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sistencia a cidadãos que o fisco ou a invasão tinha arruinado.

Não tiveram essas riquezas só por fim o esplendor do culto, a sustentação dos seus ministros, a edificação de templos, cuja magnificência mesmo por entre as suas ruinas ainda os séculos admiram; tiveram também por objecto fundar e dotar os brepliotrophios, os orphanotrophios, os no-socomios, e outros estabelecimentos de piedade em favor do3 expostos, dos orphãos, do3 velhos, dos enfermos e dos pobres em geral.

Não admira pois que n'esta situação os imperadores christãos se identificassem com o espirito da igreja, e a coadjuvassem, para engrossar esse monte commum de piedade, esse património dos pobres e desvalidos.

Era então a igreja, e depois tem sido sempre, mais ou menos, um estado no estado, ensinando com o seu exemplo aos reis e povos da terra, o que a civilisação moderna, filha do christianismo, tem tomado e vae continuando a tomar, como uma das mais nobres attribuições do poder temporal, a de soccorros públicos á humanidade afHicta.

Tanto se compenetraram os ministros da igreja da Índole e natureza dos bens respectivos, que elles se consideraram meros economos ou dispensadores, e n'esta persuasão, uma infinidade de prelados, riquíssimos de meios pecuniários até aos últimos instantes da sua vida, chegaram a não ter mais para dar aos pobres que o pobre leito em que jaziam semi-vivos, se é que ainda o tinham de seu na hora extrema.

Era mais que abnegação, degeneravam em uma santa prodigalidade tamanhas liberalidades em favor dos pobres, o que seria hoje fácil demonstrar, segundo as doutrinas ensinadas pelos jurisconsultos modernos, e consignadas em diversos códigos da Europa que se diz civilisada, quando tratam de qualificar a prodigalidade ou abuso de propriedade.

A censura porém seria mal cabida, a igreja pugnava a favor da sua posse, contra a alienação dos seus bens, não tanto em rasão do- seu direito de propriedade, como da applicação moral, evangélica e eminentemente social, a que esses bens eram destinados.

No direito canónico assim se acha consignado muitas e muitas vezes. Bastará apontar das decrctae3, parte 2.a, causa 10.a, questão 2.a, que se inscreve =Ros ecclesiaj ali -quo modo episcopis alienare non licet = aonde se lê no can. l.°, extrahido do concilio agathense: «integro ecclesia3 jure possideant, id est, ut, neque vendere, neque per quos-cumque contractus res, unãe pauperes vivunt, alienare prav sumant».

Era pois esta uma propriedade sui generis, n'esses tempos, que se seguiram á paz da igreja. Era uma propriedade que não pertencia ao fisco, mas de que também não pertencia á igreja mais que a posse e administração. Essa propriedade, satisfeitas as necessidades do culto e as da sustentação dos seus ministros, pertencia a urna classe de homens indeterminada, viva, existente sempre nas sociedades ainda as mais ricas, e em que o trabalho não falta nem o salário correspondente; a uma classe de homens, que só se individualisa, verificada a orphandade, a miséria, a doença ou a velhice.

Uma propriedade, que, em relação ais seus administradores, é muito similhante, ou antes da mesma natureza, que a que se dá nos administradores dos nossos hospitaes, misericórdias e asylos, que não fazem mais que representar uma individualidade juridica, para, nos termos da lei commum, exercerem aquelles direitos civis que forem relativos aos interesses legitimos do seu instituto.

E todavia de notar que nos séculos da idade media não foi tranquilla a administração dos bens da igreja, pois que as perturbações e as espoliações foram frequentes.

O auctor immortal do Espirito das leis diz a este respeito, que o clero adquiriu tanto, que- em tres raças tinha absorvido todos os bens da França. Mas que se os reis, os nobres e o povo acharam meio para lhe dar todos os seus bens, também o encontraram para delles o despojar.

« Mais si les rois, la noblesse et le peuple trouvèrent le moyen de leur donner leurs biens, ils ne trouvèrent pas moins celui de les leur ôter».

A primeira proposição é eminentemente hyperbolica, visa ao paradoxo; mas a segunda é de uma exactidão manifesta.

Pepino, que se propunha ser o vingador das espoliações contra a igreja, succedia aseupae, que, importando-se muito pouco com o direito ecclesiastico, se apropriou dos predo s da igreja, para os distribuir aos seus soldados.

«Karolus plurimum juri ecclesiastico detrahens, prsediai fisco sociavit, ac deinde militibus dispertivit,» diz a chro-nica.

Os bispos não deixaram de protestar energicamente contra as usurpações dos grandes da terra.

«A cólera divina, clamavam elles, está suspensa sobre vossas cabeças. Os bens da igreja, que os reis e outros christãos têem destinado ao allivio dos pobres, á redempção dos captivos, á restauração dos templos de Deus, estão hoje nas mãos dos filhos do século».

A estes clamores correspondiam as providencias, já canónicas, já seculares, proclamando a inalienabilidade dos bens ecclesiasticos, providencias que se repetiam e multiplicavam na rasão directa das invasões, das espoliações commettidas contra a administração da igreja, e do perigo a que ficava sujeita para o futuro em vista de taes precedentes.

Mas as alienações' praticadas pelos reis e grandes da terra sobre os bens da igreja constituiu esta n'um estado violento, para reivindicar os bens usurpados, e ora triumpha-va o principio de não prescripção, ou da prescripção somente de quarenta e cem annos, com titulo e boa fé, ora os possuidores se despojavam, sem contenda de juiso dos

bens de que não tinham outro titulo mais que o da tranquilla posse, transmittida por herança de seus maiores, mas que mais não podiam reter sem peccado, desde que se lhes mostrava que os bens, que assim possuiam, haviam pertencido á igreja.

Estas violências tornaram menos aceitável no espirito publico uma parte da propriedade da igreja, que ella não podia rehaver já a favor dos pobres, senão tornando pobres os possuidores d'essa propriedade, que haviam recebido por successão á sombra da auctoridade publica e de decretos, embora despóticos e expoliadores.

E também importante notar que por entre as prohibições de alienar não se comprehendiam áquellas que fossem indispensáveis para satisfazer ao fisco as dividas que as igrejas tivessem para com elle.

No concurso ou confiicto dos interesses públicos tinham, na ordem dos privilégios, a primeira graduação os interesses fiscaes, a segunda os das igrejas.

Já a novella 46.a' tinha vindo corrigir a novella 7.a com relação aos interesses fiscaes, ordenando que em taes casos, provando-se que a divida ao estado não podia ser solvida senão pela venda dos bens immoveis das igrejas, devia esta ter logar, e o comprador pagava então o preço aos perce-ptores fiscaes, sem temer de futuro uma acção de reivindicação; e porque pareceu muito extraordinário que ao estado se attribuisse tal privilegio, sem contemplar os mais credores das igrejas, Justiniano havia decidido que ellas podessem abandonar em pagamento creditório os immoveis que possuíssem.

Não só isto, da regra absoluta da alienação era exceptuada a troca dos bens da igreja, por meio de expropriação forçada, umaivez: 1.°, quo o principe assim o ordenasse, por um modo solemne e authentico; 2.°, em rasão de interesdf publico; 3.°, e a subrogação fosse constituída em cousa maior, melhor ou igual.

E expresso assim em uma constituição dos imperadores romanos, Leão e Anthemio, nas palavras:

« Sed et permutare principi licet pro re majori, meliori, vel sequali, si respublica hoc exposcit, et pragmática forma super hoc prascedente ».

E esta disposição foi expressamente aceitada e reconhecida pela igreja, pois que se lê textualmente transcripta no corpo das decretaes.

Expostas estas considerações retrospectivas sobre a origem e primitiva natureza e applicação dos bens da igreja, com relação a uma epocha anterior'á monarchia portugueza, não pôde a commissão deixar de lançar as suas vistas também, sobre o que especialmente respeita á igreja lusitana.

Participante a igreja lusitana, em grande parte, assim das tradições do direito romano, como das influencias do direito canónico, a sua situação e principios deviam ter sido análogos, se não tivessem sido consideravelmente modificados, já pelas invasões dos bárbaros e sarracenos, já pelos direitos de conquista exercidos pelos mesmos christãos, em consequência da expulsão dos infiéis.

Todavia nem os invasores nem os conquistadores deixaram de respeitar, se não de um modo pleno, ao menos em grande parte, os bens immoveis das igrejas e mosteiros.

O direito de conquista, que não respeitando n'esses tempos a liberdade pessoal, monos acatava a propriedade individual, quanto mais a collectiva, imprimiu na conservação da posse d'esses bens um certo cunho de tolerância e de favor, que a converteu virtualmente em graça soberana, o que igualmente se verificou com relação á repartição do paiz conquistado, e distribuido pelos companheiros de D. Henrique, do senhor D. AfFonso e de seu filho, entrando n'esse numero os próprios prelados e abbades, que tomaram parte nas lutas sustentadas contra os sarracenos.

Este direito de conquista, até certo ponto o vicio dos costumes feudaes, e os foraes dados ás terras do reino, nivelaram os prelados das igrejas e mosteiros aos mais senhores e magnates donatários da coroa.

Foi consignada a respeito d'e3tes a reversão á coroa; mas porque, a respeito dos corpos de mão morta ecclesiasticos, não podia ter logar a reversão pelos mcio3 ordinários, da falta de successão ou do confisco nos bens vacantes, procu-rou-se por todos os modos indirectos prevenir esse inconveniente, restringindo-se a amortisação.

Systema bem contrario ao código de Justiniano e dás no-vellas facilitando ás igrejas todos os meios auctorisados em direito para adquirir.

Estas restricções crearam um direito especial coevo com a monarchia, desde o seu berço ; segundo essse direito as igrejas e mosteiros, só por excepção, só por graça do poder absoluto, podiam ter capacidade juridica para adquirir bens de raiz.

E o que se manifesta da mercê feita pelo senhor D. Af-fonso Henriques ao abbade do mosteiro de S. Salvador de Castro, permittindo-lhe adquirir bens de raiz por titulo oneroso ou de herança, e da do sr. D. Sancho II ao mosteiro de Alcobaça, para que observadas certas clausulas podesse succeder aos seus monges.

E certo porém que, sem embargo das leis prohibitivas da amortisação, os clérigos e os mosteiros continuaram de facto na acquisição de bens de raiz, e foi por isso que o sr. D. Diniz, por lei de 10 de julho de 1286, não só lhes pro-hibiu adquirir taes bens d'essa data em diante, mas lhes ordenou que vendessem os que possuíssem. Alguns annos depois o mesmo rei se viu obrigado a modificar esta desamortisação, declarando não comprehender n'ella os bens dotaes das igrejas, como se vê de outra lei com data de 1309.

Esta declaração foi visivelmente nascida da reluctancia ,do clero e dos monges; foi adrede obtida no intuito de fazer com que a excepção a favor da amortisação absorvesse a regra da desamortisação; n'uma palavra, que os bens de raiz adquiridos por qualquer titulo revestissem por tal forma

as apparencias de dotaes, que esses bens fossem retidos e não vendidos a pessoas seculares como a lei determinava.

Não só conseguiram por esta forma o seu intento, mas novas infracções continuaram.

Taes e tantas foram ellas que osr. D. Affonso V se viu forçado a ratifica-las, permittindo ás igrejas e mosteiros a conservação dos bens de raiz que tivessem adquirido desde a morte do sr. D. João I até ao anno de 1447, ordenando comtudo, como havia praticado o sr. D. Diniz, que dali em diante se guardassem mui rigorosamente as leis da amortisação.

Este direito foi aceitado e ratificado com as cortes de Lisboa em 1371, donde foi tirada a ord. do sr. D. Manuel, liv. 2.° tit. 8.°, e depois a de D. Filippe IÍ, tit. 18.° do mesmo livro; direito recebido e concordado entre os monar-chas e os mesmos ecclesiasticos, como se vê das concordias do sr. D. Diniz, do sr. D. Pedro e do sr. D. João I.

«Assi se guardou sempre (responde este monarcha a um «dos trinta capitulos da Concórdia que lhe foram propos-«tos) assi se guardou sempre cm tempo dos ditos reis e do «seu, porque de outra guisa resultaria grande dano á terra «e seria mqito contra seu serviço, o' a rasão porque os reis «esta cousa fizeram, foi por bem e guarda do seu reino, que «se não mudasse em outro estado, cá bem vem os prelados, «que por os bens que ora tem recrecem estas contendas. E «se desde então até ora não fora reteudo toda a maior parte «do reino fora em sua mão».

As leis, os assentos de cortes, os códigos de legislação pátria, as concordatas mesmo, preserverantes sempre em consagrar o principio da desamortisação, foram inefficazes para impedir o progresso das acquisições immobiliarias.

Um século se succedia a outro século, os annos volviam sobre outros annos, e uma força.passiva e activa, mais vigorosa e preserverante que a da omnipotência legislativa, produzia resultados sempre contrários ás leis da desamortisação.

As igrejas e mosteiros, conforme a estas leis, não podiam comprar bens de raiz, não os podiam receber em pagamento de suas dividas, nem possuir sem especial licença regia.

Podiam adquirir por deixa ou legado, mas eram obrigados a vender dentro de anno e dia.

Podiam obter licença para adquirir por outros titulos, mas só até determinada sotnma, que não podiam exceder.

Mas todas estas providencias, apesar de não serem destituídas de sancção, comprehensiva do confisco dos bens illegalmente adquiridos, illegalmente retidos, não evitaram que os contratos de acquisição progredissem, que bens sobre bens de raiz por deixas e legados não fossem incorporados nos próprios das igrejas e mosteiros, e que as novas acquisições' não fossem muito alem das sommas fixadas nas licenças, acobertando-se com ellas.

Acostumados os clérigos e frades a não ver nas leis'da desamortisação senão letra morta, não curaram, em geral, de solicitar licença regia, ou permissão para adquirir ou para reter a posse dos bens adquiridos alem do anno e dia, nos casos da -citada ord. filip. liv. 2.° tit. 18." § 2.°

E não se enganaram, pois que em logar de se lhes impor o perdimento dos bens, se lhes ordenou pelo alvará de 30 de julho de 1611, que dispozessem livremente dos que illegalmente possuíssem, concedendo-lhes para esse fim o praso de um anno.

Este praso foi prorogado, concedendo-se mais seis mezes, por uma provisão de 13 de agosto de 1612, expedida pelo desembargo do paço sobre especial ordem regia.

E é para notar que ainda não se cumpriu durante esta proroga a disposição do citado alvará de 1611. Pelo contrario uniram-se as igrejas e communidades religiosas para representar a El-Rei as causas e rasões por que entendiam que o mesmo alvará não devia ter effeito nem ser executado.

Mas o resultado de taes representações foi um terminante indeferimento, expresso no alvará de 23 de novembro de 1612, nas palavras: «Hei por bem, que assim se cumpra a dita lei inteiramente, como n'ella se contém», concedendo por equidade uma segunda proroga por outros seis mezes.

Parecia que esta resistência mansa por parte das igrejas e ordens religiosas devia ter cessado. Aconteceu porém o inverso, pois que as representações continuaram; o rei teve que mandar examinar novamente as causas e rasões allegadas n'essas representações, e para remover a resistência teve que ceder a ella, prorogando o ultimo praso, não já por seis mezes, mas por um anno inteiro e util a contar desde o dia em que terminavam esses seis mezes.

Tudo isto consta dos termos em que foi redigido o alvará de 20 de abril de 1613.

Desde então as amortisações de bens de raiz ficaram em plena paz. Outras guerras de sangue opprimiam a nação; as igrejas e mosteiros, assim como a principal nobreza donatária, da coroa, todos á porfia, á excepção de alguns traidores, tomaram parte com cabedaes, armas e soldados, nas lutas da independência nacional, e'não era certamente essa a epocha mais opportuna para se pugnar pela execução das leis repressivas da amortisação'; mesmo que se pugnasse e os bens se vendessem ao desbarate não havia compradores, e seria então realmente um grande peccado, um quasi sacrilégio, que elles se prevalecessem do vil preço por que taes bens teriam de ser vendidos.

Em tempos mais prósperos, de mais força governativa, quaes os que a Providencia reservou ao grande ministro do senhor D. José I, foram ratificadas, ampliadas e declaradas as leis de amortisação, ou antes de desamortisação, pelas leis de 4 de julho de 1768, e de 12 de maioe 9 de setembro de 1769.

Estas leis alteraram de um modo sensível as leis'da desamortisação em quanto: