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CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO
SESSÃO DE 14 DE FEVEREIRO DE 1865
PRESIDENCIA DO EX.MO SR. CONDE DE CASTRO
VICE-PRESIDENTE
Secretarios, os dignos pares
Conde de Peniche
Mello e Carvalho
(Presente o sr. ministro da guerra.)
Ás duas horas e meia da tarde sendo presentes 39 dignos pares, foi declarada aberta a sessão.
Leu-se a acta da precedente, que se julgou approvada, na conformidade do regimento, por não haver reclamação em contrario.
Deu-se conta da seguinte correspondencia:
Um officio do ministerio da fazenda, enviando, para serem distribuidos pelos dignos pares, 80 exemplares da conta da gerencia d'este ministerio no anno economico de 1863-1864, e da do exercicio do anno economico anterior.
Outro officio do mesmo ministerio, enviando, para serem distribuidos na camara dos dignos pares, 80 exemplares da conta da receita e despeza do thesouro publico, respectiva ao anno economico de 1863-1864.
O sr. Margiochi: — Pedi a palavra para mandar para a mesa dois pareceres da commissão de fazenda (leu).
E agora peço a V. ex.ª que os mande imprimir para se distribuirem brevemente.
Por esta occasião cumpre-me participar a V. ex.ª e á camara que a commissão de fazenda se acha installada, e nomeou para seu presidente o sr. conde d'Avila, para secretario o sr. Braamcamp, havendo relatores especiaes para cada projecto.
O sr. Presidente: — Vão ler-se, e depois irão a imprimir para se distribuirem.
Vamos entrar na ordem do dia, e tem a palavra o digno par o sr. Luiz Augusto Rebello da Silva.
ORDEM DO DIA
CONTINUAÇÃO DA INTERPELLAÇÃO AO SR. MINISTRO DA GUERRA
O sr. Rebello da Silva: — (Publica-se por extracto, não tendo sido possivel ao orador rever as notas tachygraphicas do seu discurso.) Principiou declarando que pedíra a palavra para cumprir um dever que se impoz, e tomava parte n'este debate para fundamentar o seu voto, tendo, como sempre se preza de o haver feito, o cuidado de desviar de si, em qualquer das reflexões que passava a fazer, a menor insinuação, allusão ou phrase com que possa, por qualquer modo, ir offender presentes ou ausentes, porque as reputaria menos proprias da dignidade da camara e do decoro pessoal. No entanto dizia que confiadamente os dignos pares se podem occupar do assumpto, porque se refere mais a principios do que a uma hypothese particular.
Em referencia ao sr. ministro, que n'aquella occasião estava collocado nos bancos do ministerio, e que mais directamente foi aggredido na questão que se debatia, devia dizer que elle, orador, não tem a respeito de s. ex.ª senão sentimentos de sympathia. Nunca entre ambos houve relações familiares e intimas, mas desde muito tempo elle, orador, ha tido occasião de respeitar as suas qualidades particulares. Nas suas observações, portanto, não havia esquecer-se de que s. ex.ª póde ter errado, porque não é infallivel, e mesmo o orador acredita que errou; mas isso não é defeito, e esse erro na sua opinião procede mais do erro de um affecto do que da propria vontade. Esse affecto, longe de concorrer para incriminar o individuo, salva as suas intenções.
Ha ainda outra rasão pela qual o orador não podia ser severo na apreciação dos actos do sr. ministro. S. ex.ª passou repentinamente da acção da vida particular para a acção da vida publica, sem ter a pratica da gerencia dos negocios publicos, pratica que, na sua opinião, é essencialissima. Não duvida pois que s. ex.ª muitas vezes tenha peccado, e possa ainda peccar, porque lhe faltam aquellas noções que só a experiencia póde suggerir ao homem d'estado.
Começaria por um ponto que desde logo declarava não ser da competencia d'elle, orador, mas que se anima a tratar na camara, pedindo desculpa aos illustres cavalheiros que são officiaes do exercito, da ousadia com que tratava tal assumpto. Reportava-se ás representações que foram dirigidas ao general alludido n'esta discussão, umas comprimentando-o na sua nomeação, outras respondendo a artigos da imprensa, e sendo-lhe dirigidas como uma especie de satisfação; todas ellas assignadas pela officialidade de alguns corpos de artilheria.
Pedia licença á camara, não para fazer uma dissertação de direito publico, o que seria improprio do logar, e sim para apresentar algumas observações que lhe pareciam a proposito.
Todos sabem qual é a elevação das funcções que a força armada exerce no estado, e todos sabem que em todas as nações cultas são mui strictos os vinculos que presidem á acção d'essa força, de modo que ella se não possa empregar senão em defender a independencia do paiz e a tranquillidade publica, mas que nunca ella venha a gravitar nos negocios do estado, nem a pender nos negocios publicos, por meio de insinuações ou por meio de elogios, o que muitas vezes é peior. Pedia venia á camara para dizer que uma felicitação, que n'outras circumstancias se diria a cousa mais innocente, no presente caso o não era, porque se tal exemplo se multiplicasse, felicitando os corpos militares os seus coroneis ou o sr. ministro da guerra, por certas considerações que adduziu, presumia uma situação nada normal. Não se prenda a camara com as denominações; chamem-lhe embora felicitações, elle orador aventurar-se-ia a chamar-lhe demonstrações collectivas (apoiados).
Citaria a ordem do exercito de 26 de julho de 1811. Disseram uns que ella vigora ainda, por não estar revogada; disseram outros que esta revogada, porque no regulamento de um decreto se declara revogada toda a legislação em contrario. Mais se acrescentava, por outra parte que, ainda mesmo não revogada, não vinha para a hypothese. Encontrava n'isto novamente o sophysma, e passava a ler essa parte da ordem do dia, para se conhecer o fundamento que adduzia (leu).
Que significam pois estas manifestações em que se louva o zêlo, a energia e o caracter de um official? Não são se não attestados; são certidões das boas qualidades que tem esse general.
Perguntava portanto: precisa este general d'estes attestados? Precisa a auctoridade do poder executivo que aquelles que têem de obedecer-lhe venham elogiar os seus actos? Parecia a elle, orador, que a unica felicitação que, tanto o sr. ministro da guerra, como o general de quem fallava, devem querer, é o silencio no cumprimento zeloso dos seus deveres (apoiados).
Apresentou-se outra hypothese, a que se refere uma ordem do dia de 1841.
Alguns officiaes, sentindo que tivesse sido desligado o coronel de infanteria n.° 27, publicaram algumas observações em que faziam o elogio das qualidades d'esse official.
Leu parte d'essa ordem do dia e proseguiu:
Aqui não havia tambem senão elogio, mas é que o elogio neste caso é uma censura indirecta. Já se via portanto que a ordem do dia de 1811 não queria que os officiaes inferiores passassem certificados aos seus superiores, porque os julgava contrarios á disciplina. Mas o governo tambem em 1841 entendeu que quaesquer artigos de elogio que podem dar indirectamente censura» deviam ser interdictos, e a repetição do acto severamente punido.
Expondo quaes as leis que reprovam estas manifestações, continuou dizendo ser esse o principio consignado em todos os codigos militares, e julgava, pois, não ser ousadia sua o concluir que mesmo perante a legislação patria estas representações collectivas não são permittidas. Ainda que o fossem, pelo silencio da legislação, o interesse publico ordenava que não sé fizessem.
Observava que n'uma d'essas felicitações, como se lhes chama, havia uma phrase, não tão innocente como se observou (leu).
Aqui se reportou ao sr. general Baldy para mostrar que este ex.mo sr. quando se despedira do commando geral da artilheria, não dissera quasi o mesmo, que na alludida felicitação, mas só usara de expressões de benevolencia para com os seus inferiores. E dissertando sobre a significação da palavra marasmo, expoz que ella n'este caso tinha gravidade.
Pedia, em conclusão d'estas primeiras observações, a s. ex.ª o sr. ministro da guerra que não permitta que se repitam taes demonstrações collectivas, porque elle, orador, tem a certeza de que a sua repetição ha de amargurar no futuro aquelles que hoje espalham a semente, julgando que ha de ser productiva; mas que comtudo ficarão condemnados a colher fructos venenosos.
O orador alludiu a factos que se deram na corveta D. João, expoz o procedimento que n'essa occasião houve, e notou que no mesmo gabinete se apresentassem opiniões tão differentes nos ministerios da marinha e da guerra, como n'aquelle e no presente caso.
Passou depois ao assumpto relativo á concessão da medalha, pedindo primeiro ao sr. ministro da guerra explicações do facto de serem mandadas tirar todas as notas a um official do exercito, sob pretexto de serem politicas.
Fazendo largas considerações sobre a alteração de decretos por meio do portarias, expoz como se seguira o processo para a concessão da medalha ao general que se tratava; e, o intuito e o fim por que tal medalha se creara, demonstrando que na lei estavam tomadas as necessarias providencias para que as concessões de tal distinctivo fossem revestidas das garantias que o legislador lhe quiz dar, adduzindo que não se podia conformar no caso sujeito com o procedimento do sr. ministro da guerra.
Tendo o orador fundamentado o seu voto pediu ao sr. ministro que se lembre de que na arte de governar não ha só o momento de hoje. Muitas vezes se é obrigado pelas recordações partidarias, ou pelos desejos expontaneos, a assentar padrões na respectiva carreira publica, os quaes ficam lembrando sempre, porque mais tarde são invocados.
Por consequencia entendia que todas as demonstrações collectivas militares, quer elogiem, quer censurem, quer venham a respeito dos artigos da imprensa, quer queiram significar o desgosto, descontentamento ou esperança pelo estado de adiantamento em que se acha qualquer arma do exercito, podem ter consequencias gravissimas.
Concluiu rogando a s. ex.ª o á camara, que por uma vez se firme a jurisprudencia de que um decreto rubricado pelo Rei, e referendado por um ou mais ministros, não póde ser alterado ou revogado senão por um diploma da mesma indole e da mesma natureza. Estas portarias modificando, alterando, restringindo ou ampliando, sem attender á disposição da lei, são uma infracção de lei. Tencionava finalmente elle, orador, apresentar uma moção de ordem, porém desejaria primeiro ouvir as observações do sr. presidente do conselho, que já tinha pedido a palavra.
O sr. Silva Cabral: — Sr. presidente, tarde pedi a palavra, e mais tarde ainda vou fazer uso d'ella, em consequencia das justas prescripções regimentaes. Declaro muito solemnemente á camara que vou fallar sem a menor pretenção de lhe apresentar idéas novas. E que novidades poderia eu apresentar a uma assembléa tão eminente em experiencia e illustração?!
Mas, sr. presidente, os deveres que me impõe o mandato politico que aqui desempenho, inhibem-me de ficar silencioso e de calar minha humilde opinião n'uma conjuctura tão grave, em que com apparato verdadeiramente bellicoso, e com preparo tão estudado como reflectido, acaba de verificar-se o objecto da ameaça, — uma censura ao ministerio, ferindo particularmente um dos membros de um dos poderes politicos da carta, o sr. ministro da guerra.
Sr. presidente, se não possuo o cabedal de luzes bastante para contrabalançar a vastidão das idéas com que oradores tão discretos como illustrados têem pertendido inculcar de boa a sua causa, tenho por mim a minha consciencia que,
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fortalecida pela força irresistivel da verdade, me convida a defender os sacrosantos principios da justiça, e a propugnar pela sua efficacia; obrigação esta que me não é particular, mas commum a quem não quizer esquecer, ou menoscabar os deveres e direitos de cidadão, é que em mais subido grau cabe a um representante do paiz.
Sr. presidente, eu sinto, e sinto muito sinceramente, ver atreladas a um phantasma, intelligencias tão robustas. Lamento que caracteres tão eminentes, em quem abunda a luz da critica, prima o patriotismo, e predomina até o sentimento do melhor, sejam levados por uma obsecação inexplicavel a perverter a letra e o espirito das leis, querendo inculcar e fazer passar por verdade o sophisma e. a argúcia. Sr. presidente, o triumpho glorioso da verdade, não se póde conseguir por taes meios, de uma maneira honrosa para o individuo, e util para a sociedade. Combate-se o frio com o calor, as trevas com a luz, mas Deus não quer que a injustiça se remedeie e vingue com outra injustiça. " Se a questão fosse meramente pessoal, declaro formalmente que não entraria n'ella, porque tenho por idéa fixa, por systema assentado, que o fórum da rasão não é circo de gladiadores, nem o parlamento logar apropriado para n'elle se erigir a estatua mutilada de Pasquino.
Mas, sr. presidente, a questão é de liberdade, a questão é de justiça, a questão direi mais, sem perigo nem risco de pleonasmo, é de decóro governamental; e mal iria á sociedade, em que a pretexto de uma popularidade ephemera se calassem em todos, os corações os sentimentos do dever, para deixar triumphar contra a verdade o obscurantismo de uma opinião, ou a argumentação sophistica, adrede preparada pára illaquear a credulidade publica.
Sr. presidente, é-me desagradavel e muito desagradavel ter de divergir da opinião de caracteres a quem não posso deixar de tributar a homenagem da minha admiração; mas sr. presidente, amicus Sócrates, amicús Plato, sed magis arnica veritas. O alicerce da verdade é a evidencia, sem esta não existe base para a moral, nem tão pouco para a historia, e para as sciencias exactas; mas quando um objecto, na sua essencia simples, se torna complexo, pelos episodios e accessorios de que foi revestido, é de absoluta necessidade descer á analyse para estabelecer a verdadeira relação das cousas. Eis-aqui, sr. presidente, o objecto unico das minhas lucubrações, e o principal assumpto das curtas, curtíssimas reflexões que vou apresentar á camara, de cuja benevolencia se espero muito, muito mais espero da sua justiça e illustração.
Sr. presidente, os tremendos, os horrorosos capitulos de accusação apresentados contra o sr. ministro da guerra reduzem-se aos seguintes. O ministro da guerra é réu de lesa disciplina, porque vendo e sabendo que certos grupos dos dignos officiaes de artilheria dirigiram ao seu commandante geral differentes representações, e devendo ser o Argos vigilante d'essa disciplina, e devendo saber quaes são as leis que a regulam, não só não puniu, mas nem ao menos censurou aquelle acto, tornando-se por isso cumplice na infracção da lei. O ministro da guerra, continua o libello no segundo artigo — é réu de lesa lei, pela sua inobservancia, ou abuso do poder, segundo os principios da carta constitucional, por isso que determinando o decreto de 2 de outubro a maneira porque se devia conceder a medalha militar creada pelo mesmo decreto, o ministro da guerra infringiu as disposições d'elle e o respectivo regulamento de 22 de agosto de 1864, tomando por sua propria auctoridade a decisão da concessão de medalha de oiro, não obstante o supremo conselho de justiça militar ter limitado a sua consulta á meda lha de prata, que tem a significação de bons serviços e exemplar comportamento. O ministro da guerra, continua ainda a accusação no seu terceiro artigo — é réu de leso pundonor e brio militar, por isso mesmo que, devendo a honra considerar-se, como dizem as leis militares, o instituto da profissão militar, e devendo por consequencia, na ordem jerarchica os superiores serem límpido espelhos de virtude para com os inferiores, se conservou, e continua a conservar no commando da artilheria o general a que se tem alludido, apesar das graves imputações que a opinião publica lhe tem feito, mostrando assim que esse pundonor e brios, que formam o sentimento de brio da vida militar, não tem o menor apreço para o illustre ministro.
Taes são, sr. presidente, as accusações que se fazem ao sr. ministro. Parece-me que as tenho expresso com tanta exactidão como lealdade, sem omittir nenhuma das circumstancias aggravantes com que se quiz afectar o quadro dos malefícios imputados ao illustre ministro. Mas este quadro exprimirá os verdadeiros caracteres dos factos em relação á sua significação politica, justa e moral, ou antes, sr. presidente, estará elle em contradicção manifesta com a constituição, com as leis e até com os principios da equidade natural, que, como disse o principe dos oradores, é a base de toda a justiça? Poderão, sr. presidente, as galas do estylo, o brilhantismo de uma locução florida, a magia de uma eloquencia elevada, ter o prestigio e exercer influencia no senado portuguez para confundir Babylonia com Sião, e desprezar os principios inconcussos das leis clarissimas que regulam o assumpto, trocando as suas disposições claras e terminantes por estudados romances, como aquelles que sobre a materia aqui se tem apresentado? Estamos nós n'uma sociedade constituida, ou no estado natural em que não ha regras certas, determinadas e fixas, tanto para o exercicio das attribuições dos poderes politicos, como para o exercicio dos direitos dos cidadãos? Serão estas regras, estas leis, a que nós devemos recorrer? Não se deverá, sr. presidente, quando se trata de objectos tão serios que tocam com os poderes publicos, ter diante dos olhos a sentença de Horácio que diz:
Pocul omnis este Clamor et ira...
para que não deixemos de maneira alguma influir a nossa consciencia com rasões estranhas ao objecto?
Sr. presidente, quando Aristoteles disse, com profunda sabedoria, que o homem sem justiça é o mais terrivel dos animaes, apontou para o direito, que como o sol deve alumiar todo o mundo, apontou para o direito, que é o fim da rasão humana, apontou para o direito, porque é n'elle que a sociedade ou nações devem estabelecer a sua força, e pôr toda a sua esperança, apontou para o direito que segundo Platão é o justo na sua unidade. A ultima ratio legum não tem por causa a paixão, os accidentes e a variedade de opiniões, mas a verdade pura e simples, sem alliagem ou mistura de corpos estranhos, que a deturpem ou desvirtuem. E por estes principios, por este axioma da rasão, approvado pela philosophia geral e pela philosophia do direito que devem aferir-se as faltas imputadas ao sr. ministro da guerra.
Sr. presidente, o sr. ministro da guerra é accusado do crime de lesa disciplina; e porquê? Repetirei á camara as bases em que assenta esta accusação. O sr. ministro é accusado, porque não censurou essas representações que fizeram os officiaes de artilheria ao seu commandante. Grande crime foi este; horrendo crime que, se não poz, podia pôr em grande perigo a sociedade! O que vale porém é que tudo isto é nada, tem o mesmo valor que a tempestade em um copo de agua. No entanto, sr. presidente, para apparentar de solidas estas accusações, revolveu-se toda a legislação militar, e porque se encontrou a ordem do dia de 26 de junho de 1811 em que o general Beresford havia prohibido os certificados, por isso que muitas vezes ou sempre esses certificados eram arrancados á benevolencia e bondade do coração dos officiaes, proclamou-se jubilosamente o inveni.
A verdadeira significação d'esta ordem do dia não justifica tanto jubilo, e bastava ver que se tratava de certificados para se reconhecer que tal documento não tinha analogia alguma com o de que se trata. Como se quer pois confundir 'os termos protestações de amisade ou felicitações com certificados? Será necessario, sr. presidente, fazer-se um diccionario novo da nossa lingua, para podermos achar analogia entre estes termos.
Mas, sr. presidente, entremos n'outro argumento: porque rasão prohibiu Beresford essas felicitações, e em que circumstancias o fez?
O general Beresford, munido de um poder discricionario, podia ir, como foi muitas vezes, contra as leis do paiz; e esta ordem do dia a que se allude, esta effectivamente em contradicção com os proprios artigos de guerra, os quaes dizem, em diversas passagens que = os militares devem observar todas as regras de cordura e benevolencia, que devem ser probos, e que finalmente devem observar todos os preceitos da virtude. Ora, o que diz esta ordem do dia? Diz aos officiaes que devem desprezar os seus sentimentos naturaes de bondade, e que quando um desgraçado lhes for pedir um attestado para requerer ou fazer valer a sua justiça, esse attestado lhe seja negado, e o pretendente desprezado. Eis-aqui a verdadeira significação, a significação legal d'este documento. Emquanto ás circumstancias em que elle se publicou, ellas são bem manifestas. Estava o paiz soffrendo uma viva e sanguinolenta guerra, que sustentava com uma potencia que então tinha invadido quasi todos os reinos da Europa; a nação achava-se, por assim dizer, toda em armas, e por isso não admira o era mesmo desculpavel, que se publicasse esta ordem do dia.
Mas, sr. presidente, depois de cincoenta e tantos annos, quando o paiz se acha em completo socego, querer fazer valer um documento d'esta ordem, é contrariar os principios de liberdade e justiça. Parece-me pois que esta ordem do dia não póde ser invocada para sustentar uma accusação ou censura, como lhe queiram chamar, contra um membro do poder executivo. Não é, sr. presidente, com factos duvidosos e previdências obscuras, que se póde' formular uma accusação contra um individuo qualquer e muito menos contra um membro de um poder da carta. Digo pois, que esta ordem do dia hão é mais do que uma providencia transitória e que não tem, nem mesmo póde ter, o caracter de lei.
Não quero com isto dizer que as ordens do dia não devam ser observadas; o que desejo fazer ver é — que sendo aquella uma providencia transitória, esta sujeita a differenças e mudanças, segundo os tempos e circumstancias, que sendo hoje differentes não a justificam.
N'aquelle tempo, em que o paiz se achava todo em armas, não se parava n'estas providencias, julgavam-se até necessarias as varadas, as pranchadas, as difamações e os fuzilamentos, e todos os poderes estavam na mão do commandante em chefe do exercito; porém depois de voltarmos ao remanso da paz, depois de se estabelecer o estado normal da sociedade, que necessidade ha de nos soccorrermos a similhante documento, e de sustentarmos a sua auctoridade para o caso presente? Não póde ser, sr. presidente; não se lhe póde sustentar a sua auctoridade com relação ao objecto em questão, porque todas as leis relativas á disciplina militar foram visivelmente substituidas pelo regulamento disciplinar, que é a lei vigente, segundo a qual devemos apreciar as chamadas representações dos officiaes de artilheria. E porque, sr. presidente? Alludiu-se ha pouco a esse facto, mas alludiu-se de uma maneira pouco exacta, porque é muito expressa a lei de 14 de julho de 1856. A lei de 14 de julho de 1856 não traz unicamente o artigo — fica revogada toda, a legislação em contrario — traz mais alguma cousa que tem uma ligação intima com o objecto, e que faz que no regulamento disciplinar se considerassem comprehendidas todas as disposições relativamente á disciplina; porque diz no artigo 2.°:
«É o governo auctorisado a pôr em execução o regulamento provisorio disciplinar para o exercito em tempo de paz, apresentado pelo mesmo governo, á camara dos deputados, em proposta de lei de 28 de abril de 1855, podendo fazer n'elle as alterações que entender convenientes, não só em relação ao exercito do continente do reino e ilhas adjacentes, mas incluindo todas as prescripções necessarias quanto ás provincias ultramarinas».
Depois d'isto é que vem — fica revogada toda a legislação em contrario.
Pregunto agora, será o regulamento de que trata, em virtude d'esta disposição da lei, uma verdadeira lei? Não se póde duvidar; porque o poder legislativo delegou no governo a attribuição legislativa, em relação a este regulamento, e com a unica obrigação de dar conta ás côrtes na sessão de 1857. Não sei se deu ou não; mas a verdade é que, estabelecido assim o codigo disciplinar, em virtude do artigo da lei, e tendo-se dito, como se diz — fica revogada toda a legislação em contrario, vir procurar uma ordem do dia de 1811 é um contrasenso que a hermeneutica juridica altamente reprova.
Sr. presidente, a lei actual não reconhece nem refere certificados, refere reclamações, o debaixo d'este ponto de vista é que se deve considerar a questão. Não podemos entender a nosso modo, e por meio de divagações, embora espirituosas, mas que não são fundadas nas regras hermenêuticas, que aquella palavra significa certificados. A lei não fallou em certificados, fallou em reclamações, e em todo o caso, quando mesmo houvesse duvida, visto que sómente com a lei clara é que se póde fundamentar accusação a um individuo, rasão que procede com mais força em relação a um membro do governo, não se devia ir procurar naquella ordem do dia motivo para fundamentar uma accusação da ordem d'aquella que se faz ao sr. ministro da guerra.
Ora, sr. presidente, disse-se por esta occasião que a ordem do dia não se deve considerar revogada, porque se não fazia mensão d'ella. E para que? Pois as leis não se hão de entender nos proprios termos? As leis, segundo a regra de hermeneutica, que ninguem que tenha compulsado estas materias deve desconhecer, devem sempre entender-se no seu obvio e natural sentido, mandando-se até que, nas positivas, se prefira o sentido vulgar, quando este não seja opposto ao espirito da lei. Isto não são regras arbitrarias, são regras de hermeneutica estabelecidas em nossas leis, e emquanto não quizerem revoltar-se contra estas, é necessario que as tenhamos, como pharol para a intelligencia das leis, procurando, segundo ellas, avalia-las no seu espirito, interpretando-as em bem da sociedade.
Disse-se que a ordem do dia, considerando-a como lei, não tinha sido revogada, e que não havendo revogação expressa, se devia considerar em seu vigor.
Sr. presidente, já expuz a este respeito a minha opinião, e não corro risco de ser contrariado, porque mesmo jurisconsultos que aqui estão, escreveram a respeito do conceito que se deve formar das ordens do dia, a opinião que acabo de emittir. Independentemente d'isso, digo: é sabido que as leis não sómente deixam de existir porque se revogam ou derrogam, ha outros modos porque ellas desapparecem do cathalogo das leis. O desuso é exactamente um d'esses motivos para ellas desapparecerem, quando o uso contrario, verdadeiramente estabelecido, apresenta uma disposição absolutamente opposta. Sr. presidente, é a esse facto que, no melhor sentido, e com o melhor fundamento, alludiram dois dos dignos pares que fallaram sobre a ordem do dia a que me refiro, fallo do digno par o illustre general Baldy, e do digno par o sr. conde de Mello. Quando ss. ex.as com a sua experiencia, praticando n'aquella arma ou no exercito, um no supremo conselho de justiça militar, outro no commando da mesma arma, nos apresentaram aqui o testemunho de que nunca, no seu tempo, se tinham dado ou prohibido aquelles certificados, quando nós vemos este testemunho, que vem em prova do que acabei de dizer, que aquella ordem do dia tinha absolutamente caducado, mesmo na opinião do exercito, não é para desprezar este testemunho.
Quanto á regra da lei de 18 de agosto de 1769 que se invocou para dizer-nos que o desuso não se achava legitimado por não haverem passado os cem annos, e mais requisitos mencionados na mesma lei, é facil de responder, que não estamos na hypothese a que ella se refere, mas em face de uma ordem do dia que não é mais que uma providencia transitória de policia ou economia militar, que o ministro da guerra ou commandante em chefe póde mudar, segundo as conveniencias do exercito, e nunca uma lei; porque seria offender todos os principios de uma organisação social, se porventura considerássemos lei uma ordem do dia. Mas, sr. presidente, procuremos a questão na sua origem legal, vamos examina-la em face mesmo do regulamento disciplinar, vejamos o que significa este regulamento, e se porventura podemos applicar as suas providencias á especie de que se trata. Ninguem nega que as reclamações collectivos são absolutamente prohibidas; esta disposição não póde offerecer duvida alguma, e porque? Porque ninguem deixa de entender no sentido litteral' e obvio as palavras: — as reclamações são absolutamente prohibidas. Mas sendo assim, que significação deu a lei n'este sentido á palavra reclamações? Só depois de entrarmos na verdadeira explicação, na explicação legal, juridica, é que podemos comparar o facto, e ver se elle esta na sua sancção, porque se esta, o sr. ministro merece censura, mas demonstrando que não esta, é injusta a accusação que lhe fazem.
Ora, sr. presidente, o que vou agora dizer não é para o parlamento, porque não o ignora; todos os diccionarios desde o primeiro até ao ultimo sempre explicaram do mesmo modo o que é reclamação. Não ha diccionario juridico desde Vicate até Pereira e Sousa, que é conhecido de todos; não ha diccionario nenhum da lingua portugueza que não explique o que são reclamações: — Reclamação não é mais do que a prosecução de um direito por meio de acção ou protesto para evitar a proscripção ou esquecimento d'esse
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direito. Quer dizer a reclamação é, em todo o caso, pedir justiça.
Ora, não precisavamos, nem precisa a camara de saír do proprio regulamento disciplinar em que a palavra reclamação não é empregada em outro sentido, para conhecer que não ha analogia entre as reclamações que a lei condemna, e as felicitações que são objecto da accusação ao sr. ministro.
E se é sabido que os textos de uma lei se devem entender uns pelos outros, se é sabido que as palavras antecedentes e subsequentes fixam o verdadeiro sentido dos termos; desde que se reconhecer, como é dever, a força d'esta regra, ver-se-ha que no proprio regulamento existem todos os elementos para se avaliar o que são reclamações, ao que ellas tendem, e o objecto sobre que devem versar. Desde o momento em que pelo proprio regulamento se conhecer esse principio, o principio contrario contraria manifestamente a lei. Ora vejamos o que diz o regulamento. No § 5.° do capitulo 1.°, encontra-se a disposição seguinte:
«Não é permittida reclamação ou queixa de inferior para com superior senão depois de cumprir as ordens recebidas. Se porém, independentemente da reclamação ou queixa, o inferior entender que por conveniencia do serviço, convem fazer alguma observação ser-lhe-ha esta permittida, obtendo para isso previa licença do superior se estiver presente.»
Suppõe ordens recebidas, e que estas ordens affectavam a pessoa á qual ellas tinham sido dadas, e por consequencia lhe deram o direito a reclamação ou queixa. Não basta isto, sr. presidente, os artigos 54.°, 55.° e 56.° continuam no mesmo sentido, e o artigo 51.° com igual phrase não póde ter differente interpretação, sem dar ás mesmas palavras da lei significação diversa, o que seria absurdo.
Ora, sr. presidente, depois de uma explicação tão clara, depois de se dizer de mais a mais no artigo 52.°, quaes são os objectos sobre que podem ter logar as reclamações individuaes, de uma maneira tão explicita que não deixa duvida sobre o espirito e significação da palavra reclamação, a consequencia é que não póde de maneira alguma entrar em duvida a significação d'esta palavra.
Mas, sr. presidente, não é sómente isto, para que esquecer a disposição da carta constitucional? A carta constitucional dá tambem a significação da palavra reclamação, fazendo-a sinonima de requerimentos ou queixas. Abramos a carta constitucional, no artigo 145.°, § 28.°, e ahi se diz igualmente da maneira mais explicita, que todo o cidadão tem direito de dirigir reclamações, ou requerimentos, ou queixas ao poder legislativo ou executivo.
Ora aqui tem, sr. presidente, como eu acho sem rasão estar a insistir sobre a duvida da significação da palavra reclamação, tornando-a synonyma de felicitação. Aqui esta, sr. presidente, a rasão fundamental tirada não só do sentido litteral e obvio das palavras, mas do espirito do proprio regulamento, e da carta constitucional; e este o motivo porque eu assevero que não ha a menor analogia entre o facto das felicitações e as reclamações que estas leis prohibem.
Mas, sr. presidente, se tal é a intelligencia da lei, passemos a considerar o facto, e ver se elle esta comprehendido ou não na sua disposição. Chamem-lhe protestações, chamem-lhe felicitações, chamem-lhe expressões de sentimento ou de sympathia, como quizerem, a verdade é que naquelles documentos ha felicitações de differentes maneiras, ou papeis de differente ordem: uns felicitam pelo seu despacho para general de brigada o individuo a que se tem alludido, outros felicitam-o por ser nomeado commandante geral da artilheria, e uma só vae mais adiante porque o felicita tambem pelo facto da sua eleição para deputado, e apresenta as esperanças que têem os signatarios de que elle vá promover o adiantamento da arma de artilheria, em harmonia com o progresso da epocha, confiando nas suas luzes e energia.
Dividiram-se os differentes pensamentos que têem aquellas felicitações, e ainda mais entendeu-se que a preconisação de que ali se falla, referia-se á pasta da guerra, quando unicamente se dirigiam ao eleito do povo para advogar o desenvolvimento do corpo de artilheria, e a sua prosperidade, na camara electiva.
Ora, veja V. ex.ª a differença de uma e outra cousa, e como o espirito de sophisma chega a inverter as idéas, destacando-as umas das outras.
O sr. S. J. de Carvalho: — Peço a palavra sobre a ordem.
O Orador: — Sr. presidente, terão estes documentos alguma relação com as reclamações, segundo as leis as definem no citado regulamento e artigo da carta constitucional? De certo que não, sr. presidente, porque n'este caso não se reclama contra injustiça, nem se pede justiça; o que se diz unicamente é que felicitam aquelle general pela sua elevação. Ora isto de certo não tem nada com direitos offendidos ou a reclamar.
O que elles esperam não é individual, o que elles esperam, com relação á arma de artilheria, é a satisfação do desejo commum do exercito, é a sua prosperidade e adiantamento.
E é com esta idéa de progresso, com esta tendencia que temos sempre para o melhor, e para o desenvolvimento dos corpos a que pertencem, que elles pedem ao Seu commandante que ponha em pratica toda a sua energia, talento e qualidades. E será isto crime? Ninguem, com fundamento legal o poderá asseverar.
Mas se isto não é crime, estará a irregularidade que accusam nas declarações feitas para destruir os boatos da imprensa? E que boatos? Os boatos que todos sabemos, porque todos devem ter lido e saber que se disse que a officialidade de artilheria estava disposta a fazer uma demonstração pacifica para patentear a repugnancia com que via no commando geral da arma o general que diziam carregado de graves imputações.
Ora, dados estes boatos, teriam os officiaes de artilheria o direito de reclamarem contra elles?...
O sr. Marquez de Vallada: — Peço a palavra.
O Orador: — Teriam algum obstaculo nas leis disciplinares, ou para protestarem contra similhantes boatos, ou para fazerem essa declaração pela imprensa? De certo que não. E a rasão é, porque sendo essencialmente obrigados a prestar obediencia ao seu commandante, e vendo que se propalava a idéa de que elles contrariavam esta regra de disciplina e se queria fazer com que se acreditasse que elles desconheciam a auctoridade suprema que o tinha nomeado, elles quizeram assim mostrar que eram essencialmente obedientes.
Sr. presidente, para se avaliar esta questão é preciso ter sempre em vista a ponderação dos poderes, é preciso reconhecermos e reflectirmos que estamos n'um governo mixto, aonde a divisão e a harmonia dos poderes é a base fundamental do systema.
Pelo artigo 75.°, § 5.°, da carta constitucional, compete ao poder executivo, note-se bem, nomear os commandantes das forças de terra e de mar, e demitti-los quando o bem do estado assim o pedir. Nomeado o general alludido para o commando geral de artilheria, qual era a obrigação dos officiaes? Prestar-lhe obediencia, e não só obediencia, mas consideração e respeito, porque são estes os principios fundamentaes da disciplina militar; mas os principios fundamentaes que estão não só estabelecidos no n.° 6.° dos artigos de guerra, mas até no proprio regulamento disciplinar, que não é mais do que o desenvolvimento d'essa mesma materia.
Diz elle a este respeito: capitulo I, n.° 3.
«A subordinação constitue a essencia do serviço militar. A obediencia dos inferiores para com os superiores fórma a base da subordinação. N.° 4. Todo o militar é obrigado a obedecer promptamente ás ordens dos seus superiores, concernentes ao serviço, executando-as literalmente sem a minima hesitação ou replica.
Mas, será sómente isto? Muito mais do que isto, sr. presidente, o n.° 14 diz: «Alem da subordinação no que toca ao serviço militar, os superiores tem direito á consideração e respeito dos inferiores em toda a situação.
Aqui se vê pois que os officiaes, nomeado o seu commandante geral, quem quer que fosse, em virtude do exercicio do poder soberano, não tinham só de prestar-lhe obediencia, tinham de prestar-lhe consideração e respeito; e consideração e respeito em qualquer situação que elle estivesse, mesmo no que não fosse tocante ao serviço militar, porque assim o diz o n.° 14 do mesmo regulamento.
Ora, sendo isto assim, sr. presidente, obrariam os officiaes de artilheria em harmonia com esta disposição e com o proprio artigo da guerra? Que fizeram elles naquellas representações, visto que "lhe querem dar este nome? Não foi senão protestar-lhe obediencia, e é o que mandam os artigos de guerra, não foram senão prestar homenagem e consideração, diz o regulamento disciplinar, e por consequencia estão no espirito das disposições da lei. E se não podiam ser censurados, visto que se conformavam com a lei, não ha duvida que o motivo que se tira d'aqui para censurar o sr. ministro, é perfeitamente fóra da hypothese, é perfeitamente fóra da lei, porque aquelles militares tinham procedido em conformidade com ella. Não foram reclamar, não iam reclamar cousa alguma, iam unicamente satisfazer a um dever de cortezia, de respeito, de homenagem, que lhes prescrevia o regulamento disciplinar (apoiados).
Quando pois, sr. presidente, n'este ponto se quer fazer uma censura ao sr. ministro, como réu de lesa disciplina, fere-se não sómente o espirito da lei, mas até a sua letra, porque aqui não ha a menor infracção de nenhuma das prescripções disciplinares, nem tão pouco dos artigos de guerra. Conhece-se isto perfeitamente, e por isso é que appellei para a ordem do dia, a que ha pouco me referi, que não tem, como demonstrei, a menor analogia com o objecto em questão.
Sr. presidente, parece-me ter demonstrado o nenhum fundamento do primeiro ponto de accusação; parece-me ter demonstrado que as reclamações prohibidas no regulamento, que é o ponto a que me propuz, não são de maneira nenhuma as representações ou felicitações de que se faz menção, porque estas não são senão actos particulares, que não têem absolutamente nada com o serviço militar. Creio tambem ter demonstrado que a ordem do dia não póde ser chamada para esta questão, e que pelas proprias disposições expressas do regulamento disciplinar não devem ser censurados os officiaes de 'artilheria, e que elles só obraram no rigor da letra d'aquelle regulamento, fazendo as demonstrações de sympathia ao seu commandante; e sendo assim, o sendo de não terem sido reprehendidos que se deduzia a culpa com que se queria censurar o illustre ministro da guerra, esse crime ou essa culpa desappareceu, porque a materia d'ella não só não é criminal, mas esta em conformidade com a lei.
Vamos portanto ao 2.° ponto.
Sr. presidente, eu não nego, antes confirmo, que o decreto de 2 de outubro de 1863 estabeleceu no artigo 6.°, depois de ter creado as medalhas, a que se refere, que um regulamento estabeleceria o modo pelo qual essas medalhas haviam de ser conferidas, e bem assim o modo ou os casos em que podiam ser concedidas. Não nego, antes confirmo \ igualmente, que em conformidade com este artigo se publicou primeiramente o regulamento de 26 de janeiro de 1864, e que depois este regulamento foi substituido pelo outro de 22 de agosto do mesmo anno, com a differença, alem de outros pontos importantes, de que no primeiro regulamento, tratando-se no artigo 2.° de dar a commissão ao supremo conselho de justiça militar, para consultar sobre o direito á medalha, segundo as regras ali estabelecidas, se acrescentava tambem que o supremo conselho de justiça militar era o unico e exclusivamente competente para a classificação das medalhas; emquanto que no artigo 2.° do regulamento de 22 de agosto, conhecendo-se melhor, com todo o fundamento, a natureza do poder executivo com relação a este objecto, e querendo-se por assim dizer condemnar o erro palmar que se tinha commettido no primeiro decreto, dando áquelle conselho attribuições que estavam em contradicção com os principios fundamentaes do nosso systema; no 2.º decreto, digo, no mesmo 2.° artigo, se estabeleceu a consulta, mas unicamente a consulta simples.
Eis-aqui esta a differença, differença que logo justificarei e demonstrarei á vista de todos; porque nem mesmo na infancia da sciencia administrativa se tinha commettido um erro como este do primeiro regulamento. Erro, comtudo, que tenho aqui visto sustentar, o realmente, não sei como se possa no parlamento portuguez, em 1860, desconhecer o que foi tratado com a maior proficiencia em 1845, por occasião da 'discussão da lei do conselho d'estado de 3 de maio de 1845, e que depois foi continuado numa discussão séria perante uma commissão, aonde estavam homens tão eminentes como o sr. cardeal patriarcha Guilherme, Rodrigo da Fonseca Magalhães, Ottolini, Felix Pereira de Magalhães, e não nomearei agora outros que ali igualmente se achavam.
Sr. presidente, ha uma perfeita equivocação no modo de avaliar esta questão, e é preciso portanto que se entre mais de espaço na materia, para se conhecer qual é a verdadeira natureza do poder executivo com relação a este assumpto, e se elle porventura tinha o direito, que aqui já se negou, de poder fazer aquelle decreto. O que significa aquelle decreto? Até onde se póde estender a acção do governo? Como será applicavel o que, o orador que acabou de fallar, expendeu com a auctoridade da doutrina de Borges Carneiro? O digno par verá a condemnação do que affirmou com esta auctoridade, no proprio auctor que leu.
Sr. presidente, o poder executivo tem attribuições as quaes nenhum poder ordinario lhe póde coarctar. Póde o poder constituinte modifica-las, mas o poder legislativo ordinario não tem nada com ellas. E preciso que se cumpram na sua letra, e o poder executivo, obrando dentro da sua esphera, não tem que dar conta a póder algum, salvo o caso de abuso, sujeito ao principio da responsabilidade.
O artigo 75.°, § 11.°...
O sr. Ferrão: — Peço a palavra.
O Orador: — Peço tambem a palavra.
O sr. Aguiar: — Tambem peço a palavra. I O sr. Rebello da Silva: — Peço a palavra sobre a materia.
O Orador (proseguindo): — O artigo 75.° e o § 11.° diz: «E attribuição do poder executivo conceder titulos, honras, ordens militares e distincções em recompensas de serviços feitos ao estado.» Esta attribuição seria illusoria se porventura estivesse separada ou se podesse separar da idéa da instituição ou creação. Mas pela lei e pela carta se demonstra á evidencia que o podér executivo não só póde conceder estas distincções, mas até crealas, porque n'aquella palavra se envolve uma e outra idéa, o que vou demonstrar pela mesma carta de uma maneira clarissima.
O citado artigo 75.°, § 11.0, diz: «Conceder titulos, honras, etc...»
Até aqui não temos a menor coarctada ao exercicio da attribuição do poder executivo. Quando é que estabelece essa coarctada? Nas palavras seguintes: «Dependendo as mercês pecuniarias da approvação das côrtes, quando não estiverem já designadas ou taxadas por lei. »
Só quando se tratar das mercês pecuniarias, é então que, em consequencia, do grande principio de que o parlamento é o fiscal da bolsa do povo, não se póde de maneira nenhuma deixar de ir buscar a sancção do parlamento, e isto é tanto assim, que quando a carta, com relação ao poder executivo, quer coarctar algumas attribuições, designa-as expressamente: tal é o que se acha no § 10.°: «Conceder cartas de naturalisação na fórma da lei. »
Aqui é que não póde deixar de se seguir o que esta determinado na lei, mas fóra d'este caso, e tem todas as outras attribuições, esta o poder executivo na plenitude das suas funcções.
Ainda ha mais disposições que esclarecem o objecto. São os §§ 8.° e 14.° do mesmo artigo com relação aos tratados e convenções. Ao poder executivo competia até ao acto addicional esta attribuição, visto que não era limitada por lei em toda a sua amplidão, menos se se tratasse de alienação de territorio, e foi preciso que viesse o acto addicional, no artigo 10.°; para coarctar esta attribuição, que não podia ser coarctada senão pelo poder constituinte. Assim coarctou, não sómente o que estava determinado no § 8.°; mas igualmente o que estava no § 14.°, que tinha relação com as convenções ecclesiasticas, bulas, etc... Vemos portanto, que é da primeira evidencia que o poder executivo concedendo honras, distincções e titulos, esta exactamente na plenitude dos seus direitos, e sómente quando se tratar de mercês pecuniarias é que entra a prohibição, pelos principios que indiquei. Disse-se aqui = que o poder executivo não tinha esse poder =, e até se negou a auctoridade ao decreto, e foi-se para isso buscar, saíndo -da propria letra do artigo 75.° § 11.0 da carta, a disposição do artigo 145.° §§ 12.° e 26.° da mesma carta.
Sr. presidente, não é necessario mais para responder ao digno par que fallou sobre esta materia do que dizer que aquelles dois §§ estão debaixo da epigraphe dos direitos civis, individuaes e politicos, e não têem absolutamente relação com as attribuições dos poderes, politicos, que giram em esphera differente. Emquanto áquelles effectivamente ninguem póde ir requerer qualquer distincção a que não te-
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nha direito na fórma da lei, pois se o direito não vem senão da lei, é claro que sómente n'ella póde fundamentar-se.
N'este ponto, sr. presidente, parece-me que tenho dito bastante para convencer de que o decreto esta perfeitamente no caminho constitucional e legal; mas a accusação não versa sómente sobre isto. A accusação ou censura (eu tomo promiscuamente estas palavras n'um ou n'outro caso, segundo o objecto que se trata) versa tambem em que o illustre ministro da guerra, tendo estabelecido regras naquelle regulamento para se conceder a medalha, se apartou d’essas regras, quanto á medalha de oiro, deixando de consultar o supremo conselho de justiça militar, ou para fallar mais verdadeiramente, segundo os factos, porque tendo o 'supremo conselho de justiça militar consultado sómente a medalha de prata, que significa bons serviços e exemplar comportamento, o illustre ministro da guerra, por sua auctoridade propria, conferiu a medalha de oiro. E exactamente isto que aconteceu; e vem por consequencia a questão se a consulta do supremo conselho de justiça militar tem caracter definitivo e obrigatorio, ou sómente consultivo, quer dizer, se o sr. ministro da guerra devia sujeitar-se á consulta, ou se, pelo contrario, ao poder executivo compete a ultima decisão do negocio. Se se tivesse examinado bem esse tratado a que se referiu o digno par que me precedeu, esse tratado do illustre e liberal cidadão, Borges Carneiro; se se tivesse visto a significação que tinham as consultas dos antigos tribunaes, excepto depois de um certo tempo em diante, pela lei de 18 de agosto de 1769, relativamente aos assentos da casa da supplicação; se esse auctor, repito, fosse devidamente consultado, ver-se-ía que nunca as consultas dos tribunaes foram consideradas senão como conselhos e informações, ficando sempre ao poder supremo o direito de decidir o negocio como entendesse. Ora, sr. presidente, quando isto succedia em tempos antigos (e que eu aponto apenas como ponto historico) com muita mais rasão deve succeder hoje com o systema constitucional.
A administração de qualquer paiz, sr. presidente, não é senão o exercicio do poder governamental, e este poder pertence unicamente ao rei que é o chefe do estado. Quando mr. Lamarquiere commentou esta disposição da carta constitucional franceza, que tinha uma disposição analoga á nossa, diz que o rei, com a ajuda do conselho de estado e dos ministros da corôa, póde decidir directamente todas as questões da alta administração. N'este caso esta o objecto de que se trata; mas para que não fique a menor duvida sobre este assumpto, eu vou ler á camara varios artigos tirados dos mais illustrados auctores que teem escripto sobre administração, os quaes são de accordo com tudo que tenho expendido; e demonstram bem a quem compete a ultima decisão no caso presente. Eis o que diz mr. Foucart: « A theoria do direito administrativo, sobre esta materia nasce dos grandes principios ácerca da organisação e distincção dos poderes.
«Dissemos que o poder executivo é responsavel, d'onde se segue que elle deve ser livre na sua acção, porque na ordem politica como na ordem moral sem liberdade não ha responsabilidade.
«O poder executivo não teria liberdade e por consequencia não poderia ser responsavel se quando se levantam duvidas a respeito dos seus actos... não lhe pertencesse resolver as difficuldades... Assim o poder executivo é livre e omnipotente na sua esphera da acção, salva a responsabilidade pelos seus actos.»
Aqui temos por consequencia estabelecido clara e definidamente o principio de que ao poder executivo compete, em ultima instancia, não só a resolução das duvidas, mas a decisão de todos os negocios que estão na orbita da sua esphera. A vista d'isto, pergunto eu: se porventura o sr. ministro da guerra commetteu alguma infracção da lei? O poder executivo podia resolver este negocio só por si; podia estabelecer a medalha como quizesse, estava no exercicio do seu direito modificando o primeiro decreto, bem como o estava concedendo a medalha. Se acaso se demonstrasse que esta medalha de oiro não tinha sido concedida segundo os termos prescriptos do decreto que a instituiu, havia rasão de queixa; existia a infracção de um principio justo, e por isso não podia esse facto deixar de acarretar grande responsabilidade ao ministro; porém não succedeu nada d'isso. Ainda mais, sr. presidente, o militar a quem o sr. ministro concedeu a medalha de oiro, já tinha sobre o peito uma outra de igual ou maior significação. Aquelle general já era condecorado com o habito de Torre e Espada. E terá menos valor este habito creado por D. Pedro IV, para assignalar os actos brilhantes praticados pelos seus soldados nas pugnas da liberdade contra o absolutismo, do que a medalha creada trinta e quatro annos depois? Parece-me que não. E se o general de que se trata já tinha sobre o seu peito tão distincta condecoração, e não só em um mas em dois graus, como poderia o sr. ministro da guerra negar-lhe a medalha valor militar? O sr. ministro da guerra, sr. presidente, não podia deixar de proceder como procedeu sem caír em uma visivel contradicção; e fazendo obra pela informação exacta e imparcial da direcção da secretaria em que se achava este negocio, cumpriu com o seu dever, e praticou um acto de justiça...
Vozes: — Deu a hora.
O Orador: — N'esse caso eu continuarei ámanhã.
O sr. Presidente: — A -seguinte sessão terá logar ámanhã quarta feira. A ordem do dia será a continuação da de hoje.
Esta fechada a sessão.
Eram cinco horas da tarde.
Relação dos dignos pares que estiveram presentes na sessão de 14 de fevereiro de 1865
Estiveram presentes á abertura da sessão:
Ex.mos srs. Conde de Castro
Marquez de Alvito
Marquez de Fronteira
Marquez de Niza
Marquez de Vallada
Conde de Alva
Conde d'Avila
Conde de Fonte Nova
Conde de Linhares
Conde de Mello
Conde de Peniche
Conde de Santa Maria
Conde de Thomar
Visconde de Condeixa
Visconde de Gouveia
Visconde de Ribamar
Visconde de Soares Franco
Barão de S. Pedro
Antonio de Azevedo Coutinho Mello e Carvalho
Antonio José de Mello (D.)
Ex.mos srs. Antonio Luiz de Seabra
Diogo Antonio Correia de Sequeira Pinto
Francisco Antonio Fernandes da Silva Ferrão
Francisco Simões Margiochi
Amaral Osorio e Sousa
Joaquim Antonio de Aguiar
Joaquim Filippe de Soure
José Augusto Braamcamp
José Bernardo da Silva Cabral
José Gerardo Ferreira Passos
José Joaquim dos Reis e Vasconcellos
José Lourenço da Luz
José Maria Baldy
Luiz Augusto Rebello da Silva
Manuel Antonio Vellez Caldeira Castello Branco
Miguel do Canto e Castro
José de Menezes Pita
Vicente Ferrer Neto Paiva Entraram depois de aberta a sessão:
Ex.mos srs. Duque de Loulé
Marquez de Ficalho
Marquez da Ribeira
Marquez de Sabugosa
Conde da Louzã
Conde de Paraty
Conde de Rio Maior
Conde do Sobral
Visconde de Fornos de Algodres
Visconde de Ovar
Antonio de Macedo Pereira Coutinho
Bazilio Cabral Teixeira de Queiroz
João de Almeida Moraes Pessanha
José da Costa Pinto Bastos
José Izidoro Guedes
Luiz de Castro Guimarães
Sebastião José de Carvalho