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fortalecida pela força irresistivel da verdade, me convida a defender os sacrosantos principios da justiça, e a propugnar pela sua efficacia; obrigação esta que me não é particular, mas commum a quem não quizer esquecer, ou menoscabar os deveres e direitos de cidadão, é que em mais subido grau cabe a um representante do paiz.
Sr. presidente, eu sinto, e sinto muito sinceramente, ver atreladas a um phantasma, intelligencias tão robustas. Lamento que caracteres tão eminentes, em quem abunda a luz da critica, prima o patriotismo, e predomina até o sentimento do melhor, sejam levados por uma obsecação inexplicavel a perverter a letra e o espirito das leis, querendo inculcar e fazer passar por verdade o sophisma e. a argúcia. Sr. presidente, o triumpho glorioso da verdade, não se póde conseguir por taes meios, de uma maneira honrosa para o individuo, e util para a sociedade. Combate-se o frio com o calor, as trevas com a luz, mas Deus não quer que a injustiça se remedeie e vingue com outra injustiça. " Se a questão fosse meramente pessoal, declaro formalmente que não entraria n'ella, porque tenho por idéa fixa, por systema assentado, que o fórum da rasão não é circo de gladiadores, nem o parlamento logar apropriado para n'elle se erigir a estatua mutilada de Pasquino.
Mas, sr. presidente, a questão é de liberdade, a questão é de justiça, a questão direi mais, sem perigo nem risco de pleonasmo, é de decóro governamental; e mal iria á sociedade, em que a pretexto de uma popularidade ephemera se calassem em todos, os corações os sentimentos do dever, para deixar triumphar contra a verdade o obscurantismo de uma opinião, ou a argumentação sophistica, adrede preparada pára illaquear a credulidade publica.
Sr. presidente, é-me desagradavel e muito desagradavel ter de divergir da opinião de caracteres a quem não posso deixar de tributar a homenagem da minha admiração; mas sr. presidente, amicus Sócrates, amicús Plato, sed magis arnica veritas. O alicerce da verdade é a evidencia, sem esta não existe base para a moral, nem tão pouco para a historia, e para as sciencias exactas; mas quando um objecto, na sua essencia simples, se torna complexo, pelos episodios e accessorios de que foi revestido, é de absoluta necessidade descer á analyse para estabelecer a verdadeira relação das cousas. Eis-aqui, sr. presidente, o objecto unico das minhas lucubrações, e o principal assumpto das curtas, curtíssimas reflexões que vou apresentar á camara, de cuja benevolencia se espero muito, muito mais espero da sua justiça e illustração.
Sr. presidente, os tremendos, os horrorosos capitulos de accusação apresentados contra o sr. ministro da guerra reduzem-se aos seguintes. O ministro da guerra é réu de lesa disciplina, porque vendo e sabendo que certos grupos dos dignos officiaes de artilheria dirigiram ao seu commandante geral differentes representações, e devendo ser o Argos vigilante d'essa disciplina, e devendo saber quaes são as leis que a regulam, não só não puniu, mas nem ao menos censurou aquelle acto, tornando-se por isso cumplice na infracção da lei. O ministro da guerra, continua o libello no segundo artigo — é réu de lesa lei, pela sua inobservancia, ou abuso do poder, segundo os principios da carta constitucional, por isso que determinando o decreto de 2 de outubro a maneira porque se devia conceder a medalha militar creada pelo mesmo decreto, o ministro da guerra infringiu as disposições d'elle e o respectivo regulamento de 22 de agosto de 1864, tomando por sua propria auctoridade a decisão da concessão de medalha de oiro, não obstante o supremo conselho de justiça militar ter limitado a sua consulta á meda lha de prata, que tem a significação de bons serviços e exemplar comportamento. O ministro da guerra, continua ainda a accusação no seu terceiro artigo — é réu de leso pundonor e brio militar, por isso mesmo que, devendo a honra considerar-se, como dizem as leis militares, o instituto da profissão militar, e devendo por consequencia, na ordem jerarchica os superiores serem límpido espelhos de virtude para com os inferiores, se conservou, e continua a conservar no commando da artilheria o general a que se tem alludido, apesar das graves imputações que a opinião publica lhe tem feito, mostrando assim que esse pundonor e brios, que formam o sentimento de brio da vida militar, não tem o menor apreço para o illustre ministro.
Taes são, sr. presidente, as accusações que se fazem ao sr. ministro. Parece-me que as tenho expresso com tanta exactidão como lealdade, sem omittir nenhuma das circumstancias aggravantes com que se quiz afectar o quadro dos malefícios imputados ao illustre ministro. Mas este quadro exprimirá os verdadeiros caracteres dos factos em relação á sua significação politica, justa e moral, ou antes, sr. presidente, estará elle em contradicção manifesta com a constituição, com as leis e até com os principios da equidade natural, que, como disse o principe dos oradores, é a base de toda a justiça? Poderão, sr. presidente, as galas do estylo, o brilhantismo de uma locução florida, a magia de uma eloquencia elevada, ter o prestigio e exercer influencia no senado portuguez para confundir Babylonia com Sião, e desprezar os principios inconcussos das leis clarissimas que regulam o assumpto, trocando as suas disposições claras e terminantes por estudados romances, como aquelles que sobre a materia aqui se tem apresentado? Estamos nós n'uma sociedade constituida, ou no estado natural em que não ha regras certas, determinadas e fixas, tanto para o exercicio das attribuições dos poderes politicos, como para o exercicio dos direitos dos cidadãos? Serão estas regras, estas leis, a que nós devemos recorrer? Não se deverá, sr. presidente, quando se trata de objectos tão serios que tocam com os poderes publicos, ter diante dos olhos a sentença de Horácio que diz:
Pocul omnis este Clamor et ira...
para que não deixemos de maneira alguma influir a nossa consciencia com rasões estranhas ao objecto?
Sr. presidente, quando Aristoteles disse, com profunda sabedoria, que o homem sem justiça é o mais terrivel dos animaes, apontou para o direito, que como o sol deve alumiar todo o mundo, apontou para o direito, que é o fim da rasão humana, apontou para o direito, porque é n'elle que a sociedade ou nações devem estabelecer a sua força, e pôr toda a sua esperança, apontou para o direito que segundo Platão é o justo na sua unidade. A ultima ratio legum não tem por causa a paixão, os accidentes e a variedade de opiniões, mas a verdade pura e simples, sem alliagem ou mistura de corpos estranhos, que a deturpem ou desvirtuem. E por estes principios, por este axioma da rasão, approvado pela philosophia geral e pela philosophia do direito que devem aferir-se as faltas imputadas ao sr. ministro da guerra.
Sr. presidente, o sr. ministro da guerra é accusado do crime de lesa disciplina; e porquê? Repetirei á camara as bases em que assenta esta accusação. O sr. ministro é accusado, porque não censurou essas representações que fizeram os officiaes de artilheria ao seu commandante. Grande crime foi este; horrendo crime que, se não poz, podia pôr em grande perigo a sociedade! O que vale porém é que tudo isto é nada, tem o mesmo valor que a tempestade em um copo de agua. No entanto, sr. presidente, para apparentar de solidas estas accusações, revolveu-se toda a legislação militar, e porque se encontrou a ordem do dia de 26 de junho de 1811 em que o general Beresford havia prohibido os certificados, por isso que muitas vezes ou sempre esses certificados eram arrancados á benevolencia e bondade do coração dos officiaes, proclamou-se jubilosamente o inveni.
A verdadeira significação d'esta ordem do dia não justifica tanto jubilo, e bastava ver que se tratava de certificados para se reconhecer que tal documento não tinha analogia alguma com o de que se trata. Como se quer pois confundir 'os termos protestações de amisade ou felicitações com certificados? Será necessario, sr. presidente, fazer-se um diccionario novo da nossa lingua, para podermos achar analogia entre estes termos.
Mas, sr. presidente, entremos n'outro argumento: porque rasão prohibiu Beresford essas felicitações, e em que circumstancias o fez?
O general Beresford, munido de um poder discricionario, podia ir, como foi muitas vezes, contra as leis do paiz; e esta ordem do dia a que se allude, esta effectivamente em contradicção com os proprios artigos de guerra, os quaes dizem, em diversas passagens que = os militares devem observar todas as regras de cordura e benevolencia, que devem ser probos, e que finalmente devem observar todos os preceitos da virtude. Ora, o que diz esta ordem do dia? Diz aos officiaes que devem desprezar os seus sentimentos naturaes de bondade, e que quando um desgraçado lhes for pedir um attestado para requerer ou fazer valer a sua justiça, esse attestado lhe seja negado, e o pretendente desprezado. Eis-aqui a verdadeira significação, a significação legal d'este documento. Emquanto ás circumstancias em que elle se publicou, ellas são bem manifestas. Estava o paiz soffrendo uma viva e sanguinolenta guerra, que sustentava com uma potencia que então tinha invadido quasi todos os reinos da Europa; a nação achava-se, por assim dizer, toda em armas, e por isso não admira o era mesmo desculpavel, que se publicasse esta ordem do dia.
Mas, sr. presidente, depois de cincoenta e tantos annos, quando o paiz se acha em completo socego, querer fazer valer um documento d'esta ordem, é contrariar os principios de liberdade e justiça. Parece-me pois que esta ordem do dia não póde ser invocada para sustentar uma accusação ou censura, como lhe queiram chamar, contra um membro do poder executivo. Não é, sr. presidente, com factos duvidosos e previdências obscuras, que se póde' formular uma accusação contra um individuo qualquer e muito menos contra um membro de um poder da carta. Digo pois, que esta ordem do dia hão é mais do que uma providencia transitória e que não tem, nem mesmo póde ter, o caracter de lei.
Não quero com isto dizer que as ordens do dia não devam ser observadas; o que desejo fazer ver é — que sendo aquella uma providencia transitória, esta sujeita a differenças e mudanças, segundo os tempos e circumstancias, que sendo hoje differentes não a justificam.
N'aquelle tempo, em que o paiz se achava todo em armas, não se parava n'estas providencias, julgavam-se até necessarias as varadas, as pranchadas, as difamações e os fuzilamentos, e todos os poderes estavam na mão do commandante em chefe do exercito; porém depois de voltarmos ao remanso da paz, depois de se estabelecer o estado normal da sociedade, que necessidade ha de nos soccorrermos a similhante documento, e de sustentarmos a sua auctoridade para o caso presente? Não póde ser, sr. presidente; não se lhe póde sustentar a sua auctoridade com relação ao objecto em questão, porque todas as leis relativas á disciplina militar foram visivelmente substituidas pelo regulamento disciplinar, que é a lei vigente, segundo a qual devemos apreciar as chamadas representações dos officiaes de artilheria. E porque, sr. presidente? Alludiu-se ha pouco a esse facto, mas alludiu-se de uma maneira pouco exacta, porque é muito expressa a lei de 14 de julho de 1856. A lei de 14 de julho de 1856 não traz unicamente o artigo — fica revogada toda, a legislação em contrario — traz mais alguma cousa que tem uma ligação intima com o objecto, e que faz que no regulamento disciplinar se considerassem comprehendidas todas as disposições relativamente á disciplina; porque diz no artigo 2.°:
«É o governo auctorisado a pôr em execução o regulamento provisorio disciplinar para o exercito em tempo de paz, apresentado pelo mesmo governo, á camara dos deputados, em proposta de lei de 28 de abril de 1855, podendo fazer n'elle as alterações que entender convenientes, não só em relação ao exercito do continente do reino e ilhas adjacentes, mas incluindo todas as prescripções necessarias quanto ás provincias ultramarinas».
Depois d'isto é que vem — fica revogada toda a legislação em contrario.
Pregunto agora, será o regulamento de que trata, em virtude d'esta disposição da lei, uma verdadeira lei? Não se póde duvidar; porque o poder legislativo delegou no governo a attribuição legislativa, em relação a este regulamento, e com a unica obrigação de dar conta ás côrtes na sessão de 1857. Não sei se deu ou não; mas a verdade é que, estabelecido assim o codigo disciplinar, em virtude do artigo da lei, e tendo-se dito, como se diz — fica revogada toda a legislação em contrario, vir procurar uma ordem do dia de 1811 é um contrasenso que a hermeneutica juridica altamente reprova.
Sr. presidente, a lei actual não reconhece nem refere certificados, refere reclamações, o debaixo d'este ponto de vista é que se deve considerar a questão. Não podemos entender a nosso modo, e por meio de divagações, embora espirituosas, mas que não são fundadas nas regras hermenêuticas, que aquella palavra significa certificados. A lei não fallou em certificados, fallou em reclamações, e em todo o caso, quando mesmo houvesse duvida, visto que sómente com a lei clara é que se póde fundamentar accusação a um individuo, rasão que procede com mais força em relação a um membro do governo, não se devia ir procurar naquella ordem do dia motivo para fundamentar uma accusação da ordem d'aquella que se faz ao sr. ministro da guerra.
Ora, sr. presidente, disse-se por esta occasião que a ordem do dia não se deve considerar revogada, porque se não fazia mensão d'ella. E para que? Pois as leis não se hão de entender nos proprios termos? As leis, segundo a regra de hermeneutica, que ninguem que tenha compulsado estas materias deve desconhecer, devem sempre entender-se no seu obvio e natural sentido, mandando-se até que, nas positivas, se prefira o sentido vulgar, quando este não seja opposto ao espirito da lei. Isto não são regras arbitrarias, são regras de hermeneutica estabelecidas em nossas leis, e emquanto não quizerem revoltar-se contra estas, é necessario que as tenhamos, como pharol para a intelligencia das leis, procurando, segundo ellas, avalia-las no seu espirito, interpretando-as em bem da sociedade.
Disse-se que a ordem do dia, considerando-a como lei, não tinha sido revogada, e que não havendo revogação expressa, se devia considerar em seu vigor.
Sr. presidente, já expuz a este respeito a minha opinião, e não corro risco de ser contrariado, porque mesmo jurisconsultos que aqui estão, escreveram a respeito do conceito que se deve formar das ordens do dia, a opinião que acabo de emittir. Independentemente d'isso, digo: é sabido que as leis não sómente deixam de existir porque se revogam ou derrogam, ha outros modos porque ellas desapparecem do cathalogo das leis. O desuso é exactamente um d'esses motivos para ellas desapparecerem, quando o uso contrario, verdadeiramente estabelecido, apresenta uma disposição absolutamente opposta. Sr. presidente, é a esse facto que, no melhor sentido, e com o melhor fundamento, alludiram dois dos dignos pares que fallaram sobre a ordem do dia a que me refiro, fallo do digno par o illustre general Baldy, e do digno par o sr. conde de Mello. Quando ss. ex.as com a sua experiencia, praticando n'aquella arma ou no exercito, um no supremo conselho de justiça militar, outro no commando da mesma arma, nos apresentaram aqui o testemunho de que nunca, no seu tempo, se tinham dado ou prohibido aquelles certificados, quando nós vemos este testemunho, que vem em prova do que acabei de dizer, que aquella ordem do dia tinha absolutamente caducado, mesmo na opinião do exercito, não é para desprezar este testemunho.
Quanto á regra da lei de 18 de agosto de 1769 que se invocou para dizer-nos que o desuso não se achava legitimado por não haverem passado os cem annos, e mais requisitos mencionados na mesma lei, é facil de responder, que não estamos na hypothese a que ella se refere, mas em face de uma ordem do dia que não é mais que uma providencia transitória de policia ou economia militar, que o ministro da guerra ou commandante em chefe póde mudar, segundo as conveniencias do exercito, e nunca uma lei; porque seria offender todos os principios de uma organisação social, se porventura considerássemos lei uma ordem do dia. Mas, sr. presidente, procuremos a questão na sua origem legal, vamos examina-la em face mesmo do regulamento disciplinar, vejamos o que significa este regulamento, e se porventura podemos applicar as suas providencias á especie de que se trata. Ninguem nega que as reclamações collectivos são absolutamente prohibidas; esta disposição não póde offerecer duvida alguma, e porque? Porque ninguem deixa de entender no sentido litteral' e obvio as palavras: — as reclamações são absolutamente prohibidas. Mas sendo assim, que significação deu a lei n'este sentido á palavra reclamações? Só depois de entrarmos na verdadeira explicação, na explicação legal, juridica, é que podemos comparar o facto, e ver se elle esta na sua sancção, porque se esta, o sr. ministro merece censura, mas demonstrando que não esta, é injusta a accusação que lhe fazem.
Ora, sr. presidente, o que vou agora dizer não é para o parlamento, porque não o ignora; todos os diccionarios desde o primeiro até ao ultimo sempre explicaram do mesmo modo o que é reclamação. Não ha diccionario juridico desde Vicate até Pereira e Sousa, que é conhecido de todos; não ha diccionario nenhum da lingua portugueza que não explique o que são reclamações: — Reclamação não é mais do que a prosecução de um direito por meio de acção ou protesto para evitar a proscripção ou esquecimento d'esse