. presidente, comprehende muito bem que, dada essa prohibição, a imprensa não poderia sequer combater o anarchismo, e as suas doutrinas e propositos. Isto não póde ser. Espero, pois, que o sr. ministro da justiça se não negará, visto haver inconveniente em que o projecto volte de novo á outra camara, a fazer qualquer declaração a este respeito, a fim de que essa declaração fique considerada neste ponto como interpretação authentica da lei.
Resta o artigo 5.°, pois que o 6.°, em que o governo declara indispensavel o augmento da policia, e pede auctorisação para despender as verbas necessarias para esse fim, não me merece nenhumas observações. O artigo 5.° estabelece o principio da retroactividade. É este um principio inacceitavel em materia de direito e, principalmente, em direito criminal. Não o applaudo, mas não quero occultar que, infelizmente, a gravidade de um certo numero de factos da nossa epocha tem-se encarregado de mostrar a imperiosa necessidade das chamadas leis de circunstancia, com sacrificio dos rigorosos principios da sciencia penal. A urgencia absoluta de conjurar imminentes perigos sociaes e a impreterivel justiça de punir attentados gravissimos não previstos nas leis, têem podido mais do que as indicações theoricas da sciencia criminal. Mas, est modus in rebus. O projecto consigna o principio da retroactividade da maneira a mais extensa e illimitada, e, por isso, absurda e perigosa. E a retroactividade em relação a todos os actos e factos praticados anteriormente esta lei. É monstruoso! Estes actos ou factos podem ter sido praticados ha seis, ha oito ou dez annos... e em vista das disposições deste artigo póde amanhã o governo mandar processar toda a imprensa do paiz por se ter occupado dos factos recentemente occorridos em Lisboa. Póde amanhã o governo mandar promover processo contra todos os jornaes que narraram os acontecimentos que se deram ultimamente! Póde tambem mandar processar todos os individuos que, ha annos, tenham publicado qualquer escripto sobre anarchismo, ou professado quaesquer idéas anarchicas! É isto o que se quer?
Se é, pretende-se uma cousa monstruosa e feroz. Eu não a voto. Certamente não a votará tambem a camara. Peço, pois, ao nobre ministro da justiça que tambem n'este ponto explique qual o pensamento do governo e a idéa do projecto.
A retroactividade abrange indefinida e illimitadamente todos os actos anteriores a esta lei, ou comprehende só os factos recentes? A retroactividade abrange tambem a imprensa ou é só referente ás outras disposições do projecto?
Pela minha parte declaro que não hesito em votar o principio da retroactividade, comtanto que se refira sómente a uma certa e determinada epocha, isto é, aos actos e factos recentes, e que fique excluida a imprensa. Vê-se bem que se o projecto se executasse tal como está redigido, não haveria tyrannia mais monstruosa, nem armas mais poderosas se poderiam entregar ás mãos de um governo!
Não póde ser.
Sr. presidente, aqui tem v. exa., exposta em rapidos traços, a minha maneira de pensar e de apreciar o projecto; e, se v. exa. e a camara mo permittem, acrescentarei ainda algumas palavras á analyse que acabo de fazer, no intuito de mostrar a minha opinião sobre um dos assumptos mais graves que podiam ser trazidos ao parlamento. Essas palavras são para significar ao governo o que elle já sabe, aliás, e é que as leis valem muito pouco nas suas disposições perceptivas, e que o principal e o importante é a sua execução. Dae-me uma lei má e injusta e uma execução equitativa e regular, e isso será preferivel a que me deis uma lei boa e justa e uma execução insensata e má. A lei que a camara vae votar é uma lei injusta e má. Dê-lhe o governo uma execução atilada e boa. Lembrem-se os srs. ministros, sobretudo, que nos tempos que vão cor-