DIARIO DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO 105
todos os dias andâmos a clamar contra as ordens religiosas, que eu aliás não peço nem desejo.
Devemos sempre fazer justiça a quem a merece. Pois, quanto serviço prestaram aos nossos homens d'estado aquelles missionarios, em quanto souberam cumprir rigorosamente o seu dever? (Apoiados.)
Façamos justiça a todos; o justo é sempre justo; as exigencias dos tempos tornaram caducas muitas instituições, mas isso não impede que se lhes faça a justiça que mereceram.
Sr. presidente, tenho que referir-me, e agora é occasião, a umas palavras que ouvi nesta camara com referencia a Affonso dAlbuquerque; e que são uma apreciação injusta. Mas antes d'isso, ou antes a proposito d'isso, tenho que responder a um digno par (que n'uma das sessões passadas me asseverou que eu encontraria difficuldade em obter pessoal habilitado para governar e administrar o nosso ultramar), venho dizer-lhe que infelizmente é verdade o que s. exa. disse, que a maior difficuldade para o ministro da marinha é obter bons collaboradores para as provincias ultramarinas, isto é, quem lhe possa realisar com justiça e acerto as suas idéas, e que interprete as leis justamente no sentido em que devem ser interpretadas.
Esta falta, porém, não provem de que em Portugal não haja homens muito honrados, sufficientemente esclarecidos e bastante dignos para em, toda a parte representarem o governo e o paiz; se oa não obtemos é por duas unicas rasões. A primeira é porque não queremos pagar a esses funccionarios honestos, dignos e illustrados, a remuneração que deve ter um homem na posição que ali vae occupar.
Emquanto não pagarmos a quem nos sirva bem nunca lá teremos administração regular.
A segunda rasão é, porque n'este paiz, triste é dizel-o, mas a historia é inexoravel, sempre que um homem se distinguiu por qualquer feito que despertasse a inveja dos que não poderam fazer outro tanto, foi logo desprestigiado, passando pelo desgosto de ver a calumnia mais mordaz feril-o no que o homem de bem tem de mais caro, a sua honra.
Assim ninguem póde governar! A calumnia desgosta e deshonra.
Eis o systema sempre, infelizmente, seguido contra os maiores homens d'este paiz, como premio dos perigos que arrostaram, dos trabalhos que emprehenderam, para darem honra e riquezas áquelles mesmos que lhes denigrem os feitos, maculando-lhes a reputação.
Vejamos agora o que se disse de Affonso d'Albuquerque, e com que desamor e injustiça é tratado no documento a que o digno par, o sr. marquez de Vallada, se referiu.
Já que estamos em monção de fallar em documentos encontrados, eu direi que fui encontrar tambem na India um documento de Affonso de Albuquerque que, se não é um grande achado para a historia, pelo menos alegra o coração portuguez, podendo fazer mais uma vez justiça áquellle grande de quem tantos pequenos disseram mal.
O digno par o sr. marquez de Vallada viu um documento, no qual se diz que Affonso de Albuquerque fizera a um pirata seu afeiçoado presente de um navio da real armada!
O sr. Marquez de Vallada: - Explicou em poucas palavras o que havia dito, e fôra que o documento, a que se referira, assevera que Affonso de Albuquerque dera em dote a um seu familiar um navio que mandara armar, e então foram alcunhados de piratas tanto o doado comovo doador.
O Orador: - Sabe v. exa., sr. presidente, quem era este pirata, a que se refere o documento que o sr. marquez de Vallada nos citou?
Este pirata, cujo nome não sei bem como deva pronunciar, porque não sou versado nas linguas orientaes, chamava-se Timoia ou Timoja; e, se este pirata não está no céu, como é de crer, devia estar muito na consideração de Affonso de Albuquerque.
Na occasião em que este grande capitão pensava, pela primeira vez, em firmar um grande imperio no oriente para offerecer a este pequeno reino de Portugal, tinhamos por capital na India uma pobre ilha, hoje quasi deserta, e n'aquelle tempo em pouco melhores condições, chamada Angediva. Estavam, por assim dizer, dispersos os membros de um grande imperio por toda a costa do Malabar, do Coromandel, pela Africa, pela China e pelo Japão, onde já chegavam os nossos missionarios, que foram os primeiros que só aventuraram para o extremo oriente.
Affonso de Albuquerque pensou, como se sabe, em reunir sob uma capital estes membros dispersos, porque bem sabia que não podia haver um corpo sem cabeça.
Tratava de escogitar como havia de obter uma cidade, que servisse de cabeça ao imperio portuguez no oriente, quando lhe appareceu o celebre capitão Timoia, ou o pirata, como lhe chamou o digno par, e disse a Affonso de Albuquerque, que se quizesse seguil-o, e ter fé na sua estrella, o levaria a uma cidade, que tomaria facilmente com as forças dos seus navios. O offerecimento foi acceito, e partiram em busca da cidade promettida.
Erraram a primeira derrota, porque a cidade que Timoia inculcava era a velha Goa, a bella, a soberbissima, uma das maiores cidades d'aquelle tempo, e d'aquelle paiz, que tinha por senhor o Hydalcão. Quando chegaram ao rio, em logar de seguirem pelo canal conveniente, que era o Mandovy, metteram por-outro, o de Mormugão, que ia dar a uma aldeia, tambem chamada Goa, e ficava do outro lado do monte; depois não tiveram remedio senão voltar para traz, e entrarem pela barra de Pangim para irem tomar a cidade.
Eu creio que se todos nós tivessemos o encontro de Affonso de Albuquerque, e a sua fortuna, teriamos premiado bem esse Timoia.
Ora, sabem os dignos pares o premio que lhe deu Affonso de Albuquerque, alem do navio? Deu-lhe a posse, como arrendatario, de todas as terras de Goa, fóra da ilha, por sessenta e dois mil pardáos de oiro; e quando, depois da segunda tomada de Goa, e na ausencia de Timoja, teve de arrendar o vencedor a outro rendeiro as aldeias conquistadas nos territorios de Salsete e Bardem, arrendou tudo gela renda de cincoenta e dois mil xerafins de oiro, isto é, menor quantia que a do primeiro arrendamento, com a condição de haver sempre cinco mil homens em armas para defender dos seus inquietos vizinhos aquellas terras que tão disputadas foram.
Aqui tem v. exa. como se fez um crime a Affonso de Albuquerque por um acto de mera administração, enipaga de extraordinarios serviços.
Quer v. exa. saber ainda quanto este grande homem era amigo de se apropriar do alheio? Vou referir outro facto que mostra bem quanto elle procurava ser justo.
Na occasião em que tomou pela segunda vez posse de Goa, e foi então a posse definitiva, mandou confiscar aos mouros os seus bens, o que não havia feito da primeira vez; não confiscou porém nenhuns bens aos gentios. Para sustentar e defender a sua nova posse, quiz fazer fortificações na praça chamada da Aguada, e para levar a effeito o seu intento mandou chamar á sua presença os donos do terreno onde tencionava fazer as fortificações.
Esse terreno é em serro pedregoso, onde nem uma palmeira póde nascer ou
crear-se, e os seus donos, que eram uma commuuidade, queriam-no ceder gratuitamente.
Pois Affonso de Albuquerque não quiz acceitar a cedencia que se lhe fazia, e mandando avaliar o terreno, pagou-o aos seus proprietarios pelo valor arbitrado.
É por isto, sr. presidente, que quando, eu leio em obras de grande merito, assignadas por homens que têem a primeira auctoridade d'este paiz, essas phrases, que ficam a queimar e a macular a memoria, de que nós estamos pagando em seculos de vilipendios e vergonhas os seculos que empregámos no oriente em vexações, extorções, roubos e crimes de toda a ordem, tenho o maior sentimento de que,