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Em virtude de resolução da camará dos dignos pares do reino, tomada em sessão de hoje, se publica o seguinte:

PARECEU S.° 113

Dado pela commissão de fazenda da camará dos dignos pares sobre o projecto n.° 100

Dignos pares do reino.—Foi pela mesa d'esta camará remettido á sua commissão de fazenda o projecto de lei n.° 100, vindo da camará dos srs. deputados, nos momentos próximos ao encerramento das cortes geraes, tendo por objecto a desamortisação não só dos bens de raiz possuidos pelas igrejas e conventos de religiosas existentes, em conformidade e no espirito das leis do reino, mas comprehen-dendo outrosim n'ella os foros, censos ou pensões, constituídos n'esses bens, sem exclusão dos bens e direitos domi-nicaes d'esta natureza, que fossem da fundação ou dotação das mesmas igrejas ou conventos.

A commissão de fazenda deu-se logo, desde os primeiros dias da presente sessão legislativa, ao estudo e exame d'este projecto, muito antes portanto das instancias feitas pelo governo, para que o assumpto fosse considerado com a possivel brevidade.

A commissão entrou desassombradamente n'este exame desde que viu que se não tratava do lançar na voragem dos bens vacantes os referidos bens e direitos, mas só de uma subrogação, ou antes de trocar amortisação por amor-tisação, em beneficio do culto, sustentação do clero, e subsistência dos mesmos ou de outros estabelecimentos de religiosas, se alguns dos existentes fossem canonicamente sup-primidos.

Podia a commissão concluir desde já por emittir o seu parecer; mas, sendo do alta importância e gravidade esto objecto, entendeu que lhe cumpria dar conta do estudo que fez, e das diversas considerações que lhe foram presentes.

Assim demonstrará perante a nação, perante a camará dos dignos pares, o que leva dito; imprimirá ao seu parecer o cunho da meditação que empregou; e poupará porventura aos dignos pares algum trabalho em investigar e descobrir os elementos históricos e legislativos concernentes.

Releve pois a camará á commissão, que ella preceda o seu parecer de algumas observações sobre a origem dos bens da igreja; sua primitiva Índole e natureza; assim antes como desde a monarchia portugueza; legislação pátria so-tria sobre as leis da amortisação; e ultimas reformas, que affectaram profundamente a situação, assim dos estabelecimentos ecclesiasticos, como dos conventos de religiosas, que não foram envolvidos na extineção geral dos do sexo masculino.

Obtida a paz da igreja, á custa de muita fé, perseverança, virtude e sangue, houve um imperador, que foi incansável em fazer erigir templos e altares, e em dotar as igrejas com riquezas de toda a espécie, porventura superiores ás que os monarchas das nações desmembradas do império romano depois lhes liberalisaram ou permittiram que por ellas fossem adquiridas.

N'este systema de liberalidades e de favor aos christãos, inversão completa da feroz perseguição anterior, a legislação dos imperadores romanos se tornou indefinidamente protectora das acquisições á igreja: todos os meios e modos auctorisados de adquirir bens de qualquer espécie, quer por titulo oneroso, quer por titulo gratuito, lhe foram permitti-dos: todos os meios e modos de alienar lhe foram tolhidos. Tal foi a legislação consignada no código de Justiniano e exuberantemente explicada, desenvolvida e sanecionada nas subsequentes novellas.

E porém de notar que n'esses tempos pouco mais existia que um simulacro de respeito á propriedade privada sobre os immoveis; que as terras dos particulares se achavam de pousio ou abandonadas; e que a miséria no império seaggra-vava de dia para dia em escala sempre ascendente.

N'esta situação o clero tinha uma missão especial a cumprir, como cumpriu, qual a de considerar nos seus immoveis. um mero deposito em favor da miséria publica. Deu-lhes mesmo a qualificação de património dos pobres, e isentas ou alliviadas quasi sempre as terras da igreja dos encargos tributários ou fiscaes, poderam servir de asylo e sub-

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sistencia a cidadãos que o fisco ou a invasão tinha arruinado.

Não tiveram essas riquezas só por fim o esplendor do culto, a sustentação dos seus ministros, a edificação de templos, cuja magnificência mesmo por entre as suas ruinas ainda os séculos admiram; tiveram também por objecto fundar e dotar os brepliotrophios, os orphanotrophios, os no-socomios, e outros estabelecimentos de piedade em favor do3 expostos, dos orphãos, do3 velhos, dos enfermos e dos pobres em geral.

Não admira pois que n'esta situação os imperadores christãos se identificassem com o espirito da igreja, e a coadjuvassem, para engrossar esse monte commum de piedade, esse património dos pobres e desvalidos.

Era então a igreja, e depois tem sido sempre, mais ou menos, um estado no estado, ensinando com o seu exemplo aos reis e povos da terra, o que a civilisação moderna, filha do christianismo, tem tomado e vae continuando a tomar, como uma das mais nobres attribuições do poder temporal, a de soccorros públicos á humanidade afHicta.

Tanto se compenetraram os ministros da igreja da Índole e natureza dos bens respectivos, que elles se consideraram meros economos ou dispensadores, e n'esta persuasão, uma infinidade de prelados, riquíssimos de meios pecuniários até aos últimos instantes da sua vida, chegaram a não ter mais para dar aos pobres que o pobre leito em que jaziam semi-vivos, se é que ainda o tinham de seu na hora extrema.

Era mais que abnegação, degeneravam em uma santa prodigalidade tamanhas liberalidades em favor dos pobres, o que seria hoje fácil demonstrar, segundo as doutrinas ensinadas pelos jurisconsultos modernos, e consignadas em diversos códigos da Europa que se diz civilisada, quando tratam de qualificar a prodigalidade ou abuso de propriedade.

A censura porém seria mal cabida, a igreja pugnava a favor da sua posse, contra a alienação dos seus bens, não tanto em rasão do- seu direito de propriedade, como da applicação moral, evangélica e eminentemente social, a que esses bens eram destinados.

No direito canónico assim se acha consignado muitas e muitas vezes. Bastará apontar das decrctae3, parte 2.a, causa 10.a, questão 2.a, que se inscreve =Ros ecclesiaj ali -quo modo episcopis alienare non licet = aonde se lê no can. l.°, extrahido do concilio agathense: «integro ecclesia3 jure possideant, id est, ut, neque vendere, neque per quos-cumque contractus res, unãe pauperes vivunt, alienare prav sumant».

Era pois esta uma propriedade sui generis, n'esses tempos, que se seguiram á paz da igreja. Era uma propriedade que não pertencia ao fisco, mas de que também não pertencia á igreja mais que a posse e administração. Essa propriedade, satisfeitas as necessidades do culto e as da sustentação dos seus ministros, pertencia a urna classe de homens indeterminada, viva, existente sempre nas sociedades ainda as mais ricas, e em que o trabalho não falta nem o salário correspondente; a uma classe de homens, que só se individualisa, verificada a orphandade, a miséria, a doença ou a velhice.

Uma propriedade, que, em relação ais seus administradores, é muito similhante, ou antes da mesma natureza, que a que se dá nos administradores dos nossos hospitaes, misericórdias e asylos, que não fazem mais que representar uma individualidade juridica, para, nos termos da lei commum, exercerem aquelles direitos civis que forem relativos aos interesses legitimos do seu instituto.

E todavia de notar que nos séculos da idade media não foi tranquilla a administração dos bens da igreja, pois que as perturbações e as espoliações foram frequentes.

O auctor immortal do Espirito das leis diz a este respeito, que o clero adquiriu tanto, que- em tres raças tinha absorvido todos os bens da França. Mas que se os reis, os nobres e o povo acharam meio para lhe dar todos os seus bens, também o encontraram para delles o despojar.

« Mais si les rois, la noblesse et le peuple trouvèrent le moyen de leur donner leurs biens, ils ne trouvèrent pas moins celui de les leur ôter».

A primeira proposição é eminentemente hyperbolica, visa ao paradoxo; mas a segunda é de uma exactidão manifesta.

Pepino, que se propunha ser o vingador das espoliações contra a igreja, succedia aseupae, que, importando-se muito pouco com o direito ecclesiastico, se apropriou dos predo s da igreja, para os distribuir aos seus soldados.

«Karolus plurimum juri ecclesiastico detrahens, prsediai fisco sociavit, ac deinde militibus dispertivit,» diz a chro-nica.

Os bispos não deixaram de protestar energicamente contra as usurpações dos grandes da terra.

«A cólera divina, clamavam elles, está suspensa sobre vossas cabeças. Os bens da igreja, que os reis e outros christãos têem destinado ao allivio dos pobres, á redempção dos captivos, á restauração dos templos de Deus, estão hoje nas mãos dos filhos do século».

A estes clamores correspondiam as providencias, já canónicas, já seculares, proclamando a inalienabilidade dos bens ecclesiasticos, providencias que se repetiam e multiplicavam na rasão directa das invasões, das espoliações commettidas contra a administração da igreja, e do perigo a que ficava sujeita para o futuro em vista de taes precedentes.

Mas as alienações' praticadas pelos reis e grandes da terra sobre os bens da igreja constituiu esta n'um estado violento, para reivindicar os bens usurpados, e ora triumpha-va o principio de não prescripção, ou da prescripção somente de quarenta e cem annos, com titulo e boa fé, ora os possuidores se despojavam, sem contenda de juiso dos

bens de que não tinham outro titulo mais que o da tranquilla posse, transmittida por herança de seus maiores, mas que mais não podiam reter sem peccado, desde que se lhes mostrava que os bens, que assim possuiam, haviam pertencido á igreja.

Estas violências tornaram menos aceitável no espirito publico uma parte da propriedade da igreja, que ella não podia rehaver já a favor dos pobres, senão tornando pobres os possuidores d'essa propriedade, que haviam recebido por successão á sombra da auctoridade publica e de decretos, embora despóticos e expoliadores.

E também importante notar que por entre as prohibições de alienar não se comprehendiam áquellas que fossem indispensáveis para satisfazer ao fisco as dividas que as igrejas tivessem para com elle.

No concurso ou confiicto dos interesses públicos tinham, na ordem dos privilégios, a primeira graduação os interesses fiscaes, a segunda os das igrejas.

Já a novella 46.a' tinha vindo corrigir a novella 7.a com relação aos interesses fiscaes, ordenando que em taes casos, provando-se que a divida ao estado não podia ser solvida senão pela venda dos bens immoveis das igrejas, devia esta ter logar, e o comprador pagava então o preço aos perce-ptores fiscaes, sem temer de futuro uma acção de reivindicação; e porque pareceu muito extraordinário que ao estado se attribuisse tal privilegio, sem contemplar os mais credores das igrejas, Justiniano havia decidido que ellas podessem abandonar em pagamento creditório os immoveis que possuíssem.

Não só isto, da regra absoluta da alienação era exceptuada a troca dos bens da igreja, por meio de expropriação forçada, umaivez: 1.°, quo o principe assim o ordenasse, por um modo solemne e authentico; 2.°, em rasão de interesdf publico; 3.°, e a subrogação fosse constituída em cousa maior, melhor ou igual.

E expresso assim em uma constituição dos imperadores romanos, Leão e Anthemio, nas palavras:

« Sed et permutare principi licet pro re majori, meliori, vel sequali, si respublica hoc exposcit, et pragmática forma super hoc prascedente ».

E esta disposição foi expressamente aceitada e reconhecida pela igreja, pois que se lê textualmente transcripta no corpo das decretaes.

Expostas estas considerações retrospectivas sobre a origem e primitiva natureza e applicação dos bens da igreja, com relação a uma epocha anterior'á monarchia portugueza, não pôde a commissão deixar de lançar as suas vistas também, sobre o que especialmente respeita á igreja lusitana.

Participante a igreja lusitana, em grande parte, assim das tradições do direito romano, como das influencias do direito canónico, a sua situação e principios deviam ter sido análogos, se não tivessem sido consideravelmente modificados, já pelas invasões dos bárbaros e sarracenos, já pelos direitos de conquista exercidos pelos mesmos christãos, em consequência da expulsão dos infiéis.

Todavia nem os invasores nem os conquistadores deixaram de respeitar, se não de um modo pleno, ao menos em grande parte, os bens immoveis das igrejas e mosteiros.

O direito de conquista, que não respeitando n'esses tempos a liberdade pessoal, monos acatava a propriedade individual, quanto mais a collectiva, imprimiu na conservação da posse d'esses bens um certo cunho de tolerância e de favor, que a converteu virtualmente em graça soberana, o que igualmente se verificou com relação á repartição do paiz conquistado, e distribuido pelos companheiros de D. Henrique, do senhor D. AfFonso e de seu filho, entrando n'esse numero os próprios prelados e abbades, que tomaram parte nas lutas sustentadas contra os sarracenos.

Este direito de conquista, até certo ponto o vicio dos costumes feudaes, e os foraes dados ás terras do reino, nivelaram os prelados das igrejas e mosteiros aos mais senhores e magnates donatários da coroa.

Foi consignada a respeito d'e3tes a reversão á coroa; mas porque, a respeito dos corpos de mão morta ecclesiasticos, não podia ter logar a reversão pelos mcio3 ordinários, da falta de successão ou do confisco nos bens vacantes, procu-rou-se por todos os modos indirectos prevenir esse inconveniente, restringindo-se a amortisação.

Systema bem contrario ao código de Justiniano e dás no-vellas facilitando ás igrejas todos os meios auctorisados em direito para adquirir.

Estas restricções crearam um direito especial coevo com a monarchia, desde o seu berço ; segundo essse direito as igrejas e mosteiros, só por excepção, só por graça do poder absoluto, podiam ter capacidade juridica para adquirir bens de raiz.

E o que se manifesta da mercê feita pelo senhor D. Af-fonso Henriques ao abbade do mosteiro de S. Salvador de Castro, permittindo-lhe adquirir bens de raiz por titulo oneroso ou de herança, e da do sr. D. Sancho II ao mosteiro de Alcobaça, para que observadas certas clausulas podesse succeder aos seus monges.

E certo porém que, sem embargo das leis prohibitivas da amortisação, os clérigos e os mosteiros continuaram de facto na acquisição de bens de raiz, e foi por isso que o sr. D. Diniz, por lei de 10 de julho de 1286, não só lhes pro-hibiu adquirir taes bens d'essa data em diante, mas lhes ordenou que vendessem os que possuíssem. Alguns annos depois o mesmo rei se viu obrigado a modificar esta desamortisação, declarando não comprehender n'ella os bens dotaes das igrejas, como se vê de outra lei com data de 1309.

Esta declaração foi visivelmente nascida da reluctancia ,do clero e dos monges; foi adrede obtida no intuito de fazer com que a excepção a favor da amortisação absorvesse a regra da desamortisação; n'uma palavra, que os bens de raiz adquiridos por qualquer titulo revestissem por tal forma

as apparencias de dotaes, que esses bens fossem retidos e não vendidos a pessoas seculares como a lei determinava.

Não só conseguiram por esta forma o seu intento, mas novas infracções continuaram.

Taes e tantas foram ellas que osr. D. Affonso V se viu forçado a ratifica-las, permittindo ás igrejas e mosteiros a conservação dos bens de raiz que tivessem adquirido desde a morte do sr. D. João I até ao anno de 1447, ordenando comtudo, como havia praticado o sr. D. Diniz, que dali em diante se guardassem mui rigorosamente as leis da amortisação.

Este direito foi aceitado e ratificado com as cortes de Lisboa em 1371, donde foi tirada a ord. do sr. D. Manuel, liv. 2.° tit. 8.°, e depois a de D. Filippe IÍ, tit. 18.° do mesmo livro; direito recebido e concordado entre os monar-chas e os mesmos ecclesiasticos, como se vê das concordias do sr. D. Diniz, do sr. D. Pedro e do sr. D. João I.

«Assi se guardou sempre (responde este monarcha a um «dos trinta capitulos da Concórdia que lhe foram propos-«tos) assi se guardou sempre cm tempo dos ditos reis e do «seu, porque de outra guisa resultaria grande dano á terra «e seria mqito contra seu serviço, o' a rasão porque os reis «esta cousa fizeram, foi por bem e guarda do seu reino, que «se não mudasse em outro estado, cá bem vem os prelados, «que por os bens que ora tem recrecem estas contendas. E «se desde então até ora não fora reteudo toda a maior parte «do reino fora em sua mão».

As leis, os assentos de cortes, os códigos de legislação pátria, as concordatas mesmo, preserverantes sempre em consagrar o principio da desamortisação, foram inefficazes para impedir o progresso das acquisições immobiliarias.

Um século se succedia a outro século, os annos volviam sobre outros annos, e uma força.passiva e activa, mais vigorosa e preserverante que a da omnipotência legislativa, produzia resultados sempre contrários ás leis da desamortisação.

As igrejas e mosteiros, conforme a estas leis, não podiam comprar bens de raiz, não os podiam receber em pagamento de suas dividas, nem possuir sem especial licença regia.

Podiam adquirir por deixa ou legado, mas eram obrigados a vender dentro de anno e dia.

Podiam obter licença para adquirir por outros titulos, mas só até determinada sotnma, que não podiam exceder.

Mas todas estas providencias, apesar de não serem destituídas de sancção, comprehensiva do confisco dos bens illegalmente adquiridos, illegalmente retidos, não evitaram que os contratos de acquisição progredissem, que bens sobre bens de raiz por deixas e legados não fossem incorporados nos próprios das igrejas e mosteiros, e que as novas acquisições' não fossem muito alem das sommas fixadas nas licenças, acobertando-se com ellas.

Acostumados os clérigos e frades a não ver nas leis'da desamortisação senão letra morta, não curaram, em geral, de solicitar licença regia, ou permissão para adquirir ou para reter a posse dos bens adquiridos alem do anno e dia, nos casos da -citada ord. filip. liv. 2.° tit. 18." § 2.°

E não se enganaram, pois que em logar de se lhes impor o perdimento dos bens, se lhes ordenou pelo alvará de 30 de julho de 1611, que dispozessem livremente dos que illegalmente possuíssem, concedendo-lhes para esse fim o praso de um anno.

Este praso foi prorogado, concedendo-se mais seis mezes, por uma provisão de 13 de agosto de 1612, expedida pelo desembargo do paço sobre especial ordem regia.

E é para notar que ainda não se cumpriu durante esta proroga a disposição do citado alvará de 1611. Pelo contrario uniram-se as igrejas e communidades religiosas para representar a El-Rei as causas e rasões por que entendiam que o mesmo alvará não devia ter effeito nem ser executado.

Mas o resultado de taes representações foi um terminante indeferimento, expresso no alvará de 23 de novembro de 1612, nas palavras: «Hei por bem, que assim se cumpra a dita lei inteiramente, como n'ella se contém», concedendo por equidade uma segunda proroga por outros seis mezes.

Parecia que esta resistência mansa por parte das igrejas e ordens religiosas devia ter cessado. Aconteceu porém o inverso, pois que as representações continuaram; o rei teve que mandar examinar novamente as causas e rasões allegadas n'essas representações, e para remover a resistência teve que ceder a ella, prorogando o ultimo praso, não já por seis mezes, mas por um anno inteiro e util a contar desde o dia em que terminavam esses seis mezes.

Tudo isto consta dos termos em que foi redigido o alvará de 20 de abril de 1613.

Desde então as amortisações de bens de raiz ficaram em plena paz. Outras guerras de sangue opprimiam a nação; as igrejas e mosteiros, assim como a principal nobreza donatária, da coroa, todos á porfia, á excepção de alguns traidores, tomaram parte com cabedaes, armas e soldados, nas lutas da independência nacional, e'não era certamente essa a epocha mais opportuna para se pugnar pela execução das leis repressivas da amortisação'; mesmo que se pugnasse e os bens se vendessem ao desbarate não havia compradores, e seria então realmente um grande peccado, um quasi sacrilégio, que elles se prevalecessem do vil preço por que taes bens teriam de ser vendidos.

Em tempos mais prósperos, de mais força governativa, quaes os que a Providencia reservou ao grande ministro do senhor D. José I, foram ratificadas, ampliadas e declaradas as leis de amortisação, ou antes de desamortisação, pelas leis de 4 de julho de 1768, e de 12 de maioe 9 de setembro de 1769.

Estas leis alteraram de um modo sensível as leis'da desamortisação em quanto:

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1. ° Não só mencionaram as igrejas, ordens e mosteiros, mas comprehenderam expressamente quaesquer corpos ãe mão morta.

2. ° Lhes permittiram a retenção de uma parte de domínio n'esses fyens, com tanto que os foros e laudemios não fossem superiores aos anteriormente estipulados, ficando assim modificada a execução do alvará de 1611.

3. ° Converteram os prasos vitalícios em perpétuos, para se evitar o perigo da consolidação, exceptuados comtudo os feitos em bens da fundação e dotação, mas prohibida sempre a mesma consolidação.

4. ° Prohibiram, que, pelos foros e laudemios de cursos, podessem em caso algum ser-lhes adjudicados os prédios onerados, mas somente arrendados pelo mesmo juizo da execução.

5. ° Permittiram aos individuos do clero secular, optar para si os prasos ecclesiasticos, com a clausula de os passarem por morte a pessoas leigas.

6. ° Mandaram applicar as leis das sesmarias ás igrejas, ordens e mosteiros que tomassem o mau partido de suspender nos emprasamentos dos terrenos incultos, que possuiam de antigos tempos, e de que costumavam fazer datas a titulo de aforamento.

Comtudo uma grande difficuldade havia a vencer quanto a futuras acquisições provenientes das ultimas vontades. O principio constantemente seguido, e fortemente arreigado nos costumes nacionaes, da inviolabilidade das disposições testamentárias, era uma fonte perenne de novas acquisições.

Não se achando estas prohibidas, antes expressamente resalvadas desde o assento em côríes de Coimbra, tomado em 1212, até ao disposto no § 2.° tit. xvm da ordenação do reino em vigor, salva a obrigação do alienar dentro de anno c dia; e sendo manifesto pela historia da execução, ou antes da inexecução, das leis repressivas da amortisação, que similhante condição havia sido por mil modos e pretextos constantemente illudida; introduziu-se nas leis do grande ministro um principio novo, qual o de se declararem nullas todas as disposições e convenções, causa mortis ou inter vivos, em que fosse instituida a alma por herdeira.

Em todas estas disposições especiaes para os corpos de mão morta de uma natureza ecclesiastica ou religiosa so não tiveram em vista os principios económicos em toda a sua extensão sobre a desamortisação em geral, como provam as leis da mesma epocha sobre as amortisações em morgado ou capella, a doação feita á universidade de Coimbra dos bens que haviam pertencido á extincta congregação dos jesuítas, e as favoráveis disposições que respeitam ás misericórdias e hospitaes.

N'esta situação se achavam as igrejas e mosteiros ao tempo em que o immortal libertador, o avô do nosso augusto monarcha, restaurou o reino das garras do despotismo e da usurpação; e as successivas reformas e providencias adoptadas para bem commum dos povos, e em parte como meio de guerra, durante a dictadura que exerceu, mudaram ou extinguiram completamente essa situação, por tal forma que hoje não restam ás igrejas e conventos não sup-primidos, mais que relíquias dos meios de que dispunham para manutenção do culto ou para desempenho dos deveres inherentes aos fins de seus institutos.

As fabricas acham-se ainda hoje sem meios de custear as suas respectivas despezas; as sacristias sem alfaias; os ministros do culto sem subsistência; os palácios dos bispos já não só não podem hospedar os grandes do reino, e menos os príncipes, mas nem a elles já correm os pobres a exigir a esmola que lhes era devida; os templos, uns ameaçam ruína, outros para ella caminham a passo largo se não forem quanto antes reparados; uma contribuição desigual, por isso mesmo que é voluntária, está pesando sobre uma parte dos cidadãos, acudindo por donativos, sempre insufficientes, para edificar ou reconstruir novas igrejas parochiaes; em muitas dioceses do reino os bispos estão sem cabido ou não têem cónegos que os acompanhem nos actos' solemnes do culto; quanto aos conventos de religiosas teriam muitos de ser fechados, e as freiras expulsas, por medida preventiva, para não serem, mais dia menos dia, esmagadas pelas paredes e abobadas seculares de seus ediècios, se o governo lhes nao tivesse acudido, como tem sido compativel com os escassos recursos de que tem podido dispor.

E na presença da legislação apontada e da situação des-cripta, que a commissão de fazenda foi forçada a estudar e examinar a proposta de lei, vinda da camará dos srs. deputados, tendo por objecto a desamortisação dos bens prediaes ou direitos immobiliarios que ainda forem actualmente possuidos pelas igrejas e conventos de religiosas; praticada por meio de subrogação por outros bens não ter-ritoriaes, mas estáveis e equiparados aos immoveis para os effeitos de outras amortisações, pelo mesmo meio, quer perpetuas quer temporárias, em conformidade com as leis em vigor.

A commissão, depois de terminar o seu exame retrospectivo, procurou elevar-se á altura do assumpto, contem-plando-o em todas as suas relações sociaes, religiosas, objectivas e subjectivas, de presente e de futuro.

Antes de tudo, a commissão viu diante de si a igreja, e logo depois os conventos de religiosas, nascidos da igreja; que para ella vivem, e que no espirito da sua moral, como asylo, como instrucção, como exemplo das virtudes chris-tãs, especialmente as de amor e dedicação á humanidade afflicta, devem continuar a existir.

A commissão, vendo a igreja, não podia deixar de sentir, e n'este sentimento a impressão da electricidade moral que affecta e deve affectar profundamente os representantes da nação portugueza, eminentemente catholica apostólica romana.

Inútil foi á commisão a pressão, que podia fazer sobre seu espirito, ver na igreja lusitana uma pedra angular do nosso edifício social, segundo a expressa disposição da lei fundamental do estado, que esta camará jurou manter illesa.

A carta constitucional não fez n'isto mais que homologar um facto preexistente, inseparável da vida moral e politica da sociedade portugueza; e assim, se é certo que a igreja está -no estado, não é menos certo que o estado está na igreja.

Comtudo, com quanto a igreja e o estado sejam em Portugal uma e mesma pessoa moral, quando circumseripta aos limites do território portuguez, a commissão não podia deixar, transpondo esses limites, de ver também na igreja lusitana uma pessoa moral distincta, como fracção da igreja universal, e assim de ver n'ella a parte de um todo, cujo chefe visível na terra é o successôr de S. Pedro.

A commissão, fiel interprete dos sentimentos e deveres religiosos da camará dos dignos pares, não podia deixar de so compenetrar, assim do mais profundo respeito para com o pae commum dos fieis, como da firme intenção de não invadir de modo algum, nas providencias que tinha a considerar, não só as attribuições do poder meramente espiritual, mas nem mesmo as que o summo pontifice ou os príncipes diocesanos da igreja lusitana costumam exercer em matérias disciplinares.

A commissão porém não podia assim prestar homenagem ao dever religioso sem deixar de ter constantemente presente o dever social. Cumpriu n'isto mesmo o preceito que lhe manda dar a Deus o que é de Deus, a Cesar o que é de Cesar.

Se a igreja lusitana se identifica em espirito com a nação portugueza, não podo esta manifestar senão uma só vontade, a qual, assim como não pôde moralmente ser rebelde aos dictames do evangelho, também não pôde sor repugnante aos interesses sociaes.

Não podem mesmo estar nunca em opposição os interesses sociaes com aquelles dictames; as leis civis com os cânones da igreja; senão por abuso ou por erro dos homens, senão por fanastismo ou por ignorância dos verdadeiros principios.

Os precedentes, as tentativas, as pretensões, quer de invasão do falso liberalismo sobre o poder da igreja, quer de usurpação do espúrio catholicismo sobre o poder do estado, não podiam perturbar um só instante a commissão no cumprimente» complexo dos seus deveres, que se cifram na protecção reciproca do estado e da igreja.

Possuida a commissão d'estes sentimentos, d'estas idéas e d'estes deveres, que entende serem os de toda a nação portugueza, entrou no exame da proposta que veiu da camará dos srs. deputados, relativa á desamortisação dos bens de raiz possuídos pelas igrejas e pelos conventos de religiosas não extinctos.

Como em relação ás cousas e negócios da igreja ha dois poderes distinctos, o espiritual e o temporal, a commissão não podia deixar de ventilar, como ventilou, a questão previa da sua competência legislativa.

Podia dar-se, ou a incompetência absoluta, excluída a competência temporal pela do poder espiritual; podia reconhe-cer-se a competência absoluta, excluída a competência ecclesiastica pela do poder civil; podia ser admittida a competência simultânea ou concurso dos dois poderes.

No primeiro caso a commissão, sem se prender com o julgado virtual da camará dos srs. deputados, rejeitaria in limine a referida proposta de lei; no segundo caso desceria com firmeza ao exame que lhe foi incumbido pela camará dos dignos pares; no terceiro caso teria a deliberar de dois modos, ou concluindo pelo adiamento da mesma proposta até que o governo obtivesse do summo pontifice por uma concordata a,conveniente approvação, ou passaria ao immediato conhecimento do objecto, tornando as disposições que adoptasse dependentes da mesma concordata, inserindo para este effeito na lei uma clausula suspensiva.

N'este terceiro caso e verificado um conflicto, a commissão deliberaria depois, sobre nova proposta de lei, qual o arbítrio racional que lhe cumpria adoptar a bem da igreja e da sociedade.

A commissão n'esta questão preliminar decidiu-se unanime e sem a menor hesitação pela competência exclusiva e absoluta do poder legislativo segundo a carta constitucional.

Viu nos bens de raiz e direitos immobiliarios fruídos pelas igrejas ou pelos conventos de religiosas, assim como nos factos da posse e administração d'esses bens, direitos meramente civis, cujo exercicio só podia ter logar nos termos que fossem fixados e regulados pela lei civil.

Viu pela exposição que fica feita, sobre as leis da desamortisação, que desde a origem da monarchia, com quanto fosse reconhecida aos corpos moraes, igrejas, ordens e mosteiros, a capacidade jurídica para adquirirem toda a sorte de propriedade, mobiliaria ou immobiliaria, lhes era com- j tudo limitada e restringida essa capacidade nas suas consequências legaes quanto á retenção ou posse civil dos bens de raiz. 1

Viu constantemente imposta por essas leis a esses corpos moraes a obrigação de se desapossarem dos bens de raiz, por meio da venda, dos aforamentos perpétuos ou das datas pelos sesmeiros.

Viu especialmente, quanto á proposta de lei já approvada pela camará dos srs. deputados, que não se tratava n'ella senão de muito menos que da venda, ordenada pelas leis anteriores da desamortisação, pois que se limitava a uma operação composta, em que o valor venal obtido pela venda de bens de raiz, ou pela remissão de direitos domi-nicaes, não é mais que um meio de equidade preliminar de subrogação por outros bens equivalentes segundo as leis, e susceptiveis de troca de uma por outra amortisação, co-

mo bens de raiz, e se está verificando para effeitos vinculares, dotaes, de fianças fiscaes e similhantes.

Viu finalmente, que, alem de justificada assim completamente a competência do poder civil, se achava esta reconhecida expressamente na hypothese de que se trata no corpo do direito canónico, como se mostra do texto supracitado :

«Permutare principi licet pro re majori, meliori, vel sequali, si respublica hoc exposcit, et pragmática forma super hoc prsecedente». *

Ora a permutação ou subrogação, que a proposta de lei determina, tendo em definitiva de ser realisada por inscri-pções, pelo preço do mercado, importa não só o equivalente do valor dos bens e direitos subrogados, como se contenta a prescripção da citada disposição do direito canónico, mas um valor superior em rendimento, e este liquido dos grandes encargos e despezas da administração.

Acresce, quanto ás igrejas, cabidos, mitras, collegiadas, seminários e suas fabricas, a situação cm que se acham e em que ficaram desde os decretos que extinguiram os dízimos, e que aboliram os foros ou os reduziram, quando constituídos por contratos especiaes sobre bens provenientes de doação regia ou originários da coroa.

Depois d'estas medidas as igrejas passaram do estado da opulência ao da maior penúria.

No relatório que acompanhou o decreto de 16 de março de 1832 havia o ministro annunciadó, por occasião da re-ducção dos dízimos das ilhas dos Açores, a abolição geral dos mesmos dizimos, mas ao mesmo tempo declarou que essa abolição seria não só dependente ãe informações mais explicitas, mas que seria precediãa ãa completa organisação ãa subsistência ão clero, porque a religião é necessária ao homem, e os ministros ão altar devem ser independentes e bem pagos.

Mas circumstancias imperiosas obrigaram o mesmo ministro, com outros de que se compunha o gabinete do senhor D. Pedro IV em 1832, a referendar outro decreto com data de 30 de julho, no qual se ordenou para o reino essa completa abolição, sem que precedessem as promettidas informações mais explicitas, nem a completa organisação da subsistência do clero.

Este decreto se remetteu porém á promulgação de outro especial, regulamentar das necessidades do culto e de seus ministros, garantindo a todos côngruas sustentações que os fizessem decentes e independentes.

Infelizmente esta promessa ainda se não acha cabalmente cumprida nos termos em que foi feita!

Todavia alguns elementos d'esta dotação se têem conservado, e a commissão aguarda anciosamente o momento em que a nação portugueza, que olha para si mesma quando attende ás necessidades da igreja lusitana, proverá pelo intermédio dos seus representantes como cumpre em tão ponderoso como* vital interesse moral e social.

E tanto mais que outro decreto posterior ao da extinção dos dizimos veiu, como fica dito, em proveito dos interesses materiaes dos povos, aggravar a situação das igrejas, qual o de 13 de agosto de 1832, extinguindo os foraes e prestações foraleiras.

Debalde se pretendeu, pela muito discutida e bem reflectida lei de 22 de junho de 1846, retrogradar nos effeitos resultantes d'aquelle decreto, já restringindo a sua disposição extinctiva de foros aos provenientes de titulo genérico, já salvando da extineção os foros meramente patrimoniaes, sem origem da coroa, já concedendo somente aos foreiros uma reducção na quarta parte quanto aos impostos em bens com a dita origem. O bem ou mal relativo achava-se con-summado; e esta lei, bem contra a intenção dos legisladores, tem dado occasião a centenares de demandas, de injustiças e de escândalos.

Ora são os cabidos, mitras e collegiadas, opprimindo os possuidores dos prédios, ora são estes dolosamente sustentando, como derivados da lei, direitos de que ella os não alliviou ou de que só lhes diminuiu uma quota parte'.

N'esta luta de interesses materiaes entre fieis e seus ministros, entre irmãos espirituaes, luta fratricida, e em que, sobre questões de direito especial, espinhosas, do difficil solução, se apresentam ora vencedores, ora vencidos, ora amaldiçoando, ora talvez amaldiçoados, ha sem duvida alguma cousa de immoral, de anti-religioso e de repugnante assim com a mansidão, espirito de paz e de caridade christã, de que devem dar o primeiro exemplo os ministros de Christo, como de incompatível com o respeito e estima que elles têem direito a esperar dos povos a quem ministram a cate-chese ou os sacramentos, o pasto espiritual tão necessário aos homens. Nec solo pane vivit homo.

Em tal situação é da maior conveniência para as igrejas e para o estado que similhantes lutas acabem de uma vez.

O beneficio da remissão ha de attrahir muitos pensionados a reconhecer a sua obrigação, antevendo as despezas em que se vão envolver não remindo; que não terão a lutar, emquanto não remirem, somente com as igrejas e conventos, mas também com o ministério publico; e que de futuro ficarão dependentes de um comprador que será talvez mais inexorável na cobrança das pensões e mais direito» domi-nicaes.

Os foros não remidos, levados á praça, hão de subir de preço por virtude da licitação, já em rasão de interesses locaes, já de circumstancias pessoaes aos licitantes, que os determinarão á concorrência.

Quanto aos bens de raiz o preço deve ser duplicado e triplicado com relação á utilidade liquida que as igrejas d'elles percebiam. Quer esses prédios andassem arrendados quer administrados, os verdadeiros senhores da fruição principal têem sido os inquilinos ou administradores.

Na venda pois d'estes bens e direitos dominicaes das igrejas pelo systema que vem proposto e approvado pela

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camará dos srs. deputados, entende a commissão que se dá um passo decisivo em favor da dotação do clero, aproveitando-se o que existe, para lhe produzir muito maior rendimento, e facilitando-se ao thesouro completar essa dotação de um modo decente, como exigem os interesses moraes da nação, a honra d'esta camará, a do governo, e a promessa solemne ha perto de trinta annos feita e ainda não cumprida.

Quanto aos conventos de religiosas procedem as mesmas rasões e com muito mais força, porque as religiosas, pela timidez natural do seu sexo e pelo seu estado de clausura, não podendo vigiar nem superintender por si mesmas na administração de seus bens immoveis ou na cobrança de seus direitos dominicaes, hão de tirar um resultado muito cerceado do rendimento liquido dos mesmos bens e direitos.

Acresce que uma boa parte dos foros e pensões pagas ou estabelecidas somente em reconhecimento do domínio directo, segundo a natureza regular da emphyteuse, não valem a pena das despezas da cobrança; que deixando-se atrasar por mais de tres annos só se podem pedir por acção ordinária; que mesmo ficam sujeitos á prescripção os que se deverem alem de cinco annos, como se acha proposto no projecto do código civil; que cessarão de ser privilegiados, como antes eram, sobre os fructos e casco dos respectivos immoveis, se for approvada por esta camará a proposta de credito predial, já approvada pela camará dos srs. deputados.

Não só isto, os conventos de religiosas estão hoje sujeitos a muitas demandas sobre a subsistência integral dos seus foros, censos ou pensões, porque em grande parte provieram taes direitos de contratos celebrados sobre bens prediaes com origem da coroa ou de doações ou deixas de princezas portuguezas, como bemfeitoras ou como noviças ou professas nos mesmos conventos, presumida assim aquella origem nos termos da lei de 22 de junho de 1846, e portanto obrigadas as religiosas a sustentar pleitos difficeis e sempre dispendiosos, como da mesma forma e pela mesma causa está acontecendo ás igrejas.

Todos estes inconvenientes desapparecem pela subroga-ção em inscripções; e melhor ainda, se, para facilitar aos mesmos estabelecimentos a cobrança dos juros respectivos, o governo continuar a ordenar que a junta do credito publico os pague por delegação nas capitães dos respectivos districtos, ou mesmo na recebedoria da comarca em que se acharem conventos de religiosas.

A commissão foi informada pelo governo dc que estão já tomadas e praticadas as providencias adequadas n'este' sentido; mas se esta camará entender que é conveniente que o acto espontâneo do governo se converta em preceito legislativo, a commissão presta desde já a sua completa annuencia a similhante disposição.

A commissão, adoptando as disposições essenciaes do projecto vindo da camará dos srs. deputados, careceu, para se firmar no principio da desamortisação, de ampliar as leis respectivas quanto a foros, por isso que d'estas leis as ultimas se haviam contentado com a alienação do domínio util, d'onde é manifesto que ,os foros, censos, pensões ou quinhões, não eram excluídos da amortisação, antes ordenados e auctorisados.

Todavia, em rigor juridico, estes direitos, como encargos reaes, são um desmembramento da propriedade predial a que respeitam, e por isso podiam ser comprehendidos na mesma prohibição, se as considerações que ficam expostas não justificassem plenamente, no entender da commissão, o referido projecto n'esta parte.

A commissão viu e approvou de bom grado a disposição do mesmo projecto, que, dando destino aos bens dos conventos que forem supprimidos, na conformidade dos cânones, revogou virtualmente o decreto de 9 de agosto de 1833, que havia auctorisado, sem o concurso da auctoridade ecclesiastica, a suppressão indirecta e progressiva dos conventos existentes, por falta de religiosas, eventualidade tão infallivel, como é a dá morte a que se achava encarregado o complemento d'esta providencia, precedida do decreto de 5 do mesmo mez e anno, suspendendo indeterminadamente as admissões a noviciados monásticos de qualquer instituto.

A commissão abunda nas significativas idéas que o projecto de lei manifesta n'esta disposição, porque entende que, por diversas rasões, que não expenderá n'este logar, devem ser conservados alguns conventos de religiosas; uns para a vida ascética; outros como instituições de caridade; outros como viveiros de que possa constituir-se um dia nos estabelecimentos penitenciários para o sexo feminino uma inspecção, instrucção, trabalhos c policia adequada; outros emfim para casas de educação, como alguns que já existem.

Pelo que respeita ao destino dos rendimentos dos conventos supprimidos, a commissão, com quanto entenda que na ordem das applicações designadas devem ter a preferencia os estabelecimentos de communidades com os úteis fins a que alludiu, não podia deixar de approvar o que se refere á sustentação do culto e clero, esperando que, antes de se verificarem as previstas suppressões, a dotação do culto e clero se achará devidamente fixada, por isso que não pôde ser protelado por mais tempo um objecto tão intimamente ligado com os interesses moraes da nação e da igreja lusitana.

A commissão não podia também, desde que se apresentou a idéa da suppressão de alguns conventos e da applicação dos seus rendimentos, deixar de tomar na devida consideração as religiosas, que a esse tempo existissem nelles: inseriu portanto no projecto o respectivo additamento.

• Essas religiosas têem certamente um direito de propriedade, direito de rigorosa justiça, a serem decentemente sustentadas pelos rendimentos especiaes d'es?es conventos, con-

tinuem ou não no estado de clausura, o que deve ficar á sua escolha, assim como o convento a que desejem reti-rar-se.

Por esta occasião, e como idéa intimamente ligada, a commissão não podia deixar de contemplar as religiosas dos conventos supprimidos no mesmo estado civil que as leis têem reconhecido aos egressos, restituindo-lhes a capacidade juridica, individual e de propriedade particular, em tudo quanto fosse compativel com os interesses de família a que activamente ficaram estranhas desde a sua profissão religiosa.

A commissão absteve-se, e muito de propósito, de considerar a importância e utilidade do projecto de lei de que se trata, com relação aos interesses fiscaes ou como medida de expediente em favor do credito publico ou das receitas do thesouro.

Entrem muito embora nos cálculos da organisação ou melhoramento das finanças do estado as vantagens indirectas que devem resultar da adopção das providencias propostas, a commissão não careceu de recorrer a ellas para se firmar na apreciação que fez de taes providencias.

Em conclusão, a commissão para não tornar mais longo o presente relatório, e reservando-se para dar na discussão as explicações que forem necessárias, depois de ter previamente ouvido sts observações e ponderações que foram deduzidas perante ella pelo illustre ministro da repartição de fazenda, é de parecer que o projecto de lei n.° 100, vindo da camará dos srs. deputados, merece nas suas disposições essenciaes ser approvado por esta camará, convertido no projecto que a commissão tem a honra de offerecer, para que possa comprehender as emendas e additamentos que julgou indispensáveis ou de alta conveniência inserir no decreto das cortes geraes, se pela approvação da camará dos srs. deputados tiver de subir á sancção real.

A commissão aguarda respeitosamente o juizo da camará, esperando todavia da justiça e illustração dos dignos pares o reconhecimento de que este negocio foi pela mesma commissão considerado e examinado sem pressão de qualidade alguma, e com a imparcialidade e prudência inseparável dos membros de uma camará essencialmente conservadora.

Eis em conformidade com o parecer da commissão o

PROJECTO DE LEI

Artigo 1.° São suscitadas e ampliadas as leis do reino, prohibitivas da amortisação de bens prediaes, rústicos ou urbanos, de igrejas ou corporações religiosas, e bem assim declaradas insubsistentes todas as licenças, faculdades regias ou dispensas das ditas leis* em favor de taes es-talecimentos para se conservar na posse dos mesmos bens.

§ 1.° Sào comprehendidos na disposição d'este artigo os bens prediaes de fundação ou dotação, e bem assim os direitos prediaes, de qualquer espécie ou natureza, pertencentes aos ditos estabelecimentos a titulo de emphyteuse, de sub-emphyteuse, censo, quinhão de renda ou qualquer outro.

§ 2.* Não são comprehendidos na disposição d'este artigo:

1. ° As casas de habitação das religiosas e dos seminaristas e as cercas e dependências respectivas, os paços episco-paes e cercas ou quintas de recreio dos bispos;

2. ° Os capitães de divida nacional consolidada;

3. ° As acções de bancos ou companhias legalmente constituídas, precedendo, quanto a futuro, á acquisição e conservação, a auctorisação do governo;

4. ° Os capitães quo mutuarem os mesmos estabelecimentos entre si, ou a particulares, com a mesma auctorisação, ou que depositarem nos ditos bancos ou companhias.

i Art. 2.° Os bens e direitos immobiliarios excluídos da amortisação pelo artigo antecedente e seu § 1.° serão subrogados em favor dos ditos estabelecimentos por outros bens que produzam rendimento liquido maior, melhor ou igual, que o proveniente dos mesmos bens e direitos.

Art. 3.° E conservada ás mesmas igrejas e corporações religiosas a posse e administração dos bens desamortisados, até que se verifique a respectiva subrogação, por virtude e nos termos d'esta lei.

§ 1.° Emquanto esta subrogação se não ultimar, as igrejas e corporações religiosas serão auxiliadas na cobrança executiva dos foros e mais direitos dominicaes, de que trata o artigo 1.° § 1.°, pelos agentes do ministério publico, equiparada em tudo o que se acha prescripto nas leis e regulamentos fiscaes a respeito de taes rendimentos do thesouro publico.

§ 2.° De futuro, nenhuma posse, administrativa ou judicial, lhes poderá ser conferida nem reconhecida, sobre novas acquisições ou direitos prediaes, nem o direito á mesma posse, salvo, nos termos d'esta lei, o direito de subrogação, a qual poderão requerer judicialmente.

Art. 4.° As igrejas e corporações religiosas gosam de individualidade juridica, e poderão exercer, nos termos da lei commum, todos 03 direitos civis, relativos aos interesses le-gitimos do seu instituto.

Art. 5.° São para os effeitos d'esta lei comprehendidos na denominação de igrejas e corporações religiosas, os conventos de religiosas existentes, ou que de futuro existirem, as mitras, cabidos, collegiadas, seminários e as suas fabricas.

Art. 6.° E auctorisado o governo a permittir a remissão dos foros, censos e pensões com os respectivos direitos dominicaes, pertencentes aos designados estabelecimentos, se os possuidores dos bens onerados lh'o requererem dentro .do praso de um anno contado da publicação d'esta lei; e bem assim a mandar proceder á venda dos ditos foros, censos ou pensões com os respectivos direitos dominicaes, que não forem remidos no praso legal, e de todos os prédios rústicos e urbanos pertencentes aos mesmos estabelecimentos, excepto os mencionados em o n.° 1.* § 2.° do artigo 1."

§ único. São comprehendidos, em casos de venda de fo-

ros, censos ou pensões, nos direitos dominicaes respectivos, os de que as igrejas ou os conventos existentes se achavam interdictas por virtude das leis prohibitivas da amortisação.

Art. 7.° O preço da remissão dos foros, censos ou pensões, com os seus direitos dominicaes respectivos, nos termos do § único do artigo antecedente, será a importância de vinte foros, censos ou pensões annuaes, depois de convertidos a dinheiro, na conformidade da lei de 22 de junho de 1846, e um laudemio, se for devido; ou importância de vinte vezes a parte do foro, censo ou pensão que se quizer remir, e nos mesmos termos o correspondente laudemio, paga em titulos de divida fundada pelo valor do mercado.

§ único. Os minimos serão pagos a dinheiro.

Art. 8.° O preço da arrematação dos foros, censos ou pensões, com os seus respectivos direitos dominicaes, que não forem remidos, e bem assim dos prédios rústicos e urbanos, será também pago em titulos de divida fundada pelo preço do mercado, e aceitado se for sufficiente para a subrogação qualificada no artigo 2.° da presente lei.

§ único. Os minimos também serão pagos a dinheiro.

Art. 9.° Os capitães mutuados pelos estabelecimentos a que se refere o artigo 4.°, que forem recebidos depois da publicação da presente lei, e bem assim os minimos em dinheiro pelas remissões ou arrematações na forma dos §§ únicos dos artigos antecedentes, serão applicados immedia-tamente á compra no mercado de titulos de divida fundada.

§ único. Deverão comludo preferir a esta conversão as applicações, que forem de urgência, para reparos dos templos e suas dependências, e bem assim das casas e mais edifícios exceptuados da desamortisação pelo n.° 1.° § 2.° do artigo 1.°, intervindo informação do respectivo prelado diocesano e auctorisação do governo.

Art.. 10.° Todos os titulos de divida fundada, recebidos ou convertidos nos termos d'esta lei, serão logo pela junta do credito publico averbados a favor dos estabelecimentos a que pertencerem os bens pelos quaes tiverem sido subrogados, com a clausula de ficarem sujeitos á satisfação dos legados ou encargos pios com que os ditos bens possam estar onerados.

§ único. Serão previamente convertidos pela mesma junta do credito publico em titulos de divida publica interna de assentamento os que não forem d'esta espécie.

Art. 11.° Todos os bens que, nos termos d'esta lei, con-titúirem propriedade ou dotação de algum convento que for supprimido, na conformidade dos cânones, serão exclusivamente applicados á manutenção de outros estabelecimentos de piedade ou instrucção, e á sustentação do culto e clero.

§ 1.° Uma lei especial regulará esta applicação.

§ 2." Será comtudo encargo especial, e como tal deduzido dos respectivos rendimentos, a côngrua sustentação das religiosas que houverem professado nos conventos supprimidos ou n'elle& se acharem ao tempo da suppressão, continuem ou não a residir em clausura.

§ 3.° As religiosas dos conventos supprimjdos poderão livremente dispor do pecúlio que tiverem, e serão indemni-sadas das bemfeitorias ou construcções annexas qué, para seu uso ou fruição particular, tenham feito praticar dentro das respectivas cercas, no valor que tiverem as mesmas bemfeitorias ou construcções ao tempo em que esta in-demnisação for requerida.

Art. Í2.° É auctorisado o governo a regular, de accordo com o respectivo prelado diocesano, a administração das igrejas e conventos de religiosas, conservados ou reformados, a fim de que haja n'ella a devida regularidade, se não desviem os seus rendimentos da sua legitima e canónica applicação, nem deixem de ser satisfeitos os encargos pios ou alimenticios com que se acharem onerados os bens subrogados.

Art. 13.° Fica revogada toda a legislação em contrario.

Sala da commissão, 18 de fevereiro de 18Q1.=Visconãe ãe Castro=Visconãe ãe Castellões=Francisco Simões Margiochi—Francisco Antonio Fernandes ãa Silva Ferrão = Felix Pereira ãe Magalhães, vencido em parte.

PROJECTO DE LEI N.° 100

Artigo 1.° É auctorisado o governo a permittir a remissão dos foros, censos e pensões com os respectivos direitos dominicaes pertencentes aos conventos de religiosas actualmente existentes, ás mitras, cabidos, collegiadas, seminários e ás suas fabricas, se os possuidores dos bens onerados lh'o requererem dentro do praso de um anno contado da publicação d'esta lei; e bem assim a mandar proceder á venda dos ditos foros, censos e pensões com os respectivos direitos dominicaes que não forem remidos no praso legal, e de todos os prédios rústicos e urbanos pertencentes aos mesmos estabelecimentos.

§ 1.° Exçeptuam-se da disposição d'este artigo as casas de habitação das religiosas e dos seminaristas e as cercas respectivas e .dependências das mesmas, os paços episco-paes e cercas de recreio dos bispos.

§ 2.° O laudemio de todos os bens emphyteuticos a que se refere este artigo fica reduzido á quarentena em todos os casos em que outro maior fosse devido.

§ 3.° O preço da remissão dos foros, censos e pensões com os seus direitos dominicaes respectivos será a importância de vinte foros, censos ou pensões annuaes, depois de convertidos em dinheiro na conformidade do artigo 9.° da lei de 22 de junho de 1846, e um laudemio, ou a importância de vinte partes do foro, censo ou pensão que se quizer remir só em parte, pagos em titulos de divida fundada pelo valor do mercado. O* minimos serão pagos a dinheiro.

§ 4.° O preço das arrematações dos foros, censos e pensões com os seus respectivos direitos dominicaes que não forem remidos, e bem assim dos prédios rústicos e urbanos, será também pago em titulos de divida fundada pelo preço do mercado e os minimos em dinheiro.

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§ 5.° Os capitães mutuados pelos estabelecimentos a que se refere este artigo que forem recebidos depois da publicação da presente lei, e bem assim os minimos pagos em dinheiro pelas remissões ou arrematações na forma dos §§ 3.° e 4.°, serão immediatamente applicados á compra no mercado de titulos de divida publica fundada.

§ 6.° Todos os titulos de divida publica fundada recebidos nos termos dos §§ antecedentes serão logo pela junta do credito publico averbados a favor dos estabelecimentos a que pertencerem os bens pelos quaes tiverem sido subrogados, com a clausula de ficarem sujeitos á satisfação dos legados pios com que os ditos bens possam estar onerados, sendo previamente convertidos em titulos de divida publica fundada interna de assentamento os que não forem desta espécie.

§ 7." A junta do credito publico não poderá pagar os juros respectivos a titulos de divida publica consolidada onerados com este encargo, sem que se mostre haver elle sido satisfeito.

§ 8.° Todos os bens que constituirem dotação dos conventos que posteriormente a esta lei se forem supprimindo, na conformidade dos cânones, serão exclusivamente applicados á manutenção de estabelecimentos de piedade e instrucção, e á sustentação do culto e clero: uma lei especial regulará esta applicação.

Art. 2.° Fica revogada toda' a legislação em contrario.

Palacio das cortes, em 3 de julho de 1860. = Bartliolo-meu dos Martyres Dias e Sousa, presidente=Zm'z Albano de Andrade Moraes, vice-secrctario.

Secretaria da camará dos dignos pares do reino, em 1 de março de 1861. = Dío<70 Augusto de Castro Constâncio.

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