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SESSÃO DE 5 DE JUNHO DE 1869

Presidencia do exmo. sr. Conde de Lavradio

Secretarios - os dignos pares
Conde de Fonte Nova.
Costa Lobo.

Ás duas horas e meia da tarde, sendo presentes 19 dignos pares, foi declarada aberta a sessão.

Lida a acta da precedente foi approvada, com a declaração do digno par o sr. Miguel Osorio ter votado, contra o projecto n.° 3, relevando o governo da responsabilidade incorrida, por ter assumido funcções legislativas.

Deu-se conta da seguinte

Correspodencia

Um officio da presidencia da camara dos senhores deputados, remettendo a proposição sobre ser relevada a camara municipal de Guimarães da comminação em que incorreu, por ter applicado um predio nacional, que lhe foi concedido, a um uso diverso d'aquelle para que se lhe concedeu. O sr. Presidente: - Declarou á camara o nome dos membros que formarão a deputação que deve apresentar a Sua Magestade o projecto ultimamente votado n'esta camara.

A deputação, é composta dos dignos pares: Exmos. srs.: Presidente.

Antonio de Sousa Silva Costa Lobo.
José da Costa.
Pinto Bastos.
José Joaquim dos Reis e Vasconcellos.
José Lourenço da Luz.
José Maria Baldy.
José Maria do Casal Ribeiro.

O sr. Presidente: - Convidou os srs. relatores de commissões a apresentarem algum parecer, se estivesse preparado. (Pausa.)

Não havendo quem pedisse a palavra, declarou encerrada a sessão, determinando que a proxima tenha logar na segunda feira 7 do corrente, continuando a mesma ordem do dia.

Eram tres horas da tarde.

Relação dos dignos pares que estiveram presentes na sessão de 5 de junho de 1869

Os exmos. srs. Conde de Lavradio; Marquez de Fronteira; Condes, de Cabral, de Fonte Nova, da Louzã, da Ponte, de Samodães, de Rio Maior; Bispo de Vizeu; Viscondes, de Benagazil, de Condeixa; Barão de Villa Nova de Foscôa; Costa Lobo, Barreiros, Pinto Bastos, Reis e Vasconcellos, Baldy, Rebello da Silva, Miguel Osorio, Fernandes Thomás, Ferrer.

Discursos proferidos pelo digno par o exmo. sr. Miguel Osorio na sessão de 28 de maio, e de que se tinham publicado extractos a pag. 59, col. 2.ª do Diario da camara dos dignos pares.

O sr. Miguel Osorio: - Desde que o sr. visconde de Chancelleiros fundamentou o seu requerimento, parece-me que será licito a qualquer digno par discuti-lo, e eu não o combato; mas o que digo é que não estando este projecto dado para ordem do dia da sessão de hoje, e sendo um assumpto muito importante, e não sendo o respectivo parecer da commissão distribuido a todos os dignos pares porque eu só o recebi agora, e alem d'isso não estando presentes todos os membros do gabinete, collocam-se os membros d'esta camara que quizerem discutir o bill de indemnidade n'uma posição difficil, porque, apesar dos srs. ministros serem solidarios, comtudo cada um dos membros do governo é moral e immediatamente responsavel pelos objectos que dizem respeito ás repartições que estão a seu cargo, e creio que não ha nada mais desagradavel, alem de ser pouco proprio do regimen parlamentar, do que um membro d'esta camara dirigir-se a qualquer ministro que não esteja presente para se defender de qualquer arguição que tenha a fazer-se-lhe. Não quero com isto dizer que o governo não está bem representado pelos membros do gabinete que sé acham presentes, mas faltam os srs. ministros da marinha e da justiça, aos quaes talvez algum digno par queira pedir explicações. São estas rasões que me levam a votar contra o requerimento do sr. visconde de Chancelleiros, sem comtudo querer obstar a que o projecto relativo ao bill de indemnidade entre em discussão com brevidade.

O sr. Presidente:-.............................

O sr. Miguel Osorio: - Eu não fiz censura alguma a v. exa.; não estava isso no meu animo, e não podia nem o devia fazer. Mas pareceu-me que a unica maneira de poder obter a palavra era pedi-la sobre o modo de votar; portanto talvez que da minha parte é que houvesse alguma falta de observancia do regimento, procurando este subterfugio parlamentar; mas é isto usado tanta vez por todos os membros d'esta casa, para obter mais cedo a palavra, que me parece merecer desculpa; mas, repito, que não fiz censura alguma.

O sr. Miguel Osorio: - Sr. presidente, se eu attendesse á posição especial da minha vontade, não entrava n'este debate, e seria menos escrupuloso na exposição dos principios que regulam a minha politica: talvez que não descesse ao exame das medidas comprehendidas no bill de indemnidade, e seguisse mais os estimulos do meu coração e os sentimentos da amisade, do que os dictames da minha consciencia; ou talvez mesmo que qualquer conveniencia politica me levasse a faltar ao comprimento da obrigação que nós contrahimos, entrando n'esta casa, votar segundo a nossa consciencia, e expor ao paiz os motivos que algumas vezes nos levam a tomar deliberações que não estão muito em harmonia com a opinião publica, que é um dos grandes reguladores dos homens politicos, e assim deve ser, quando ella se não oppõe á moral e á justiça, unicas fontes legitimas das nossas deliberações.

Eu tenho toda a consideração e respeito pela capacidade dos nobres ministros que estão presentes, não só pela convicção intima que tenho de que os srs. ministros quando erraram, porque têem errado muito no meu entender, erraram na melhor boa fé e com a convicção de que os passos que deram, menos em harmonia com as idéas que elles desejavam defender, não se oppunham á justiça.

Creio que ss. exas. não tiveram em vista a satisfação do odio particular, nem da vingança, nem mesmo o desejo de se conservar n'aquellas cadeiras; mas nem por isso a minha apreciação, emquanto ás medidas que foram adoptada pelo governo dictatorialmente, se póde modificar; a intenção póde absolver da culpabilidade, mas não moralisa a acção nem torna justo o que é injusto.

Sr. presidente, ha ainda outra circumstancia especial que influiria, por certo, para não tomar parte n'este debate, e peço desculpa á camara, e espero merece-la, pôr me referir a ella, visto que tem mais relação com a vida particular do que com a vida publica, e raras são, na minha opinião, as occasiões em que o homem politico, revestido de mandato tão importante, tenha ou deva referir-se á vida particular.

Refiro-me ás relações de amisade e parentesco que me ligam com os srs. ministros Lopes Calheiros e conde de Samodães, as quaes nunca foram interrompidas entre nós, e são tradicionaes entre as nossas familias.

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Estas mesmas circumstancias tornam bem dura a posição de quem, para cumprir com os seus deveres, tem de abafar os sentimentos do seu coração.

Estou certo de que ss. exas. me fazem a devida justiça e que as minhas considerações e opposição deixarão ficar inalteraveis as nossas relações.

Dadas estas singelas explicações, de que peco desculpa á camara, começarei por fazer uma narração retrospectiva dos factos politicos que têem occorrido, por isso que d'elles resulta uma gravissima responsabilidade para quem assumiu o poder em consequencia d'estes mesmos factos, porque pela apreciação d'estes factos, e das consequencias que elles envolvem, é que nós temos de apreciar os actos do governo em relação á tarefa que assumiram e aos compromissos tacitos que fizeram com a nação pelas circumstancias em que os governos caídos deixaram o poder.

Sr. presidente, v. exa. e a camara lembrar-se-hão de que, apesar das ligações politicas, muito cordiaes e sinceras, que tinha com o ministerio da fusão, que me regosijo de ter apoiado, e que apesar da parte activa que tomei na fusão, posto que como soldado d'aquella união politica, não renego a responsabilidade de tal acto, e ainda hoje tenho a convicção de que concorri para uma ligação muito conveniente para o meu paiz, porque d'ahi se poderiam tirar importantes resultados, como se tiraram, e consequencias que ainda hoje são proficuas, se d'ellas soubermos tirar todos os beneficios politicos, sendo um d'elles, e não pouco importante, acabar-se a opposição pessoal que por tanto tempo prejudicou a causa publica.

V. exa. e a camara, repito, hão de lembrar-se de que, apesar d'essas ligações politicas, eu, quando vi que as medidas que o segundo ministerio da fusão tinha apresentado á camara não eram convenientes á boa administração publica, e que tinham não só graves defeitos fundamentaes, mas muito principalmente graves defeitos de occasião, eu as vim combater.

Infelizmente, sr. presidente, as minhas palavras que n'essa occasião não foram attendidas na camara foram quasi prophecias, porque eu e o sr. conde de Samodães, que commigo combateu as mesmas medidas, prophetisámos, apesar do dictado que diz ninguem ser propheta na sua terra.

Disse então que aquellas medidas se não podiam executar, e injustos eram os governamentaes que diziam que a opposição creava dificuldades; as difficuldades não provinham da opposição, mas sim da multiplicidade de interesses com que se ia arcar, interesses respeitaveis alguns, e outros filhos, sim, de prejuizos e más apreciações, mas dignos de attenção pela dificuldade que iam levantar contra o fim principal, que era o imposto.

Devia se procurar que o paiz encarasse com animo pacifico e socegadamente os grandes sacrificios que se lhe íam impor; não era portanto a opposição parlamentar que tinha culpa de se não executarem as medidas, havia de ser o paiz que não estava nas circumstancias de as aceitar.

Ainda assim, sr. presidente, louvores merecem os homens que estavam no governo, que foram os primeiros a faltar claro ao paiz, mostrando-lhe a necessidade de pagar os seus encargos, e pela tenacidade com que defenderam esta idéa á custa mesmo da sua popularidade. Louvores ainda merecem pela maneira por que obedeciam aos dictames de parlamento legitimamente constituido, e pela execução que davam ás leis que tinham sido votadas pelo parlamento depois da maxima discussão e de maduro exame dos corpos a quem competia faze-lo.

Errar é proprio do homem; é forçoso confessar esta triste condição da nossa natureza; não é porém isso um defeito que traga incompatibilidade politica; defeito e ser pertinaz no erro, e esse defeito não pede ser lançado ao rosto dos homens que então tinham o poder, pois que o largaram com grande abnegação.

O governo, a quem tantas censuras foram feitas por largar o poder, praticou uma acção digna da maior consideração publica, abandonou a governação do estado logo que viu a inopportunidade de executar fielmente a missão de que o tinham encarregado, logo que viu que lhe faltavam todos os elementos para poder caminhar com desassombro e harmonisar o sentimento geral do paiz com a confiança do parlamento. Elogios pois se devem fazer, e nunca censuras por largar o poder com abnegação, muito principalmente por se não querer fazer pressão em nenhum dos elementos constitutivos do governo, largando-o á menor indicação de feita de confiança de qualquer d'esses elementos, qualquer que seja, porque todos são igualmente respeitaveis; assim não se falseiam as instituições, antes pelo contrario se robustecem.

Direi que a queda desse governo não trouxe graves difficuldades, porque a sua queda tirava os pretextos para a perturbação da ordem e trazia o ensejo de se modificarem as medidas contra as quaes se agitava o paiz; não são os homens que caem que trazem difficuldades para o paiz; elles deixam-nas, e aos homens que lhes succedem no poder, cumpre reconhecer se podem arcar com ellas senão não aceitem o poder em taes circumstancias, porque da não aceitação não lhes provem responsabilidade.

Foi substituido aquelle governo por outro a que presidia o digno par conde d'Avila. Na ausencia de s. exa. não posso nem devo fazer apreciações completas dos actos do seu governo, que, posto tivesse homens por todos os titulos respeitaveis, infelizmente foi presidido por s. exa. o menos competente para dirigir a situação precaria em que o paiz se achava. Era possivel que esse governo inspirasse confiança a uma revolução (se tal nome lhe compete, e que eu duvido empregar, posto que a veja sanccionada por toda a imprensa), a uma agitação, direi, contra medidas que s. exa. tinha votado, e contra um governo que s. exa. não só tinha apoiado, mas que tinha servido como empregado de confiança?

S. exa. que partilhava da impopularidade do ministerio caído compromettia a situação e os seus collegas. A prova do que eu digo está em que a agitação do paiz foi mais forte logo que s. exa. subiu ao poder, até ali apenas existia no paiz um mal-estar geral que se manifestou com o estabelecimento das novas medidas que elle julgava prejudicar os seus interesses e atacar os seus foros. Essa agitação foi pacifica e legal, e não se excedeu em parte alguma, senão no momento em que o governo não teve força para separar os patriotas dos anarchistas e fazer cumprir a lei. É por isso que eu digo-os homens que sobem ao poder devem primeiro ver se têem forças para desempenharem as funcções de que se encarregam. Esta situação pois, fraca como era, achou-se immediatamente em circumstancias de conhecer que não tinha elementos para poder governar, e a parte moderada do paiz, a parte conservadora, aquella que mais desejos tem de que exista a ordem, vendo que o governo tinha abandonado as suas tradições para se entregar ás massas revolucionarias, deixou de confiar n'elle: e nem por isso obtinha s. exa. a confiança que procurava nos homens da revolução que principiavam a mostrar não ter confiança no homem que tinha seguido sempre a estrada viciosa e condemnada das emissões de fundos sem crear verba destinada para pagar os juros d'essas emissões; systema pessimo de administração, por mim aqui sempre condemnado. Debalde procurava o ministro da fazenda d'esse ministerio, o sr. José Dias Ferreira, crear receita e organisar a fazenda, a influencia que o ministro do reino queria ter na situação tirava a popularidade ao governo e sem ella a reforma não podia marchar.

Mas a maior das desgraças foi que este, ministerio, julgando que podia obter a força de que necessitava, pelos meios de que costumam lançar mão os governos que não querem largar o poder, falsificando ou antes falseando a representação nacional, influindo o mais directamente possivel em todas as eleições, procurou arranjar uma maioria que o sustentasse e lhe désse força; tal foi porem a lição

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aspera que o paiz deu a esse ministerio, que elle encontrou na camara uma opposição respeitavel composta de homens novos na politica, e uma opposição formada pelos homens que tinham largado o poder sem popularidade alguma n'aquella occasião. Apesar d'isto o governo ainda tinha uma grande maioria na camara, mas essa mesma maioria deu uma lição severa ao ministro do reino, pois que passou pelo desgosto de ver a camara recusar a um dos ministros eleitos sob a influencia da auctoridade o logar de representante da nação; taes foram as gravissimas irregularidades que houve na eleição d'esse deputado. É um facto pouco vulgar nos nossos fastos parlamentares.

O ministerio a que me tenho referido caíu, e não estarei a cansar a camara lembrando factos que todos nós conhecemos. Organisou-se depois o actual gabinete, e é sabido que todos os cavalheiros que se acham nos bancos ministeriaes, á excepção de um, occuparam aquelles logares contra sua vontade e fazendo grande sacrificio. Quando digo á excepção de um, refiro-mo ao digno prelado que dirige a pasta dos negocios do reino, sem querer com isto de fórma alguma dizer que o sr. bispo tenha um caracter ambicioso. Eu respeito muito s. exa. pela sua alta posição de prelado e de ministro, respeito-o pelas suas qualidades como membro da igreja, como homem politico, e particular, e respeito-o pelos serviços que tem feito ao paiz; mas digo á excepção de um, porque s. exa. era já indigitado antes de organisar o actual ministerio, para os que se tentaram formar; e dizia-se mesmo que s. exa. veiu para a camara, aonde nem sempre comparece, com um tal intuito, até que finalmente foi no illustre prelado que a corôa depositou o importante encargo de organisar um gabinete, depois de falharem todas as combinações, em algumas das quaes s. exa. entrava..

O gabinete formou-se, e posto que tomasse por presidente official o sr. marquez de Sá, e fosse a egide deste nobre general que o escudasse, a verdade, é que não foi elle quem formou o ministerio. S. exa. teve a dedicação e o patriotismo de sentar-se ao lado de collegas que o sr. bispo escolhêra, quando este, com a humildade propria do seu caracter episcopal, do seu caracter sacerdotal, se convenceu de que não podia organisar uma situação para presidir a ella, e apesar d'isto se sujeitou a fórmar um gabinete, a que via não podia presidir, quando s. exa. sacrificava á politica os seus deveres ecclesiasticos; já a camara vê que eu não avanço uma proposição infundada quando digo que s. exa. é o unico que está de vontade no gabinete. Os seus collegas, esses não se poderam eximir á tarefa de auxiliar o illustre prelado, o espinhoso encargo de gerir os negocios publicos, e estou certo que almejam sempre por sair d'aquelles logares.

Estava a situação forte, nem podia deixar de o estar, estava mais em harmonia com os principios proclamados em janeiro, e o sr. bispo de Vizeu, com a finura propria da sua intelligencia, conheceu bem quaes eram os individuos que devia procurar para seus collegas no gabinete. Foi buscar o sr. Sebastião Calheiros, que era um dos membros dos comicios populares, que tão nobre e patrioticamente se desenvolveram n'este paiz para prover á boa e economica administração, e convidou tambem o valente militar, o eminente liberal, que é sempre respeitado por todos, até pelos proprios inimigos politicos, e foi busca-lo, porque elle offerece sempre garantias de liberdade, e para, quando lhe dissessem que a sua situação e a sua posição ecclesiastica podiam achar-se em desharmonia com as necessidades da epocha e com os principios liberaes, poder apontar para o sr. marquez de Sá, e dizer: "Este, que é um penhor de liberdade, não tem difficuldade em se assentar ao pé do ecclesiastico".

Por consequencia está em harmonia a igreja com a liberdade, podendo assim acobertasse do titulo de reaccionario, palavra magica que tantas vezes falsamente tem sido lançada sobre governos, e que podia muito bem, apesar da boa vontade do sr. ministro do reino, ser por malevolencia lançada para sobre o membro do clero, que fez o sacrificio de abandonar as suas ovelhas, de deixar os mais gratos de todos os seus deveres, de sacrificar a sua saude, de sacrificar todos os seus interesses espirituaes e temporaes, mas os espirituaes mais do que tudo, para vir presidir aos destinos d'este paiz, o qual nem sempre é grato a todos os sacrificios. Não digo isto por censura, pois julgo que o clero não póde ser excluido da sociedade, nem póde deixar de considerar-se o elemento mais respeitavel e mais importante da mesma sociedade, sobretudo quando não está revestido dos prejuizos da reacção, acompanhando-nos em todas as liberdades que ha cincoenta annos procurâmos conquistar para constituir a sociedade em bases solidas, de certo deve ser muito bem recebido por nós todos, e não podemos deixar de reconhecer o sacrificio que s. exa. fez em tomar sobre si o encargo da governação. Escolheu mais tarde o sr. conde de Samodães, que tambem tinha presidido a uma grande parte dos movimentos patrioticos do Porto.

Tinha portanto, sr. presidente, o governo, quando se organisou, todos os elementos para ser um ministerio que se podesse apresentar como exemplo a todas as situações passadas e futuras. Ainda não houve circumstancias politicas mais vantajosas para um ministerio do que aquellas em que se acharam os actuaes membros do gabinete quando subiram ao poder. Vejamos como se desempenharam.

Este ministerio era filho legitimo da revolução de janeiro (e eu já pedi desculpa á camara de lhe chamar assim, porque não quadra bem, mas está sanccionado); este ministerio pois era filho legitimo do principio proclamado por aquella revolução, e quando chegou ás camaras, como não podia trazer promptas as medidas que desenvolvessem o seu programma, limitou-se a prometter muito, e a mostrar grande respeito pela lei e pela moralidade, promettia o reinado de Astrea e principalmente grandes economias que havia de realisar, economias de que o paiz estava sequioso, e ainda bem que o estava, assim como eu já o estou ha muito tempo, pois tenho aqui clamado constantemente por economias sinceras e votado contra todas ás despezas exageradas. Haja vista o modo como combati a reforma do ministerio dos negocios estrangeiros, a lei de administração civil e os impostos indirectos, na companhia do sr. conde de Samodães, eu com as minhas poucas forças, e s. exa. com a sua muita capacidade; por consequencia, todos devem conhecer que não são as economias que me fazem afastar da politica do governo.

Os srs. ministros, compenetrados dos principios sustentados pela revolução de janeiro, entenderam que lhes cumpria estudarem o meio de salvar o paiz, e para poderem satisfazer esse seu louvavel desejo, pediram uma auctorisação ampla ao parlamento. Este concedeu-lha com tanta amplitude, como nenhum governo até hoje a recebeu e nenhum a pediu.

Eu, sr. presidente, não vim aqui n'essa occasião, e como costumo dizer á camara os motivos por que não venho assistir ás sessões, que são a impossibilidade de abandonar negocios meus ou a necessidade de tratar da minha saude, direi agora tambem o motivo por que não vim. N'essa occasião estava completamente bom e tinha toda a possibilidade de me apresentar aqui. Quero porém fazer a confissão do meu erro, se o foi. Receiava que os srs. ministros, apesar dos seus talentos e virtudes, não podessem desempenhar-se da sua tarefa, e receiava que apesar de tanta seriedade, apesar de tantos e tão variados conhecimentos, e de os conhecer como homens versados nos negocios publicos, não podessem entrar convenientemente em todos os negocios, e por isso não queria dar uma auctorisação tão ampla, sem que fosse precedida de explicações categoricas, para eu poder avaliar quaes as idéas de que elles se achavam possuidos para se desempenharem da grave responsabilidade que iam assumir, e tambem porque não queria de maneira nenhuma levantar a minha voz contra os homens que julgava

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mais em harmonia com a situação politica, e a quem a popularidade bafejava com carinho. Uma desconfiança fundada em factos negativos não me parecia muito justificada quando homens serios diziam acharem-se capazes do satisfazer aos seus encargos, repugnava porém á minha consciencia tão illimitada confiança, abstive-me de votar. Foram estes os motivos por que não vim á camara n'aquella occasião.

Sr. presidente, a auctorisação foi concedida, o governo achou-se com a plenitude de todos os poderes, posição aliás desagradavel, mas o governo tinha recebido uma auctorisação do parlamento para reformar o que entendesse conveniente e necessario no sentido da economia, fe-lo. Não examinarei se bem ou mal, porque com rasão a commissão exceptuou do bill as medidas decretadas pelo governo emquanto durou essa auctorisação. Tem o governo de responder por esses actos, mas não carece de um bill de indemnidade. Esse recáe só nas medidas tomadas depois de acabado o periodo que o parlamento fixou.

Posto que me sobeje vontade de analisar o facto da dissolução da camara dos senhores deputados, na occasião em que o parlamento ía tomar contas ao governo, abstenho-me de o fazer para não demorar o debate, nem aggravar a situação.

É um facto importante, tal como foi, a dissolução da camara dos senhores deputados, principalmente por um motivo que me parece não era sufficiente. A questão da presidencia, que fosse mais votado o cavalheiro que era lembrado pelo governo, ou outro que era proposto por um certo numero de deputados, parece-me não ser motivo, muito principalmente em taes circumstancias, para uma dissolução; desde que a escolha posterior e definitiva é entre tres que vão n'uma proposta, podia ser preferido um que não fosse o mais votado. Mas como quer que seja o facto deu-se, o governo aconselhou a corôa como entendeu, e estava no seu direito, não tenho que censurar.

Principiam porém as minhas censuras em que o governo, que tinha já usado largamente das auctorisações que lhe foram concedidas, desde que se viu sem parlamento, sem uma representação nacional, então é que metteu deveras mãos á obra, como se costuma dizer, então é que arcou de cutelo em punho contra as cousas que lhe pareceram menos faceis de destruir em presença do parlamento, e censuro tanto mais quanto acho que se não attingia o fim, que se propunha ou que dizia propor-se, de economisar e moralisar. Entre essas medidas que se apresentam ao nosso exame e que são comprehendidas no bill ha tres que o governo não podia decretar, mesmo invocando o principio de salvação publica, porque se oppõem aos principios de justiça, alteram a representação nacional e atacam o direito de propriedade, e por isso offendem gravemente a constituição; já se vê que me refiro á lei eleitoral e ao decreto que tirou o subsidio ao palacio de crystal e ao banco ultramarino. São offendidos principios sem os quaes sociedade alguma póde subsistir, é contra estes que se revolta o meu espirito e por causa d'elles que recuso o meu voto ao bill em discussão.

Sr. presidente, as dictaduras são sempre criminosas, as dictaduras são sempre a negação do systema representativo, as dictaduras são sempre uma arma politica com que os inimigos da liberdade argumentam, para dizerem: vós não podeis governar; vós não podeis sentar-vos meneio ao lado da anarchia; vós nunca podeis legislar, porque quando tiverdes essa necessidade lançareis sempre mão da dictadura. Só sabe governar com as dictaduras quem não sabe ser liberal, quem não quer saír do poder quando a opinião publica lh'o indica, e embora essa indicação não esteja em harmonia com as necessidades dos povoa, deixae a responsabilidade aos parlamentos, porque os povos lhes pedirão contas. Estas são as doutrinas que eu bebi com o leite da educação. Estas são as doutrinas que os srs. ministros devem ter gravadas no seu coração, nem podem deixar de ter, porque nesse caso não podiam ser admittidos na communhão liberal. Mas o falso ouropel de uma opinião desvairada, o desejo de attender a falsas representações, o desejo de angariar falsos amigos que os amostram ao abysmo, as economias mal imaginadas, e que seriam bem recebidas se fossem efficazes, o mau estado da fazenda publica que os aterrava, não vendo que elle ficaria peior quando o governo saísse da legalidade, porque ]he fugia a confiança, base do credito, unica fonte a que podiam recorrer de prompto; estou persuadido que ss. exas. estão arrependidos se usarem da dictadura, faria injustiça á sua boa fé se e não acreditasse, pois estão vendo como o credito tem correspondido aos seus actos dictatoriaes.

Eu voto e votarei toda a minha vida contra as ditaduras. Nasci já quando as lutas da liberdade e do absolutismo andavam n'este paiz destruindo os irmãos communs. Fui creado com leite liberal, e por isso não posse querer as dictaduras, que são mais criminosas do que o absolutismo, porque este é uma escola, e a dictadura é uma excepção do systema constitucional e uma negação completa d'esse systema.

Embora se diga que a dictadura é para os grandes transes da sociedade; é nesses que eu quero mais liberdade, porque, se não, pelo mesmo motivo, deveriamos ter os tribunaes de occasião.

Quando houver grandes crimes façam-se tribunaes do occasião, porque as formulas levam tempo, os processos são morosos, e os criminosos escapam-se pela difficuldade que ha de se provar o crime em harmonia com a lei ordinaria. Ora esta doutrina, que ataca es direitos e a liberdade individual, é a mesma em que se baseiam as dictaduras. Se nós não queremos isto para os individuos, como o havemos de querer para a sociedade, que é o complexo de todos os individuos, sendo portanto mais graves os attentados contra ella?

Eu peço desculpa a v. exa. e á camara de a estar entretendo com objectos de que ella tem tanto conhecimento como eu, mas a benevolencia com que os dignes pares me têem sempre tratado, se me póde fazer exceder ou ir mais longe do que eu desejo, não é porque tenha em vista illustra-los, mas sim mostrar a ordem das minhas idéas.

Sr. presidente, jurei manter este codigo sagrado (mostrando a carta constitucional), Puz a mão sobre os Santos Evangelhos, e disse que não admittiria que fosse alterada, senão pela maneira que n'ella se prescreve; sou fiel no meu juramento, rejeitando as dictaduras e todas as suas funestas consequencias.

O juramento é para mim uma verdade como deve ser para todos; bem sei que as interpretações casuisticas dos theologos fazem muitas vezes apreciar as questões de moral de differente maneira. Assim ha quem diga que fica sanada a falta commettida com a absolvição dada depois do facto. A minha opinião é que não póde ser sanccionado o facto com o acto de humildade do poder, de vir á camara pedir este bill, por isso mesmo que ella não póde, segundo a carta, absolver do crime senão constituida em tribunal.

É este, com effeito, o principio, a meu ver: e se o governo, se os srs. ministros se apresentassem no banco dos, eu votaria para que fossem absolvidos, porque estou disposto a acreditar que as suas intenções são boas, o que attenua o crime, mas não dispensa o processo.

Dizem porem, como dia a illustre commissão (lendo): "Attendendo a que são propões uma confirmação restrictamente provisória..." Não posso nem devo estar por isto. E nem posso nem devo, porque ámanhã, vindo outro ministerio, com o pretexto de interpretar o sentimento publico, phrases sacramental hoje adoptada para todos e quaesquer excessos que se queiram fazer; ámanhã, digo, outro ministerio que tambem se involva em materia, legislativa, pouco a pouco fará com que se tome o parlamento por uma inutilidade (apoiados), até que se proclame uma dictadura permanente, embora esteja com o caracter de provisoria,

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do que resultará que teremos o absolutismo (O sr. Marquez de Vallada: - Apoiado), e d'este se passará parada anarchia, por isso que o absolutismo hoje é impossivel estabelecer-se de direito, mas, se pouco já teremos a perder na maneira de gerir os negocios publicos, sem respeito á constituição, teremos ainda muito a perder com relação á liberdade, e talvez no apressado acabamento da nossa autonomia, de que tanto se falla com tanto calor, e muitas vezes tão intempestivamente, mas a que tão pouco se attende, ou para que tão pouco se olha, no sentido de remover as causas que dão alimento ao perigo de a perdermos.

Sr. presidente, as medidas dictatoriaes dividem-se em duas ordens ou classes, isto é, medidas puramente administrativas, que não offendem nem o principio de direito, nem o principio constitucional, e sobre estas eu não tenho duvida alguma em relevar o governo; e medidas que offendem os principios de direito, e a justiça absoluta, com grave prejuizo dos preceitos da carta, e dos direitos n'ella consignados, com o que o meu espirito se não póde conformar; são essas exactamente as medidas que eu combato. Se pois a commissão as quizesse separar, honrar-me-ia muito em me associar tambem á illustre commissão, e votaria o bill, ficando depois em discussão essas medidas. Dirijo-me só á commissão, porque me parece que o governo não póde ter duvida alguma em aceitar a mesma idéa, visto que elle se satisfaz com o bill dado n'estes termos que se nos propõe, pois que nunca se viu um parecer mais significativo contra o governo, em que a camara lhe mostre mais desconfiança, do que este em discussão; a minha proposta seria tão curial e justa, promovendo-se uma discussão prompta dos actos do governo, o que não obsta á concessão do bill, porque, fallando em termos claros e precisos, a commissão conhecendo o grave perigo em que laborava, sentindo mortificada a consciencia, mas desejando ao mesmo tempo ajudar o governo, para salvar a causa publica, fez o sacrificio de dar este voto, porem mostra claramente a violencia com que o dá; este é o facto verdadeiro, e no parecer estão a transluzir passo a passo as duvidas e as difficuldades da commissão; não se ousa propor a approvação das medidas, mas simplesmente se absolve o governo com condições até pouco decorosas, pois se diz que brevemente devem ser alteradas as ditas medidas.

Rasões de mera conveniencia politica levam a commissão a dar um parecer benevolo ao governo, mas como eu entendo que a melhor de todas as politicas é a justiça e a legalidade, que dariamos uma grande prova de respeito pelas leis e pela justiça, em emendarmos já essas leis em que ella foi offendida; por isso não me atrevo a acompanhar a commissão no seu parecer.

Sr. presidente, o parecer diz assim: "Attendendo a que nos termos do projecto se propõe uma confirmação restrictamente provisoria." E mais abaixo diz: "Attendendo em fim que é uma necessidade não só constitucional, mas absoluta, um consciencioso exame de taes decretos, por meio de propostas de lei especiaes, etc."

Parecia que a conclusão era ou a rejeição do bill ou a emenda de taes medidas; pois não é assim, termina a commissão por absolver o governo da responsabilidade, condemnando as medidas. Pois é possivel legislar-se assim? Os parlamentos que tal fazem perdem em auctoridade e são os primeiros a reconhecer a sua inutilidade.

O governo, sr. Presidente, podia- se deixar levar a decretar medidas menos justas por attender a uma falsa popularidade, que elle avaliava por umas manifestações ruidosas, que tinham logar á porta dos srs. ministros, podia influir n'elle o medo, mas em nós é que não póde influir nenhuma d'essas cousas, o governo declinava sobre nós uma parte da responsabilidade, porque dizia nos decretos que seriam submettidos á nossa approvação, nós é que não declinamos para ninguem, e vamos tomar toda a responsabilidade dos actos em que todos, me parece, estamos de accordo era censurar.

Se eu tivesse a responsabilidade do governo, francamente declaro, por fórma alguma me satisfazia com o bill nos termos em que este lhe é concedido, queria francamente a discussão dos meus actos, por isso mesmo que elles saíram da orbita legal, e não consentiria esta censura encoberta que a commissão propõe.

O bill, como está redigido, não me parece decoroso, nem para a camara nem para o governo.

Sr. presidente, a camara tem sido excessivamente benevola para mim, pela attenção que me tem prestado, e por isso terminando com ás considerações geraes, vou já entrar na analyse das medidas que rejeito. Devo ainda porem fazer uma consideração; a dictadura é tanto menos justificada quanto o governo decretou medidas de cuja necessidade não estava convencido, e a prova mais notavel disto está no decreto de 21 de outubro de 1868, que reuniu numa só as legações de Vienna e Berlim, e o de 28 de janeiro de 1869, declarando sem effeito o de 21 de outubro. Qual d'elles approvâmos nós? Perguntava hoje com graciosa ironia o sr. visconde de Fonte Arcada.

Se ha dictaduras justificadas, são aquellas que as necessidades urgentes da salvação publica reclamam; se a patria é invadida, o heroe e cidadão que nos guia contra o inimigo, póde proclamar-se dictador, e faz depois como Scipião que sendo levado ao forum para ser accusado, convida o povo para ir ao capitolio dar graças aos deuses e pedir-lhes que dêem cidadãos á republica taes como elle; este é que é o verdadeiro bill de indemnidade, mas não o que sancciona actos que reciprocamente se destroem.

Sr. presidente; já disse quaes os actos que eu não podia approvar. São o decreto eleitoral, o decreto expoliador de 22 de abril que tirou o subsidio ao palacio de crystal, e o decreto, ou antes sentença (pois que o governo n'este acto invadiu poderes judiciaes), contra o banco ultramarino.

Para mostrar á camara a coherencia com que procedo, peço licença para ler o protesto que fiz no dia em que se procedeu ás eleições:

"O abaixo assignado, Miguel Osorio Cabral de Castro, bacharel em mathematica e formado em philosophia, moço fidalgo da casa real com exercicio, par e grande do reino, morador na sua quinta das Lagrimas, freguezia de S. Francisco da Ponte, recenseado como eleitor pelo circulo n.° 72, que pelo decreto de 18 de março do corrente anno, foi alterado, e se acha designado com o n.° 39, tendo conhecimento pelo edital affixado na porta da igreja da sua freguezia, que se reunia hoje a assembléa eleitoral para se proceder á eleição dos deputados, em conformidade com as disposições, do citado decreto, e não em conformidade com o decreto de 30 de setembro de 1852, e lei de 23 de novembro de 1859, vem na sua qualidade de eleitor, e de cidadão livre, respeitador e mantenedor da lei, protestar, como, com effeito solemnemente protesta, perante a mesa d'esta assembléa, contra a validade da eleição a que se está procedendo.

"Protesta, em virtude dos artigos 26.° e 28.° da lei de 23 de novembro de 1859, aonde se designam os circulos eleitoraes, e expressamente se declara, que nem o numero dos mesmos circulos nem o dos deputados possa ser alterado sem uma lei especial: protesta ainda porque o citado decreto de 18 de março é uma usurpação manifesta das attribuições do poder legislativo, e portanto uma infracção dos artigos 10.°, 13.° e 15.° e § 6.° da carta constitucional, e artigo 9.°, § 1.°, do acto addicional, aonde se consigna o salutar principio da divisão dos poderes e suas respectivas attribuições. E não póde o abaixo assignado abster-se de usar deste direito que a lei lhe confere; porque se não trata de uma irregularidade ou violação de formulas mais ou menos importantes, mas sim de um attentado contra as instituições que nos regem e assentam fundamentalmente na genuinidade e sinceridade da representação nacional, que por arbitrio do poder executivo foi tanto mais extraordina-

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riamente falsificada quanto cumpria ao governe dar conta da auctorisação que tinha recebido do parlamento, e aguardar lealmente o resultado do appello que a corôa tinha feito ao paiz.

"Requer portanto o signatario que este protesto lhe seja recebido, em conformidade da lei, para os devidos effeitos.

"Coimbra, 11 de abril de 1869".

Vê-se portanto que eu indo á uma não sanccionei o acto eleitoral, mesmo para poder desafogadamente fallar contra um tal attentado, e poder ser juiz do governo se elle fosse aqui accusado, como seria, se a camara dos srs. deputados estivesse legalmente constituida. Não é necessario grande esforço para provar que o não está, pois que nós, ainda estamos a discutir para approvar ou rejeitar o acto que lhe deu origem.

Repito, o primeiro acto que ella devia fazer era accusar o governo para vir aqui responder como réu, mas a camara não o póde fazer porque todos que vão á uma receber o mandato de deputado debaixo da fórma, que o ministro do reino e os seus collegas entenderam dar-lhe, não podiam negar o facto de serem seus filhos dilectos.

Talvez que muitos dos actuaes srs. deputados não viessem ao parlamento, se não fosse a alteração da lei eleitoral, não porque não tivessem capacidade para isso e para muito mais, mas porque não teriam vencido as combinações eleitoraes já existentes.

Para não ser taxado de incoherente é que protestei, podia não ir á urna, era um pretexto tacito, mas não me satisfazia, talvez parecesse nimiamente minucioso no meu protesto pois que até protestei contra o numero do circulo!

O sr. ministro do reino ri-se!? Talvez tenha rasão para isso; porque só podem merecer o riso estes actos que o governo tem praticado. S. exa. ri-se; tambem o paiz inteiro se está rindo, e se as cousas continuarem assim, ve-lo-hemos rir de nós todos, os que o representámos, e ve-lo-hemos rir da base fundamental do systema representativo, que se acha já bastante abalado. Ria pois s. exa. á sua vontade, escarneça de quem tem a coragem e ousadia de protestar contra os actos de s. exa. de quem se não humilha perante o seu baculo transformado em bastão destruidor da ordem, da justiça e da legalidade. Ria embora, que eu afronto bem os desafogos da sua vaidade offendida, com tanto que me fique tranquilla a consciencia por ter respeitado a lei, e por me não ter sujeitado a poderes despoticos e dictatoriaes.

O sr. Ministro do Reino: -.......................

O Orador: - Sim, senhor. O paiz tambem ha de um dia rir de s. exa. quando conhecer que foi illudido em suas aspirações, porque o governo faltou a todos os compromissos que perante elle tinha tomado, fazendo á sombra de economias iniquidades, e deixando ficar todas as irregularidades que podia e devia destruir. Neste caso fazem-me mais honra os risos de s. exa., do que as suas graças e a sua approvação.

Eu apreciei talvez severamente a hilaridade do sr. ministro do reino, do que peço desculpa a s. exa. Eu não tenho nada a retirar, porque se elevei a voz não lhe dirigi injuria alguma; longe de mim o pensamento de o offender; não estou costumado a isso: nem uma só vez ainda offendi ou tive intenção de offender qualquer membro do governo, e isto, não só em relação aos actuaes srs. ministros, como em relação a todos os seus antecessores. Mas direi: este acto que o governo praticou foi revestido de circumstancias taes, que me levaram a acreditar no que se disse de que a dictadura foi não só um acto menos pensado do governo, mas em que até se coagiu moralmente a corôa, que tinha bem e legitimamente fundadas repugnancias a alterar a representação nacional para que tinha appellado; não affirma a veracidade destes boatos que correram em varios jornaes; avaliemos as faltas que deram alguma auctoridade ao boato.

Primeiramente o governo nomeou uma commissão de homens respeitaveis pela sua illustração, pelos seus talentos e pela posição que occupavam no parlamento, para formularem um projecto que estivesse em harmonia cem as necessidades do paiz.

Estes cavalheiros começaram a funccionar e desde logo se apoderou d'elles a idéa de que o seu trabalho seria aproveitado para medida ditatorial.

Tenho pleno direito de o dizer porque o sr. Silveira da Mota, membro da commissão encarregada de elaborar o projecto da reforma eleitoral, moço de reconhecida intelligencia, que todos respeitâmos, deputado em repetidas legislaturas e empregado no ministerio da justiça, e por consequencia debaixo das ordens immediatas do respectivo ministro, lidando continuamente com este; porque, digo, o sr. Silveira da Mota, não obstante estas ligações com o governo, entendeu que era do seu dever publicar uma carta, na qual disse que, quando aceitara o fazer parte d'aquella commissão, estava persuadido que e projecto de reforma eleitoral era apresentado ás côrtes e não faria o objecto de uma medida dictatorial.

Isto devia causar espanto, mas não o causou, porque antecipadamente se disse por toda a parte que até os circulos já estavam formados e que eram de um, de dois e de tres deputados.

Depois espalhou-se que se haviam levantado difficuldades para a promulgação da reforma eleitoral por via de um decreto dictatorial e que essas difficuldades provinham de um poder irresponsavel, segundo a carta; mas que de facto não deixa de ter certa responsabilidade, quando sáe fóra das leis, como quando em seu nome os ministros assumem a dictadura, porque é elle na verdade quem realmente é a principal victima da responsabilidade das dictaduras; porquanto a dos ministros reduz-se a saírem do poder, emquanto aquelle que preside aos destinos da nação tem uma responsabilidade muito maior, porque tendo escolhido os ministros livremente fica-lhe a responsabilidade moral dos factos que sanccionou e muitas vezes a effectiva dos acontecimentos que se seguem á dictadura.

Quantos thronos não têem caído, quantas dynastias não têem sido proscriptas, em consequencia dos actos dos seus ministros?

Correu pois que o poder moderador se recusara a assignar o decreto dictatorial da reforma eleitoral, não querendo tomar a tão grave responsabilidade de uma medida similhante ser promulgada sem o concurso das côrtes.

Mais tarde disse-se que El-Rei tinha assignado o decreto só na presença do sr. ministro do reino, e que depois é que fôra a assignar aos outros ministros.

Se eu merecesse ao sr. ministro o favor de uma declaração a este respeito, muito lhe agradeceria, para não fazer apreciações sobre um falso supposto, e saber o que havia de verdade em tal boato.

O sr. Ministro do Reino: -......................

O Orador: - Mas foi assignado pela fórma que eu apontei?

O sr. Ministro do Reino: -......................

O Orador: - Mas foi assignado na presença de todos os ministros?

O sr. Ministro do Reino: -......................

O Orador: - Se v. exa. me dá licença direi duas palavras.

Eu agradeço immenso ao sr. ministro do reino a explicação que me deu, mas não era precisa, porque eu mesmo (parece-me que s. exa. ouviu) já tinha pedido desculpa de ter levantado mais a voz, pois não é minha intenção nunca offender pessoa alguma, e desde o momento em que s. exa. declarou que se não tinha rido de mim, eu aceito a explicação.

Agradeço portanto a sua explicação. Emquanto á outra declaração, aceito-a, e agradeço igualmente; e como a materia é um pouco grave, peço a v. exa. que me reserve a palavra para a sessão seguinte.

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Discurso do digno par o exmo. sr. Miguel Osorio, proferido na sessão de 29 de maio, e que veiu por extracto no Diario da camara dos dignos pares, pag. 61, col. 2.ª

O sr. Miguel Osorio: - Primeiro de que tudo, sr. presidente, devo dizer a v. exa. que tenho procurado sempre n'esta casa igualar a minha docilidade ao desafogo com que entro em todas as questões, a minha docilidade ás advertencias de v. exa., que respeito quando justas, sensatas e rectas, e pela auctoridade da sua pessoa, e mais ainda da posição que occupa; mas nas circumstancias actuaes não me cabe a accusação que v. exa. me dirigiu, pelas expressões que hontem proferi nesta casa. A culpa é dos defeitos acusticos d'esta sala, e é só por essa rasão que v. exa. não fez uma apreciação exacta das minhas palavras, não podendo ouvir o que os oradores dizem.

Por certo que v. exa. não quererá fazer recaír sobre mim a responsabilidade d'esse defeito. Não creio que nas expressões que hontem proferi sobre um facto, aliás grave, a que me referi, houvesse alguma phrase menos decorosa, ou impropria d'esta casa do parlamento, e a resposta do sr. ministro do reino, que a convite meu disse como se passaram os acontecimentos a que alludi, tambem não me parece excedesse os limites da descripção com que taes assumptos devem ser tratados; não tinha portanto inconveniente algum a resposta.

Julgo que tanto eu, como o sr. ministro do reino, não merecemos a censura que v. exa. nos dirigiu.

Sr. presidente, é difficil a situação de um orador, que sem merito oratorio para poder attrahir a attenção de um corpo tão respeitavel, se vê na necessidade de occupar por dois dias a tribuna, não o póde fazer sem caír em monotonia, por ter de recapitular as considerações que na ultima sessão apresentou. E por consequencia v. exa. e a camara me relevarão qualquer defeito em que eu incorra, levando-me em conta a difficuldade da minha situação. Estou habituado desde ha muito á benevolencia da camara, por isso lhe peço que me conceda mais alguns momentos para diversas considerações, nas quaes procurarei ser o mais breve possivel, seguindo o preceito da brevidade, não para poder agradar, mas para poder ser attendido.

Disse eu hontem, depois de ter feito uma descripção retrospectiva da situação politica em que o paiz se acha, depois de ter censurado as dictaduras em geral, depois de ter apresentado os motivos que me levaram a rejeitar estas medidas em these e em hypothese, disse que era preciso dividir as medidas que o governo tinha tomado dictatorialmente em medidas propriamente administrativas e economicas, e medidas que offendiam o direito e a constituição. Disse que me era impossivel dar o meu voto a favor das ultimas.

Não tinha porem duvida alguma em acompanhar a commissão no bill de indemnidade, que ella dava em relação ás primeiras, de mais a mais com o caracter de não permanencia com que a commissão tambem o dava, pois que o parecer não dá senão temporariamente força de lei; porque pelas suas proprias palavras mostra a necessidade urgente que ha de reformar algumas d'aquellas leis dictatoriaes; e eu, ainda que esteja disposto n'esta parte a absolver o governo da responsabilidade em que incorreu, não me conformo em muitas das disposições d'essas leis com as idéas do governo, nem a commissão se conformou, e é por esse motivo que ella faz tão clara e solemne restricção no seu parecer.

Sr. presidente, agora quanto ás outras medidas que eu qualifiquei como offendendo os principies de justiça e a lei constitucional, é que eu pedi á commissão que as separasse, para se poderem discutir pausadamente. Se porem o governo e a commissão não concordassem com a minha opinião, já v. exa. e a camara deviam perceber que eu me veria forçado a votar contra o bill, quaesquer que fossem as consequencias que d'ahi resultassem, não pela auctoridade do meu voto, que é insignificante, mas porque um voto tem um valor numerico, e esse valor poderia trazer consequencias politicas. Dadas estas explicações comecei na analyse da medida que eu reputo mais aggravante da situação, e é a lei eleitoral. Foi por essa occasião que eu disse, que as apreciações que havia no publico eram que a dictadura n'esta parte tinha sido contraria á vontade de El-Rei, e que as disposições do animo de Sua Magestade estavam pouco inclinadas a votar uma medida d'aquella natureza; e não desejando de fórma alguma fazer accusações graves n'este sentido sem ouvir a verdade dos factos, e não me atrevendo ainda assim a pedir ao sr. ministro do reino que respondesse ás minhas perguntas, convidei s. exa., se a sua bondade o levasse a esta deferencia para commigo, a declarar se eram menos fundados os dizeres publicos de que Sua Magestade não tinha assignado o decreto eleitoral senão na presença do sr. ministro do reino?...

O sr. Presidente: -.............................

O Orador: - Perdôe-me v. exa. se eu dirigisse uma pergunta ao sr. ministro do reino para me dizer o que se passou no conselho privado de El-Rei, s. exa. podia responder-me que não tinha auctoridade para o dizer; mas como eu só o convidei para me dizer se eram verdadeiras algumas asserções que se tinham espalhado; como só lhe pedi que, se não achasse inconveniente, me dissesse o que havia áquelle respeito, creio que não faltei aos principios, nem o sr. ministro faltou ás conveniencias particulares e publicas com a resposta categorica que deu; e nós tirámos um grande resultado de ouvir a resposta de s. exa., que disse que podia assegurar, depois de me ter dado explicações pessoaes, que não eram já necessarias, que as cousas se passaram em conselho de ministros com a maior regularidade, e que o governo assumia toda a responsabilidade d'esse acto. Segue-se daqui que o sr. ministro do reino não ratificou as asserções que se espalharam, e que restabeleceu a verdade dos factos; e portanto, parece-me que nem eu nem s. exa. merecemos as censuras de v. exa. Eu, pela minha parte, rejeito-as, sem comtudo deixar de agradecer os termos benevolos com que me foram dirigidas.

Por consequencia, sr. presidente, não posso deixar de dizer, que factos d'esta ordem discutem-se em todos os parlamentos do mundo, nem podem deixar de se discutir. As responsabilidades da corôa traduzem-se em responsabilidades effectivas dos ministros. Tambem aos membros do parlamento se concede a irresponsabilidade pelas opiniões proferidas dentro das suas respectivas camaras; é a doutrina do artigo 25.° da carta; e será essa concessão para satisfazermos as nossas paixões e caprichos? Não, por certo, mas para podermos entrar em todas as questões delicadas e apresentar ao publico a historia exacta dos acontecimentos, e foi no uso d'esse direito, de que usei com a maxima moderação, que eu tratei de assumpto tão importante e melindroso.

Estimo, sr. presidente, que a exposição franca do sr. ministro do reino destruisse todas as apprehensões que existiam a similhante respeito, para que não houvesse quem ficasse suppondo que se tinha dado n'este paiz um acontecimento analogo ao que ha annos se deu em Hespanha. V. exa. ha de estar lembrado que em Hespanha houve um ministro, que se disse ter tentado segurar a mão da sua soberana para a obrigar a assignar um decreto, e que este ministro foi acremente censurado no parlamento, e em virtude de uma accusação feita por um deputado, teve de largar o poder.

O que havia de fazer um soberano que não tivesse os membros do parlamento revestidos do direito de perguntarem se elle tinha sido, ou não, livre no exercicio das suas acções? A quem havia de recorrer? Havia de descer os degraus do throno para se tornar accusador?

Nós temos obrigação de sermos as atalaias constantes de todos os direitos e de todas as obrigações, assim cumprimos o nosso mandato.

Por consequencia não posso conformar-me com as observa-

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cões que v. exa. fez, são attentatorias das minhas liberdades; e desculpe, sr. presidente, elevar a voz. Fallo com esta entonação, por isso que v. exa. me fez a advertencia de que hontem não me ouvia bem do seu logar. Eu penso que fiz um bom serviço ao paiz, e dei occasião a que o sr. ministro o fizesse mais relevante, não só ao paiz, das tambem á corôa, respondendo como respondeu.

Sr. presidente, parece-me que mostro imparcialidade defendendo agora a resposta de illustre ministro, eu que estou aqui censurando os seus actos politicos...

O sr. Presidente: -.............................

O Orador:-Paridade tambem eu não acho; felizmente o cavalheiro que está assentado no banco dos ministros, e ao qual eu me refiro, não foi nem era de certo capaz de tal fazer; a apreciação publica, era que muitas vezes entra a calumnia, veiu intrometter-se, e proseguiria se não fosse contradicta por uma fórma irrecusavel: ainda bem que temos o direito de fazer esclarecer os factos, e introduzir o escalpello até onde é preciso que vá, para que se não desvirtue a auctoridade do poder e a sua integridade.

Termino aqui o incidente da explicação que dei sobre as observações que v. exa. se dignou dirigir-me, e em que me fez lembrar o exemplo que apontei de Hespanha, que é muito conhecido, e que felizmente não tem paridade, como v. exa. disse; congratulo-me por isso. O que é certo é que estas apreciações publicas tinham um certo fundamento nas hesitações que o governo teve na promulgação do decreto eleitoral; tambem houve boatos, e não sei se infundados, de que havia uma organisação de circulos differente da que depois se publicou; parecia pois que se olhava á conveniencia politica de momento. São estas as funestas consequencias do governo ter assumido a dictadura para actos tão graves, que tinham relação immediata com o acto anterior da dissolução da camara electiva; e não se diga que não tinha importancia, porque se tratava apenas de uma diminuição de circulos, porquanto isto não se diminuia consideravelmente a representação nacional, mas ainda tinha outro inconveniente - dava maior extensão á area da votação, sujeita assim mais facilmente á acção da auctoridade administrativa pelo enfraquecimento das influencias locaes; são obvias as consequencias que d'ahi se derivam quotidianamente, o que tudo se traduz principalmente em dar ao governo uma acção eleitoral muito mais forte do que até aqui, e em falsear a representação nacional. Isto na occasião em que o governo tinha de dar conta das medidas que com auctorisação do parlamento, tinha tomado dictatorialmente; e das medidas que, sem essa auctorisação, tinha deliberado tomar com grave responsabilidade sua.

Como disse, veiu tambem á apreciação do publico a carta de um membro da commissão nomeada pelo governo para a factura de um projecto que devia ser presente ás côrtes para alterar a lei eleitoral; carta do sr. Silveira da Mota, que já hontem citei, a qual dizia que = quando se tinha encarregado dessa commissão era para formular um projecto que devia ser presente ás côrtes, e não para um acto de dictadura = . Logo o governo hesitou se devia assumir a dictadura.

Ora, o governo chegou a fazer uma reducção de circulos, que passou de mão em mão, dada quasi como official pelo sr. ministro do reino a muitos dos seus amigos e a muitos jornalistas, que chegaram a espalhar, como fôra de duvida, que os circulos seriam compostos de dois ou tres deputados.

Posso asseverar a v, exa., como homem que não sabe faltar á sua palavra, nem vir dizer aqui o que não é verdade, que eu soube de muitos candidatos que dispunham as suas influencias para serem eleitos conjunctamente, affirmando que tinham visto a disposição dos circulos que o sr. ministro do reino contava apresentar na lei eleitoral. Não posso dizer es nomes d'esses individuos, porque não estou auctorisado para isso; mas o que posso dizer é que o facto me foi assegurado por pessoas que procuravam directas o indirectas para levarem a cabo a sim candidatura.

Proximo ás eleições espalhou-se o boato, a que me referi, de que a corôa se oppunha áquelle acto de dictadura. Espalharam-se boatos falsos, e não tenho duvida em dizer que são falsos, porque me basta a palavra do sr. ministro do reino, que não é capaz de faltar á verdade, e a quem eu, n'esse ponto, presto preito e homenagem. Em seguida a isto appareceu uma lei eleitoral com circulos do um só deputado, onde a base que se tomou parece ser as conveniencias da eleição de cada um cos deputados que se pretendia mandar eleger. E digo isto, porque os ha desde 4:000 a 14:000 fogos.

Creio que, se me não engano, no circulo de Santo Thyrso juntaram-se, para perfazer um circulo, 14:000 fogos, e deu-se uma mesma representação a circulos de 4:000, 8:000, 9:000 e 11:000 fogos, etc.

Já se vê que não presidiu um pensamento regular, uma base determinada, mas que se foram seguindo as indicações das conveniencias politicas do occasião.

Póde muito bem ser que o sr. ministro do reino justifique este facto. S. exa. tomou apontamentos, e eu desejo que os poderes publicos se apresentem sempre dignos de consideração perante o paiz, e que não pareçam movidos por intenções mesquinhas e injustificaveis em tempos ordinarios, e muito mais em dictaduras.

Mas, sr. presidente, com que fim se fez isto? É o governo que responde; foi por mero desejo de ser dictador.

O relatorio, que precede o decreto, diz assim:

"Cumpre, porem, dentro em poucos dias, proceder á eleição dos deputados."

E mais abaixo diz:

"E se bem que esta eleição possa, sem maior inconveniente, effectuar-se segundo os preceitos estabelecidos no decreto de 30 de setembro de 1852, etc."

É o governo que responde, e portanto vê-se claramente que elle reconhecia que seu inconveniente algum podiam fazer-se as eleições pela lei antiga!

Pois se sem inconveniente se podiam fazer pela lei antiga, haverá alguem que diga que era occasião opportuna para os srs. ministros assumirem o poder dictatorial, só pele gosto de exercer a dictadura, para mostrar que as reformas não se podem fazer nos parlamentos, o que provaria a inutilidade d'elles e a justificação do absolutismo ou despotismo, conforme melhor conviesse?

Com este fundamento o que se podia esperar era uma deliberação inversa. Se não ha inconveniente em se fazer a eleição pela lei faça-se; e mais decoroso era supprimir o subsidio aos deputados, se era a rasão economica que levava o governo a reduzir os circulos.

Apresentava-se então o governo sem a menor sombra de duvida de que não temia a verdadeira representação nacional, a genuina representação, alterando se a lei só na parte que dizia respeito a uma consideração economica que satisfizesse aos seus intuitos. Eu estimaria muito ouvir o sr. ministro do reino na explicação que possa porventura dar a estas considerações, mas parece-me que não poderá satisfazer.

Tambem eu desejo economia, e bom é que o governo tenha sempre em vista um tal pensamento, mas quanto baste, e nunca atacando o principio fundamental, que é o do respeito que todos devem á lei.

Economias, sim, mas sem alterar uma lei, que eu reputo e considero como o paladio das liberdades publicas e da verdadeira representação nacional.

É-se dictador porém só pelo desejo de se fazer o que se quer, e de se antepor a vontade e o capricho á conveniencia publica, e de trazer á camara os nossos mais dedicados amigos?

É-se dictador para calcar aos pés a carta, em nome da qual se diz que se governa? (Apoiados.) Diz-se ao paiz que não ta cousa tinha de ser attendida, porque o

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no se arvora em interprete da opinião publica, para se livrar de a consultar segundo as formulas estabelecidas, e que estas se podem alterar livremente; que se espera colher de taes sementes? A ordem e o respeito á lei e aos poderes publicos? De certo não.

Tudo isto são factos importantes, que se não podem desprezar. Diz-se-nos que a opinião publica ha muito proclamava que a representação nacional carecia de uma reforma; partilho esta opinião emquanto a esta casa do parlamento, e já aqui a tenho sustentado mais de uma vez.

Quanto á camara dos senhores deputados, declaro francamente que nunca fui d'esta opinião; entendo que a eleição de um só deputado em circulos pequenos é a melhor fórma, mas isto não vem agora para aqui; quero suppor que o governo partiu do principio de que o paiz não estava sufficientemente habilitado para poder fazer a escolha de deputados que era conveniente para constituir a verdadeira representação nacional, e accedeu ao que os partidos vencidos nas eleições proclamavam, queixando-se de que a lei eleitoral não servia senão para trazer á camara electiva as influencias locaes. Pois n'esse caso o governo não preencheu o seu fim, porque deu mais acção ao governo nas eleições, mas não se viu livre das influencias locaes; n'esse caso voltasse para a eleição indirecta, podendo dar-lhe em primeiro grau o suffragio universal, ao menos tinha a grandeza de uma reforma.

Parece-me, sr. presidente, que esse acto era mais aceitavel em dictadura, reconhecendo-se que o paiz precisava tanto d'este passo, que se podia determinar que houvesse o suffragio universal para passar depois á eleição indirecta, e d'esta fórma não havia tanto risco para as liberdades publicas, porque se por um lado se passava para a eleição indirecta, por outra parte se estendia a area de suffragio.

Creio que a camara não quererá que eu exponha n'esta occasião mais extensamente as minhas opiniões sobre este objecto, porque não se trata do que podia ser, mas do que foi o acto dictatorial.

Mas, sr. presidente, eu não posso deixar de dizer á camara o que ella sabe tão bem como eu, o que dizem os artigos 26.° e 28.° da carta de lei de 23 de novembro de 1859.

O artigo 26.° diz (leu).

Agora peço a attenção da camara para o artigo 28.°, que contem uma disposição bem significativa. Diz este artigo o seguinte (leu).

Parece-me, sr. presidente, que esta disposição é tão inutil como aquella que vem no bill, que está em discussão, de que estes decretos dictatoriaes podem ser revogados por uma lei, e que eu, se fizesse parte do parlamento n'aquella occasião, propunha que se eliminasse da lei, por me parecer inutil; tem comtudo uma grande significação, é a do receio que tinha o seu auctor de que o poder executivo alterasse um ou outro circulo, considerando isto como um grande attentado contra a representação nacional. O que é notavel é como mudam as opiniões; um dos que concorreu para se inserir esta disposição na lei foi o actual sr. ministro da justiça, que agora alterou os circulos em dictadura, pôde-se dizer: mutantur tempora et nos in illis.

Ponha a illustre commissão aqui os olhos, e veja quanto é inutil a disposição, que agora apresenta tambem no seu parecer, de que serão revistos estes decretos; hão de se lo quando o executivo quizer; eis o perigo de sanccionar dictaduras! Ha de acontecer o mesmo que aconteceu ao legislador quando impoz esta disposição na lei eleitoral.
Sr. presidente, a camara já está fatigada, eu dou por discutido este ponto, e declaro que não faço nenhuma proposta contra o bill de indemnidade. A commissão aceitará como quizer as rasões que apresentei, e não farei proposta nenhuma, porque o governo de certo a não aceitará, e eu venho aqui para tirar de mim a responsabilidade que porventura me podesse caber em votar actos dictatoriaes; venho aqui mostrar ao meu paiz quanto respeito a lei, e que a tenho respeitado sempre como cidadão e como homem publico; e venho aqui finalmente mostrar ao meu paiz e á camara, que não sou homem para acompanhar o despotismo para parte alguma, que só sei acatar e respeitar a lei, e que não ha considerações algumas de qualquer natureza, nem mesmo invocando a ordem publica, que me possam demover d'aquillo que eu sinto e entendo.

Sr. presidente, não posso comtudo deixar de fallar em outras duas medidas que são - a suppressão dos subsidios ao palacio de crystal e ao banco ultramarino; parece que estas medidas são contrarias á justiça, pelo menos uma, e o legislador em quaesquer circumstancias que seja não póde preterir a justiça, o que importaria admittir a supremacia absoluta da força contra a supremacia da justiça e da rasão, seria admittir a supremacia da força bruta contra a supremacia da intelligencia.

Sr. presidente, o decreto de 22 de abril de 1869 veiu tirar ao palacio de crystal um subsidio de 6:000$000 réis, que tinha sido consignado n'uma lei para satisfazer ao pagamento da divida que o palacio de crystal estava auctorisado a contrahir, vindo a acabar aquelle subsidio quando se tivesse concluido o pagamento d'essa divida. O governo, com o desejo de fazer economias, viu que aquelles 6:000$000 réis eram applicados para um fim particular e industrial, e por isso supprimiu aquelle subsidio; e as rasões, que o governo dá por ter procedido assim, são que as condições com que aquelle subsidio fôra dado não tinham sido satisfeitas. Isto parece-me menos exacto, e por este motivo é que combato a disposição do governo. Permittam-me v. exa. e a camara que lhes lembre que fui eu, e os dignos pares os srs. Margiochi, Vellez Caldeira, já fallecido, com grande magua de todos nós, barão de Villa Nova de Foscôa, Joaquim Filippe de Soure, e não sei se o sr. visconde de Fonte Arcada, dos membros que se achavam na camara, por occasião de se votar o subsidio ao palacio de crystal, que votámos contra, assim como tambem votámos contra os réis 75:000$000 que o governo propoz, e que lhe foram dados, creio eu, que para o acabamento do mesmo palacio, ou para despezas da exposição.

As considerações, que eu então fiz e que fizeram os dignos pares que votaram commigo, são as mesmas que vem exaradas no decreto, decreto que vem assignado por todos os srs. ministros, mas que me parece ser da repartição do sr. ministro da fazenda. Facil era de ver que nós, que sempre temos, andado tão ligados em politica, nos podessemos encontrar no pensamento, mas no que nós não podemos concordar é em revogar uma lei que foi approvada pelo parlamento, contra minha vontade sim, mas que é lei, por acto dictatorial, indo offender um contrato com terceiros, o que faz que nem o parlamento o possa fazer, porque seria o mesmo que o paiz faltar á sua palavra; o que os individuos não podem fazer, porque não poderiam ser chamados homens de bem nem honrados, é obvio que o não podem fazer as nações; não ha uma moral para os individuos, outra para as nações.

Sejamos economicos, porque o devemos ser, e o actual governo tem mais obrigação de ser economico do que qualquer dos seus antecessores, por isso que foi em nome do principio economico que elle subiu aos conselhos da corôa. Restabeleçamos o nosso credito; mas restabeleçamo-lo sem destruir e calcar aos pés os contratos que temos feito, declarando-se que os contratos baseados unicamente sobre a conveniencia publica não valem cousa alguma! Parece isto incrivel! Vale mais uma escriptura feita no cartorio de um tabellião do que uma lei approvada pelo parlamento? O que eu posso affirmar á camara é que chegámos a um tempo tão desgraçado que nem nos proprios poderes publicos podemos confiar! E eu deploro bastante que assim succeda.

Sr. presidente, v. exa. e a camara toda hão de de certo reconhecer que todas estas considerações que faço são insuspeitas. Os dignos pares que me ouvem devem seguramente estar lembrados de que eu combati o projecto que pelo parlamento foi approvado, com o fim de dar este sub-

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sidio á associação do palacio de crystal da cidade do Porto; alem d'isso eu não tenho relações algumas com aquella associação nem contribui com 5 réis para a sua fundação; entendo porem que, desde o momento em que se fez um contrato approvado pelo parlamento e sanccionado pelo poder moderador, o governo tinha restricta obrigação de o respeitar e manter. Eu peço que se attenda bem a esta consideração que acabo de fazer, de que não sou interessado na associação do palacio de crystal, para que se não venha insinuar a calumnia nos actos que pratico por amor da justiça; eu não costumo responder a apreciações calumniosas, mas gosto de as prevenir.

Sr. presidente, se o palacio de crystal fosse uma empreza estrangeira, estou certo que o governo não tinha a coragem, nem a podia ter, de lhe cortar o subsidio; porque d'ahi resultariam complicações internacionaes muito serias e importantes. V. exa., que tão versado é nos negocios publicos como na historia contemporanea, deve seguramente estar lembrado quaes foram os motivos que levaram os inglezes ao Mexico, contra sua vontade, para, em contradicção com os instinctos liberaes ou antes democratas daquella nação, combaterem ali o systema republicano, e levantarem sobre as ruinas d'esse systema uma coroa, que nem ao menos póde crear raizes, pois os inglezes que não partilhavam as idéas da França foram ao Mexico violentados para defenderem contratos menos justificados que estes. O mesmo de certo se daria em relação a nós se por desgraça praticassemos com uma companhia estrangeira o que fizemos á associação do palacio de crystal estabelecida na cidade do Porto; mas como a companhia era nacional, por isso se praticou este acto dictatorial.

Mas tambem póde muito bem ser, e estou disposto a acreditar, que o governo não ponha duvida em retrogradar, logo que se convença que foi injusto, e então estou certo que o sr. ministro da fazenda não deixará de castigar quem porventura o haja enganado, porque diz s. exa. no seu relatorio "Até agora não consta que se tenham realisado as condições d'este subsidio, nem ao governo foi possivel passar uma só das acções que estão depositadas no thesouro publico"; enganaram a s. exa. quando assim o informaram.

Quaes eram as condições d'este subsidio? A camara sabe quaes eram ellas, pois sabe como correu este negocio, que foi aqui tratado em tempo; a unica condição era contrahir um emprestimo, contrahiu-se. Aqui tenho a auctorisação do governo para a empreza do palacio de crystal contrahir um emprestimo na companhia utilidade publica (leu), e uma portaria de 16 de novembro de 1867 que approva as condições do emprestimo, e o auctorisa.

O governo tinha dado auctorisação para levantar o emprestimo, e depois recebeu o deposito das 700 acções, julgando tudo regularmente cumprido, auctorisou o pagamento do subsidio, o que consta de documento tambem impresso, o officio da direcção geral da thesouraria, em 20 de dezembro de 1867 (leu).

Já se vê quaes foram as circumstancias que precederam o emprestimo. Houve uma lei que votou o subsidio, houve auctorisação especial do governo para se fazer o emprestimo e houve a escriptura para elle se garantir; e como o contrato provisorio era mais lato que a auctorisação do governo, a empreza, na escriptura de ratificação, sujeitou-se ás condições impostas pelo governo, e os prestamistas aceitaram as mesmas condições.

Não lerei á camara, que já deve estar fatigada, os termos da escriptura, porque ella foi distribuida a todos os dignos pares num impresso publicado pela empreza do palacio.

Parece-me pois que com estes documentos difficil será ao governo provar que não foram preenchidas pela empreza do palacio de crystal as condições estabelecidas.

E quaes eram as condições que as côrtes tinham obrigado o governo a aceitar? Eram a emissão de umas acções, que elle nunca emittiu.

Deve pois a responsabilidade de tal falta recaír sobre a empreza? Seria não haver justiça, nem equidade n'este paiz.

Sr. presidente, eu combati o subsidio ao palacio de crystal; o sr. Margiochi tambem o combateu; parece-me que fomos os unicos que lhe fizemos opposição, que hoje aqui nos achâmos; apesar porém de lha ter feito, sou o primeiro a recusar ao governo o direito que porventura julgou ter para, com o fundamento de fazer uma economia, praticar um acto que é um ataque á propriedade.

Costuma-se dizer que quem semeia ventos colhe tempestades. Semeiam estes maus principios e destroem a sociedade, atacam a propriedade, e o que fica de sagrado no paiz? Ataca-se a constituição, e o que fica de respeitavel?

Depois quando o cidadão, exasperado por qualquer motivo, se levantar contra a ordem publica, contra os poderes constituidos, quem haverá ahi que possa dizer: não façaes isso, porque a lei se oppõe?... Creio que ninguem.

Sr. presidente, as consequencias, que de taes factos podem resultar para o credito do estado, são evidentes.

Pois, quando acabam com a confiança publica, como póde haver credito? Quem mais poderá atrever-se a dar os seus capitães em conformidade com as disposições de uma lei, quando não sabe se no dia seguinte lhe mandarão entregar o seu titulo de hypotheca, dizendo-se-lhe: tomae-o, porque o governo não quer cumprir aquillo a que se obrigou.

Em que situação ficam os portadares d'aquellas obrigações? Porque o contrato fez-se em obrigações, que se emittiram na praça.

Sr. presidente, direi agora alguma cousa com relação ao banco ultramarino, e folgo que esteja presente o sr. ministro da marinha; não tenho a honra de ter relações pessoaes com s. exa., comtudo estou costumado a respeita lo de ha muito pela sua grande intelligencia e muito saber; o respeito porem não exige que eu deixe de fazer as apreciações que me parece conveniente fazer.

Eu não tenho presente o decreto, o qual, talvez por esquecimento, não vem n'esta collecção que nos foi distribuida, o que aliás tinha para mim uma explicação, porque eu julgava que essa medida não entrava no numero d'aquellas que são abrangidas pelo bill, e estava persuadido que o governo a julgava ainda transitoria para a vir sujeitar ao bill, e tanto assim, que eu não tinha a menor intenção de tocar n'este assumpto; mas tratando-se a questão na outra camara, quando se apresentaram as reclamações dos interessados, declarou-se que a questão estava prejudicada pela approvação do bill.

O sr. Ministro da Marinha: -....................

O Orador: - Eu não o recebi, e não o disse para fazer censura; mas desde que na outra camara se tratou d'este objecto, e se reputou prejudicado pela approvação do bill (e eu chamo a attenção da camara para este facto), se hoje se approvar o projecto em discussão, fica tambem, como lá succedeu, prejudicada a questão relativa ao banco, e não se podem alterar as disposições da lei senão em virtude de outra lei; mas todos os que têem pratica parlamentar sabem o que são os projectos de iniciativa particular. Por consequencia é esta uma questão grave, e que merece a attenção da camara.

O sr. ministro da marinha no relatorio do decreto diz (leu).

Eis-aqui os fundamentos do decreto, mas eu tenho duvidas a este respeito. O governador do banco ultramarino, pessoa por quem todos temos a maior consideração, e com quem o sr. ministro da marinha tem tratado muitas vezes, póde considerar-se um empregado dependente do seu ministerio, por isso que a nomeação do governador foi aceita pelo governo; logo é necessario que o governo tenha toda a confiança n'elle para poder exercer aquelle cargo, e quando não houver essa confiança não póde ser governador, e

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tem de se demittir perante a assembléa geral, e esta de nomear outro que tenha a confiança do governo.

Portanto, o sr. ministro não só tinha á sua disposição os balancetes, como as correspondencias que tinha havido, e todas as resoluções do banco a respeito d'este negocio; por consequencia, tinha meios de se informar officialmente da verdade, e grave responsabilidade lhe cabe se, tendo o direito de inspecção no banco, não usou d'esse direito e não obrou em virtude d'elle.

De duas uma, ou as asserções do governo são inexactas, ou falta á verdade o governador do banco na representação que dirigiu a el-rei, representação que escuso de ler, porque a camara tem d'ella conhecimento.

N'este documento se affirma que as delegações de Benguella e de Mossamedes estão creadas, logo onde está a verdade? No documento official que serve de relatorio ao decreto, ou no documento extra-official, mas de caracter quasi officialissimo, em que o governador do banco leva á presença de El-Rei as queixas das más apreciações com que o governo lhe impoz uma sentença condemnatoria sem averiguar a verdade dos factos?

É certo, sr. presidente, que em parte é verdadeira a asserção do governo, quando diz que se não estabeleceu a agencia de Moçambique. Effectivamente, esta, agencia não foi estabelecida, mas são tão momentosas e importantes as desculpas que a tal respeito o governador do banco apresenta n'esta mesma representação, que me parece que a falta é quasi insignificante. A agitação da provincia, a falta de communicações com a metropole eram motivos sufficientes para justificar o procedimento do banco.

É só na véspera de se abrir o parlamento, quando parecia ao paiz que deviam estar extinctos todos os animos dictatoriaes do governo, que o sr. ministro da marinha se lembrou de apresentar um decreto, que importa uma sentença condemnatoria para os individuos que foi atacar, tentou destruir assim o credito respeitavel de uma corporação que tem feito importantes serviços, e lançou uma censura a um homem que merece a confiança publica. Brinca-se assim com um estabelecimento de credito? Se o banco não estabeleceu as agencias, maior é a responsabilidade do governo por não lhe ter exigido o estabelecimento d'ellas nos prasos marcados pela lei, e por não avisar a direcção em tempo competente da sua intenção de lhe suspender o subsidio.

Mas, sr. presidente, porque o banco não póde estabelecer uma das agencias a que estava obrigado, o governo tira lhe o subsidio todo, como se tivesse deixado de cumprir o contrato em todas as suas condições?! Mostra-se a impossibilidade de cumprir uma só condição, tendo-se cumprido todas as mais, e impõe-se uma pena total como se não se tivesse cumprido nenhuma! Parece que não ha justiça n'este paiz.

É de mais, sr. presidente, quaes foram as auctoridades competentes que o governo ouviu para tomar este parecer? Ouviu o procurador geral da corôa? Ouviu o seu ajudante, junto do respectivo ministerio? Ouviu o procurador geral da fazenda? Não tinha o conselho d'estado para consultar? Não tinha tantos corpos que o podessem illustrar? Os governos, por se aconselharem, não ficam menos revestidos de auctoridade, pelo contrario, adquirem muita mais; e se os governos em tempos ordinarios procedem assim, como não devem proceder cautelosas as dictaduras? Não têem elles, quando se tornam superiores á lei, obrigação ainda maior de ouvir as auctoridades competentes?

Deploro que uma illustração, como é o sr. ministro da marinha, não achasse outra economia a fazer senão a retirada d'este subsidio, porque se fica na duvida se foi uma economia, se foi um attentado contra a propriedade.

Sr. presidente, eu estou cansado, e a camara de certo o estará de me ter prestado a sua attenção benevola, que muito agradeço, e os srs. ministros tambem estarão cansados de me ouvir. Parece me porem que não faltei ao respeito devido á minha pessoa, á camara e a s. exas.; e se porventura me escapou alguma palavra que se possa julgar menos propria, todos me farão a justiça de acreditar, assim o espero, que da minha parte não houve a menor intenção offensiva para ninguem.

Por consequencia, sr. presidente, concluindo, direi que, se estas medidas forem approvadas, em logar de elevarmos o nivel politico d'esta nação, abaixa-lo-hemos; em logar de elevarmos o credito avilta-lo-hemos; e se se quizer appellar para, os capitães, como ha pouco succedeu, acharemos as portas fechadas, porque lhes hão de ir dizer que no dia seguinte não se pagam os creditos, e então não se devem ir sacrificar estas corporações por quem não póde merecer a sua confiança.

Sr. presidente, diz-se que os paizes são administrados pelos governos que merecem, mas eu quizera que o meu paiz não merecesse, um governo que fosse capaz de praticar injustiças, e estou persuadido que os srs. ministros são os proprios que deploram já estes acontecimentos; e que tão de pressa possam hão de prover de remedio.

Tenho dito.

Discurso proferido pelo digno par, o exmo. sr. Rebello da Silva, na sessão de 31 de maio, de que se publicou um extracto, a pag. 67, col. 2.ª do Diario da camara dos dignos pares.

O sr. Rebello da Silva: - Eu peço licença para explicar primeiro a contradicção apparente de dizer que fallava contra algumas das disposições do parecer, e de votar, apesar d'isso, a favor do decreto absolutorio pedido pelo governo. Duas rasões me dictam este procedimento. A primeira é filha dos considerandos do parecer da illustre commissão; a segunda, de reflexões, nascidas das circumstancias do paiz, consideradas em si mesmas e nos seus resultados naturaes.

Quanto ao parecer, não posso ter duvida em concordar com a doutrina do seu segundo considerando, visto que a approvação concedida por elle se reduz a uma confirmação restrictamente provisoria, conforme se lê no texto, e conforme o esclarecido relator, o digno par o sr. Silva Ferrão, declarou nas reflexões que lhe ouvimos. Se o governo aceita a doutrina e o commentario seriamos demasiado exigentes, nós os que estamos em outro campo, repellindo-a ou não a abraçando.

Continuam em vigor os decretos da dictadura, e fica sómente suspensa a legislação em contrario? Salvo o principio, e reconhecido o direito de revisão da materia dos decretos nesta sessão mesmo da legislatura, direito que, a meu ver, assiste ao parlamento em relação a todas as leis, fica aberto o caminho de se emendar o que carecer de emenda, e de se corrigir o que carecer de reforma.

E se não subsiste motivo para levarmos longe de mais os escrupulos, facilmente se deve comprehender que a causa publica póde exigir o voto affirmativo, porque os effeitos da rejeição do projecto seriam muito mais graves, do que as consequencias de absolvermos o excesso de poder, de que os ministros nos pedem os relevemos.

As rasões a favor comparadas com os inconvenientes dar rejeição são sabidas de todos, e creio na realidade escusado alargar mais a explicação d'elles. Quem deixa de os conceber e de desejar evita-los?

Entrarei agora no assumpto. Poucas vezes occupei a tribuna dominado de um sentimento de tristeza tão profunda; mas tristeza só e não desalento, porque ainda tenho fé no paiz e nas instituições, e ainda julgo que d'esta peregrinação dolorosa de hoje poderemos voltar áquelles caminhos, que trilhavamos ha dois annos ainda quando a Europa nos julgava dignos da liberdade pela cordura do povo e pelo respeito das formulas constitucionaes.

Sabemos, porque todos fomos actores ou testemunhas d'elles, os acontecimentos occorridos dentro de um periodo bem curto, mas que todavia resume actos, que a historia nunca ha de esquecer com a lição e com a recordação. Antes de janeiro de 1868 era pleno e liberrimo o exerci-

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cio da liberdade em todas as suas manifestações, um longo periodo de tranquillidade affirmára a confiança nas instituições, e uma folha das mais lidas e conceituadas na Europa, a Independencia belga, citava este pequeno reino como um modelo de sisudeza e de aptidão constitucional. Os progressos acompanharam em todas as espheras do seu desenvolvimento esta epocha de prosperidade relativa, e a era das revoluções parecia encerrada para sempre. Esta pagina de tanto proveito e de tanta honra para o paiz, cubriu-se de repente de uma beta negra, e uma agitação afflictiva, seguida de dolorosas apprehensões e sobresaltos substituiu os dias de paz e de acção regular e fecunda. Foi necessaria ou inutil, esteril ou vantajosa essa agitação?

Quando se liquidarem os encargos legados por ella o futuro o dirá. Hoje é cedo ainda para a opinião desapaixonada a sentenciar.

Mas o que de certo póde asseverar-se é que Portugal, o paiz pequeno e exemplar, que dentro de seus estreitos limites fazia a inveja de outras potencias, e que a imprensa liberal apontava como digno da sua autonomia, esqueceu em poucos mezes algumas das grandes qualidades que mais o recommendavam, um dos titulos mais nobres que podia invocar no conselho das nações. Esperemos que o impeto momentaneo acalme, e que esta pouco feliz, mas rapida transição, signifique apenas um curto parenthesis aberto na sua historia constitucional. Cuidemos do presente para segurarmos o porvir; e não olvidemos que os povoa pequenos se conservam pela madureza e sabedoria de suas resoluções (apoiados}.

No horisonte os pontos negros de hontem são hoje nuvens densas e escuras já em muitas partes; o trovão soa ao longe, e a tempestade póde desfechar de um momento para outro sobre a Europa... Velemos por nós, advertidos. A falsa confiança é o maior dos perigos.

O amor e a pratica das instituições são o escudo mais forte dos povos livres. As formulas constitucionaes não são vãos preceitos, nem se costumam os subditos impunemente a vê-las infringidas. Observadas nos conselhos da corôa, nos comicios populares, e em todos os actos da vida publica, hão de conquistar á bandeira nacional de 1834, alçada pelo Imperador, a força e o prestigio indispensaveis para tremular respeitada sobre a cupula do edificio laboriosamente construido pela geração dos fortes, e cimentado com tanto sangue portuguez.

Rogo á camara que, tomando em consideração tudo isto, lance os olhos sobre os factos passados, e aprecie o que occorreu nos ultimos mezes e o que está occorrendo, e compare os successos de hontem com os de hoje, e queira notar se o que está consignado nos decretos, de que nos occupâmos, e que o parecer diz que hão de continuar em vigor emquanto não forem revistos, encerra um attentado inexplavel; ou se, relevado o excesso da sua origem, será mais prudente absolve-lo e aceitar o facto consummado.

Não condemno em absoluto as dictaduras, mas inspiram-me sempre repugnancias. Filhas da necessidade muitas veses só ella e os resultados as podem justificar. As dictaduras não se inventam nem se forjam a capricho, surgem armadas e poderosas do seio dos acontecimentos. O que foi a de 1834? A organisação moderna e liberal tirada do canos da luta. A de 1836? A expressão da soberania nacional contra a suspeita de uma restauração do passado. A de 1801? Um protesto da opinião maguada e impaciente. Nem todas as epochas admittem dictadura, e nem todas as estaturas são talhadas para a obra titanica, cujas responsabilidades resumem. Era indeclinavel em 1868 uma dictadura mesmo parcial inaugurada a pretexto de realisar o pensamento das economias? Por mim entendo que não. Acho o remedio peior do que a enfermidade, a abdicação dos poderes legaes muito mais grave do que o risco de um ou dois mezes de demora. Convocando as côrtes dentro de trinta dias o governo evitaria a usurpação, se quizesse evita-la, e teria feito bem. Appellára para o paiz, devia esperar pelos seus representantes, e ouvi-los. Ferir direitos, demolir instituições, atropellar principios são actos sempre de perigoso exemplo e arriscada justificação. Catilina não batia ás portas de Roma, e se bateu depois a...a culpa foi da dictadura que poz a revolução no governo.

Trilhâmos uma nova estrada! Permitta Deus que ella nos leve aonde queremos e precisamos ir. Não é de agora a minha repugnancia ás dictaduras. Não formei hoje a theoria em nome da qual as combato. Em 1866, quando as commoções europeas traziam os animos assustados, alguem cuidou que seria util lançar-se o paiz nos braços de uma dictadura gloriosa pelo nome e pelo prestigio da pessoa. Em um jornal escrevi o meu voto em contrario, e não vejo rasões para me arrepender d'elle. Eis o que disse então: "A dictadura seria monstruosa e absurda. Quem a chama? O que a exige? Precisâmos de reformas, de actos viris, de mais autoridade no poder, ou de mais vigor no principio de auctoridade? Em nossa mão está obte-los sem saír da carta. Constitua-se a liga dos que são capazes de querer e de poder, e combata-se a seita dos relaxistas. A regeneração do paiz não se tira de um jacto da cabeça de um homem, e a nação toda sabe mais do que essas usurpações ephemeras, que nos apontam como refugio derradeiro. Não é necessario volvermos a segunda infancia tomando tutor, e requerendo a fustigação amoravel de alguns mezes, ou de alguns annos de silencio, de obediencia passiva e de exautoração moral". (Apoiados.)

Foi o que escrevi em 1866. Em 1869 repito o mesmo.

Não fórmo libellos, nem imponho culpas. Manifesto opiniões antigas.

O governo viu em um incidente parlamentar motivo ou pretexto para usar da arma da dissolução. Já não era pequeno abalo para circumstancias tão criticas. Dentro de um anno duas dissoluções e duas eleições!... Em outra parte deu-se o nome de golpe de estado a muito menos. Entendeu a corôa dever preferi-lo á camara.

Se a consciencia publica e a sua o decidiram a conservar-se fez bem. Mas tudo em tão melindroso lance o aconselhava, interposto recurso perante o paiz, e acabando de saír de uma dictadura legalisada como lhe conferira a auctorisação de 9 de setembro; tudo o aconselhava, repito, a não espaçar a nova convocação, a reunir immediatamente os comicios, e sobretudo a não mudar a fórma da eleição, a não tocar na organisação do tribunal que o devia julgar. Seguiu infelizmente a estrada opposta, optou pela dictadura, e os perigos com que lutou foram o fructo da sua deliberação.

O mau exemplo é contagioso. A revolução nas espheras do poder provoca a revolução das praças. A lei desacatada pelos seus guardas naturaes perde-se o respeito com facilidade (apoiados).

Não accuso os srs. ministros de auctores das agitações e dos transtornos que deplorâmos. Não foram culpa d'elles nem do gabinete que os precedeu, nem mesmo dos anteriores. Os males de que nos queixamos, a enfermidade de que padecemos conta largos annos de existencia. É velha, é quasi chronica. Digamos a verdade, e só a verdade (muitos apoiados).

Foi obra do passado, é o resultado das illusões do paiz, das illusões dos parlamentos, das illusões dos governos (apoiados repetidos).

Não foram os ministros de hontem nem são os de hoje que fizeram a situação perigosa em que nos vemos, foram as illusões de todos, foram as seducções e as facilidades do credito, quando se contavam por centenas de milhares de contos as sommas despendidas, as que nos cavaram os precipicios por baixo de caminhos juncados das flores mais vivas da esperança. Emprehendemos trabalhos herculeos para as forças, devorou nos a impaciencia de alcançar em poucas jornadas os que nos levavam grande distancia, e imaginando que os melhoramentos compensam logo os sacrificios, accumulámos os deficits, sacámos annualmente so-

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bre as praças estrangeiras, e poupámos o imposto sem notar que o emprestimo se resolve sempre no fim em tributo, e de ordinario em tributo pesadissimo.

A estas illusões é que o paiz, despertando, mas tarde, quiz oppor o seu voto. Não paremos, porém, na estrada dos melhoramentos, porque o erro seria maior ainda e a diminuição da riqueza depressa o castigaria; mas regremos os esforços, calculemos as despezas, e principalmente não tornemos a crear encargos sem receitas (muitos apoiados).

Se eu prezasse uma vangloria esteril diria com um triste sorriso, que me coube o ter sido o profeta ha seis annos, a nova Cassandra objurgaria os que então se riram com appodos do vaticinio. Na doutrina das economias sou mais antigo do que muitos apostolos de recente conversão, mais antigo e de certo tão convencido como elles, mas das economias sisudas e proficuas, e não dos côrtes absurdos, demolidores e ruinosos nos gastos reproductivos. Tenho para fallarem por mim, documentos insuspeitos e datados d'esta mesma tribuna. N'esta casa, em 24 de fevereiro de 1863, previ e annunciei os perigos de continuarmos na carreira precipitada em que íamos; mas cousa singular! A illusão voltou-se contra o aviso, e os harautos do fomento a todo o trance e por todos os modos dispararam sobre aquella humilde advertencia todas as setas da sua aljava com uma ira quasi olympica. Fui denunciado aos presentes e vindouros como um incredulo, cujas aberrações mereciam punição. Pintaram-me cyrstalisado na admiração da cabeça, da mulla montante, e do carro somnolento. Deram-me como adversario das vias ferreas e do vapor, e não sei se acrescentaram que até os silvos da locomotiva me indignavam (riso). Concluso assim o processo lavrou-se a sentença e pesou sobre mim a nota de fossil e retrogrado, epithetos que tinham o mesmo valor e justiça que as amabilidades de hoje contra os esbanjadores. Confesso que me affligiu pouco a censura, e que as injurias passaram por cima da minha cabeça sem me convencerem. É o que lhes succede sempre.

Suppunha que o paiz escorregava para um precipicio, e creio que não suppunha mal. Os factos deram-me rasão. Peço licença á camara para ler algumas palavras proferidas na sessão de 24 de fevereiro de 1863, não por vaidade, mas por mostrar que não me enganei então.

Eis o que disse: "Do ultimo debate conclui que a nossa divida tinha augmentado muito; e toda a camara formou igual juizo por certo, sendo o augmento dos encargos permanentes proporcional. Parece-me que seria mais rasoavel não excedermos os limites de uma circumspecta liberalidade, e que sem falsas economias, as peiores de todas, conviria que regrassemos os gastos de modo, que occorrendo ao indispensavel, deixassemos para mais tarde o superfluo e até o menos necessario..."

"As linhas de communicação accelerada sem uma rede de estradas correspondente, não dão tudo o que nós promettemos em nome d'ellas, e embora traçadas representem um grande progresso e glorifiquem a iniciativa dos governos, melhor fariam tudo isto ajudadas do seu auxiliar natural, que é a viação ordinaria...."

"Não se imagine que os rendimentos se inventam com a mesma facilidade que os bons desejos. Não será hoje, nem ámanhã que os caminhos de ferro, hoje em via de execução, hão de começar a compensar os sacrificios."

Bem vê a camara que o peso dos encargos accummulados sem receitas que os cobrissem me preoccupava em 1863, e que os factos se encarregaram em cinco annos de me dar rasão. Mas eu não pedia que se parasse, que se decretasse a immobilidade; queria que a viação ordinaria acompanhasse a accelerada, e que as despezas se regrassem; porque não julgava possivel progredir muito tempo assim sem uma queda desamparada. Mas as illusões estavam ainda vivas. Os eleitores só lavravam aos seus representantes um mandato imperativo, era de obterem a ponte, a estrada, ou o ramal do caminho de ferro. Os parlamentos, á imagem e similhança do paiz, só cuidavam de alcançar novos traçados de caminhos de ferro, e cada provincia queria ser cortada por um, se não era já cada districto. Os gabinetes deixavam-se envolver na torrente, e tudo correu assim até 1866, em que se levantou a primeira voz de aviso, quando já o abysmo estava a poucos passos. O credito subsidiava largamente tudo, e se as parcellas da divida publica e dos seus encargos eram de anno para anno maiores, se os deficits se accummulavam, não se fallava de imposto nem de economias, porque a idéa era que bastaria o juro dos melhoramentos para pagar no duplo todos os sacrificios. Foi por isto que eu disse que as culpas das illusões, que expiamos agora, é de todos, do paiz, das camaras, e dos governos, e que é profundamente injusto as saca-las a um só. (Apoiados.)

A opinião que emitti em 1863 é a que tenho ainda. Entendo que os melhoramentos são uma necessidade indeclinavel, e que suspende-los equivale a estancar a riqueza publica; mas entendo tambem que de hoje em diante devem paga-los os que os pedirem, cobrindo-se com receita sufficiente todos os encargos delles. Para as linhas ferreas poderem produzir todos os seus beneficos effeitos é preciso que uma rede de estradas ordinarias ligue a viação accelerada com os grandes centros, e que entre estes e as povoações de menor vulto se atem relações faceis e commodas por meio dos caminhos districtaes e municipaes. Sem esta condição essencial as explorações das vias ferreas nunca serão senão a sombra do que podem e devem ser.

Quereria por isso ver applicar á construcção de boas estradas todos os esforços e actividade, e acharia mui util n'este ponto algum ensaio menos timido de descentralisação (apoiados).

A camara sabe que não se seguiu este systema, e que os gabinetes accusados por este motivo não fizeram senão ceder á vontade do paiz manifestada pelos seus representantes.

Pediram se estradas, pontes e caminhos de ferro, e toda a sorte de melhoramentos, emquanto não chegou tambem a vez dos governos assustados pela visão terrivel de um deficit enorme pedirem o imposto. Mas diante do sacrificio indispensavel a febre dos melhoramentos acalmou, e o grito das economias levantou-se. Tudo, menos o imposto, que não é preciso, diziam uns; o imposto depois das economias profundas, bradavam outros.

Dissimulou-se a gravidade da crise para adiar o remedio doloroso, e propozeram-se côrtes violentos, desamparados, que significariam a ruina dos serviços publicos. O meio era heroico, e a panaceia infallivel. A thesoura fazia tudo. Extinctas as despezas desapparecia por força o desequilibrio. Era o famoso dito de Rolando do Ariosto. O corsel teria todas as prendas, e só um defeito, o defeito de ter morrido. Assim matava-se de certo o deficit com o pequeno inconveniente de supprimir do mesmo golpe a administração do paiz! (Riso - apoiados.)

D'esta repugnancia ao imposto nasceu o abuso do credito.

Todos queriam melhoramentos, mas ninguem se prestava a pagar mais, e os governos não tinham remedio senão ceder aos parlamentos; os parlamentos não faziam senão traduzir a vontade do paiz. A illusão passou. Hoje sabemos todos o que custam os melhoramentos, e Portugal é muito honrado para se negar ao pagamento dos seus encargos, e arriscando-se a ver o seu nome riscado do mappa das nações.

O modo é simples e unico. Consiste na reducção gradual e sensata das despezas, e no augmento immediato do imposto. Não se conhece outro (apoiados). Esta é a verdade, e manda a consciencia, manda o dever, manda o patriotismo sincero que se diga ao paiz a verdade, só a verdade, toda a verdade. O regimen em que o soberano, concentrando todos os poderes em sua mão omnipotente, via curvados diante de si os lisonjeiros e os apologistas mercenarios acabou, e para não voltar. O furacão revolucionario de 1789, e o cataclysmo de 1792, em França, passaram por

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cima dos thronos, e mesmo os que resistiram ficaram assentes em outras bases. Sacudiram nos depois sublevações mais pequenas, alluiram alguns terramotos parciaes, e surgiu das ruinas das velhas monarchias um novo soberano chado- a nação -, que respondeu ao famoso cartel despotico de Luiz XIV "o estado sou eu e não vós, reinaes porque eu vos aceito, e não pelo direito feudal e divino".

Este soberano de milhões de cabeças, de milhões de vontades, cuja voz potente cala a voz dos canhões, cujo braço desarma os exercitos, cujos instinctos adivinham muitas vezes o futuro, é e chama-se o povo; e, como todos que têem o poder, como todos que d'elle podem usar para o bem e para o mal, conta nas praças mais aduladores do que os principes nas suas côrtes. Amigos verdadeiros, creio que poucos, porque n'este ponto a realeza popular não é mais privilegiada do que a realeza do direito divino (apoiados).

Os aduladores saudam-o, fazem lhe cortejos, espreitam-lhe os caprichos, e em vez de lhe apontarem sempre os bons caminhos, dizem-lhe que só elle é grande e forte, que póde tudo, que só elle governa, ou deve governar, e que tudo ha de ceder a um gesto e a um aceno seu. Confundem a rasão com a lisonja, o louvor com a adulação, e procuram fazer no soberano das sociedades modernas o que os cortezãos fizeram dos soberanos das sociedades extinctas, um instrumento, uma voz, uma força docil para elles, hostil ou renitente para todos os outros. Protheus multiformes, os lisonjeiros do povo exploram de mil modos a sua confiança, e armam com mil artificios á sua credulidade. Estes, pedem-lhe a modesta corôa de carvalho de seus representantes, para lhe defenderem a causa no parlamento, como tribunos incorruptiveis. Aquelles, supplicam-lhe o voto para obterem o manto ainda mais obscuro da edilidade local, a pretexto de salvar o municipio. Alguns, satisfazem se com o manto de conselheiros natos dos comicios, e esperam pelo dia de serem tudo, chegando aos beiços o calice enebriante das acclamações.

Muitas ambições são legitimas. Outras... o povo faz justiça d'ellas depois. Nós que respeitâmos o paiz, que nos honramos com a defeza dos seus verdadeiros interesses, nem podemos fallar como os tribunos, nem devemos engana lo como os aduladores. O povo é grande, é forte, é soberano, e é paciente, porque é eterno, mas a sua força reside no direito, e a sua soberania contem-se na lei que elle proprio dieta. Digamos pois ao soberano das sociedades modernas a verdade, como caracteres nobres souberam dize la entre as bastilhas e os desterros aos soberanos das velhas monarchias. Digamos pois áquelle que tem nas suas mãos os seus destinos, e os de todos nós, que tem na sua vontade a sorte do presente e do porvir; digamos-lhe que o illudem quando lhe insinuam que trepida, ou hesita diante dos sacrificios, quando os sacrificios significam deveres de honra, e encerram uma necessidade indeclinavel da existencia nacional. Digamos-lhe que tem rasão quando pede que se firmem as tendencias economicas, que tem rasão quando quer fiscalisado e aproveitado o obolo que lhe arranca o imposto, que tem rasão quando pede a igualdade dos tributos, porque é iniquo ser só o pequeno quem paga ao fisco o que deve, e isentar-se o rico, o poderoso, rodeado de uma clientela de influencias eleitoraes. (O sr. Marquez de Voltada: - Apoiado.) Digamos-lhe tudo isto, e acrescentemos ainda que tem rasão quando acha excessivo o numero de empregados; mas que o enganam quando lhe propõe o holocausto do funccionalismo, e lhe pintam a sua ruina como a riqueza do estado.

Os empregados uteis não são os parias da sociedade, são os cooperadores indispensaveis da civilisação. Acrescente-se que o povo tem rasão quando imagina que o serviço se não póde fazer sem homens intelligentes, mas que o procuram illudir quando lhe asseguram que ha bons empregados sem remuneração condigna. Digamos tudo isto ao soberano das sociedades modernas, porque elle precisa de ouvir a verdade; e digamos-lhe porque o povo, sobretudo o povo portuguez, é cordato e sisudo: e embora momentaneamente se deixe levar do ardor das paixões ou dos impetos instantaneos, de pressa cáe em si e se convence da rasão, e uma vez convencido saberá impor a sua vontade, pelos meios que a constituição offerece, para que outras regras e outras idéas predominam.

A necessidade do imposto é urgente e immediata.

Hontem os encargos eram grandes, hesitou-se, e os encargos hoje são já muito maiores. Recua-se mais, e ámanhã sento invenciveis (apoiados). Entrâmos em novo systema? Deveras o desejo. O parlamento convenceu-se de que era necessario assignar aos actos officiaes tendencias economicas definidas? Creio que sim. Pelo menos explico assim a auctorisação de 9 de setembro conferida aos ministros da corôa, uma das mais latas, e direi até das mais perigosas auctorisações para elles, que a representação nacional podia conceder-lhes. Decorridos mezes promulgaram-se por todas as repartições do estado providencias para se diminuirem as despezas.

Bastantes decretos excederam os poderes delegados pelas côrtes, e outros foram alem do que pedia a reformação equitativa e prudente dos serviços. Demoliu-se muito e não se reconstruiu, ou reconstruiu-se imperfeitamente. Mais largueza no desenho e maior iniciativa e firmeza nos traços dariam duplicadas reducções, e introduziriam na administração principios novos e vivificantes. Pouco se desaccumulou, e ainda menos se descentralisou. Os expedientes complicados sobreviveram, os quadros exagerados permaneceram em grande parte, e para satisfação da opinião lançaram-se da janella das secretarias os cadaveres de alguns concelhos para a entreter e distrahir da contemplação do muito que se amnistrava, porque os coadjutores das reformas tiveram a modestia de se pouparem a si (apoiados).

Reuniram-se em janeiro d'este anno as camaras, e um incidente, a que se avolumou o vulto, provocou a dissolução. Espaçou-se até maio a nova convocação, e o governo saiu de uma dictadura disfarçada para entrar n'outra aberta e mais audaciosa.

Repito, não julguei então, nem julgo necessaria ainda a dictadura. O incidente da eleição, que determinou a intervenção do poder moderador, não tinha as proporções de conflicto insanavel. Mas parece-me que o governo duvidava da docilidade da maioria de 1868, e que aproveitou a occasião para responder a outros juizes.

Em circumstancias tão delicadas era um dever a reunião quasi immediata dos comicios eleitoraes. Interpondo um recurso perante o paiz, o ministerio, devia querer que o plebiscito se lavrasse o mais cedo possivel.

O que parecia rasoavel pois era que o governo convocasse as camaras com a maior brevidade, em vez de a espaçar como fez.

Apreciarei resumidamente outro acto, porque se liga intimamente com este. Refiro-me ao decreto de 18 de março. Declaro á camara, e solemnemente, que me oppuz, por todas as fórmas concedidas aos cidadãos pela carta para manifestarem o seu voto, a este facto reputado por mim um attentado constitucional.

Condemnei o decreto eleitoral em nome dos principios, e em nome das regras de lealdade politica. Não me arrependo. Se o paiz o sanccionou e legitimou aceitando-o nos comicios da eleição, se o cubriu com o seu plebiscito, emquanto este sacramento o não purificou, foi e devia ser, para todos os que prezâmos a liberdade, uma usurpação e uma temeridade dignas de censura.

Publicou-se, como pedra angular de uma reforma parlamentar, o decreto de 18 de março? Essa queria a eu; e não só a desejo na casa electiva, mas na camara dos pares (apoiados). Exponho francamente a minha opinião.

(Interrupção do sr. visconde de Fonte Arcada, que se não ouviu.)

Sei que o digno par o tem dito já, e eu já o disse por

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vezes, mas repito-o agora. Desejo a reforma da camara dos pares, embora tenha de sacrificar interesses pessoaes.

Entendo que a camara, demolidos como foram os esteios que em 1826 e ainda em 1834 lhe assegurava o alicerce, não póde continuar a existir como nas epochas em que elles, fortes e de pé, a sustentavam (apoiados). Depois das profundas modificações sociaes, feitas desde 1826 até hoje, no modo de ser do paiz e da Europa, não póde a hereditariedade ser tomada como base da existencia de um senado moderno, quando até na terra classica, aonde a sua organisação é solida, começa o edificio a vacillar, e a aristocracia a capitular, propondo a introducção do elemento vitalicio.

A reforma parlamentar é necessaria, e quero-a n'esta casa e na outra.

A camara alta, posta em harmonia com as idéas do seculo, ha de ser muito mais forte, muito mais respeitada, muito mais influente do que hoje (apoiados). Banhando-se nas aguas, vivas dos principios modernos, recebendo o baptismo popular da democracia, ha de resurgir mais vigorosa e mais apta para aquella missão que a constituição lhe conferiu, do que persistindo em se arrastar enfraquecida após a tradição, e longe de principios que são hoje communs aos povos livres. Instituição velha, sentirá breve os effeitos da caducidade; representante do espirito de uma epocha finda, o presente conhece-a mal, e o futuro não a poderá abraçar. Sombra passará como as sombras. Passado cairá no passado. A reforma é o unico meio de lhe restituir o que o tempo, e não erro e culpa sua, lhe roubou. Tome a iniciativa d'ella, e em vez do principio que hoje a torna vulneravel, erguer-se-ha robusta e armada para os combates da opinião e da influencia legitima e fecunda (apoiados).

Disse a verdade, sr. presidente. Hoje só ella póde salvar o paiz. É necessario que se diga tudo no parlamento, e que o paiz saiba tudo.

Mas envolveria o decreto de 18 de março a reforma parlamentar que se precisa e se pede ha annos? Não, de certo. O governo publicou-o com o pretexto de arredondar economias, com a desculpa de diminuir o numero de deputados, e com elle a somma dos encargos do thesouro. Se foi esta a rasão, valia mais suspender o subsidio ou reduzi-lo, e nunca pôr mão violenta na lei organica da organisação de um dos poderes, e reduzir a uma conta corrente o principio inviolavel, á sombra do qual ella repousava.

As rasões de economias podiam ser attendidas sem se tocar no principio organico. Não faço o elogio da lei de 23 de novembro de 1859. Votei contra ella.

Sinto que outros admiradores extaticos das liberdades que ella significava, signatarios do relatorio do projecto, e devotos escrupulosos da sua firmeza, riscassem com mão audaz o proprio artigo inspirado por elles, para pôrem os novos circulos a coberto de um attentado do executivo. Adivinharam o proprio parricidio? (Riso.)

Que foi feito dos escrupulos do distincto homem politico a quem alludo, e que não vejo presente na sua cadeira?

Quando se apresentou em projecto a lei de 23 de novembro de 1809, a lei de que foi principal auctor um dos oradores mais eloquentes da tribuna portugueza; quando elle, affeito a attrahir com a palavra todas as vontades na casa electiva, pintou a eleição de um deputado por cada circulo como a perfeição do systema pela intimidade completa dos eleitores com os seus representantes e as puras nascentes da opinião, admirei a eloquencia, applaudi as intenções, mas não acreditei nos resultados, e por isso não um o meu voto ao d'elle, de José Estevão, n'esta questão.

Não me pareceu que por ora os nossos costumes e educação constitucional justificassem as esperanças do grande orador, e que as vantagens d'aquella intimidade que o seduzira compensassem os inconvenientes, moderando a viveza das paixões e dos interesses locaes, e até as acrimonias, permitta-se-me a phrase, que nascem com facilidade nos pequenos circulos, V. exa. sabe os effeitos da lei. Mas não foi só ella a culpada do mal mais profundo que, a meu ver, mina a organisação dos partidos. Por desgraça chegámos á situação de sermos todos de uma escola, de uma bandeira, de uma opinião. Somos todos progressistas. Não ha um só conservador em Portugal! Não ha um só moderado! Todos são altamente progressistas. É a primeira phrase que solta qualquer orador, e sempre acompanhada do gesto obrigado de apertar a mão no peito.

Dedicado desde a infancia á liberdade, declaro que sou profundamente progressista. Como se a liberdade fosse incompativel com as opiniões menos adiantadas! Mas á profissão de fé não correspondem sempre as obras! O progressista vota muitas medidas que não são progressistas, e até que não são liberaes, mas cobre-se com aquella bandeira, e basta.

Se tivessemos partidos organisados, se tivessemos partido progressista e partido conservador, não presenciariamos os lances que nos affligiram vendo caír ministerios e levantarem-se em presença das camaras, sem ao menos se consultarem os seus presidentes, e passando-se tudo na maior obscuridade (apoiados). Para não acontecer isto, para não estarmos semanas inteiras sem ser possivel forjar um gabinete que substitua outro, retirado tambem fóra da influencia parlamentar, é que os partidos são precisos e devem existir (apoiados).

A condição essencial do systema é que o rei reina e não governa, e esta condição não é uma palavra van, deve ser um facto. O rei de Inglaterra tem estado demente até, e o paiz não sente o menor abalo. O gabinete governa e o soberano cura-se.

Os reis deveriam tomar o exemplo de Leopoldo I da Belgica. Quando a Europa negociava que elle aceitasse a corôa, havia se votado o ultimo artigo da constituição; depois de a ler e de meditar Leopoldo respondeu: "a tunica é apertada, mas não importa. Se não poder vesti-la toda alargar-se-ha aonde for possivel; e se me servir, como espero, tanto melhor, porque vale mais ter as acções um pouco presas, do que demasiado soltas". (Apoiados.)

O rei reina e não governa, cumpre-lhe receber dos ministros e do parlamento as indicações da opinião, retirar-lhe a sua confiança quando perderem a do paiz, e nomear os homens que o caracter, as qualidades e a reputação, e nunca os aulicos ou os corrilhos, inculcarem como dignos do poder. Nada mais e nada menos.

Quando eu fallo assim, não quero significar odio mortal ás dictaduras, embora não tenha approvado os actos de algumas; mas se não me seduzem, tambem não as julgo completamente condemnaveis nem absolutamente inuteis. Não as julgo taes, porque me recordo das de 1834, 1837 e de 1851. O que não percebo nem percebi nunca são as dictaduras sobre posse, fabricadas sem rasão de ser, e nascidas do capricho e não de uma transformação profunda.

O que me maravilha é ver surgir uma dictadura quasi espontanea, e contar entre os seus admiradores aquelles mesmos que as condemnavam.

É menos deploravel que os governos exerçam as dictaduras, do que vê-los applaudir por ellas.

Já mostrei que esta opinião é antiga em mim, e que não vim apregoar hoje uma doutrina depois de ter sustentado antes outra e differente. Podia ser que isto succedesse, porque o dom da infallibilidade não me foi dado; e muitas vezes me tenho arrependido de uma opinião tomada mais de leve, mas agora não acho de que me penitenciar, nem de que me arrepender.

O perigo das dictaduras é suppor-se, que da cabeça de um ou de poucos homens podem surgir repentinamente as reformas completas e perfeitas. E se lançarmos os olhos sobre os decretos que os srs. ministros promulgaram, de certo com as melhores intenções, poderão elles proprios affirmar que esses actos foram os mais perfeitos e os mais adequados, e que lhes sobraram tempo e reflexão para os amadurecer? Não O dirão seguramente. Muitos revelam a

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pitação com que se elaboraram, não poucos accusam a falta de exame e de harmonia que devia liga-los em um todo lógico e coherente.

Alludirei, por exemplo, a um d'elles, e mais tarde hei de interpor o meu direito de interpellação para o discutir extensamente, com o intento de provocar uma resolução da camara ácerca de algumas das suas disposições. É o decreto de 31 de dezembro sobre a instrucção publica. Desejaria perguntar se aquella providencia representou as idéas de todo o gabinete, ou as de um ministro só, e se era a modificação que as circumstancias imperiosamente requeriam? Acompanhou o decreto de 31 de dezembro os progressos da sciencia, e os desenvolvimentos do ensino pratico e especial ultimamente realisados na Europa? Emfim era a medida que o principio da economia tantas vezes, invocado podia exigir com proveito publico? Creio que não.

Reformou-se, ou antes destruiu-se apressadamente; e a par de algumas disposições uteis estabeleceram-se bases, a meu ver, insustentaveis, em presença do nosso estado, bases que revelam o desejo, a aspiração imitativa, e sempre perigosa de importar usos estranhos. Adoptaram-se varias prescripções que os nossos costumes, as fórmas do nosso ensino, e as habilitações do nosso professorado não podem admittir (apoiados).

Aqui está, pois, uma reforma que, em geral, ninguem applaude, que ninguem recommenda como proficua, e que em nada auxilia os fins de verdadeira economia (repetidos apoiados).

Basta a exhibição exotica dos minervaes, baptisada com um nome rescendente ao classissismo mais puro, e que significa um tributo e um tributo pesado. Acha o governo que decretos com indole tributaria podem entrar nos limites da auctorisação de 9 de setembro?

Que direi das reformas das secretarias? Simplificaram ellas acaso os serviços, os methodos, os expedientes? Seguiram o principio da descentralisação? Cercearam-se porventura os quadros e diminuiu-se o pessoal? Regeu ao menos um pensamento uniforme e simetrico a sua reorganisação?

Creio que não se ousará dizer que sim! O que vemos? Em umas secretarias declarou-se indispensaveis os directores geraes, em outras proscreveram-se, e sempre em nome da applicação elastica do principio das economias! Quando tinham rasão os srs. ministros? Quando convertiam a direcção de instrucção publica n'uma repartição, só mutilando a idéa e a fórma, ou quando conservaram as direcções como indispensaveis? Em se pondo de accordo saberemos.

Repito, pois, não só na instrucção publica, mas em muitos outros ramos do serviço publico, os decretos da dictadura carecem de uma revisão immediata, imparcial, completa e isenta de influencias apaixonadas. Pouco do que se edificou agora em bases frageis ha de viver. São obras de tarefa, acanhadas, pequenas, fugitivas, obras de um dia fadadas a morrer no outro (apoiados). Atropelou se a justiça, feriram se os direitos adquiridos, cortejou-se a falsa opinião, e, passado o impeto, o futuro fará prompta e cabal execução em quasi todas.

O que podia durar eram reformas traçadas em nome de grandes idéas e segundo um plano elevado. Essas, sim, é que nos viriam libertar da confusão, da babel de processos papeliferos (desculpe a camara a phrase) que pullulam, invadem, innundam e afogam todas as repartições em nome de uma centralisação ciosa de crear dependencias e attrahir a si todos os negocios desde a instrucção até ás resoluções finaes. Convinha simplificar em vez de complicar, alliviar, e não aggravar o peso incomportavel do expediente ordinario, e distribuir pelas localidades todo o serviço que sem prejuizo deve e ha de um dia commetter-se-lhes. É por isso que a reforma da administração me pareceu sempre o primeiro passo a adiantar n'este caminho. Sem ella nem a descentralisação póde ser senão uma palavra oca de programma; nem a desaccumulação, que é diversa, mas essencial, póde entrar na esphera pratica dos factos; nem finalmente se poderá obter pela simplificação dos negocios a simplificação do serviço e a reducção dos quadros. Gastamos muito papel, muitos officios, muitas portarias de mais, e desgraçadamente achamo-nos cada vez peior! (Apoiados.)

Sem a reforma administrativa, concebida e desenhada com este proposito, fallar em diminuição de pessoal nos quadros é soltar uma phrase esteril e nada mais. Os papeis são tantos, que cansam a mão e a penna de legiões de empregados, accusados, innocentes da culpa, que não é d'elles, de sugarem a substancia do estado. Emquanto o numero e o volume dos processos, emquanto a serie interminavel das formalidades, dos passeios officiaes pelo correio, e das velhas mesuras tradicionaes continuar com foros de ponto de fé bureaucratico, não esperemos providencia efficaz, voto sincero na exageração do pessoal. Diminuam o expediente se querem reduzir os quadros. O mal não procede dos vencimentos dos empregados, mesquinhos, insufficientissimos, nasce do numero excessivo dos funccionarios (apoiados). Mas esses empregados não povoam as repartições senão em virtude da lei. Entraram pelas portas que ella abriu e abre, e a verdadeira culpada do mal é a organisação central dos serviços, enxerto rachitico de instituições mais ou menos modernas no velho tronco da monarchia antiga.

A causa do pessoal enorme, que tanto dá na vista e com motivo, é, repito, o vicioso systema do expediente em vigor, e o methodo de instruir, processar, abarcar e dilatar os negocios.

Não sei se esta complicação foi ou é innocente, mas o que posso affirmar é que a consequencia immediata d'ella ha de ser sempre a progressão do numere dos empregados (apoiados).

O proprio decreto eleitoral encerra uma prova das precipitações a que me referi. Apesar das hesitações e das rémoras de alguns mezes, como saíu a nova circumscripção dos circulos, á qual não escasseara o tempo para ser uma obra relativamente perfeita? Decretou-se pouco menos do que o impossivel, supprimiram-se as distancias, e Macau e Timor atravez dos mares foram obrigadas a um abraço, quasi incestuoso, formando um circulo unico! Quem conhece as localidades e as circumstancias das duas provincias é que póde bem avaliar este rasgo do decreto de 18 de março.

O governo em janeiro d'este anno appellou da camara para o paiz, mas os seus actos revelaram desde logo a desconfiança de que o recurso não fosse aceito. Como se explica o praso da convocação tão dilatado? Como se justifica a demora na publicação da nova circumscripção eleitoral? Porque se fez ella á ultima hora, quasi improvisa, e mais quasi como uma surpreza aos partidos do que como um acto governativo? E esses circulos, uns estendidos no leito de Procusto, outros modestamente aninhados na sua primitiva mediocridade, não auctorisariam as queixas e as suspeitas dos que viram nelles não as combinações mais adequadas ao fim eleitoral, mas ao exito de certas e determinadas candidaturas? Não parece que tudo se calculou para deixar á opposição todas as condições desvantajosas? Talvez estas culpas sejam veniaes, mas em todo o caso são culpas, assim como é tambem certo que, lavrado o decreto quasi na véspera da eleição, se negou aos partidos o tempo indispensavel para se prepararem a entrar na luta com menor inferioridade!

Eis o inconveniente das dictaduras! Mas na mesma lei das deduccões nos vencimentos dos funccionarios, lei que representa um imposto pesado e desigual, como se annullou e immobilisou de repente a iniciativa, ministerial?

Era um sacrificio. Nenhuma classe póde negar-se a contribuir quando o paiz carece do patriotismo de todas. Collectaram-se os ordenados, o salario industrial dos empregados, resuscitou-se para elles a caduca e condemnada forma do imposto proporcional, cuja progressão termina no absurdo. Por que parou de subito o governo, e lhe ficou o braço com a espada alçada, quando a equidade, a rasão e

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a necessidade mais imperiosa ordenavam que estendesse a todas as industrias o mesmo golpe? Porque? Se foi escrupulo constitucional, bem tardio lhe occorreu.

As barreiras da legalidade estavam transpostas e o executivo não recuara diante da responsabilidade de lançar tributos.

Limita-los a uma classe podia significar receio das resistencias, contemplação injustificavel com interesses intractaveis, mas não respeito pelos principios. Diante dos encargos todos são iguaes, e collectar só a uns porque o governo esperava o applauso de outros, parece-me o acto menos ajustado com a igualdade e com as boas normas que podia praticar-se.

Não fallo do effeito retroactivo dado ao decreto em materia tributaria e contra a letra e o espirito da carta. Confesso que não percebi então, nem hoje ainda posso explicar aquella prescripção á não ser uma pura ostentação de pouco respeito ás doutrinas mais sabidas.

Metter a mão do fisco no bolso dos empregados para lhes arrancar a deducção do mez vencido, antes do decreto, foi um luxo de exacção, que de certo não teve exemplo e que confio em Deus que nunca tornará a renovar-se! (Muitos apoiados.}

Não é a occasião agora de discutir o imposto proporcional. Todos hoje o consideram insustentavel, e applica-lo exclusivamente aos empregados publicos, aggravado pela addição de todos os vencimentos, ou foi acto desesperado da necessidade, ou invento pouco glorioso para o alcance economico da medida.

A quebra no rendimento do imposto indirecto, facil de prever, castigou e ha de castigar severamente a exageração. Sommam 320:000$000 réis as deducções. Quanto se cobrou de menos já nas alfandegas da capital por exemplo? Estas violencias têem a desgraça de trazerem sempre comsigo um mal peior do que o mal que se propunham remediar. Um sacrificio rasoavel era um dever para os funccionarios; o imposto proporcional, excedendo as forças do contribuinte, havia de traduzir-se, e traduziu-se de feito, em perda para o estado. (Muitos apoiados).

Quando se ía appellar para o patriotismo do paiz pedindo-lhe augmento de contribuições, era justo e inevitavel não exceptuar nenhuma classe. Mas separa-las, escolhendo uma para victima expiatoria, e exceptuar todas as outras... ninguem dirá que fosse opportuno nem prudente. Sacrificios geraes, sacrificios communs todos os aceitam; holocaustos para captivar popularidades ephemeras nem aproveitam, nem facilitam nada.

O mesmo direi do decreto sobre a extincção da engenheria civil. Não imagine a camara que eu venho advogar os interesses d'aquella classe tão util é illustrada, ou lamentar em nenias plangentes a crueldade das reducções que a feriram. Lastimo só a demolição e não a reforma. Não pertenço ao seu gremio. Posso julgar sem paixão, e embora conte n'ella com urgulho muitos amigos, acima de todas as considerações prezo o meu dever e o paiz.

É possivel que os quadros fossem n'aquella classe desproporcionados, e que os vencimentos excedessem não o merito dos individuos, mas as faculdades attenuadas do thesouro. Nem affirmo, nem contesto, porque não sou competente para decidir. Mas o que posso assegurar á camara, porque o testemunho dos factos o assevera, é que em alguns annos se haviam creado e robustecido n'ella especialidades apreciadas dentro e fóra do reino. Nos trabalhos de minas, nos serviços geologicos, e em outras applicações utilissimas tinhamos homens que honravam e hão de honrar sempre o nome de Portugal. Arrasou-se tudo de um talho. Caíu a lei da sua instituição, lei recommendada pelo sr. marquez de Sá como um progresso indispensavel, e o nome do meu illustre amigo, sinto-o por elle, apparece no epitafio como tinha apparecido no berço. Figura na primeira hora da vida e na hora dolorosa da destruição. Voltámos em 1868 ao anno de 1812 quanto á organisação da engenheria. Apagou-se de um traço tudo o que existia. Aniquilaram-se direitos, promessas, experiencias, vocações! O edificio caíu pelos alicerces. Baqueou inteiramente. Em nome do principio das economias decretou-se a perda de todas as sommas gastas até hoje para elevarmos as aptidões especiaes ao grau que haviam attingido. Serão economias essas, mas protesto que as deploro como verdadeiros desperdicios. Reduzir nos vencimentos e no pessoal até onde fosse rasoavel e compativel concebe-se, mas riscar a instituição que as nações mais modestas nos gastos sustentam como uma necesssidade, declaro que excede a minha comprehensão.

Quanto á reforma da instrucção publica entendeu-se que o meio mais opportuno de atalhar certos inconvenientes consistia em lançar um imposto sobre os alumnos do lyceu, ornando-o com o nome, saborosamente erudito, de minervaes. Que a sciencia saísse armada da cabeça de Minerva como a deusa surgira da fronte do Jupiter, podia admittir-se por veneração do culto mythologico, mas que o imposto de cobre recebesse na pia do fisco o baptismo com que figura no decreto de 31 de dezembro é mais duro de aceitar (riso). Quiz-se com elle pôr termo ao ensino particular dos professores publicos de instrucção secundaria! Não creio que o tributo sabio alcançasse o fim, e contesto ao estado o direito de vedar o exercicio de uma industria licita aos professores, e, o que é mais, de limitar o direito de escolha aos pães de familia. Abusavam ou podiam abusar os professores nos exames? Inhibisse-os o governo de assistir a elles nas localidades aonde ensinassem particularmente, mas collectar o alumno, alem da matricula, em uma retribuição escolar semanal para augmento do ordenado do professor parece-me providencia, alem de pouco efficaz, contraria aos bons principios, e mais hostil do que favoravel a animar a população dos lyceus (apoiados).

Os minervaes são um imposto que, e só por isto, o decreto que os estabeleceu não podia figurar na collecção dos actos promulgados em virtude da auctorisação de 9 de setembro, e peço por isso ao sr. ministro do reino que lhe mande passar guia para junto das providencias colligidas sob a rubrica de medidas de dictadura (riso). Lá é o seu logar, e faço votos para que se não demore.

Espero que a reforma da instrucção publica um dia, e breve, alcance a importancia que lhe compete. Encerra a questão do futuro. Da minha parte prometto não levantar mão d'ella, e desde aqui convido já o sr. ministro do reino para a discutirmos. Acredito nos bons desejos de s. exa., e conto que se ha de convencer da necessidade de melhorarmos o ensino em todos os graus. Escuso pois de acrescentar agora mais nada. Expliquei a minha opinião, e basta.

Tenho exposto as minhas idéas sem recuar diante de nenhum dever. Nas censuras obedeci á consciencia. Nenhum sentimento hostil me offuscou o espirito. Approvo ou condemno segundo o meu juizo e as minhas faculdades.

Combato os actos e respeito a pessoa e as intenções dos srs. ministros. Creio que desejaram acertar. S. exas. não fizeram a situação, ella é que os quiz e fez como são.

Dizia um orador eloquente estrangeiro: "Temos o governo que merecemos"; eu juntarei-o paiz escolheu, e o gabinete saíu á imagem da opinião que o elevou.

Os srs. ministros, não o ignoro, obedeceram á dura lei imposta pelos que representam, sentindo arrancar-se-lhes quasi a alma muitas vezes, segundo a phrase do sr. bispo de Vizeu, quando sabiam que os seus golpes íam ferir direitos sagrados, e fazer verter lagrimas a milhares de familias, faltaria á justiça se não acreditasse que nem o seu coração ficou insensivel, nem os seus olhos enxutos.

Pediam-se-lhes economias ciuentas, immediatas, inexoraveis. Decretaram-as. A situação mandou, e elles cumpriram. Mais tarde, prevejo-o, os que os applaudem hoje hão de lapida-los talvez. É a sorte das crises violentas, e a condição fatal dos que se resignam ao officio doloroso de seus executores. Eu, que vejo a questão por outros aspectos, e

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que entendo as economias de outro modo, sei que estou atrazado das inspirações da situação; e note a camara como sou orgulhoso, comprazo-me de não ser da opinião do maior numero, se o maior numero é ainda d'essa opinião. Vejo a torrente despenhada, mas não quero segui-la. Quando descansar no seu leito, e bater a hora da reflexão, sei que de tantas ruinas alguma cousa util tornará a renascer.

As crises financeiras são communs, e todas as nações as têem atravessado. A gloria de Pitt foi vencer uma das mais graves. Sir Robert Peel lutou com outra, e saíu triumphante. Não ha já quasi hoje combinações que não estejam ensaiadas, e todas se reduzem por fim á reducção da despeza, ao augmento do imposto, e á attenuação dos encargos da divida. As economias pois devem representar uma parte do plano, mas seria absurdo querer que ellas só por si o constituissem. É da acção de todos os meios empregados que ha de nascer a solução (apoiados).

Antes de janeiro de 1868 pediam-se caminhos de ferro, e desenvolvimentos em larga escala, dizia-se o paiz rico para cada concelho representar uma unidade municipal na lei administrativa de 1867; mas quando se alludia a recorrer aos contribuintes para engrossar a receita, a opulencia desapparecia, e as povoações declaravam se arrastadas e quasi miseraveis. Era a sabida repugnancia de todos os povos e de todos os tempos ao imposto. O que sinto é que se especulasse com ella politicamente, e que para apressar a queda de um ministerio se não duvidasse affirmar ao paiz que as difficuldades aggravadas do thesouro se venciam sem mais imposto, que a nação não devia nem podia pagar mais, e que na despeza publica as reducções feitas com desassombro chegariam á eliminação do deficit. Funestas maximas! Perigosas illusões! Mal previam os que as divulgavam e faziam d'ellas arma de destruição, que semeavam estas tempestades contra si, e que as responsabilidades das falsas doutrinas íam caír sobre elles com todo o peso de rapidos e tristes desenganos! (Apoiados.)

O ministerio actual subiu ao poder como representante e como executor do principio das economias immediatas, profundas e inexoraveis. Não se gravou outro lemma nas suas bandeiras, nem a opinião lhe dictou outras exigencias. Entregou-lhe o orçamento e suas verbas, e disse lhe: corta, supprime, destroe! A auctorisação de 9 de setembro de 1868 abriu o primeiro periodo d'esta dictadura, d'esta campanha; os actos promulgados depois de 23 de janeiro de 1869 fecharam o segundo. Pouco importava que se demolisse, que se arrasasse, que se esterilisasse tudo. O que se ía verificar não era se as reformas satisfaziam a verdadeira economia, mas quantas dezenas de contos se riscavam por meio d'ellas. O que se queria e sonhava era declinar o sacrificio e o imposto, embora se convertessem os serviços mais uteis em desertos, embora se condemnasse a civilisação quasi Como uma temeridade, o ensino publico, o desenvolvimento intellectual, e os progressos moraes quasi como uma luxuosidade ociosa, embora se esterilisassem os esforços de muitos annos quasi em um dia sem vantagem e sem compensação. Acabe tudo, atropelle-se e desabe tudo, mas não haja imposto. Era o moto. (Muitos apoiados.)

O governo deixou-se levar da torrente impetuosa, ou seguiu-a muito de mais, mas honra lhe seja, não foi tão condescendente com o erro e a exageração como se esperava. Demoliu, annullou e inutilisou bastantes cousas uteis que bastaria reorganisar e fazer modestas, mas não matou o orçamento nem podia, porque a necessidade combate-se, mas não se mata, e os gastos reproductores da civilisação não se supprimem sem grande desequilibrio. Decretaram deducções aggravadas nos vencimentos dos funccionarios. Qual foi o resultado? 360:000$000 réis de menos na despeza publica, mas o rendimento das alfandegas nos tres mezes de março, abril e maio foi menor, do que em 1868, 134:000$000 reis! Assim é que os principios castigam os que os offendem.

Já o disse e repito. Os srs. ministros não fizeram a situação. Ella é que os fez a elles. Aceitaram o seu mandato, constituiram-se executores da opinião em grande parte desvairada, mas predominante, e deram-lhe foros e sancção de governo. Como João sem Terra, os seus barões impozeram-lhe a magna carta, não das liberdades, mas das restricções. Ouviram ao redor de si o clamor de ecce! de Tolle! E cumpriram a triste missão. Foram os ministros do programma de janeiro, programma filho da praça publica, das suas paixões, das suas exagerações, dos seus equivocos. Se não podem lavar as mãos como Pilatos do sacrificio dos innocentes, podem ao menos dizer quem lhes dictou a sentença. Lançaram se nos braços da popularidade, e foram para onde ella os arrastou. Não tiveram tempo para reflectir, para combinar, para reconstruir por um plano regular. Deram lhe um camartello a cada um, apontaram-lhe os edificios votados á quéda, e demoliram. Nada mais (apoiados). Nada mais! E foi immenso. O futuro o dirá.

As economias sisudas, perseverantes e pensadas devem ser a tendencia e a inspiração, não só d'este, mas de todos os governos. Quero as, affirmo-as, recommendo-as como uma necessidade e um dever financeiro e moral. E n'esse campo ha muito a fazer ainda. As economias verdadeiras fazem-se sem ruido e sem ostentação, porque são actos naturaes de bom regimen. Rever, as despezas, cortar as superfluas, eliminar as menos urgentes, e conservar e augmentar até as reproductivas deve ser a preoccupação constante dos poderes publicos. Mas as falsas economias que matam com as verbas destruidas a riqueza ou a cultura nascentes, que arruinam os serviços uteis, que decepam a arvore carregada de fructos, significam desperdicios e não reducção; e é pessimo faze-las só pela popularidade ephemera, cujos applausos de hoje ámanhã se converterão em imprecações. Não vale a pena demolir só para levantar nuvens de poeira e amontoar acervos de ruinas. As tristes acclamações á obra de barbarie são a primeira condemnação d'ella.

Essa popularidade não a quero para mim, já o declaro. Os sorrisos fagueiros dessa opinião não me tentam. Prevejo a reacção logo que se acalmem as apprehensões de agora. Apenas dos bancos da corôa se annunciar que a crise financeira está vencida, e que o espectro do deficit deixou de apavorar o thesouro; prevejo, ouso affirmar, que a austeridade de hoje se ha de relaxar, e que os cerberos das economias hão de emmudecer. Cuidado com esse dia! Os ministros verão n'elle outra vez as escadas, os atrios e as salas das secretarias apinhadas de pretendentes, hão de tornar a pedir-lhes a infracção das leis e a elasticidade do orçamento como obsequios pessoaes, e a plebe esfaimada dos requerentes renovará as antigas invasões. Somos assim.

Exagerâmos a apprehensão e exagerâmos a confiança. N'esse dia é que as economias de agora hão de ser processadas, e auguro já d'aqui que muito pouco applaudidas. Permitta Deus que os poderes publicos saibam oppor então a resistencia necessaria, e se não deixem levar das facilidades usuaes. Ponham n'esse dia sentinellas ao orçamento, porque o caminho que percorremos estes annos não se trilhará de novo senão para nos perdermos completamente (muitos apoiados). Não encarreguem o credito de saldar todos os encargos, e não creiam tambem que a elasticidade do imposto é illimitada. Os sacrificios pedidos agora custaram o preço que sabemos. Se não nos moderarmos a outros iguaes ou menores podem custar uma revolução social (apoiados repetidos).

Sentinellas vigilantes, pois, ao, orçamento, nas horas de prosperidade, se quizermos evitar a repetição das horas de amargura!

Não posso associar-me á injustiça das accusações que lançam sobre alguns gabinetes a culpa e responsabilidade do estado presente. A censura posthuma é facil. Era mais generoso confessar a verdade, e dizer que esses gabinetes encetaram o meio das economias, revelaram a gravidade das circumstancias e não recuaram diante do dever de pro-

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por e votar o imposto. Erraram? Não foram infalliveis? Levantou-se contra elles a resistencia latente dos que queriam fruir e não queriam pagar? A imparcialidade manda descrimimar a exageração da realidade, e é cedo ainda para julgarmos.

Os srs. ministros são a prova viva de que se não governa com illusões. Demoliram e a opinião - uma certa opinião - applaudiu. Pararam, porque se não póde estar sempre a destruir sem fundar, e já roncam os bramidos de alguns leões de postiça juba. Appellam para o imposto? E já os leões se encrespam, acham pouco o que se fez e exigem em nome do patriotismo palavroso, que nada offerece ou dá ao paiz nem o tributo actual, que se afie e aguce o cutello do orçamento, e que se intente uma nova razzia. Paguem os leões e os catões como os simples mortaes a sua quota de sacrificios, e não ponham como condição do cumprimento do seu dever o que precisamos que seja a norma, a lei de todas as administrações.

É commodo o artificio. Clama-se e atroa-se. Enfunam-se ôcas declamações de patriotismo esteril. Afofam-se legares communs cobertos de cans, injectam-se com o gesto imperioso e com a palavra rebombante. Pede-se a cabeça orçamental das classes que servem o estado. Fulmina-se o firman sultanico da destruição a esmo, sem plano, sem rasão. Manda-se arrasar tudo, envia-se o cordão de morte a todos os serviços, e diz-se, com ares soberanos de tribuno aposentado, depois estamos promptos a pagar!? Admiravel. Pagar o quê e para quê? Pagar para o deserto e para a solidão? As ruinas não carecem de cortejo. Pagar o quê, se a tesoura d'estas parcas brutescas já tiver cortado indistinctamente as verbas uteis e as verbas reproductivas. Que ingenuidade sublime! Occorre-me, a proposito da abnegação d'este typo de patriotas tympanicos, a novella infantil das Aventuras de Bertholdo - Leão tambem, e desdentado, mas de postiça juba e crespa face. Condemnado a garrote vil, como diziam em estylo amavel certas sentenças, alcançou do juiz por graça unica a escolha da arvore do seu supplicio. Levado a um olival achou todas as oliveiras sem elegancia. Mettido em um figueiral declarou as figueiras feias. Entrado em um pomar não encontrou galho ou tronco em que a sua modestia consentisse que se prendesse o laço fatal. Bertholdo parece-me o mestre dos Catões da ultima hora. Acham tudo possivel, menos o sacrificio. Estão promptos a dar tudo... menos o imposto. "Corte se, corte-se tudo, e depois pagaremos". Que grandeza de alma! (Riso.)

Desejo sinceramente que o governo entre no caminho das economias sisudas, mas quero que as faça onde póde faze-las e como devem ser feitas, reorganisando, simplificando, descentralisando e reduzindo.

Hei de votar impostos. Já os votei e não me arrependo. Estimo porem que os maiores sejam propostos e lançados pelos cavalheiros que se assentam hoje n'aquellas cadeiras, porque a sua iniciativa é o desengano mais formal que podia dar-se ás illusões innocentes ou calculadas. O governo realisou economias e ha de naturalmente continuar; mas reconhece que ellas só, por mais extensas e crueis, não resolvem a crise. Ainda bem que a verdade é já verdade para todos. Ainda bem que ao famoso programma das economias, sós se juntou este valioso coefficiente de correcção.

Sem imposto não se poderá saldar o deficit! É o governo que o affirma. Já o sabiamos, mas é bom ouvi-lo da boca de s. exas.

E não foi só esta illusão que caíu. Desabaram a par todas as outras de que se valeu a especulação politica para difficultar aos governos todos os passos. Nada de imposto sem todas as economias primeiro. Nada de emprestimos com estrangeiros. Nada de concessões aos caminhos de ferro! Excellente e simples! Tinha só o defeio de ser absurdo e impraticavel. O gabinete actual elevado para fazer justiça do passado e exemplos no presente, recebeu a investidura da opinião com estas clausulas restrictivas. Mas os factos podem mais do que as declamações, e os srs. ministros viram depressa, que haviam de optar pela bancarota, ou rasgar folha por folha o cathecismo dos zelosos economistas da escola de 1868. Rasgaram, e não lh'o, estranho. Quando em janeiro d'este anno resoavam nas das os trombones patrioticos, rufavam os tamboris, e estalavam os foguetes saudando no sr. bispo de Vizeu o regenerador da patria; quando as mangas de populares o íam acclamar em columnas escoltadas por guardas de honra; quando finalmente representações pouco felizes no estylo espalhavam sobre a sua cabeça as flores de uma rhetorica um pouco cansada, já comparando-o ao astro radioso e ao astro satellite, e applaudindo n'elle o homem predestinado a exterminar por uma vez as usuras dos concussionarios estrangeiros, eu sorria-me, e creio que s. exa. tambem se havia de sorrir, e com mais rasão, das mistificações voluntarias d'aquelles honrados cidadãos. A essa hora o sr. bispo e os seus collegas mandavam bater á porta dos concussionarios, e receio que pagassem caro o resgate - meditavam conceder mais de 2.000:000$000 réis á companhia de sueste, e supponho que davam a ultima lima aos seus vinte e sete projectos de tributos. São assim as cousas do mundo. Dos bastidores para dentro é que a verdadeira comedia se representava (riso-apoiados).

Os festivaes e as romarias exaltavam o governo por não fazer justamente aquillo que elle estava decidido a fazer. A dictadura foi o prologo.

Essas quarenta representações publicadas no Diario pedindo a resurreição do gabinete, significavam o sentimento do paiz? Como sé explica então que se praticasse exactamente o contrario, é sempre bem e sempre em harmonia com o paiz? Nada de emprestimo! E temos um de réis 18.000:000$000, cujas condições examinarei mais tarde.

Nada de favores a companhias! E interpretando a generosidade da nação, vimos dar de mão beijada mais de réis 2.000:000$000 á companhia de sueste sem compensações, sem ao menos abrirmos com isto ao nosso credito os mercados de dinheiro! O paiz não póde nem deve pagar mais! E ahi estão os projectos de impostos, e nada benignos, que o sr. conde de Samodães propõe. Que feliz ministerio este! Faz absolutamente o contrario do que o paiz diz e quer, fallo do paiz das romarias e das representações, e até as Terpsichores politicas suspendem os volteios para continuarem a sua adhesão (riso-apoiados).

Estão justificados pois os governos anteriores. Tambem esses queriam emprestimo, tributos, e accordo que nos facilitasse as praças estrangeiras, e fieis á sua divisa retiraram-se para não trahir a verdade e a consciencia. O ministerio actual, elevado para governar sem emprestimo estrangeiros, sem concessões a companhias, e para afogar o deficit em economias, deixou ficar boquiabertos os ingenuos da politica, e passou em nome da experiencia e da necessidade para o campo dos seus adversarios. Fez tudo o que elles julgavam preciso, e fê-lo peior do que elles, porque foi mais tarde (apoiados). Se as satisfações de amor proprio fossem licitas em momentos taes, estavam todos mais do que vingados, e foram os srs. ministros insuspeitos, porque receberam a bandeira da agitação de janeiro, os que se encarregaram da justificação, e de proposito disse agitação e não revolução, porque o não é. N'essa agitação houve dois momentos, e um de protesto, e outro de impaciencia - o de protesto aceitei-o logo e aceitá-lo-hei sempre porque significou o desejo firme do paiz de saír da estrada que só podia conduzir-nos á ruina; o de impaciencia não. Filho das paixões, e tocado já de calculos politicos, lisonjeava as multidões para reinar com ellas, e dissimulava a verdade para fazer da illusão arma de ambições;

Aceitei o protesto, mas não posso aceitar por modo algum a impaciencia.

Vou concluir. Expuz o sufficiente para justificar o meti voto. Não procurei agradar a ninguem. Não fui mais severo do que a verdade, nem parcial apaixonado. Está longe da minha mente oppor embaraços ao gabinete. Desejo pelo

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contrario que elle sustente e faça passar o imposto, e sem hesitar hei de approvar tudo o que me for possivel approvar no systema financeiro do governo.

Não hei de oppor embaraços ao governo, e repito hoje o que disse quando o meu antigo amigo, o sr. conde d'Avila, dirigia os negocios publicos.

Nas circumstancias actuaes a mais triste e dolorosa situação é estar assentado n'aquellas cadeiras. Se a rhetorica parlamentar celebrava os espinhos metaphoricos d'ellas, a realidade hoje de certo os aguçou bem fortes e cortantes.

Não invejo nem as amarguras, nem os sobresaltos dos ministros; não sinto impaciencia de ver a sua quéda, e muito menos estou filiado em grupo que haja de succeder-lhes.

Estou prompto a concorrer com o meu voto para conseguirmos que o paiz se possa levantar da situação em que se acha; e tenho fé e confiança em que as boas tendencias economicas e o augmento do imposto o hão de arrancar da crise com que luta, crise aggravada pelas exagerações e pelos erros dos que, exagerando o verdadeiro estado das cousas, pintaram o quadro tão sombrio, que seria para assustar até os audazes.

Os momentos de desalento nos povos são sempre fataes, por isso faço votos para que o paiz se reanime e creia em si, e para que todos, compenetrando-se da gravidade das circumstancias, se prestem ao sacrificio exigido por uma necessidade indeclinavel.

Feito isto, o paiz declara-se soluvel e as difficuldades principaes desapparecem.

Termino, votando pela concessão do decreto absolutorio ao governo, mas reservando-me o direito de apreciar as medidas dictatoriaes mais detidamente em outra occasião. Entre dois males opto pelo menor.

Quanto ao uso feito da auctorisação de 9 de setembro do anno passado, reservo-me tambem o exame de algumas providencias para occasião opportuna, e declaro mesmo que hei de exercer o meu direito de iniciativa, procurando melhorar diversas provisões.

De mais tenho fatigado a attenção da camara. Disse o que basta para o meu voto ficar explicado.

Discurso do digno par o exmo. sr. Miguel Osorio, proferido na sessão de 31 de maio, e que veiu por extracto no Diario da camara dos dignos pares, pag. 68, col. l.ª

O sr. Miguel Osorio: - Sr. presidente, eu poderia n'esta occasião rectificar algumas das minhas expressões que não foram bem interpretadas pelo digno par que me precedeu, porém não o faço, porque não só a hora está adiantada, mas porque a camara deve estar anciosa por ouvir outros oradores. Alem d'isso ainda se não ouviram, por assim dizer, senão mui breves explicações por parte do governo, e eu estou certo que algum dos srs. ministros ainda naturalmente ha de tomar a palavra para responder ás considerações e duvidas que se têem aqui apresentado; porque apenas o sr. ministro da fazenda é que se resolveu na ultima sessão a fazer algumas observações em resposta ao que eu aqui disse, e fe-las então por suppor que não teria occasião de vir aqui hoje, e foi tambem na duvida de que o nobre ministro viesse, que eu pedi ao sr. presidente que me d'esse a palavra só quando s. exa. estivesse presente.

Sr. presidente, disse hontem o sr. ministro da fazenda, respondendo ás reflexões que eu tinha feito, que =o contrato que eu tinha lido e que dizia respeito ao palacio de crystal não era mais do que um contrato promissorio e não um contrato de mutuo =. Eu peço perdão a s. exa., mas as cousas passaram-se da maneira que vou referir (leu).

A sociedade contrahiu um emprestimo de 100:000$000 réis. Fez o contrato que veiu a Lisboa á approvação do governo. Pela portaria que eu hontem li foi auctorisada a sociedade do palacio de crystal a fazer um emprestimo, e a fazer effectiva aquella transacção.

Eu não creio que o sr. ministro nem a camara queiram que eu leia agora toda a escriptura; ella foi impressa e distribuida; mas é uma escriptura pela qual a companhia utilidade publica, e os srs. Gonçalo Guedes de Carvalho, etc., se obrigam a dar á sociedade do palacio de crystal réis 100:000$000, mas 100:000$000 réis que serão levantados na praça por meio de obrigações.

Porém deve notar-se que não é só contrato de mutuo aquelle em que se troca dinheiro; então a maior parte dos contratos que, segundo as necessidades do credito, hoje se fazem em toda a parte, seriam contratos sem garantia nenhuma, como, por exemplo, os contratos com o banco hypothecario, porque o banco hypothecario tambem não dá dinheiro, dá obrigações.

Mas, sr. presidente, diz o sr. ministro da fazenda que não lhe consta que se effectuasse esse emprestimo; comtudo na secretaria da fazenda existe a lista dos subscriptores que acompanha a auctorisação pedida pela sociedade, e concedida pelo governo com condições; ora, como o governo já está de posse da lista dos subscriptores, persuadi-me eu que haveria algum dolo ou burla; cheguei a acreditar mais ha apreciação do sr. ministro, do que no documento impresso que a todos nos foi distribuido. Tomei então a deliberação de perguntar para o Porto a pessoa competente se havia mais alguma cousa sobre este negocio, ou se eu estava aqui a defender uma burla; a resposta que tive pelo telegrapho foi que o emprestimo se fez em titulos ao portador, que a lista dos tomadores primitivos está em poder do governo. Foram utilidade publica, 15:000$000 réis; Antonio Ferreira Braga, 50:000$000 réis; Faria, Rodrigues, Allen, e outros, 35:000$000 réis. O palacio annunciou, e pagou nos vencimentos, juro e amortisação, o primeiro e segundo semestre de 1868.

O governo mandou pagar o subsidio, por isso que sabia que estava effectuado o contrato, e que a sociedade estava cumprindo o pagamento, com o juro e amortisação que lhe compete. Parece-me que este argumento falla mais alto do que tudo que em contrario se possa dizer.

Agora, disse o sr. ministro, que a sociedade é devedora de grandes sommas ao governo, e estabeleceu um principio que seria optimo, e que estava conforme com as minhas opiniões apresentadas n'esta casa, se a questão fosse de jure constituendo, mas por fórma nenhuma sendo ella de jure constituto; refiro-me ao principio de não subsidiar emprezas particulares.

Eu não posso affirmar, mas ouço dizer, que alem do contrato feito á sombra, e em virtude d'esta lei, que até ha dotes, isto é, estão consignadas as obrigações d'este emprestimo como bens dotaes.

Quererá o governo que uma tal propriedade seja arrebatada em virtude das urgentes do thesouro Quererá a camara sanccionar um tal acto, que me recuso a classificar por attenção com o governo?! Repare a camara que os tribunaes não podem respeitar este acto, e por isso não vamos interferir n'elle com materia legislativa.

A sociedade do palacio de crystal, diz o governo, recebeu, alem d'isto, a dispensa de pagar os direitos sobre tudo quanto importasse para as obras da edificação do mesmo palacio; tinha direito a isso, pois que uma lei lhe concedeu esse privilegio, assim como tinha direito a estes pagamentos feitos pelo estado. Pediu mais a mesma sociedade auctorisação para que lhe fosse permittido introduzir livres de direitos os objectos necessarios para a ornamentação do palacio. Ora se não tinha direito a isso, e obteve essa faculdade, grave censura cabe aos governos que lha concederão:, sem para tal estar auctorisados, e tambem grave censura caberia ao actual sr. ministro da fazenda se não mandasse immediatamente executar a referida sociedade pelo que estivesse devendo á fazenda. Porém uma cousa é executar pelos debitos á fazenda, outra cousa é suspender o que está determinado por uma lei, para servir de hypotheca aos juros e amortisação aos prestamistas, que nada têem com os negocios do palacio de crystal.

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DIARIO DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO 119

Esta hypotheca é especialissima. Póde-se dizer ainda que os subscriptores de obrigações eram individuos que concorreram para a execução das obras do palacio. Sem duvida. Os seus nomes são bastante conhecidos para que se não possa discutir este facto. Mas isso nada envolve contra a justiça da pretensão. Pois ha uma sociedade que levanta um emprestimo, diz se aos subscriptores d'este emprestimo que venham buscar os seus titulos; os subscriptores, que são credores d'aquella sociedade, em logar de dar dinheiro dão o debito da sociedade, cousa que se pratica em todo o mundo quando se dão taes circumstancias; pois o subscriptor havia de dar o dinheiro da subscripção para immediatamente o receber em troca do seu debito, e um facto que em parte alguma nunca produziu a nullidade de um contrato, póde produzi-la aqui? Por consequencia é insustentavel a idéa, apresentada pelo sr. ministro da fazenda, de que não havia senão um contrato provisorio. Havia, pelo contrario, contrato definitivo e realisado.

Sr. presidente, se torno a insistir n'este ponto é por ver que as minhas asserções, apresentadas quando fallei na sessão passada, foram de tal modo interpretadas pelo sr. ministro que me fez a honra de responder, que parecia que eu não soubera ler o que está aqui n'este papel. E eu acreditei tanto nas palavras do sr. ministro, que na duvida se estaria em erro, mandei logo, pelo telegrapho, perguntar se effectivamente o contrato não estava feito. Responderam-me que estava feito; e tanto que até a sociedade do palacio de crystal tinha pago o primeiro e segundo semestres de juros e amortisação d'este emprestimo com a companhia utilidade publica e outras. Por consequencia o contrato é sacratissimo, feito á sombra da lei. Se nós vamos d'esta fórma atacando direitos sagrados, caminhamos para a bancarota. Creio que ninguem tem a coragem de decretar a bancarota; ella faz-se por si, e quando ella apparece, sujeitâmo-nos todos os credores do estado a uma lei geral e commum. Agora decretar-se a bancarota para o palacio de crystal, e ficarem todos os outros credores recebendo os seus creditos por inteiro, parece-me de alta injustiça; e eu duvido que a camara, onde poucas vozes se levantaram contra a lei pela qual se concederam os direitos que hoje invoca a seu favor a sociedade do palacio de crystal, onde nem mesmo o sr. visconde de Chancelleiros, que hoje louva e approva os actos do governo, se bem me recordo, se levantou sequer para protestar contra as concessões áquella sociedade, sanccione essa injustiça. Por consequencia esta quasi unanimidade da camara n'aquella occasião denota, que não foram motivos politicos que levaram a votar esta lei, foram falsos principios de economia publica; foram principios que o sr. conde de Samodães hoje apresentou muito bem, mas que n'esse tempo não agradavam ao sr. visconde de Chancelleiros nem a muitos dignos pares, porque consideravam muito importante uma empreza d'aquella ordem; mas hoje, sr. presidente, esses mesmos homens censuram o palacio de crystal, o que me parece injusto; e a camara ha de votar de certo as disposições do decreto a que alludo, e a rasão por que hoje as vota é porque não quer fazer questão politica do bill, doutrina esta que eu não partilho, e que me parece não tem precedentes.

Os dignos pares fallam contra o bill, mas votam por elle, e por isso muito bem disse eu, que a maioria da commissão que o examinou era mais opposição do que eu, e ainda ha bem pouco se deu aqui o facto singular de não haver quem se inscrevesse a favor do parecer, porque todos fallavam contra, mas votavam por elle.

Se não fosse considerar a posição que a camara tomou, e a declaração feita pelo sr. conde de Samodães, que não votaria de modo nenhum que se d'esse de novo o subsidio ao palacio de crystal, eu mandaria uma proposta para a mesa, a fim de que o decreto a elle relativo fosse separado d'esta serie de medidas, pois a camara tem obrigação de olhar esta questão com toda a sisudez, porque é uma grave injustiça contra a propriedade particular a disposição do referido decreto.

Faz-se uma lei, sr. presidente, expressa sobre este objecto; sobre esta lei fez-se o contrato, e o contrato em virtude d'este decreto fica nullo.

Ora, sr. presidente, se qualquer não póde, nem deve faltar á fé dos contratos, uma nação muito menos o póde fazer.

1:206-IMPRENSA NACIONAL-1869

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