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CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

SESSÃO N.° 19

EM 20 DE JUNHO DE 1908

Presidencia do Exmo. Sr. Conselheiro Antonio de Azevedo Castello Branco

Secretarios - os Dignos Pares

Luiz de Mello Bandeira Coelho
Marquez de Sousa Holstein

SUMMARIO. - Leitura e approvação da acta. - Expediente. - Apresenta e fundamenta um projecto sobre a questão vinicola o Digno Par Francisco José Machado, pedindo a sua publicação. Fica para segunda leitura.

Ordem do dia. - O Digno Par Julio de Vilhena aprecia largamente a proposta que a constitue. Replica o Digno Par Sebastião Baracho.-

É encerrada a sessão, designando-se dia para a seguinte.

Pelas 2 horas e 25 minutos da tarde o Sr. Presidente abre a sessão.

Feita a chamada, verifica-se estarem presentes 23 Dignos Pares.

Lida a acta da sessão antecedente, foi approvada sem reclamação.

Menciona se o seguinte expediente:

Officio do Ministerio dos Negocios Estrangeiros sobre um pedido de documentos do Digno Par Sr. Teixeira de Sousa.

O Sr. Francisco José Machado: - Sr. Presidente: ha muitos annos que me venho occupando, tanto no Parlamento, como na imprensa, da questão dos vinhos.

Esta minha attitude tem sido motivada pelo conhecimento pratico que tinha e tenho da crise que assoberba a nossa primeira riqueza nacional.

Pela pratica que possuo, pelo estudo a que me tenho dedicado e pelo conhecimento adquirido com muitas pessoas interessadas e entendidas no assunto, via que a crise se ia tornar verdadeiramente tenebrosa se não lhe acudissem a tempo com remedios efficazes e proficuos.

Sr. Presidente: como disse a V. Exa., ha muitissimos annos que me tenho oc-cupado da questão vinicola, por conhecer de perto a situação angustiosa que a primeira industria nacional atravessava.

Por diversas vezes apresentei na Camara propostas tendentes, não digo a resolver por completo tão importante assunto, mas a attenuar a crise que se avizinhava temerosa, e como base de estudo que seria completado com outros alvitres que se apresentassem. Tudo foi desprezado, e agora a crise attingiu o seu maximo de intensidade, e são necessarios já remedios mais radicaes.

Os proprietarios não teem dinheiro para pagar aos trabalhadores. Os salarios estão reduzidissimos, a ponto de não chegarem para o parco sustento do trabalhador e suas familias, pela carestia das subsistencias.

Tenho aqui uma carta de um amigo meu, importante viticultor, e dos que mais inteligentemente trabalha na cultura da vinha, e dos que mais proficuos resultados, que necessitando apurar dinheiro para pagar aos seus trabalhadores, diz que lhe offereceram no outro dia pelo vinho branco 22 réis em cada grau na medida de 20 litros, o que dá nos vinhos de 10 graus 220 réis e nos de 12 graus, que é quasi o maximo da graduação que a região produz, 264 réis por almude de 20 litros.

Veja V. Exa. a que preço chegou o vinho!

É mais do que um preço de miseria.

Os proprietarios teem soffrido pacientemente este estado de cousas, na esperança de que para o anno seguinte os preços subam, mas o que tem acontecido é exactamente o contrario, de forma que é a ruina para elles, pois já estão empenhados e não teem meio de satisfazer os seus encargos.

Mal vae ao país quando a agricultura atravessa tão grande crise.

O Sr. Teixeira de Sousa e o Sr. José de Azevedo Castello Branco, cavalheiros que conhecem muito bem a região do Douro, já aqui teem mostrado quanto é grave e afflictiva a situação dos povos d'aquella provincia.

O Governo tem, é certo, tentado acudir a tão temerosa crise, mas com medidas que não passam de palliativos, quando era preciso sem demora um remedio efficaz.

A viticultura é a nossa primeira riqueza agricola, d'ahi se sustentam milhares de familias.

A nossa exportação de vinhos anda hoje ainda por 10:000 contos de réis, mas já chegou a 16:000, o que me parece não ser para desprezar, e antes devia merecer a maior consideração aos poderes publicos.

Exportação de vinhos sem distincção de qualidades

Contos de réis

1880.................... 9:609

1881.................... 9:807

1882.................... 10:148

1883.................... 11:133

1884.................... 10:894

1885.................... 13:456

1886.................... 16:883

1887.................... 11:359

1888.................... 12:948

1889.....................13:323

1890.................... 10:898

1891.................... 11:122

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2 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

Contos de réis

1892.................... 13:432

1893.................... 11:246

1894.................... 9:749

1895.................... 11:292

1896.................... 10:983

1897.................... 10:290

1898.................... 11:481

1899.................... 10:914

1900.................... 10:629

1901................... 9:733

1902.................... 10:343

1903..................... 10:137

1904..................... 9:431

1905 ..................... 10:469

Sr. Presidente: parece-me que um producto da nossa agricultura que, exportado, dá ainda tão avultadas quantias, merece bem ser protegido.

Sr. Presidente: como já disse a V. Exa., depois do estudo de muitos annos e de ter falado com muitas pessoas que teem conhecimento no assunto, eu elaborei um projecto de lei tendente a atuenuar a crise vinicola.

É assim que deve fazer quem deseja acertar, soccorrendo-se de todos os conhecimentos que puder alcançar e das bases e experincia dos mais entendidos.

Muitos alvitres se teem apresentado para debellar a crise tenebrosa que atravessa a agricultura nacional.

Entre elles apparecem os tratados de commercio que, devo dizer, tem sido impossivel realizar.

Estudando a estatistica da nossa exportação e importação, encontro dados que me servem para concluir que, com boa vontade, algum trabalho e muita dedicação, talvez fosse possivel conseguir realizar tratados de commercio com os países que introduzem cá os seus productos em grande abundancia, levando muito pouco do que nós produzimos e fazendo-nos pagar quantias muito avultadas em relação com os países que exportam productos similares aos nossos.

Vejamos o que nos acontece nas nossas relações commerciaes com a França.

Commercio com a França

(Contos de réis)

Importação

1900 ..................... 5:008

1901..................... 5:680

1902..................... 5:627

1903..................... 5:606

1904...................... 6:000

Exportação

1900...................... 976

1901....................... 762

1902....................... 751

1903........................ 928

1904........................ 838

Differença contra nós (contos de réis):

1900..................... 4:032

1901...................... 4:238

1902...................... 4:936

1903..................... 4:678

1904....................... 5:162

Commercio com a Allemanha

(Contos de réis)

Importação

1900.................... 8:168

1901.................... 8:970

1902.................... 9:220

1903...................... 9:884

1904....................... 10:455

Exportação

1900....................... 2:201

1901....................... 2:146

1902........................ 2:145

1903........................ 2:041

1904........................ 2:421

Differença contra nós (contos de réis):

1900.................... 6:417

1901.................... 6:824

1902.................... 7:075

1903.................... 7:443

1904.................... 8:034

Em 1892 terminou o nosso tratado de commercio com a Allemanha.

Os artigos de origem portuguesa estão ha quinze annos sob o regime oneroso de tarifas maximas.

Commercio com a Inglaterra

(Contos de réis)

Importação

1900..................... 19:114

1901.................... 17:646

1902.................... 17:341

1903.................... 17:426

1904.................... 18:149

Exportação

1900..................... 7:927

1901..................... 8:323

1902...................... 8:293

1903...................... 8:038

1904...................... 6:994

Differença contra nós (contos de réis):

1900.................... 11:187

1901.................... 9:423

1902..................... 9:048

1903..................... 9:388

1904.................... 11:155

Com estas differenças pergunto eu, Sr. Presidente, se não será facil arranjar um tratado de commercio, uma causa equivalente, ou, emfim, um modus vivendi, de modo que os nossos vinhos fossem sujeitos ao regime de nação mais favorecida?

Eu entendo que com um bocadinho de trabalha, e com algum cuidado, alguma cousa poderiamos conseguir.

É preciso ver que as nações que citei exportam muito para o nosso país, e que pouco importam do nosso.

Passo a ler o projecto que vou mandar para a mesa, resultado de trabalhos a que me entreguei, de investigações a que procedi, e de opiniões de pessoas competentes a quem me dirigi.

Este meu trabalho tende a fixar bases, coca as quaes alguma cousa se poderá conseguir.

A commissão, de acordo com o Governo, pode alterar, modificar e remodelar, de modo a torná-lo viavel.

Se a questão não for completamente resolvida, estou profundamente convencido de que com um bocadinho de boa vontade, por parte do Sr. Ministro das Obras Publicas, alguma cousa se poderá fazer, no sentido de attenuar a desgraçada situação em que nos encontramos.

(Leu).

Passo em claro o resto do relatorio, porque deu a hora de se passar á ordem do dia.

Limito-me a ler os artigos do projecto.

(Leu).

Estes são os meios, a meu ver, conducentes á attenuação dá crise que nos assoberba.

Parece-me que esse projecto revela da minha parte estudo e trabalho a que me tenho dedicado, com o fim de alcançar alguma cousa util.

Peço a V. Exa. a fineza de mandar publicar este meu projecto no Summario das sessões.

Tenho dito.

O Sr. Presidente: - O projecto fica na mesa para, segunda leitura. Vae passar-se á ordem do dia.

ORDEM DO DIA

Continuação da discussão da proposta do Digno Par o Sr. Sebastião Baracho

O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Digno Par Sr. Sebastião Baracho.

O Sr.Sebastião Baracho: - Como o Sr. Julio de Vilhena desejava hontem replicar a algumas das considerações apresentadas pelo Sr. José de Alpoim, eu peço a V. Exa. que consinta que eu ceda a palavra neste momento, falando em seguida a S. Exa.

O Sr. Julio de Vilhena: - Sr. Presidente: começo por agradecer a attenção e deferencia do Digno Par e meu antigo amigo o Sr. Dantas Baracho, se bem que fique assim a Camara privada de

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SESSÃO N.° 19 DE 20 DE JUNHO DE 1908 3

ouvir mais uma vez a brilhante palavra de S. Exa.

Se eu, no final da sessão de hontem, tivesse podido dispor de cinco minutos, esse espaço de tempo ter-me-hia sido mais do que sufficiente para dar algumas explicações que julgo indispensaveis.

Proximo, porem, como estava o encerramento da sessão, não quis usar da palavra nessas circunstancias, e por isso, embora eu desenvolva hoje essas explicações, desde já prometto não fatigar demasiadamente a attenção da Camara, mesmo porque entendo, Sr. Presidente, que não ha necessidade de alongar mais o debate.

A Camara sabe que a discussão deve estar naturalmente circunscrita á proposta do Digno Par Sr. Dantas Baracho.

Dentro das linhas determinadas por essa proposta, fiz a minha impugnação e. até este momento, não vi que, da parte de nenhum dos Dignos Pares que me atacaram, fossem formalmente refutadas as minhas objecções. Posto isto, Sr. Presidente, eu não vejo a necessidade de as reeditar ou repetir.

Na parte propriamente politica, comtudo, algumas considerações foram feitas que me obrigam a tomar novamente a palavra.

Não desejo travar um debate politico com os Dignos Pares que teem versado esta questão desejo, simplesmente, acompanhar os precisos termos em que a proposta do Digno Par Sr. Baracho é concebida, condemnado as ideias nella contidas.

Reconheço aos Dignos Pares a liberdade de collocarem as questões no campo que mais lhes agradar, e levantarem-nas na opportunidade que mais lhes convier; mas eu, Sr. Presidente, não me julgo por isso na obrigação de ir para onde me queiram levar

Sr. Presidente: não é descabido neste momento recordar as boas pra[..] parlamentares.

Os Pares do Reino não estão aqui para se interpellarem uns aos outros, assim para exercerem a necessaria fiscalização sobre os actos do Governo.

Assim como eu não tenho o direito de chamar nenhum dos Dignos Pares á discussão do assunto que mais me interesse, assim tambem S. Exas. não teem o direito de me intimarem a tomar a palavra na altura do debate que mais lhes aprouver. São imposições ou reclamações que não posso acceitar.

Mas não posso deixar de me referir aos argumentos apresentados pelo Digno Par Sr. Baracho, assim como aos discursos dos Dignos Pares Srs. Arroyo e Alpoim.

Sr. Presidente: estes tres Dignos Pares, verdadeiros gigantes da tribuna

parlamentar, atacaram-me com os seus poderosos montantes.

Encontro-me, portanto, nas circunstancias de um contra tres.

Esta minha situação recorda-me estes dois versos de uma das tragedias de Corneille:

- Que vouliez-vous qu'il fit contre trois?

- Qu'il mouvût
Ou qu'un beau désespoir, alors, lê secourût?

Que Vejo pois deante de mim? A morte!

Apesar d'isso não me entregarei incondicionalmente, antes procurarei morrer com honra.

Até agora tenho sentido a dureza dos golpes que me foram vibrados, mas ainda não me considero vencido e até me conservo de boa saude.

O Digno Par Sr. Baracho começou por notar duas contradições nas minhas palavras.

isse S. Exa. que .eu pretendia que se não trouxesse a pessoa do Rei para a tela do debate, mas que outra cousa não tinha feito senão referir-me ao Chefe do Estado.

Á primeira vista parece que existe realmente essa contradição, mas na verdade ella não é senão apparente.

Não quero dizer, Sr. Presidente, que o Digno Par fosse infeliz no seu argumento; pelo contrario. S. Exa. é sempre feliz nos seus conceitos porque elles são produzidos pela sua elevada intelligencia e pela sinceridade das suas convicções.

Mas quando eu affirmo que o Rei deve ser afastado do debate, não quero significar que se não fale nelle.

Para isso seria preciso mutilar as disposições da lei que se referem ao Monarcha.

Como é que eu, Sr. Presidente, poderia ler ou repetir essas disposições sem falar no Rei?

Não é essa a immunidade que eu peço para o Chefe do Estado, mas sim a immunidade de se não poderem discutir os seus actos a não ser sob a immediata responsabilidade dos Ministros.

Já vê, portanto, o Digno Par que não existe a contradição que a S. Exa. se afigurou existir nas minhas palavras.

Ainda o Digno Par achou uma segunda contradição no meu discurso, por que tendo eu invocado as doutrinas de fon[..] acêrca das responsabilidades dos homens publicos, ao mesmo tempo postergava[..] ssas doutrinas, entendendo que todos os homens publicos eram responsaveis na questão dos adeantamentos.

Foi o contrario d'isto o que eu disse.

Fontes tomava a responsabilidade do apoio prestado Ministerio Rodrigues Sampaio, mas não respondia pelos actos dos Ministerieas durante a existencia d'aquelle Governo.

Eu, Sr. Presidente, acceito a doutrina de Fontes não só para meu uso mas para uso de todos.

Tomo para mim a responsabilidade do apoio que dou ao Ministerio actual; mas, alem d'essa responsabilidade, ha uma outra - e essa pertence aos Ministros - que diz respeito aos actos que praticam sem a minha annuencia. .

Se os Ministros que fizeram parte das situações que concederam os adeantamentos á Casa Real não são responsaveis por esses adeantamentos, desde que elles não foram levados ao Conselho de Ministros - o que acceito - essa responsabilidade não pode recair tambem, sobre os partidos, que para o ausunto não foram consultados.

Esta é que é a verdadeira doutrina; isto é o que ,é imposto pelo espirito de coherencia e de logica.

O contrario d'isto repugna á minha razão e a minha intelligencia.

Se houvesse contradição neste ponto, ella cabia ao Digno Par Sr. Baracho, que, acceitando a doutrina de Fontes, não quer que os partidos se utilizem d'ella. Releve-me S. Exa. que lh'o diga.

Referiu-se depois o Digno Par á idoneidade d'esta Camara para organizar, eleger ou constituir commissões de inquerito aos actos comprehendidos no largo periodo de um reinado.

Sem duvida que os membros d'esta Camara possuem idoneidade pessoal, pelo seu valor intellectual e moral, para fazerem parte d'uma commissão d'essa ordem. Mas, Sr. Presidente, não se trata d'isso; trata-se da idoneidade constitucional, da capacidade legal.

Acceito a commissão de inquerito nomeada por esta Camara, mas acceito-a funccionando dentro dos limites marcados pelo direito constitucional. Na ver-dade, eu, Sr. Presidente, desejo estudar minuciosamente a questão dos adeantamentos e não possuo ainda os elementos necessarios para isso.

Devo, agora, aclarar um ponto.

As minhas palavras e as declarações que aqui fiz foram profundamente so-phismadas.

O que eu disse foi que a proposta do Digno Par Sr. Baracho não podia ser approvada nos termos em que estava redigida, porquanto a commissão a eleger ficava com poderes judiciaes.

Digo e repito: uma commissão encarregada de investigar, classificar e punir delictos ou de indicar as penas a applicar lhes, não é da natureza e at-tribuições da Camara dos Dignos Pares.

Esta doutrina é a que vigora em todos os países liberaes, e é uma doutrina perfeitamente compativel com a monarchia.

Eu só desejo neste caso que se proceda em Portugal como se tem procedido na propria França republicaria.

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4 ANNAES DA CAMAKA DOS DIGNOS PARES DO REINO

O primeiro de todos os escritores de direito parlamentar naquelle país defende doutrina diversa da que é preconizada pelo Digno Par Sr. Baracho. O que é que S. Exa. pretende? O Digno Par pretende que saia d'esta camara uma commissão de inquerito com poderes judiciaes. Mas isto, Sr. Presidente, não é admissivel, visto que um inquerito de tal natureza, levado a effeito pelas Camaras, representaria uma inversão do principio constitucional da separação e equilibrio dos poderes.

Quando, em nome do Governo da Defesa Nacional, Bazaine foi processado em Franca, o Tribunal de Guerra funccionou parallelamente com a com missão de inquerito nomeada pelo Parlamento, mas sem que commissão de inquerito e tribunal pudessem confundir-se.

Nessa occasião o Tribunal de Guerra mandou pedir documentos na posse da Commissão de inquerito; e que respondeu á commissão?

- Que não enviava esses documentos, porque não queria que se confundisse o que era secreto com o que pertencia, de direito, aos representantes do país.

O contrario d'isto é a inversão de todos os poderes, é o absolutismo.

A Camara dos Pares não tem, por actos da sua exclusiva deliberação, força coerciva sobre o que está estatuido nas leis em vigor, não podendo por isso desobrigar os funccionarios publicos do sigillo profissional que naquellas lhes é imposto.

Seria preciso, para satisfação dos desejos do Digno Par, que se fizesse primeiro uma lei desobrigando os funccionarios publicos d'esse segredo.

Pois não digo eu que se reforme a Constituição?

Faça-se essa lei; mas sem isso, repito, uma votação d'esta Camara não tem força para derogar as leis do país.

Constituirão as cousas, assim como estão, uma verdadeira Calabria, segundo a expressão um pouco forte do Digno Par Sr. José de Alpoim?

Mas que culpa tenho eu, Sr. Presidente, de que seja assim?

Não sou eu o primeiro a sustentar o principio de uma Monarchia absolutamente compativel com os preceitos liberaes?

Creio ter respondido, quanto possivel, aos principaes pontos ventilados pelo Digno Par e meu illustre amigo Sr. Baracho.

Passarei agora a responder ás considerações do Digno Par o Sr. João Arroyo.

Começou S. Exa. por lembrar aquelle tempo, para mim, bem saudoso, em que o Digno Par entrou pela primeira vez no Parlamento, ha uns bons vinte annos.

S. Exa. filiara-se no partido regenerador, onde foi recebido de braços abertos, visto que trazia para esse acolhimento um diploma honrosissimo, demonstrativo da sua brilhante intelligencia e dos seus dotes de trabalho.

E o certo é que S. Exa. entrou no Parlamento, annunciando desde o principio o que depois haveria de ser.

Eu, sempre elogiei o Digno Par, e nunca tentei pôr-lhe obstaculos á sua carreira triunfal.

Tive, portanto, immenso prazer em que S. Exa. recordasse uma tal epoca.

O Digno Par, apreciando o discurso que eu tive a honra de aqui proferir, classificou esse discurso de borla e capello.

S. Exa. fez me um elogio, não um epigramma.

A borla e o capello são as nossas condecorações; não as recebemos da munificencia de um Soberano, mas alcançámo-las numa escola superior, sem favores da politica. Muito honram quem as possue.

Agradeço, portanto, a S. Exa. uma tal evocação, porque, se ella é honrosa para mim, não o é menos para o Digno Par Sr. Arroyo.

Não preciso da capa e batina do Sr. Alpoim, porque já uma vez me servi da propria batina do Sr. Arroyo para assistir a uma solemnidade universitaria, que recordo com muita saudade.

A doutrina sustentada pelo Digno Par acêrca da irresponsabilidade do Rei é a mesma que sustenta o chefe do partido regenerador.

O que porem entendo é que os Ministros não devem deixar a descoberto a pessoa do Rei. Deve existir sempre um intermediario entre o aggressor e o aggredido.

Trazer para a discussão a pessoa do Chefe do Estado não é discutir os actos do poder moderador sob a responsabilidade dos seus Ministros.

O que sustento é que o Rei não deve ser atacado; a responsabilidade dos seus actos deve impender sobre os respectivos Ministros.

Isto não é ausencia de discussão; é discussão nos termos em que ella deve fazer-se.

Creio que é esta, tambem, a doutrina do Digno Par.

A respeito das faculdades das duas Camaras, a theoria do Digno Par é insustentavel em face da Carta Constitucional.

Quanto á opinião de que os partidos são responsaveis pelos adeantamentos, é doutrina que não pode ser atada; o proprio Sr. Arroyo, que foi ministro dos Negocios Estrangeiros numa situação regeneradora, não se julga com responsa- bilidades nesse assunto.

Ora, se S. Exa. não tem responsabilidades nos adeantamentos feitos naquellas circunstancias, como as posso ter eu, Sr. Presidente?

É verdadeiramente extraordinario que se queiram assacar responsabilidades a quem, de direito, não as pode ter.

Se a todos aquelles, que tiveram conhecimento dos adeantamentos, impendesse a obrigação de se afastarem das agremiações politicas a que pertenciam, isso levar-nos-hia a admittir que simples divergencias de opinião podem affectar a autonomia dos partidos. Onde estaria nesse caso a estabilidade das agremiações partidarias?

Esta doutrina de S. Exa. é de pura fantasia, verdadeiramente inexequivel. Ao Digno Par, que durante bastantes annos militou a meu lado no partido regenerador, pergunto eu se sempre concordavamos com todos os actos praticados pelos Ministros do nosso partido.

No tocante á interpretação das declarações do discurso de Hintze Ribeiro sobre os adeantamentos, inserto no Summario de 21 de novembro de 1906, direi que dei a esse discurso a interpretação que necessariamente todos lhe dão.

Hintze Ribeiro não negava em absoluto a existencia de adeantamentos; o que elle pretendia apenas era precisar as condições imprevistas e inadiaveis em que esses adeantamentos haviam sido principalmente feitos.

Affirma o Digno Par que aquelle adverbio havia sido erradamente introduzido nas declarações de Hintze Ribeiro. Não contesto a opinião do Digno Par, mas ha uma fase que eu não posso deixar passar sem ligeiro reparo.

Disse o Digno Par que se fosse eu quem tivesse pronunciado aquellas palavras, Hintze Ribeiro não as interpretaria como eras estava interpretando.

Se eu tivesse encontrado uma só virgula que alterasse a interpretação que o Digno Par dá ás declarações do fallecido Digno Par, era nesses termos que deduzia a minha interpretação. Mas as palavras de Hintze Ribeiro não estão na verdade em antinomia com os factos e portento é nesse sentido que ha[...] de tomar as suas expressões.

Sr. Presidente: mais uma vez o digo, ,ou de opinião de que venham ao Parlamento todos os documentos necessarios para que completa luz se faça sobre tão momentoso assunto. Não quero, por maneira alguma, acobertar quaesquer responsabilidades.

Estou completamente convencido de que os meus amigos politicos estão immunes de quaesquer irregularidades. Por isso a minha palavra os defenderá até onde for necessario.

Não cumpro mais que um dever de lealdade para com aquelles que me foram buscar, onde queria continuar a permanecer, para me investirem na di-

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SESSÃO N.° 19 DE 20 DE JUNHO DE 1908 5

recção suprema do seu partido. E sobre o que a mim, Sr. Presidente, o Digno Par referiu, nada mais tenho a dizer.

Por ultimo, terei de occupar-me de algumas das affirmações contidas nos discursos do Digno Par Sr. Alpoim, a cujos dotes intellectuaes e politicos tenho sempre dedicado a minha admiração. Não pode S. Exa. ter razão de queixa contra mim.

Quando nos congregámos num bloco constituido por todos os partidos monarchicos, o Digno Par encontrou sempre da minha parte as melhores disposições para com S. Exa., o Digno Par pugnando por ideias mais radicaes, levado pelo seu temperamento mais impressionarei; eu conservador, mais frio, menos impressionavel, mas conservando-me sempre a seu lado com toda a lealdade. Por isso estranhei profundamente o discurso de S. Exa.

O Digno Par tem no país uma elevadissima posição, é chefe de um partido que tem direito a governar, e quando se tem essas responsabilidades não se pode falar como S. Exa. falou. O Digno Par menos parecia chefe de um partido, do que um tribuno de uma assembleia popular.

Dir-se-hia que eu, Sr. Presidente, fizera ao Digno Par qualquer accusação; porventura accusei S. Exa. de ter relações com o partido republicano?

De modo algum. Estava no seu direito. E não obstante o Digno Par dirigiu-me palavras bem amargas.

Nunca defendi, quer por palavras, quer por escritos, a abdicação do Rei D. Carlos, como tambem nunca sustentei que o partido regenerador fosse incompativel com o fallecido Monarcha.

Eu entendia, Sr. Presidente, e entendo que um Rei que acceita condições impostas por um partido é um Rei que abdica, como abdica um partido que acceita condições impostas por um Rei. Nessas condições, os partidos não passariam de um bando de mercenarios, sujeitando-se a tudo pela posse do poder. Mas isto não quer dizer que eu tivesse sustentado a abdicação de El-Rei D. Carlos: nunca tal defendi.

Tambem não provoquei a revolução. Empreguei todos os meus esforços, sim, para que as Côrtes se reunissem no dia 2 de janeiro e o Digno Par Sr. Alpoim sabe muito bem, porque commigo fez parte do bloco, quaes eram até os principaes pontos doutrinarios a discutir nesse congresso nacional. Se aquelle dia tivesse sido de gala nacional, não teria sido de luto o de 1 de fevereiro.

Desisti da minha, ideia, é certo, mas quando reconheci, principalmente depois da entrevista do Rei D. Carlos com Galtier, que a execução d'ella podia ser perigosa num momento em que a exaltação dos animos tocava o auge.

A minha attitude era effectivamente de opposição franca, como provam os factos, o d'isso aqui tenho os documentos, mas era uma attitude perfeitamente pacifica e liberal.

A frase: "Isto ou termina por um crime ou por uma revolução", era uma frase de simples previsão dos acontecimentos, ditada pela apreciação das circunstancias historicas do nosso e de outros países. Avisar não era fazer a revolução. E eu, Sr. Presidente, avisei o Governo de então. E quanto á moção de 8 de dezembro, ella não implicava incompatibilidade com o fallecido Monarcha: era apenas uma moção de combate que por todos podia ser votada. A outras reuniões não assisti, d'ellas não posso ter a responsabilidade.

Resta-me referir-me á declaração classificada pelo Digno Par Sr. Arroyo de promessa de adeantamentos futuros.

O que disse, Sr. Presidente, foi que, se a Casa Real se encontrasse na im-minencia de ser arrastada aos trihunaes, aqui ou no estrangeiro, se o Rei não tivesse recursos e se as circunstancias fossem urgentes, eu não teria duvida, para evitar tal escandalo perante o país e perante o estrangeiro, em fazer um abono, vindo seguidamente ás Camaras dar conta do meu acto.

Foi isto o que eu disse, e foi a isto que se chamou - adeantamentos futuros !

Creio bem, Sr. Presidente, que, se qualquer dos Dignos Pares que me increpfim por esse motivo, tivesse a responsabilidade de uma situação politica, havia de fazer exactamente o que eu disse. E, se assim não procedesse, não se desempenharia da missão que incumbe a um verdadeiro homem de Estado.

Não prometti, pois, adeantamentos. Affirmei, sim, Sr. Presidente, um principio em relação a casos restrictos e com a sancção parlamentar.

Mas senti profundamente o que o Digno Par Sr. Alpoim disse, como interpretação da minha attitude. O que desejo é que usem para commigo da mesma justiça que por minha parte aos outros dispenso.

Tenham todos a coragem das suas opiniões, expondo-as franca e desas, sombradamente, perante o país e perante o Rei, sem outra preoccupação que não seja o cumprimento integro dos deveres civicos.

Sr. Presidente: fui mais extenso do que desejava.

Tinha pedido a palavra, para dar algumas explicações e, afinal, tenho occupado por bastante tempo a attenção da Camara.

Vou concluir.

Não desejo voltar a este debate, que, aliás, se não circunscreveu á proposta do Digno Par Sr. Baracho.

Adduzi os argumentos que, no meu entender, demonstram a impossibilidade da approvação da proposta do Digno Par.

Não me arreceio do debate politico, mas só o acceitarei nesses termos quando elle seja nitidamente posto. Tratarei do assunto politico quando elle venha á discussão; mas não ha de ser á vontade de S. Exas.

Os Dignos Pares voltam se para mim como se eu fosse o chefe do Governo.

S. Exas. trazem-me á lembrança a passagem de uma tragedia de Shaks-peare, o Rei Lear.

Dizia um dos personagens d'essa tragedia:

A natureza deu ao homem dois olhos e um nariz. Os olhos para olharem para os lados, e o nariz para cheirar para a frente.

O meu antigo amigo o Sr. Baracho olha para um lado, e vê o partido regenerador, olha para outro lado e vê o partido progressista ; mas o seu fino faro descobre á frente o Governo, e é a elle que S. Exa. se dirige nos seus discursos, e é a elle que reclama providencias que julga uteis para o país.

Com os Dignos Pares Srs. Arroyo e Alpoim dá-se exactamente o contrario.

Um dos olhos de S. Exas. vê efectivamente o partido progressista, outro descobre o partido regenerador; mas o seu olfacto só lhes depara em frente a minha modesta individualidade.

Sou eu o chamado á discussão; é a minha pessoa que é discutida; sou eu o interpellado, como se eu fosse o Governo. Pois é esta situação que não acceito. Tenho dito.

Vozes: - Muito bem. Muito bem.

O Sr. Sebastião Baracho: - O Digno Par Sr. Julio de Vilhena foi essencialmente amavel para commigo, attribuindo-me dotes e talentos que não possuo, o que não obsta a que profundamente me penhorem as suas referencias elogiosas, mormente por partirem de quem tem situação excepcional, como politico e como vernaculo cultor das letras patrias. Correspondidas, pela forma que deixo exarada, as attenções do Digno Par, dir-lhe-hei que Shakespeare tropeçava uma ou outra vez, o que não é para admirar. Homero tambem dormitava. Quer isto dizer que, comquanto eu combata sempre de frente os meus adversarios, não o faço agora com a intensidade com que o podia fazer, quando- alvejo o Governo ; e elle nada tem de me agradecer esta minha attitude. A razão é obvia. Amoldo-me para isso, pelo dito clássico da velha de Siracusa: - Pode vir outro peor.

Posto isto, notarei que o Digno Par Sr. Julio de Vilhena, ainda hoje foi

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6 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

fertil em paradoxos e contradições, seguramente com mais intensidade do que na sessão anterior.

Referiu-se o Digno Par de novo á pessoa do Rei, dizendo que d'ella se não occupara, por maneira a merecei-os reparos dos orthodoxos. E todavia, acrescentarei eu que o Digno Par tratando assim um assunto cuja personalização não poderia, por certo, concorrer para o prestigio real, allegando que a Coroa está a coberto constitucionalmente pelos Ministros de Estado, não faz mais do que recordar um preceito elementar, a que eu sempre prestei homenagem.

Na sessão anterior, o Digno Par e meu amigo Sr. João Arrojo recordou o succedido nesta casa, quando das famosas cartas do fallecido Rei D. Carlos, e da deliberação tomada para que ellas deixassem de ser aqui discutidas.

Insurgi-me então contra o que foi resolvido; e, a despeito da muita consideração que tributo a quem presidia aos nossos trabalhos, protestei contra o modo tumultuado como se procedeu por occasião de se explanar tão delicado assunto.

Simultaneamente affirmei os meus direitos, assegurando que, não obstante o resolvido, não deixaria de discutir todos os actos do poder moderador, em conformidade com os preceitos vigorantes de direito constitucional.

Já vê o Digno Par e meu particular amigo Sr. Julio de Vilhena, que a sua profissão de fé monarchica me encontrou no cultivo das praxes mais escrupulosas, da compostura e das boas normas constitucionaes.

Mas as infelicidades do Digno Par não param aqui. Relativamente a responsabilidades, citou Fontes, encarecendo-lhe as respectivas declarações, quê eu editei na sessão transacta. Conjuntamente, porem, sustentava que Ministros, ignorantes de actos delictuoses, como o dos adeantamentos, não podiam ter nelles responsabilidades. Similarmente argumentou com relação aos partidos politicos.

Não ha duvida de que as responsabilidades só podem recair sobre quem praticou os actos condemnaveis, quando estes não são conhecidos. Mas desde que elles apparecem a lume, para não se ser colhido na engrenagem, é indispensavel o afastamento dos contaminados, tanto pelo que respeita a partidos, como a pessoas.

Na sessão de hoje, o Digno Par esteve, em todo o ponto, contraditorio com o que allegara na anterior, em que capitulou de fantástica a pretensão que houvesse de inquirir com proveito, em conformidade com o § 5.° do artigo 15.° da Carta Constitucional, de um extincto reinado de duração de alguns annos. Hoje, pelo contrario, formula a aspiração de que deseja uma syndicancia nessas condições, com o objectivo de se instruir acêrca de ocoorrencias, cujo conhecimento muito lhe interessa.

Evidentemente, o Digno Par mudou a sua espingarda de hombio. E, ao que parece, está muito em uso o appello para esse recurso marcial. Hontem, na Camara electiva, o Sr. Ministre da Fazenda tambem mudou de hombro a sua espingarda.

É mesmo o unico acto militar, diga-se de passagem, que o Sr. Espregueira tem praticado na sua longa carreira de general civil.

E para não sair, por emquanto, do campo das divergencias para onde o Digno Par me impulsionou, direi, que ellas se produziram entre S. Exa. e o Digno Par Sr. Beirão, e ulteriormente entre S. Exa. e o Sr. Ministro da Justiça.

Estou convencido de que o Digno Par Sr. Beirão, abalisado jurisconsulto, não teria, versado tão fria e incompletamente a parte juridica, quando examinou a minha proposta, se o Digno Par Sr. Vilhena, se tivesse expressado, na sessão anterior, pelo modo como hoje o fez.

De resto, a tibieza patenteada neste debate, pelo Sr. Beirão, é naturalmente desculpavel pela convicção que S. Exa. tem de que as syndicancias são de toda a utilidade.

Hoje, repito, o Digno Par Sr. Vilhena lê pela mesma cartilha; mas contraditoriamente - consigne-se mais uma vez - com as suas affirmações primitivas.

O Sr. Beirão foi o autor da proposta apresentada na camara Electiva, na sessão de 19 de maio de 1893, com o objecto de se proceder a um rigoroso inquerito, concernentemente ao pagamento dos portadores das obrigações do emprestimo de D. Miguel, de 1832.

Não lhe podia, portanto merecer enthusiasmo a exeommunhão maior fulminada pelo Digno Par Sr. Vilhena, sobre syndicancias e inquirições, como a que eu proponho.

Quanto ao Sr. Ministro da Justiça, apresentou-se numa attitude positivamente neutral.

Não impugnou, nem defendeu a minha proposta, limitando se a declarar que se ella fosse approvada, o Governo franquearia aos membros da commissão que fossem, eleitos todos os esclarecimentos para que elles pudessem desempenhar o seu mandato.

Para notar é que, militando o Sr. Campos Henriques no partido de que o Digno Par Sr. Vilhena, é chefe, a reserva do titular da pasta da Justiça, é sufficientemente expressiva para que eu me demore a commentá-la.

Mas, francamente, o que representa a minha proposta?

Pelo seu numero primeiro, indica a conveniencia de que seja nomeada uma commissão de 21 membros, para ella proceder a rigorosa syndicancia ás Secretarias do Estado e suas dependencias, a qual abrangerá todo o periodo do reinado transacto.

Em presença do que tem produzido a discussão até este momento, afigura-se-me que não ha quem impugne a doutrina contida nesse primeiro articulado.

Quanto ao segundo numero da proposta, estabelece elle que se apurem as responsabilidades de toda a ordem, motivadas pelos adeantamentos illegaes á fazenda da Casa Real, e a quaesquer funccionarios do Estado.

O que ha de eretico neste dispositivo?

Porventura a commissão procederia como julgadora, arrogando-se attribuições judiciarias? Não.

No intuito de produzir trabalhos práticos, apreciaria o que apurasse, manifestando opinião sobre se haveria criminosos e quaes as infracções commetti-das, e bem assim sobre se haveria incursos no Codigo Penal, ou apenas transgressores de faltas ligeiras.

Expressado este parecer á Camara, esta prorunciar-se-hia consoante as circunstancias aconselhassem, e as leis lh'o garantissem. Nada mais simples e correcto.

Francamente, não atino com a exorbitancia com que se malsina a disposição que ligeiramente analysei.

Referentemente ao terceiro articulado, preceitua elle que a commissão seja investida de plenos poderes, indubitavelmente consentaneos com a melindrosa e alta missão que lhe é confiada, e indispensaveis para que ella não possa, por circunstancia alguma, ser contrariada e diminuida no exercicio das suas importantes funcções.

Entende o Digno Par Sr. Vilhena que a camara não pode conceder plenos poderes a commissões inquiridoras, e procura fundamentar esta sua asseveração indicando o exemplo da França. Ha pouco fez o Digno Par referencia á citação por mina feita na penultima sessão, relativamente á Italia. Os factos por mim adduzidos, não se deram em 1894, como por equivoco o Digno Par referiu: mas sim em 1904.

São elles demonstrativos de que a circunstancia de o Senado Italiano funccionar como alto tribunal de justiça, não o priva das suas funcções de syndicante.

Citando a Franca, o Digno Par não foi mais feliz. As commissões de syndicancia, nos ultimos annos, quer originarias do Serado, quer procedentes da Camara dos Deputados, teem sido safaras nos será productos. Haja em vista a que foi encarregada de inquirir da administração de Camillo Pelle-

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SESSÃO N.° 19 DE 20 DE JUNHO DE 1908 7

tan, como Ministro da Marinha, e que, não obstante ter funccionado durante annos, nada produziu. Em parte, a inutilidade patenteada em casos d'estes, deriva de os syndicantes não estarem dotados, pelas Camaras respectivas, com plenos poderes, indispensaveis a fazerem-se ouvir e obedecer nas estações officiaes.

Ao invés ainda do que o Digno Par assegurou, tanto o Senado Francês como a Camara dos Deputados poderiam delegar plenos poderes nos seus mandatarios. Apenas o não teem querido fazer, desattendendo as instancias formuladas a tal respeito pelos inquiridores, os quaes reconhecem que d'esses poderes redundaria a efficacia que hoje lhes falta, no exercicio das suas arduas attribuições.

Cá, como lá, não está vedado ás Camaras confiar poderes extraordinarios aos seus delegados. E qualquer commissão que os possuisse saberia fazê-los valer perante o Governo e seus delegados, que nunca ousariam depreciá-los, nem tão pouco illudi-los.

Dito isto, vou fundamentar a minha proposta, sob a sua feição juridica.

O artigo 139.° da Carta e o artigo 15.°, § 5.°, dão attribuições iguaes aos membros das duas Camaras, consoante se patenteia pela letra de cada um d'elles. E senão vejamos:

Artigo 139.° As Côrtes Geraes, no principio das suas sessões, examinarão se a Constituição politica do reino tem sido exactamente observada, para prover como for justo......................................................................

Artigo 15.° É da attribuição das Côrtes: .......................................

§ 5.° Na morte do Rei ou vacancia do throno, instituir exame da administração que acabou, e reformar os abusos nella introduzidos.

O artigo 36.° e seu § 1.° divergem, em parte, da doutrina igualitaria estatuida nos artigos anteriores, conforme se verifica pela seguinte transcrição:

Artigo 36.° Tambem principiará na Camara dos Deputados:

§ 1.° O exame da administração passada e a reforma dos abusos nella introduzidos.

Esta discordancia, porem, desapparece pelo artigo 14.° do Primeiro Acto Addicional de 5 de julho de 1852, e que é assim concebido:

Artigo 14.° Cada uma das Camaras das Côrtes tem o direito de proceder, por meio de commissões de inquerito, ao exame de qualquer objecto da sua competencia.

§ unico. Ficam d'este modo addicionados e ampliados os artigos 36.° § 1.° e 139.° da Carta Constitucional.

Perante tão explicita determinação, a doutrina igualitaria ficou definitivamente estabelecida para as duas Camaras, em negocios d'esta natureza.

De resto, identica conformidade de direitos transparece do artigo 1.° do

Segundo Acto Addicional, de 24 de julho de 1880:

Artigo 1.° Os Pares e Deputados são representantes da nação, e não do Rei que os nomeia, ou dos collegios e dos circulos que os elegem.

Na Constituição de 20 de março de 1838, subsistem os mesmos principios de igualdade, concatenados nos artigo 38.° e 39.°, concebidos nestes termos:

Artigo 38.° Cada uma das Camaras, no principio das sessões ordinarias, examinará se a Constituição e as leis teem sido observadas.

Artigo 39.° Cada uma das Camaras tem o direito de proceder, por meio de commissões de inquerito, ao exame de qualquer objecto de sua competencia.

Recorri a esta legislação para que não haja duvida acêrca da identidade de attribuições, na questão sujeita, das duas casas do Parlamento.

O Digno Par Sr. Julio de Vilhena parece tê-lo hoje reconhecido. Muito folgo com este seu norteamento, porque, na verdade, mal pareceria que houvesse nesta Camara quem a considerasse diminuida perante a outra.

Acceita o Digno Par Sr. Julio de Vilhena o poder moderador, e promette conservá-lo na reforma constitucional, que possa vir a emprehender.

Sinto que tomasse tal resolução, porque o poder moderador, que eu intitulo poder perturbador, tem produzido os maximos transtornos no organismo constitucional. D'elle tem resultado, em grande parte, o poder pessoal, com todos os seus perniciosos attributos.

Nem a Constituição de 20 de março de 1838, nem tão pouco a de 23 de setembro de 1822, consignavam semelhante poder.

O poder executivo era o unico reconhecido por estas duas constituições, sendo exercitado na de 1838 pelo Rei e pelos Ministros e Secretarios do Estado.

A Constituição de 1822 era, louvavelmente, mais restrictiva, e apenas reconhecia ao Chefe do Estado a autoridade em fazer executar as leis, expedir decretos e prover á segurança interna e externa do Estado, na forma da Constituição.

A Carta de 29 de abril ,de 1826 consigna, os dois poderes. É demasiado.

Seria sufficiente o poder executivo de que o Rei é Chefe, pelo artigo 75.°, e o exercita, pelos seus Ministros de Estado.

Pelos Ministros de Estado, note-se bem, e não pelos seus Ministros, como o pêco cortesanismo impropriamente denomina, ha annos, os Conselheiros da Coroa.

Détestables flateurs, present le plus funeste, Qui puisse faire aux Rois la colere celeste.

Mais uma vez cito a Phedra, de Racine, o qual tão propositadamente fustiga os aduladores e seus avariados productos.

E a citação tem ainda cabimento, perante a apregoada lealdade monarchica, tão caracteristicamente posta em relevo, na sessão anterior, pelo Digno Par Sr. Alpoim.

Essa lealdade está sujeita a intermitencias, conforme os seus cultores estão no Governo ou na opposição.

O Jano rotativo seria a sua encarnação adequada. O Jano, porem, unicamente de duas caras, e não o rei do Latium, com as suas largas vistas previsoras.

No templo de Jano, tambem os rotativos não podem ter alçada. Representava elle, na antiga Roma, quando fechava as suas portas, a paz nos vastos dominios da grande urbs dominante. Em mil annos, o templo apenas fechou nove vezes.

Na vigencia rotativa, a paz é positivamente um mytho. A tranquillidade dos espiritos e a desconfiança entre governantes e governados constituem a calamitosa fruta do tempo.

Não vacilaram, todavia, os rotativos, perante as violencias ditatoriaes fran-quistas, em peregrinarem até ao santuario em que pontifica o cidadão Bernardino Machado. É curioso, e causa-me a mim, isolado impenitente, a satisfação que resulta de trilhar invariavelmente pelo mesmo caminho, alheado dos con-vencionalismos partidarios e amoldado pela divisa de que mais vale só do que mal ou bem acompanhado.

Nem lisonjeio os poderosos, nem tão pouco as multidões, pugnando exclusivamente pelas causas justiceiras mais variadas, de rosto a descoberto, sem receios de arguições acêrca de quaesquer desfallecimentos, retrospectivos ou da actualidade, de Índole politica.

Segundo o testemunho do Digno Par Sr. Alpoim, foi pelo 18 de junho que Hintze o convidou a ser introductor de graduados regeneradores, na habitação do prestante e illustre cidadão Bernardino Machado.

Hintze Ribeiro, um monarchico intransigente, não duvidou chegar a semelhante excesso, que dá a nota do estado tumultuario e tumultuoso em que se encontrava a opinião publica.

Mas, de Hintze Ribeiro não me occuparei mais neste momento. Já deu contas a Deus, como é de uso dizer-se, a Deus celebrado por Voltaire nestes significativos termos:

L'univers m'embarrasse, et je ne puis songer Que cette horloge existe et n'ait pas d'horloger.

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8 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

E, na verdade, difficil é comprehender que haja relogios sem relojoeiro.

O que é, porém, muito mais facil de perceber é a lealdade monarchico-rotativa, cuja furta-côr está integrada com a melhor, ou a peor feição, como correm os negocios dos proprios sectarios, e quejandos.

Nos concilies dos partidos, no fim do anno passado - concilios que tiveram mais de revolucionarios do que de ecuménicos- foi posta em destaque a inconsistencia de taes agremiados. Da sua imprensa furibunda colhi trechos, que constituem verdadeiros logares selectos que tenho á mão, mas de que não faço uso agora.

Não condemno que se combatesse violentamente a ditadura, correspondendo por essa forma á sua esmagadora oppressão; e sempre reputei licito todos os processos de luta empregados com esse objectivo.

O que me repugna é ver agora encadernados, em contrictos ermitões, os que tinham dado o corpo ao diabo com desenvoltura inexcedivel.

Na opposição, apresentam-se, por assim dizer, intrataveis perante a Coroa. Como ministeriaes, accommodam-se portal maneira, que parecem genuinos cortesãos, affeitos a todas as abdicações, e impulsionadores do engrandecimento do poder real, cujos lesivos effeitos são sentidos tão profundamente pelo organismo da nação.

Foram ainda os cortesãos e acommmdaticios disfarçados em Ministros que facilitaram os adeantamentos, os quaes fui dos primeiros a combater nesta casa, acêrca dos quaes tenho persistentemente pedido esclarecimentos, que ainda até hoje me não foram fornecidos, e que é indispensavel que appareçam a lume, para a instrucção apropriada de tão repugnantes factos.

O Digno Par Sr. Julio de Vilhena fez afirmações contra as quaes protestei já, e torno hoje a protestar, relativamente a suprir as urgencias da Familia Real, dando desse acto pronto conhecimento ao Parlamento.

Só por hypothese se pode acceitar uma tal predisposição.

Em principio, e no campo da, pratica, são inadmissiveis os adeantamentos que não sejam estrictamente pautados pelo decreto com forca de lei de 21 de abril de 1892, que regula a materia, concernentemente aos fucccionarios do Estado que appellam para esse expediente.

Nem os adeantamentos á Casa Real, nem. aos magnates e privilegiados de estirpe menos elevada, estão sob a égide do decreto por mim citado.

Difficil se me afigura, pois, que o Digno Par Sr. José Luciano de Castro, quando se dignar comparecer nesta casa, possa demonstrar que não faltou á verdade dos factos quando na sessão de 21 de novembro de 1906 asseverou que não havia adeantamentos illegaes feitos á Fazenda Real.

Para recordar é, que foi o Digno Par o Sr. João Arroyo que, com a sua ex-epcional habilidade de orador privilegiado, chamou á autoria o chefe do partido progressista, compellindo-o ás declarações proferidas na sessão que deixo mencionada.

Depois do que se tem passado na outra casa do Parlamento, é fundamentalmente arrojado o papel justificativo, attribuido, na sessão transacta, pelo Digno Par o Sr. Beirão ao Sr. José Luciano de Castro.

Em todo o caso, os mais elementares preceitos de decencia aconselham a que a liquidação dos adeantamentos se faça com sinceridade e clareza, ao alcance de todos.

O Governo, e designadamente o Sr. Ministro da Fazenda, estão percorrendo a via dolorosa; mas o peor é que o país é quem está sendo crucificado. Nas condições em que a questão se evidencia, difficil se torna encontrar um Hercules que possa limpar e desencardir os estabulos de Augias.

O Sr. Ministro da Justiça assegurou hontem que a questão dos adeantamentos não está incluida na proposta acêrca da lista civil.

Laborou o Sr. Ministro num completo engano, porque o artigo 5.° d'essa peça de estranho quilate, a outro assunto se não refere que não seja ao dos adeantamentos, tão illegaes quanto perniciosos.

E indispensavel para liquidar, se ainda é possivel, honestamente, a questão, proceder - mais uma vez o consigno - á disjunção immediata do artigo 5.°,da proposta da lista civil.

Após esse acto salubrizador, apurem-se minuciosamente as responsabilidades politicas, civis e criminaes de todos os adeantados e adeantadores, com excepção apenas dos que tenham, com a morte propria, saldado as suas contas. De outra forma, o periclitante regime actual esgotará prontamente os ultimos balões de oxygenio, que lhe proporcionam os artificiaes e debilitantes alentos que ainda o amparam; e afundar se-ha num oceano de podridão, - num verdadeiro oceano de lama.

Saiba, ao menos, morrer, quem viver não soube.

(S. Exa. não reviu).

O Sr. Presidente: - Deu a hora. A proximo sessão será na segunda feira, 22 do corrente, e a ordem do dia a continuação da de hoje.

Está levantada a sessão.

Eram 5 horas e meia da tarde.

Dignos Pares presentes na sessão de 20 de junho de 1908

Examoa. Srs.: Antonio de Azevedo Castello Branco; Eduardo de Serpa Pimentel; Marquez-Barão de Alvito; Marquezes: de Avila e de Bolama, de Penafiel, de Sousa Holstein; Condes: de Arnoso, do Bomfim, do Cartaxo, de Figueiró, de Martens Ferrão, de Paraty, de Sabugosa, de Villa Real; Visconde de Asseca; Pereira de Miranda, Eduardo Villaça, Costa e Silva, Campos Henriques, Ayres de Ornellas, Eduardo José Coelho, Fernando Larcher, Veiga Beirão, Dias Costa, Ferreira do Amaral, Francisco José Machado, Francisco José de Medeiros, Francisco Maria da Cunha, Ressano Garcia, Baptista de Andrade. Gama Barros, D. João de Alarcão, João Arroyo, Teixeira de Vasconcellos. Gusmão, José de Azevedo, José de Alpoim, Silveira Vianna, Julio de Vilhena, Luciano Monteiro, Pimentel Pinto, Poças Falcão, Bandeira Coelho, Sebastião Telles e Sebastião Dantas Baracho.

O Redactor,

FELIX ALVES PEREIRA.

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