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N.º 21

SESSÃO DE 31 DE MAIO DE 1887

Presidencia do exmo. sr. João Chrysostomo de Abreu e Sousa

Secretarios - os dignos pares

Frederico Ressano Garcia
Conde de Paraty

SUMMARIO

Leitura e approvação da acta. - Correspondencia. - O digno par Hintze Ribeiro manda para a mesa um requerimento pedindo esclarecimentos ao ministerio da fazenda. - Ordem do dia, discussão da resposta ao discurso da corôa: usa da palavra o digno par sr. arcebispo de Braga resignatario, manda para a mesa um additamento ao paragrapho quinto da resposta ao discurso da corôa. - Responde ao digno par o sr. ministro dos negocios estrangeiros. - Usa da palavra o digno par eleito o sr. Fernando Falha, sobre o mesmo assumpto, ficando com a palavra reservada para a proxima sessão. - O sr. presidente levanta a sessão, dando a mesma ordem do dia para a sessão se ámanhã.

Ás duas horas e meia da tarde, estando presentes 24 dignos pares, o sr. presidente declarou aberta a sessão.

Lida a acta da sessão precedente, julgou-se approvada, na conformidade do regimento, por não haver reclamação em contrario.

Mencionou se a seguinte:

Correspondencia

Um officio do ministerio da marinha e ultramar, remettendo 100 exemplares da obra em dois volumes, por Hermenegildo Capello e Roberto Ivens, De Angola á contra-costa.

Mandou se distribuir.

(Estava presente o sr. ministre dos negocios estrangeiros.)

O sr. Hintze Ribeiro: - Mando para a mesa um requerimento, pedindo varios documentos, pelo ministerio da fazenda.

Leu se na mesa e é do teor seguinte:

Requerimento

Requeiro que, pelo ministerio da fazenda, me sejam enviados os seguintes documentos:

Relação dos officiaes do exercito, do posto de alferes para cima, que em 20 de fevereiro de 1886 serviam no corpo da guarda fiscal, instituida pelo decreto n.° 4 de 17 de setembro de 1880, com a designação do serviço que prestavam e dos vencimentos que percebiam;

Relação dos officiaes do exercito, do posto de alferes para cima, que posteriormente a 20 de fevereiro de 1886 foram admittidos no corpo da guarda fiscal, com designação do serviço que prestam e dos vencimentos que percebem, em relação aos antigos empregados da fiscalisação externa, que em 20 de fevereiro de 1886 se achavam addidos ao corpo da guarda fiscal, extremando-se os que já estavam á data do decreto n.° 4 de 17 de setembro de 1880 e os que o foram posteriormente, designando-se se algum serviço prestaram, e qual, e bem assim os vencimentos que percebiam;

Relação dos antigos empregados da fiscalisação externa ou dos do corpo da guarda fiscal, que posteriormente a 20 de fevereiro de 1886 foram considerados como addidos, de signando se se algum serviço prestaram, e qual, e os vencimentos que percebem;

Relação de quaesquer empregados da antiga fiscalisação externa, ou do corpo da guarda fiscal, que, embora não estejam na classe dos addidos, se achem todavia fóra do serviço activo;

Relação dos empregados que, servindo na quarta repartição da administração geral das alfandegas, segundo o decreto n.° 1 de 17 de setembro de 1885, se achem ainda em serviço no commando geral da guarda fiscal, em harmonia com o decreto de 9 de setembro de 1886.

Camara dos dignos pares do reino, em 31 de maio de 1887. = O par do reino, Hintze, Ribeiro.

Mandou se expedir.

ORDEM DO DIA

Discussão da resposta ao discurso da corôa

O sr. Presidente: - Vae entrar-se na ordem do dia, que é a continuação da discussão do projecto de resposta ao discurso da corôa.

O sr. Arcebispo de Braga (resiqnatario): - Sr. presidente, primeiro que tudo tenho a honra de mandar para a mesa a minha moção:

"Additamento ao § 5.° da resposta ao discurso da corôa.

"Quando o mesmo documento diplomatico, em virtude da carta de lei de 2 de maio de 1882 vier ao parlamento, para ser apreciado."

"Sala das sessões da camara dos dignos pares, 31 de maio de 1887. = Arcebispo de Braga (resignatario)."

Agora se v. exa. e a camara me permittem, pergunto ao sr. ministro dos negocios estrangeiros, se nas negociações da concordata de 1886 ha algum artigo secreto?

O sr. Ministro dos Negocios Estrangeiros (Barros Gomes): - Se v. exa. dá licença eu respondo desde já.

Eu declaro a v. exa. que não ha absolutamente mais nada do que foi presente á camara.

O Orador: - Muito bem. Fiz esta pergunta porque o artigo secreto, que havia na concordata de 1857 deu muito que fazer, e tanto, que ella esteve a ponto de se não executar.

Então havia um artigo secreto em que se estabelecia, que os prelados que fossem para a India deviam primeiro passar em Roma.

Vozes: - Ouçam, ouçam.

O Orador: - N'uma reunião do conselho de ministros a que fui chamado, e na qual se tratou esta questão ficou quasi resolvido, que eu não deveria ir a Roma.

Em vista disto veiu a Lisboa um enviado de Sua Santidade para obstar á minha partida para a India, mas á sua chegada já os tempos tinham mudado, e com elles as opiniões do governo.

Fui a Roma, e ajudado pelo meu nobre amigo o sr. conde de Alte pude resolver as difficuldades que se haviam levantado contra o padroado.

A narração d'este facto ficará para mais tarde, porque não interessa nem pertence á presente discussão.

Entrando agora na apreciação da materia direi, sr. presidente, que o documento diplomatico como lhe chama a § 5.° da resposta ao discurso da corôa, isto é a concordata

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de 1886 não póde ter execução sem ser approvada pelo parlamento, e esta, sr. presidente, foi a opinião tanto do negociador como do governo, e até mesmo do Santo Padre, e para provar esta verdade, eu principio por ler algumas das passagens do Livro branco que assim o indicam.

A pagina 142, lê-se n'uma correspondencia do sr. Mártens Ferrão, o seguinte:

"Não quiz adiantar mais do que o sufficiente para mostrar que era instante a concessão da prorogação por tempo sufficiente para se chegar a fazer uma convenção e poder ser discutida no parlamento portuguez."

Isto é claro, sr. presidente, e não admitte contestação.

N'estas poucas linhas, tenho já por mim a opinião do sr. Mártens Ferrão, cujo saber e intelligencia, eu respeito e admiro ha muitos annos, pois fui seu contemporaneo na universidade de Coimbra, e folgo de ter occasião de prestar publicamente esta homenagem a s. exa.

Não sei porém, a rasão por que s. exa. depois mudou do opinião, mas procurarei indagal-a.

A grande difficuldade que havia, e que ainda hoje se diz; ser a causa por que esta concordata tão apressadamente se fez, era a ameaça de suspensão das faculdades concedidas ao arcebispo de Goa, em virtude da sua delegação apostolica extraordinaria.

Parece-me tambem que isto não e verdade, porque a pagina 157, lê-se n'uma correspondencia do sr. Mártens Ferrão, o seguinte:

"Roma, 22 do novembro de 1885. - Ao ministro dos negocios estrangeiros. - Concedida prorogação das faculdades extraordinarias, incondicional e sem limitação de tempo. Póde fazer-se communicação. = Mártens Ferrão."

Portanto; esta communicação do embaixador portuguez, não era bastante para que a grande difficuldade que se allegava, não estivesse vencida? Certamente. E estava o por tal modo que o governo não duvidou que esta prorogação tivesse sido feita incondicional, e sem limitação de tempo, e assim o fez constar.

E a Santa Sé não falta á sua palavra.

Eu faço-lhe justiça completa.

A Santa Sé tem uma politica, e não póde deixar de a ter, visto que mantem relações com todas as nações catholicas, e mesmo com outras que o não são.

A Santa Sé em que é muito escrupulosa é nas palavras, porque ella regularmente agarra-se á letra dos seus tratados ou compromissos.

Ora o sr. Mártens Ferrão affirmou que a prorogação das faculdades tinha sido incondicional, e sem limitação de tempo, portanto tinha desapparecido o perigo eminente de que o padroado estava ameaçado, e assim as negociações podiam demorar-se, não tres "u seis mezes, mas sim um anno ou mais, para que houvesse tempo da concordata ser apresentada e apreciada pelo parlamento portuguez; comtanto, porém, que essas negociações continuassem e só houvesse as interrupções, que são sempre indispensaveis n'uma negociação tão importante, como era a concordata. (Apoiados.)

Mas, sr. presidente, isto ainda não é tudo. O sr. Mártens Ferrão em outra correspondencia já parece duvidar do bom exito da negociação, se ella for retardada. Já não tinha em consideração que a prorogação das faculdades fôra incondicional e sem limite de tempo! Já então mostrava pressa em se acabar com ás negociações e dizia:

"Se a negociação for retardada, perderá muito, porque eu receio e mesmo presinto resistencias da parte de certos cardeaes e temo qualquer insinuação estrangeira que nos faça perder o que quasi se póde dizer ganho."

Aqui temos nós n'esta communicação do sr. Mártens Ferrão uma idéa que certamente não o lisonjeira, nem para o governo que approvou a concordata, nem mesmo para a nação portugueza. Pois haverá alguma nação estrangeira, seja ella qual for, que tenha direito de intrometter-se nos nossos negocios?

Mas qual será esta nação? Será a França? Creio que não, porque a França estava empenhada com a Santa Sé, apesar do seu governo ser republicano, em uma certa negociação, que a final venceu.

A camara deve saber que Roma quiz, até certo ponto, tirar á França o protectorado das missões catholicas na China, protectorado que em outros tempos nos pertenceu e nós perdemos, e foi tomado pela França, que o aprecia tanto, que fez d'elle uma questão diplomatica de tal ordem que estiveram para se romper as relações entre aquelle paiz e a Santa Sé.

E nós, sr. presidente, uma nação catholica e monarchica, a fidelissima nação portugueza, não podemos conseguir em toda a sua plenitude a conservação dos nossos direitos ao padroado das Indias orientaes!!! (Apoiados.}

Mas ainda aqui não pára a minha analyse. Em 11 de abril de 1886, o sr. Mártens Ferrão, declarando que tinha acceitado a concordata ad referendum, dizia no principio do seu officio dirigido ao sr. ministro dos negocios estrangeiros:

"O cardeal leu-me os artigos do projecto da concordata, que acceitei ad referendum."

E no fim do mesmo officio, confirmando que toda a negociação fôra feita, como devia sel-o, ad referendum, diz:

"Como tudo é ad referendum, o governo ponderará as rasões e resolverá na sua alta sabedoria."

Ora, o governo tinha a seu favor a prorogação das faculdades, incondicional e sem limite de tempo, que lhe permittia sustentar com vantagem os direitos do padroado e não precipitar esta negociação. Mas andou tão apressadamente n'esta questão que, em dois ou tres dias, tomou a resolução definitiva de ratificar a concordata, sem a submetter á apreciação do parlamento, como até ali affirmára ser necessario. (Apoiados).

Eu vou ler os telegrammas inseridos no Livro branco.

Em 18 de junho de 1886 participava o nosso embaixador ao sr. ministro dos negocios estrangeiros que a Santa Sé exigia o praso de tres mezes para a ratificação:

"Roma, 18 de junho de 1886. - Praso para ratificação, tres mezes, do que não prescinde absolutamente.

"Resposta urgente, se posso assignar."

E no dia seguinte o governo respondeu ao nosso embaixador com o seguinte telegramma.

"Lisboa, 19 de junho de 1886. - Embaixador de Portugal em Roma. - Póde assignar, mas tendo em conta que as côrtes só se reunem em janeiro."

Por consequencia, a opinião do governo era que a concordata devia ser apresentada ao parlamento para ser discutida. E se assim não fosse para que disse o sr. ministro ao nosso embaixador. "Póde assignar, mas tendo em conta que as côrtes sómente se reunem em janeiro"?

Portanto, é porque julgava que a concordata devia ser apreciada pelo parlamento.

Mas isto passava-se em 19 de junho do 1886 e no mesmo dia respondia de Roma o sr. Mártens Ferrão:

"Roma, 19 de junho de 1886. - Não posso assignar sem estabelecer praso no artigo 12.° Pontifice disse que em outubro ha de publicar a organisação da igreja das Indias, e que Portugal tem tempo de convocar as côrtes.

"Não prescindia d'aquella publicação.

"Creio inutil qualquer insistencia."

Não era só o governo, era tambem o Papa que entendia que a concordata devia ser discutida e approvada pelas côrtes.

Os telegrammas continuaram-se e em um que o sr. ministro dos negocios estrangeiros expediu no dia seguinte ao nosso embaixador diz-se:

"Lisboa, 20 de junho de 1886. - Embaixador de Portugal em Roma. - Empenhe a maxima diligencia para conseguir praso de um anno. Quando repute impossivel conseguil-o, acceite praso marcado pelo Papa."

E o embaixador, ainda no mesmo dia, lhe respondeu com o seguinte telegramma:

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"Roma, 20 de junho de 1886. - Impossivel nova instancia. Quarta feira 23 assignarei concordata."

E a concordata appareceu, os tres mezes acceitaram-se, o parlamento não foi convocado, como o governo e o proprio Papa julgavam indispensavel, nem a concordata foi submettida á apreciação das côrtes, que se reuniram em janeiro, mas a concordata está em vigor!!!

Uma das suas mais importantes condições era a nomeação dos bispos; os bispos foram nomeados e a estas horas já devem estar na India.

Mas pergunta-se: poderá esta concordata vigorar sem ser approvada e discutida pelo parlamento?

Sr. presidente, eu não sou jurisconsulto, apenas estudei as primeiras regras da jurisprudencia, sou simplesmente um fraco theologo, mas em vista dos documentos que acabo de ler, a camara julgará se porventura a concordata devia, ou não, ser posta em execução sem ser discutida e approvada pelo parlamento.

Digo isto só para justificar a minha moção, que é unicamente um additamento ao paragrapho quinto da resposta ao discurso da corôa.

Na minha moção digo eu:

"Quando o mesmo documento diplomatico, em virtude da carta de lei de 2 de maio de 1882, vier ao parlamento para ser apreciado."

Parece-me, sr. presidente, que nem a camara nem o governo podem deixar de approvar esta proposta de additamento.

Se á camara a não approva, a carta de lei de 2 de maio de 1882, que ainda ha pouco foi promulgada, será completamente rasgada, bem como a carta constitucional, como acaba de dizer o digno par o sr. Thomás Ribeiro, em virtude da qual nós estamos aqui. (Muitos apoiados.}

Que triste situação é esta em que nos encontrâmos!!

Sr. presidente, antes de continuar, eu devo dar ao sr. ministro dos negocios estrangeiros os meus sinceros agradecimentos pela maneira benévola como me tratou na sessão passada em resposta ás minhas observações, e ao mesmo tempo felicitar s. exa. pela sua alta intelligencia, pelo seu brilhante talento, pela facilidade e elegancia da sua dicção, que tanto o distinguem e enobrecem. (Apoiados.)

N'esta occasião permitta-me tambem a camara que eu de ao digno par o sr. conde de Alte um testemunho do meu reconhecimento pelo trabalho que teve para vencer as grandes difficuldades, que nós encontrámos em Roma, para a execução da concordata de 1857. (Apoiados.)

Sr. presidente, ainda não soltei uma unica palavra com relação aos embaraços que encontrei em Roma para a execução da concordata de 1857, e foram tantos e taes, que se não fôra a idéa de perder-se o padroado, ter-me-ia retirado para Portugal.

As grandes difficuldades que se levantaram tinham por fim evitar que eu chegasse á India, mas por agora não fallarei n'isso.

O sr. conde d'Alte sabe o que se passou entre mim e o grande Pio IX de saudosissima memoria; sabe que tanto o Papa como eu chorámos; que as minhas lagrimas banhavam as mãos do Santo Padre, quando prostrado a seus pés lhe pedia a absolvição de quatro desgraçados, que só depois condicionalmente pude conseguir, porque o Papa Pio IX tinha um coração tão grande... tão grande como o mundo!! (Apoiados.)

O sr. conde d'Alte foi, não o negociador da concordata, mas das condições em que ella se devia realisar, para ser approvada pelo parlamento. E o poder legislativo approvou-a.

Mas, sr. presidente, quem a executou na India?

Fui eu.

Fui eu que passei por muitos dissabores, que fui calumniado e injuriado e até n'esta casa fui arguido de falta de patriotismo.

Mas, eu devo crer que essa infundada opinião está desvanecida, porque os meus actos me justificaram.

Sr. presidente, não perdi uma só igreja, não commetti um só erro que compromettesse o governo portuguez, e pude evitar por este modo que viesse o breve da suspensão das minhas faculdades de que estava ameaçado; e aproveito esta occasião para, muito reconhecido, dar os devidos agradecimentos ao digno par o sr. Andrade Corvo, vice-presidente d'esta camara, por ter n'uma situação bem critica para o real padroado, affirmado em um documento official, publicado no Livro branco, que eu, então arcebispo primaz do oriente, era um cidadão honrado. (Apoiados.}

Sr. presidente, eu não só fui executar a concordata, mas fiz mais.

Para affirmar e dar vida ao padroado, que se não estava morto, estava moribundo, visitei pastoralmente toda a extensão do seu territorio, desde Bombaim a Calcuttá, desde Tanah até Daccá e Tesgão; andei alguns mezes sobre as ondas do mar e as aguas do Ganges, soffri o frio, o calor e até a escassez de mantimentos. Como S. Paulo corri os perigos do mar, dos rios, dos gentios, da solidão e até o perigo dos falsos irmãos. Periculis in falsis fratribus.

Tive, porém, a consolação pouco vulgar, de ter agradado ás duas altas partes contratantes da concordata.

Sua Magestade El-Rei, e honro-me d'isso, deu-me as maiores distincções honorificas que me podia dar, e d'elle só dependiam; e o Santo Padre Pio IX que ainda confirmou a minha transferencia para a archidiocese de Braga, affirmou nas bullas da minha transferencia que eu governara a diocese de Goa maxima cum laude.

Honrado pelo Rei de Portugal e honrado pelo chefe da Igreja, parece-me que é a maior consolação e a maior gloria a que eu poderia aspirar. (Apoiados.) O resto... o resto é nada. (Muitos apoiados.)

Sr. presidente, não estou fazendo um discurso pro domo mea, e peço desculpa á camara d'esta divagação.

O digno par o sr. conde d'Alte parece-me que andou mais cauteloso do que o governo actual; porque só assignou a concordata de 1857 depois de ter sido approvada pelo parlamento, e portanto está salvo de toda a responsabilidade. A responsabilidade que poderia ter havido n'esse negocio, tomou-a o parlamento, quando approvou a concordata.

O nosso actual embaixador em Roma tambem nenhuma responsabilidade parece ter na concordata de 1886, porquanto declarou que não a acceitava senão ad referendum.

E o governo, sem auctorisação e approvação do parlamento, ratificou-a.

Aqui está como foi posta em execução a concordata de 1886!!

É verdade que o governo se achava em dictadura, mas esta situação daria direito ao governo para praticar um acto de tanta importancia religiosa e politica? Não o creio.

Pois podia o governo em dictadura prescindir de um direito que nós tinhamos, como era o direito a todo o padroado? Não me parece.

Quer v. exa. saber quaes os motivos por que Roma procedeu d'esta fórma?

Eu peço licença á camara para ler um artigo traduzido de um jornal que se publica em França, intitulado Les missions catholiques.

Diz esse artigo o seguinte:

As Missions catholiques, em um artigo muito interessante sobre a ultima concordata entre a Santa Sé e Portugal, sustenta com boas rasões as vantagens que a Santa Sé alcançou na resolução da famosa questão do padroado.

Sem entrarmos na avaliação d'estas rasões, vamos transcrever o final d'este importante artigo, que a todos os respeitos é digno de attenção.

"A primeira, a mais importante, a que a Santa Sé tinha

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principalmente em vista, era abolir a concordata de 1807, circumscrever o padroado portuguez, entregar á Santa Sé a justa e necessaria liberdade, de acção sobre as igrejas da India. A convenção de 1857, como acima se disse, incluia toda a India no direito do padroado; se Portugal não o exercia na realidade em toda a sua extensão, ou por impotencia ou por. má vontade, impedia a Santa Sé de exercer a sua acção e prover ás necessidades da religião; impedia a liberdade e o desenvolvimento normal da igreja catholica na India.

"Hoje, este direito é restrito aos territorios e freguezias das quatro dioceses acima descriptas.

"Poder-se-ha sentir que estes territorios e freguezias sejam extensos de mais, mas emfim, o resto da India é libertado d'este jugo; tornou a entrar na dependencia directa e exclusiva da Santa Sé. Esta é livre em tomar as medi das que julgar necessarias ou simplesmente uteis, e disto se aproveitou já para instituir na India a hyerarchia."

Como pretende, pois, o governo dizer que a concordata de 1886 é simplesmente o complemento da concordata de 1857?!

O artigo que acabo de ler não é feito senão debaixo da inspiração de Roma, e ella sabe melhor o que lhe convem fazer, do que nós.

E a verdade é, que a convenção de 1857, como se lhe chamava, incluia toda a India no padroado.

Aqui estão descriptas, n'este mesmo artigo que eu continuarei a ler, as perdas dolorosas, como lhe chamam, que elles tiveram, dizendo, comtudo, ao mesmo tempo que por outro lado ganharam muito.

Isto e uma questão de apreciação de factos:

Effectivamente, sr. presidente, n'esta questão, nós perdemos muitissimo mais que ganhamos. E senão veja-se:

"Se se considera a questão emquanto aos lucros e per das particulares a cada missão, ver-se-ha que, apesar dos sacrificios que foi mister soffrer, os resultados geraes foram favoraveis. Assim:

"1.° Se Bombaim não ganhou nada, tambem nada perdeu.

"2.° Poonnh ganha 15 freguezias, 47 igrejas e capellas e 15:091 almas.

"3.º Se Mangalore perde 2 freguezias, contando 1:145 almas, ganha 11 freguezias, com uma população catholica de 22:000 almas.

"á.° Verapoly, é verdade que perde 23 igrejas latinas com cerca de 45:000 almas, mas ganha 17 igrejas syriacas com cerca de 10:000 almas.

"6.º Quilon ganha 6 freguezias, 25 igrejas e perto de 10::000 almas.

"6.° Maduré perde 3 districtos com 51 igrejas e capellas e perto de 12:000 almas.

"7.° Colombo ganha 4 freguezias e cerca de 1:200 almas.

"8.° Jafina ganha 3 freguezias, 17 igrejas ou capellas e 2:240 almas.

"9.º Pondichery ganha 4 freguezias, 18 igrejas e capellas e porto de 1:700 almas;

"10.° Madrasta perde 4 freguezias, 7 igrejas, e capellas e 3:250 almas; mas tambem ganha 9 freguezias, 16 igrejas e capellas e 5:500 almas.

"l1.° Hyderabad ganha 2 freguezias, 7 igrejas e capellas e perto de 800 almas."

Sr. presidente, quando, em 1640, se fez a grande e gloriosissima revolução que libertou Portugal do jugo de Castella a curia romaria suspendeu completamente as suas relações diplomaticas com o sr. D. João IV.

Vinte e seis annos estiveram as relações interrompidas com a Santa Sé, e vinte e seis annos fizeram com que apenas existisse por fim um só bispo era Portugal. D. João IV fez todas as diligencias possiveis para reatar as relações diplomaticas com o Papa, e a França tambem secundou os os seus esforços para o mesmo fim; mas Filippe IV de Hespanha póde mais que a França e Portugal, e as cousas continuaram como até ali.

Veiu a guerra da independencia, e havendo algumas batalhas dado a victoria aos portuguezes, então o Papa quiz já favorecer Portugal, e propoz um accordo para a nomeação dos bispos, e para esse fim abriu negociações, mas com a condição de que elle faria aã nomeações de seu motuproprio, isto é, sem que fosse D. João IV quem os nomeasse.

E sabe a camara o que fez o sr. D. João IV? Não acceitou este accordo que lhe fôra proposto, e os bispos ainda d'essa vez não foram nomeados.

Era um Rei nobre e verdadeiramente portuguez e preferiu a este accordo que julgou humilhante o não perder nem um palmo da sua terra, nem um apice dos seus direitos.

Ah! Portugal, este paiz generoso e nobre, cujas glorias, não têem até hoje podido ser excedidas por nenhuma outra nação havia um dia de decair da sua grandeza!

Sr. presidente, Portugal perdeu os seus galleões alterosos e as suas esquadras formidaveis; com a perda das suas esquadras perdeu o imperio dos mares; com a perda do imperio dos mares perdeu o seu prestigio; com a perda do seu prestigio perdeu uma grande parte das suas conquistas; com a perda de grande parte das suas conquistas perdeu a sua grandeza territorial; e com a perda da sua grandeza territorial quasi que perdeu o seu assento e a sua influencia no conselho das nações: e depois de tantas perdas, que lhe resta hoje?... Tres a quatro milhões de almas enristas; que infeliz, mas successivamente, vão perdendo o sentimento religioso, e com esta perda tão sensivel perderão tambem a sua fé politica, e o seu amor pela verdadeira liberdade, pela sua autonomia e independencia nacional. Vozes: - (Muito bem, muito bem.)

Oh! triste povo sem prestigio, sem ascendente algum na Europa, povo de cujos direitos, glorias e dominios todos tomam para si uma parte! Hoje parece que não é mais que o escarneo das nações. Oh! Portugal... Portugal! Do prestigio que já gosaste e do valor que mostraste quasi que apenas resta a memoria!!!

As lagrimas vêem-me aos olhos e eu não posso continuar a fallar sobre esta materia, na qual tomo tanto calor; porque a ninguem custou tanto a conservação do padroado, como a mim. Ninguem foi á India executar a concordata de 1857, senão eu.

Sou bispo, sou catholico, mas sou portuguez; e contra quaesquer imposições, defenderei sempre o governo do meu paiz, seja elle qual for, porque é o governo portuguez. Vozes: - (Muito bem.)

Fallo assim, sr. presidente, porque, como v. exa. e a camara bem o sabem, as cousas que mais nos custam são aquellas que mais apreciâmos; e o padroado do oriente, para mim, está n'este caso. Por isso o hei de defender. Serei vencido, mas a derrota será para mim ainda uma gloria. O meu protesto fica lavrado. Vozes: - (Muito bem.)

Não serei tão extenso como desejava, mas ainda darei á camara mais algumas informações, porque algumas d'aquellas que outro dia dei foram incompletas.

Disse eu, outro dia, que por trez vezes a ilha de Caylão foi conquistada para o padroado. A primeira vez foram os missionarios portuguezes que a conquistaram aos gentios para a nossa religião: os nossos missionarios converteram uma grande porção de chingalezes. Vieram depois os hollandezes e conquistaram aquella ilha pelas armas.

Parece-me ter lido que quando ali vieram os hollandezes, que não só não eram catholicos mas até perseguiram os catholicos, e os missionarios tiveram de sair de Ceylão, ficando aquella ilha por muito tempo sem ter um unico padre catholico.

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Então não foi lá a propaganda, mas sim um digno imitador de S. Francisco Xavier, um portuguez, o veneravel José Vaz; natural de Goa, que novamente a conquistou á heresia, para a jurisdicção do padroado.

O veneravel José Vaz vestindo-se como os chingalezes, porque nas missões é permittido usar os vestidos proprios da localidade, introduziu-se em Ceylão, formando a congregação de missionarios que lá estiveram até 183o em que um breve de Roma acabou com a missão portugueza.

Mas os chingalezes não perderam o amor a Portugal, e terceira vez voltaram á jurisdicção do padroado.

O cônsul então de Portugal em Ceylão, apesar de não ser portuguez, offereceu a sua casa para ahi se estabelecer uma capella, e terceira vez os missionarios portugueze voltaram a Ceylão.

Precisava dar esta explicação para se saber quaes os serviços que os nossos missionarios têem prestado no oriente.

O vigario apostolico de Verapoly, como eu já aqui referi, não póde ir visitar-me e já disse a rasão por que elle não foi.

Quando entendi que devia ir pagar a visita de cortezia e boa fraternidade ao vigario, apostolico de Verapoly, fui convidado para me dirigir á igreja de Vaipin e dar a benção aos christãos.

O vigario apostolico de Verapoly, á jurisdicção do qual pertencia a igreja de Vaipim, não procedeu como o vigario apostolico de Ceylão, cujo caso aqui mencionei outro dia permittiu que eu fosse áquella igreja, apesar d'ella pertencer á sua jurisdicção.

Acceitei, pois, o convite, usei da licença e dei a benção pastoral aos christãos. Porém no meio da ceremonia levantou-se grande tumulto entre o povo. Percebi que pretendiam passar a vias de facto e acabei com tudo e retirei-me. Porque seria isto? Porque haveria esta desordem? Quaes os motivos porque assim procediam aquelles christãos, tendo-me convidado para ir á sua igreja? Era por odio a mim?

Não era certamente.

Vou expor á camara o motivo d'aquelle tumulto.

Quando saiu de Goa monsenhor Sabba, com quem estive sempre nas melhores relações, porque elle não só era um homem intelligente, mas o seu coração era formado conforme ao coração de Deus; quando monsenhor Sabba saiude Goa, da minha residencia, onde se demorou por mais de quarenta dias; passou por Mangalor e foi hospedar-se em Verapoly, e então poude observar que os christãos de quasi todas as igrejas da propaganda queriam passar para a jurisdicção do prelado de Goa. Assentou que tinha auctoridade para o consentir, e deu um decreto ou provisão determinando que as igrejas que quizessem passar para a jurisdicção de Goa poderiam fazel-o no espaço de oito dias.

Tal foi o contentamento, o enthusiasmo, que quasi todas as igrejas da propaganda pediram transferencia para essa jurisdicção!!!

Vaipim tambem quiz passar, mas já não foi a tempo, porque, ao fim de dois dias, em vez de oito, monsenhor Sabba viu-se obrigado a revogar o seu decreto!!!!

A noticia d'este decreto foi levada a Roma e de lá veiu para monsenhor Sabba uma reprehensão tão áspera, que deu causa á sua morte.

Não morreu envenenado. Isso é uma calumnia que levantaram á propaganda é a propaganda não precisa ser caluniniada. Monsenhor Sabba morreu de desgosto por ter adoptado áquella medida, que elle, na sua intelligencia e na sua consciencia, entendia que devia dar bons resultados.

Faça se agora o mesmo. Proponha-se á Santa Sé que se deixem ir para a jurisdicção do nosso padroado aquelles que assina desejem, e que vão para a propaganda os que não quizerem estar sujeitos á nossa jurisdicção. (Apoiados.)

Faça-se esta proposta á Santa Sé, que ella não deve recusal-a, porque é uma proposta liberal e judiciosa, uma, proposta que, deixem-me assim dizer, póde levar a paz e a harmonia a todos os christãos do oriente. (Muitos apoiados.) E eu dou, não a minha cabeça porque como christao não a posso dar, mas pela minha honra affirmo, que se este alvitre fosse adoptado, haviam de melhorar, e muito, as circumstancias em que se encontra o nosso padroado. Ainda ha pouco, sr. presidente, lendo eu um trecho de um officio que o sr. Mártens Ferrão dirigiu ao sr. ministro dos negocios estrangeiros, fiz ver á camara que o nosso embaixador em Roma não só presumia, mas presentia que uma nação estrangeira queria metter-se neste negocio da concordata, e que portanto era necessario proceder com muita cautela para não perdermos aquillo que já tinhamos quasi ganho. Essa nação, porque o não havemos de dizer? Não póde ser outra senão a Inglaterra.

A Inglaterra não consentia já a nossa antiga gerarchia?!!

Pois Portugal não tinha na India uma gerarchia historica, completa, perfeita, e canonica?

Certamente. O arcebispo de Goa tinha os seus suffraganeos, que eram os bispos de Cochim, de Madrasta, de Malaca e de Macau. (Apoiados.)

Pois se já existia uma gerarchia para que era necessario estabelecer de novo uma outra? (Apoiados.}

Sr. presidente, a respeito do ponto a que me estou referindo, não valham só as minhas palavras, valham tambem os factos que vou apresentar, occorridos em diversas paragens que eu percorri.

Antes, porém, de proseguir devo dizer que o governo inglez tratou-me sempre não só bem mas com particular distincção.

O governador geral de Calcuttá deu-me duas audiencias, e offereceu-me um jantar que foi de cem talheres.

Ha em Calcuttá duas igrejas principaes, a de Mariatá que já foi nossa e hoje está em poder da propaganda, e a de Boitckanah que é nossa.

Nas proximidades da cidade havia um terreno que servia de cemiterio para os christãos da jurisdicção do padroado, e o governo inglez precisou de parte d'esse terreno para a passagem de um caminho de ferro.

Mandou-se avaliar o terreno, e depois de executada esta ordem, tratava-se de recebei o preço da avaliação.

A propaganda tendo noticia d'esta expropriação levantou contestação perante o governador de Calcuttá; allegando que os bens pertencentes ás igrejas são do Papa, e que achando-se a nossa igreja de Boitechanah separada da communhão do Papa pelo scisma, como elles diziam, o producto d'aquella expropriação devia pertencer á propaganda.

Em vista d'esta contestação, e para regular outros negocios da missão, que é riquissima, julguei indispensavel ir a Calcuttá, e deixem-me dizer, que nas minhas visitas ao padroado fiz todas as despezas á minha custa, e só tive um pequeno auxilio das missões porque do governo não recebi nem um só real.

E aproveitarei esta opportunidade para referir á camara o seguinte facto.

Quando fui a Calcuttá pedi ao governo uma subvenção porque não podia fazer unicamente a expensas minhas uma viagem tão grande e tão dispendiosa. O governo mandou que me fosse abonada uma certa quantia diaria, mas o governador quando lhe dei parte da minha partida para Calcuttá, tendo já conhecimento da ordem do governo, não me perguntou se eu precisava de dinheiro para as despezas da viagem.

Fiz a viagem, e depois quando regressei a Goa dei parte ao governador da minha chegada e tambem elle me não disse cousa alguma a tal respeito.

Mais tarde, quando um missionario que tinha sido mandado de Portugal se me queixou amargamente de que não recebia a sua congrua, eu escrevi ao governador e disse-

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lhe: que não me admirava que eu não tivesse recebido o subsidio pecuniario que me tinha sido mandado abonar pelo governo de Sua Magestade, nem eu mesmo me queixara d'isso, porque as minhas circumstancias eram outras, mas que me parecia indispensavel que promptamente se pagasse ao missionario, porque elle não tinha outros recursos senão a sua pequena congrua, e se s. exa. o não fizesse, eu daria parte ao governo de Sua Magestade.

O governador então respondeu-me que mandaria immediatamente pagar ao missionario, e abonar-me a subvenção da minha viagem.

Respondi ao governador que quanto a mim já era tarde, porque eu já tinha offerecido ao estado toda a importancia d'essa subvenção.

O sr. ministro dos negocios estrangeiros que tambem a é da marinha ha de encontrar este meu officio na sua secretaria, assim como a portaria de acceitação d'essa quantia.

Eu dei essa quantia que era de 1:000$000 a 2:000$000 réis para as obras da capella do paço episcopal, que então se projectava edificar no Campal, proximo de Pangim, mas até hoje, nem obras, nem capella, nem dinheiro, nem cousa nenhuma!

Mas vamos á igreja de Boiteckanah.

O governador geral da India ingleza, em vista da exigencia da propaganda, mandou ouvir o nosso missionario que era o superior da missão.

Expoz, elle, as suas rasões perante o governador e escreveu pedindo-me muito encarecidamente que fosse eu a Calcuttá, porque se não fosse estava tudo perdido. E eu segui immediatamente para aquella cidade.

Tive, como já disse, duas audiencias do governador geral, e na segunda tratei este negocio e tão prompta e favoravelmente foi resolvido, que passados oito dias recebi todo o producto da expropriação d'aquelle terreno e tambem todos os juros prefazendo tudo 7:000 a 8:000 rupias. Assim é que o governo inglez sabe fazer justiça. Na audiencia que tive com o governador perguntou-mo elle porque ha estas dissenções entre os catholicos sendo o Papa o chefe de todos elles?

Respondi: Todos os prelados catholicos têem diocese ou territorio separado e distincto em que governam os bens da igreja e provêem independentemente ás necessidades d'ella. Mas o Papa governa sobre todos elles.

Darei a v. exa. este exemplo.

V. exa. não é o governador geral da India? É. Mas os governadores de Madrasta, de Bombaim e outros não governam tambem as suas provincias? Governam. Pois v. exa. governa sobre elles todos. Assim é o Papa.

Referirei á camara ainda um outro facto e que se deu em S. Miguel de Mahim, na ilha de Salsete.

Esta igreja tinha uma bella horta. Ora, nas igrejas do nosso padroado tem se estabelecido uma especie de juntas de parochia ou procuradores, e estes procuradores são os que zelam e administram os bens das igrejas.

Um d'estes procuradores (não quero dizer o nome porque talvez seja conhecido) fez com que a junta pozesse em venda a horta e mancommunou-se com outro individuo para este a comprar e depois trespassar-lh'a.

A junta auctorisou a venda, e a horta vendeu-se por um preço muito diminuto.

O procurador que primeiro tinha combinado o trespasse da propriedade exigiu-a do comprador, porém, este não lha quiz entregar, e então o mesmo procurador despeitado pelo logro que lhe tinha sido feito, requereu a nullidade da venda por ter sido feita por um preço muito baixo e com grande prejuizo da igreja. D'aqui seguiu-se um pleito.

Sabe v. exa. o que o governador fez?

Consultou o arcebispo.

Mandaram-me a consulta, e eu declarei que não sabia da venda nem tinha consentido n'ella.

De tudo isto resultou rescindir-se a venda e a propriedade voltar outra vez para a igreja.

Eu pergunto: não é isto reconhecer de um certo modo o padroado? (Apoiados.)

Pois quem reconhece as auctoridades do padroado, não reconhece o proprio padroado? Eu creio que sim. (Apoiados.)

Visitei tambem o governador inglez de Bombaim, elle recebeu-me e até me convidou para um jantar que eu acceitei.

Não visitei o governador de Madrasta porque elle não estava n'aquella cidade; visitei o governador de Ceylão, que me recebeu com todas as honras que elle entendeu me devia dar.

Visitei duas vezes o governador de Calcuttá e não só me recebeu, mas tambem me fez promptamente a justiça que eu lhe pedi, como já disse.

Sr. presidente, eu não sei que mais podesse fazer em meu obsequio o governo inglez, em Hogoly, onde está o melhor estabelecimento religioso portuguez, a ponto de que quando eu passava, a guarda e especialmente a de policia chamava ás armas e apresentava-as.

Recebi todas as manifestações de boa vontade do governo inglez.

Antes da guerra dos Cipais os inglezes davam pouca consideração aos christãos do padroado, mas depois d'aquella guerra terrivel em que se praticaram as maiores crueldades, e como os christãos, especialmente os do padroado, se uniram ao governo inglez e o auxiliaram, elle começou a admittil-os nas suas repartições com a maior boa vontade.

Ainda referirei á camara um outro facto, acontecido na igreja de Raiporão que geralmente não é sabido.

Esta igreja veio agora para a jurisdição do padroado, e não estava n'ella por causa do statu quo.

Quando cheguei a Madrasta vieram os christãos dizer-me que tomasse conta d'aquella igreja, porque era minha.

Indaguei o que havia com respeito á igreja de Raiporão e vi que parte dos christãos que pertenciam aquella localidade eram da propaganda.

Tinham elles chegado a um accordo e resolveram que se fizesse o mesmo que se fez com a igreja de S. Miguel de Mahim; procedendo-se a uma votação e aquelles que tivessem maior numero de votos é que ficariam com ella.

Assim se fez, e a votação foi a nosso favor. Mas que fez a propaganda?

Não entregou a igreja e disse que ia para os tribunaes, e depois ficaram as cousas assim, em virtude do statu que da concordata de 1857.

Tambem, sr. presidente, alguem tem dito que o padroado no oriente se devia abandonar, porque não tinha grande importancia nem nós tinhamos meios para o sustentar.

Sr. presidente, eu não sei qual a resposta que deva dar. E uma opinião isolada que não merece resposta alguma e o melhor é não responder.

Tem-se dito igualmente que era melhor que os nossos missionarios, se os tivéssemos, fossem para a Africa, em vez de irem para a Asia. Valha-me Deus! com esta lembrança.

Disse hontem um digno par que a Asia é o passado, e a Africa o futuro, e que, portanto, deixemos o passado. Eu penso o contrario.

Quando me transferiram, contra minha vontade do bispado de Cabo Verde, onde não cheguei a ir, para Goa, a unica consolação que eu tive foi a de achar ali materia prima para formar uma igreja. E na Africa haverá a materia prima? Na Ásia é verdade que encontramos uma civilisação atrazada, mas emfim uma civilisação, que não ha na Africa.

Eu tambem digo que mandem missionarios para a Africa, mas sem esperança de colherem um grande resultado.

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O negro não aprende, ou só muito difficultosamente póde aprender.

Tem havido alguns homens em Africa que têem tido uma certa instrucção, mas são excepções á regra geral. E as excepções confirmam a regra geral.

Ainda não soou no relogio da Providencia Divina, que tudo governa, a hora da sincera conversão ao christianismo e da verdadeira civilisação da Africa. Comtudo, ella já foi a parte do mundo mais enrista, mais civilisada e onde a religião catholica teve mais ascendentes 5 mas hoje não.

Os concilios que ali se celebraram, e os africanos a quem a igreja catholica tem decretado o culto devido aos seus heroes são a prova d'esta verdade.

Qual é a rasão, sr. presidente, porque na China, depois da saída dos nossos missionarios, nunca mais o christianismo póde ali conservar-se florescente? No tempo d'elles floresceu e floresceu muito.

Foram elles que fundaram as duas dioceses de Pekin e Nankim que hoje já nos não pertencem.

O proprio S. Francisco Xavier pretendeu sempre entrar na China, mas não tinha ainda chegado a hora que a Providencia tinha marcado para se introduzir o christianismo n'este tão vasto imperio, e S. Francisco Xavier morreu ás portas da China, na ilha de Sanchão, defronte de Singapura, mas não conseguiu lá entrar.

Estou um pouco fatigado, sr. presidente, e vou terminar o meu discurso pedindo a v. exa. e á camara que, neste negocio importantissimo para a honra e decoro dá nação portugueza, para o seu prestigio no oriente e salvação de tantas almas, não haja politica. (Apoiados.)

A chamada fidelidade ou lealdade partidaria não deve ter logar na resolução d'esta questão, (Apoiados} que não é politica, nem o deve ser, (Apoiados) e não é como qualquer outro negocio publico que depois se possa emendar. (Apoiados.)

O padroado portuguez está no terrivel leito de Precusto!

Sim, sr. presidente, se nós não valermos ao padroado, se esta camara que tem dado tantas provas de independencia, e que ainda é a representante da aristocracia, e que conta entre os seus membros muitos dignos pares, cujos antepassados ganharam na Asia, no territorio do padroado as suas esporas de ouro; se esta camara se não lembrar d'isso, e que as ossadas de muitos dos seus maiores guardadas nas igrejas fundadas pelos portuguezes vão ser calcadas aos pés do estrangeiro; então, Ai do padroado!!! (Apoiados.)

Porque, nós como muito bem disse o digno par o sr. Thomás Ribeiro, estamos assistindo ás exequias do padroado. (Muitos apoiados.)

As exequias, porém, não são solemnes, nem o podem ser, porque como disse o digno par só aqui está um bispo para tomar parte n'ellas. È disse bem, porque eu pobre sacerdote, o solitario de Cabanas, nem já sirvo para resar uma missa de defunctos.

Quasi que não tenho voz que me permitta supplicar para ser attendido. Fui abandonado, mas tenho a firme convicção de ter prestado alguns serviços ao meu paiz.

Vim a esta camara para advogar a causa do padroado portuguez e não para me queixar. Nem tão pouco pretendo arguir ou censurar ninguem.

Quando arcebispo de Braga tive necessidade de consultar a Sé Apostolica, por escrupulos de consciencia motivados pela transmissão da minha jurisdicção espiritual. Pedi a costumada licença para o fazer, que me foi negada pelo governo, apesar de sempre eu ter procurado conciliar os interesses da Igreja com os do estado. Como era meu dever, e consequencia da minha fé religiosa offereci a minha resignação e acceitaram-na...

E eu... Eu vivo contente, porque a minha terra amei e a minha gente.

Disse.

Vozes: - Muito bem, muito bem.

(O orador foi cumprimentado por muitos dignos pares de ambas os lados da camara.)

Leu-se na mesa a moção do mesmo arcebispo resignatario, que, por votação da camara, foi admittida á discussão.

O sr. Ministro dos Negocios Estrangeiros (Barros Gomes): - Sr. presidente, não é sem um sentimento de profunda reluctancia que me levanto n'este momento, não porque não me animem o respeito e consideração pelo digno par que acaba de fallar, de que já na semana passada lhe dei testemunho, ou porque me faltar a vontade de responder-lhe; mas porque tenho usado, n'esta camara e na outra, tantas vezes da palavra na defeza d'este acto do governo, que receio importunar a camara com a repetição do que já tive occasião de dizer na outra casa do parlamento.

Obriga-me comtudo a usar da palavra a nova feição que o digno par que acaba de fallar imprimiu ao seu discurso, pois que esteja se não apresenta, com o caracter de querer apenas levantar um brado auctorisado em favor de muito poucas christanciades da India que ficarão fóra do padroado.

Eu sinto que s exa. se desviasse do caminho seguido quando da primeira vez discursou n'esta camara, e viesse atacar directamente o governo e convidal-o nos termos mais colorosos a apresentar á camara a concordata, naturalmente para a poder ainda alterar, visto que s. exa. a combate.

Ora, sendo eu o unico membro do governo que está presente, não podia deixar de pedir a palavra para dizer que tendo nós, compromettido n'esta negociação o nome de Portugal, perante uma entidade que, se não é uma potencia, está revestida de attributos taes, que nós tratámos com ella como de igual para igual, não poderiamos acceitar essa doutrina, e se a vissemos adoptada pela camara, teriamos de desapparecer dos bancos do poder.

O governo aqui está e acatará o veredictum que á camara, na sua inteira liberdadade de acção, aprouver intimar-lhe; mas, repito, deixará o poder se tal doutrina for acceita.

Se a camara, na sua perfeita independencia entender que deve condemnar o governo, o governo acceitará com magua essa resolução " seguirá o caminho que as praxes constitucionaes lhe indicam.

Repito, pois, que o governo ficaria compromettido se se procedesse dessa forma, visto que se modificava e alterava um tratado que está já produzindo os seus effeitos, que já deu a nomeação dos bispos e a bulla "Humanae, salutis.

Desde o momento que esta camara entendesse que esse tratado podia ser discutido no parlamento, o governo não ficaria em boa posição, e creio que a nação não ficaria melhor.

Mas, sr. presidente, vejamos agora primeiro que tudo se o acto que o governo praticou foi ou não constitucional.

O digno par sr. Ornellas já aqui apresentou muito em resumo alguns argumentos, que a meu ver são ponderosissimos, para mostrar a perfeita constitucionalidade do acto que o governo praticou.

Eu tambem na outra camara fiz ver que o governo tinha andado constitucionalmente n'esta questão.

O digno par, sr. arcebispo resignatario de Braga, disse que o governo tinha prescindido de um direito valioso, de um direito que era da corôa e do paiz, e isto sem annuencia das côrtes.

Perguntava s. exa. como é que o governo póde renunciar, sem consultar o parlamento, a um direito tão valioso, tão singular, um direito que nos dava uma situação tão excepcional, amesquinhando assim o seu paiz perante as nações estrangeiras?

Ora, sr. presidente, nos termos em que o digno par fallou, o governo é réu do crime de ter concluido uma con-

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cordata e uma concordata affrontosa sem a submetter á approvação das côrtes.

Ora o digno par o sr. Bocage. que me faz a honra do me ouvir, que tomou uma parte importante nas negociações relativas á concordata, e que o fez de uma maneira que o honra muito, defendendo sempre o direito e dignidade do seu paiz, já aqui protestou o outro dia, quando devia protestar, contra um epitheto, que se lhe afigurou uma accusação injustificada feita por um membro d'esta casa ao patriotismo de s. exa.

E ou que já na outra camara fiz a devida justiça, a s. exa., folgo em ter mais uma occasião para a esse respeito me pronunciar como devo.

S. exa. teve o supremo merito de nomear para nosso embaixador em Roma, e portanto para desempenhar a missão de negociador do tratado que se discute, o homem que estava mais talhado para este cargo, pela sua intelligencia e pelo seu amor e affeição ao seu paiz, e ao qual eu folgo tambem de prestar agora e sempre todo o preito que lhe é devido.

O sr. Bocage reconheceu as difficuldades que esta questão apresentava, e por isso acertadamente andou escolhendo para está missão um dos homens mais competentes e que mais serviços tem prestado ao seu paiz nos importantes cargos que tom exercido.

Mas voltando ao sr. arcebispo de Braga, direi que é com as proprias palavras de s. exa., e com a sua auctoridade, superior a todas que eu quero agora apreciar esse direito, consignado no artigo 14.° da concordata, e que eu sou a accusado de ter sacrificado.

(Leu.)

O sr. D. João Chrysostomo, analysando artigo por artigo a concordata, entende que o artigo 14.° é uma concessão, só e unicamente de ostentação.

(Leu.)

Portanto, na opinião do digno par, o direito que eu fui sacrificar e pelo abandono do qual este governo se tornou réu de lesa nacionalidade, esse direito era de pura ostentação, apenas podia servir, como serviu, para que a final obtivessemos a circumscripção das dioceses.

Nós concedemos á Santa Sé, é certo, a liberdade plena pela qual anciava, e concedemol-a, fazendo abandono de um direito que não tinhamos absoluta necessidade de usar, de que não nos convinha lançar mão por falta de pessoal, e, alem d'isso, porque, se quizessemos fazer uso d'elle, talvez encontrássemos algum obstaculo mais forte que se oppozesse a que similhante direito se transformasse em realidade. Mas cedemos esse direito puramente nominal, puramente de ostentação, segundo a propria apreciação do sr. arcebispo, cedemol-o em troca da circumscripção das dioceses de Goa.

O digno par, alludiu ao apoio que encontrára sempre no governo da India e no favor com que elle via a hierarcbia portugueza. E desde quando? Havia ali, é certo, o arcebispo de Goa; mas o bispo de Malaca, o de Cranganor, ò de Meliapor e o de Cochim, nem s. exa., que tem uma idade mais avançada do que muitos outros membros da camara, o que ainda acrescenta ao respeito que por tantos titulos todos lhe devemos tributar, nem s. exa. nem os mais antigos dignos pares, souberam jamais que elles existissem. Existiam sómente no papel, emquanto que hoje existem, estão funccionando, são recebidos e acatados.

Observou tambem o digno par: mas o governo era o proprio que confessava a necessidade de ser submettida a concordata á sancção parlamentar. Leu para isso os meus telegrammas e poderia ter lido muito mais. S exa. não encontra um unico documento no Livro branco, o qual tenha a minha assignatura, em que se não falle na conveniencia de trazer ás côrtes esta concordata.

O digno par referiu-se apenas a dois telegrammas contendo instrucções. para o embaixador; ha, porém, despachos meus bem mais importantes, que demonstram constantemente aquella intenção.

Os ministros é que são juizes da conveniencia ou inconveniencia da publicação de certos documentos no Livro branco, e ninguem póde contestar-lhes esse direito; elles é que são os responsaveis, e como taes sabem aquillo que, sem inconveniente para os interesses do paiz, póde ser ou não publicado. Era-me possivel visto não haver meio de se fiscalisar sempre até que ponto elles vão no uso d'este direito, era-me possivel ter supprimido essa parte dos despachos em que alludia á necessidade, que reputava existir, de trazer este documento ás camaras legislativas. Não o fiz. Ahi estão todos os meus despachos. Não lhes supprimi nem uma palavra.

E no emtanto o decreto que approvou e auctorisou a ratificação da concordata, contém as referendas do ministro da marinha e ultramar e o do ministro dos negocios estrangeiros!

Estavamos no exercicio de poderes extraordinarios, que tinhamos assumido, sé bem se mal, a camara o julgará quando discutir o bill de indemnidade, estavamos legislando. Se por acaso, n'essa occasião, eu tivesse levado os meus collegas a publicar em dictadura essa ratificação, e a encorporal-a depois no bill que tem de ser presente ás duas camaras legislativas, sanavam-se, assim, todas as difficuldades que hoje se levantam e que eu previa, mas não quiz recorrer a um tal expediente, tendo sempre sustentado a conveniencia de trazer este documento ás côrtes, e isto porque não queria que se desse uma interpretação qualquer ao acto do governo, que trouxesse novos embaraços ou que pozesse em duvida, perante uma entidade estranha, a legalidade do modo por que o governo tinha procedido. Levaria por diante o meu modo de ver, se eu não entendesse, em vista das instancias que se apresentavam, que não podia legitimamente furtar me a ellas, visto que se não tratava de uma concordata nova, e apenas se dava cumprimento ou execução a um dos artigos da concordata do 1857, nos termos e condição desde muito previstas por Vicente Ferrer.

Repito, pois, que a ultima concordata não é mais do que o regulamento ou acto addicional a que se refere a concordata de 1857, pelo que respeita á circumscripção das dioceses.

Apesar de tudo isto, teria de certo sido muito melhor que o parlamento tivesse Inteiro conhecimento do assumpto de que se tratava para sobre elle deliberar aquillo que julgasse mais conveniente; mas o governo abandonou este proposito, que não era essencial, que representava apenas um excesso do escrupulo, e fel-o em vista das solicitações instantes da Santa Sé.

E o governo podia ainda eximir-se a publicar em dictadura a ratificação da concordata de 1886, cingindo-se estrictamente ao artigo 15.° do acto addicional á carta, que se refere á execução de medidas urgentes e inadiaveis para o ultramar.

O governo não recorreu, porém, a este preceito da lei muito de proposito, porque, repito, não era um assumpto legislativo novo, e apenas cumprimento de um dos artigos de uma concordata anteriormente celebrada, e não recorreu ainda a esse meio, porque d'essa fórma se estabelecia um precedente que poderia acarretar funestas consequencias.

Aqui tem, pois, a camara, a explicação cabal, positiva e peremptoria do acto do governo.

Não houve infracção constitucional, porque a concordata de 1857 dava ao governo a faculdade de tratar com a Santa Sé, ácerca do assumpto a que se referiam os artigos 11.° e 12.° da mesma concordata, e evitou-se cautelosamente recorrer para a resolução de difficuldade ou á dictadura ou ao preceito contido no artigo 15.° do acto addicional á carta, porque se não quiz estabelecer um mau precedente, e porque os termos da primitiva concordata com a Santa

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estavam formulados de modo a auctorisar interpretação do governo, o que decerto não succederá outra vez.

Disse o digno par o sr. arcebispo resignatario de Braga que o governo não tinha necessidade de proceder com precipitação.

Pois não estava o nosso embaixador declarando a necessidade instante que havia de resolver o assumpto?

S. exa. lançou mão de um meio vulgar nas discussões politicas, isto é, apresentou ou leu a parte dos documentos que serviam para a sua argumentação, mas absteve-se cuidadosamente de apresentar aquelles que justificam o acto do governo ou as rasões que determinaram o modo por que eu procedi.

O nosso embaixador escrevia para Lisboa o seguinte:

(Leu.)

Quero eu dizer com a leitura d'estes dois trechos que declino a responsabilidade da resolução do governo sobre o nosso embaixador?

De modo algum. A responsabilidade é toda do governo e só d'elle.

O digno par o sr. arcebispo resignatario de Braga, analysou-nos aqui o artigo de um jornal e disse que pela concordata de 1886 tinha havido perdas e lucros.

Ainda bem que houve perdas e vantagens.

S. exa. revma. leu-nos una trecho no qual se dizia que em certo bispado se tinham perdido tantas almas, mas que em outro bispado se tinham ganho tantas.

Por ahi se vê que houve compensações, e compensações de natureza tal que uma foi de nada menos de 22:000 fieis. Esse jornal é estrangeiro, e portanto, é um testemunho insuspeito, embora s. exa. revma. diga que elle é mais ou menos inspirado pela Santa Sé, o que para s. exa. parece ser um motivo de suspeita. E n'estas circumstancias s. exa. notou á camara que se diz n'elle que o principal fim que a Santa Sé tivera com a concordata de 1886 fora acabar com a concordata de 1857.

Ora, sr. presidente, eu quero crer que esse fosse o pensamento do articulista, mas não o da Santa Sé! E sabe v. exa. porque?

Vou citar a esse proposito um documento que póde ser contestado por todos, menos por um arcebispo da igreja catholica apostolica romana.

Refiro-me á carta de Leão XIII; Sua Santidade na carta que escreveu a El-Rei de Portugal no começo das negociações, e quando ainda se não tinham obtido todas estas vantagens que mais tarde se alcançaram com as igrejas de Bombaim, Madrasta, Calcutá e Syngapura, n'essa carta escripta ao Senhor D. Luiz por occasião do fallecimento do seu augusto pae, o senhor D. Fernando, dizia, repito, o Santo Padre que na proposta que a Santa Sé fazia a Portugal ficava substancialmente resalvada a propria concordata de 1857.

(O orador folheando o Livro branco.)

Tenho pena de não encontrar n'este momento as palavras textuaes do Santo Padre.

(O orador continuando a folhear o Livro branco.)

Não encontro agora as palavras, mas é este o sentido d'ellas: "por fórma que na proposta que a Santa Sé dirige a Vossa Magestade até a propria concordata de 1807, se póde dizer que está substancialmente conservada".

Ora francamente eu acredito mais no que diz a Santa Sé em documento tão solemne, firmado pelo proprio Pontifice do que na opinião do tal individuo anonymo que em França escreveu o artigo a que s. exa. alludiu e que por minha parte eu conhecia e tinha lido no jornal em que primeiro appareceu.

S. exa. revma. disse que appellava para a camara, e que ella não poderia consentir que se rasgasse a constituição do estado, e disse mais o digno par que o governo não podia invadir ás attribuições do poder legislativo e que esperava do patriotismo d'esta camara que obrigaria o governo a cumprir com o seu dever.

Sr. presidente, s. exa. contestou que a attitude do soberano territorial da India n'esta questão fosse a que eu tinha dito.

Eu não contesto, nem sequer um momento que tanto s. exa. como os outros prelados fossem o alvo das maiores attenções e de manifestação de respeito pela auctoridade britannica; foi o v. exa., foi-o- o sr. arcebispo D. Ayres de Ornellas e tem-o sido o actual bispo D. Antonio, mas o que é certo é que o soberano territorial tem uma opinião formada sobro esta questão, e se em face d'ella nós podemos ainda assim sustentar os nossos direitos, não podemos comtudo desatender as considerações que em Roma nos têem sido feitas e que se lêem em largas correspondencias de Londres desde tempos muito antigos até hoje.

Sr. presidente, disse s. exa. que as missões na Africa eram uma illusão e que os habitantes d'esse vasto continente eram demasiado boçaes para acceitar a luz do christianismo. Eu fiquei espantado que da boca de um prelado catholico saísse uma tal condem nação sobre tantos milhões de nossos irmãos, segundo a lei de Christo.

As condições particulares em que se encontram as raças africanas explicam em verdade o ser impossivel espalhar ali a methaphysica elevadissima, que constitue a ampla base da doutrina christã, mas o facto é que se não encontramos hoje na igreja de Africa homens como Origenes, Lactando e S. Gypriano, ahi vemos um cardeal Lavigerie, ahi vemos tambem os missionarios, com que todas as nações da Europa, quer protestantes, quer catholicas, procuram desenvolver a fé christã n'essas regiões de Africa, onde a vida é dura, onde as circumstancias do missionario são precarias, onde se exige muita fé e grande abnegação para sacrificar inteiramente todas as vantagens, grandezas e commodidades da vida civilisada.

Vemos hoje a França, Hespanha e por igual fórma a Allemanha e outras nações catholicas e não catholicas, conseguir brilhantes resultados.

E vemos tambem portuguezes que conseguem isto, e o seu trabalho tem tanto mais merecimento, quanto é certo que não provem de obrigação que lhes impozesse a obediencia.

Nós vemos ali o padre Barroso, nós vemos o padre Antunes procurando explicar os principios rudimentares da fé, lançar as primeiras sementes da moral christã, constituir a familia indigena, e excitar em o negro o amor do trabalho.

Ali vemos um padre Antunes agarrando n'esses pequenos africanos, segregando-os de todo o convivio com os representantes da sua raça, ensinando-lhes a lavrar a terra, a usar dos instrumentos de trabalho, a aprender emfim da moral christã tudo que é compativel com o seu estado intellectual, mas que já dá margem a assegurar a felicidade do homem e o engrandecimento da sua raça.

Nós vemos tudo isto exercido por um sacerdote portuguez; e eu não esperava ouvir um prelado portuguez dizer que em Africa se não podia missionar.

Sr. presidente, que a Africa representa o nosso futuro, não é uma phrase de rhetorica. (Apoiados.)

Talvez que eu ainda hoje no ministerio da marinha tivesse colhido a prova contraria do que se tem dito n'esta amara em desfavor das missões na Africa.

Pois com aquelle dom que os europeus têem na Africa de alastrarem o seu nome por uma região vastissima, pelos seus emprehendimentos, pela superioridade do engenho que tudo domina, se esse europeu for um missionario que, pela sua vida evangelica, mais respeito conquista n'aquella região, porque a sua acção se achará desligada de todas essas pequenas fraquezas e miserias moraes que acompanham a humanidade, esse homem alcançará ahi um tal renome, que muito mais se alargará a sua influencia, e com ha a influencia da civilisação europêa.

Se em geral a influencia do europeu é grande em Africa, a do missionario ainda é maior; e tanto isto é reco-

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nhecido, que o congresso de Berlim inseriu entre as suas resoluções uma disposição para que as missões religiosas na Africa mantenham o direito de livre expansão.

Ora depois de tudo isto vir o nobre arcebispo affirmar o que disse, não é crivel. Os trabalhos lá são. rudes, mas a messe é promettedora.

Voltando, porém, á concordata, sr. presidente, ou antes á inconstitucionalidade do acto do governo, se eu conseguir percorrendo artigo por artigo a concordata de 1857 demonstrar que n'ella se contem em germen todas as disposições da de 1886, terei destruido pela base essa tão repetida accusação. Ora o artigo 1.° é o que estabelece a continuação do padroado na India e China, mas como e onde? Dil-o o artigo 2.°, continuará emquanto á India nas diiceses de Goa, Cranganor, Cochim, Meliapor e Malaca. Ora eu já disse á camara que se nós não temos hoje um bispo de Cranganor é porque as condições de Cranganor o não permittem, e não por causa da concordata de 1886. Não foi a concordata que matou aquelle bispado, elle tinha morrido, por si.

Mas, temos Cochim, Meliapor e Malaca, embora ligada a Macau, o que é materia da circumscripção. Vamos agora ao artigo 3.° Diz-se ahi que emquanto á China o padroado continúa na igreja de Macau. Os artigos 4.°, 5,° e 6.° se referem todos á China. Segue o artigo 7.°; é o que estabelece que pela grandeza da diocese de Goa, esta deveria sor dividida em duas. Foi o que se fez creando-se a diocese de Damão que conserva ligada a si a maior parte da cidade dó Bombaim. O artigo 8.° referia-se á ilha Pulo Penang na China, nada tem com o caso. Pelo artigo 9.° Singapura ficaria ligada a Malaca, é o que succede, ficando Singapura e Malaca ligados a Macau. Vejamos agora os artigos 10.° e 11.° São importantissimos, pois n'elles se contem a auctorisação para proceder, em acto addicional ou regulamento, é tal é precisamente a actual concordata, á circumscripção das dioceses, fixando-se tambem as bases ou principios em que essa circumscripção deverá conter-se. Vanios ao artigo 10.°; refere-se este ás bases para o governo poder organisar as dioceses.

No artigo 11.° diz-se que por parte do Summo Pontifice e de Sua Magestade Fidelissima se tem decidido pôr um termo ás difficuldades levantadas na India e acrescenta-se o seguinte:

(Leu.)

Nos termos do artigo antecedente. E quaes são os termos do artigo antecendente? São os que devem regular para a circumscripção convencionada entre as duas altas partes contratantes, e aquellas ficam auctorisadas a realisar.

Resta o artigo 12.°

(Leu.)

Foi o que succedeu, tanto nas bulias dos bispos como na geral, assim se procedeu.

Artigo 13.° Diz respeito aos commissarios.

(Leu.)

Sabe a camara quem foram actualmente estes commissarios? Foram o ha pouco fallecido cardeal Jacobini e o embaixador de Portugal, não sendo preciso ir á India proceder á circumscripção sobre o terreno, porque para aquella delimitação bastavam entre outros os trabalhos do digno par o exmo. arcebispo resignatario de Braga, quando arcebispo de Goa.

Resta o artigo 14.° que constitue a grande difficuldade que se me oppõe, pois por elle se mantinha o padroado em toda a India Ingleza.

Ora a este respeito eu vou repetir uma demonstração já feita na outra camara e tambem já aqui resumida pelo digno par o sr. Agostinho de Ornellas.

O sr. arcebispo de Goa, nas suas acres accusações contra o governo, quer que seja acceita pela camara a doutrina de que o governo exorbitou as suas attribuições, avocando a si a faculdade de ratificar esta concordata, negociação, ajuste, regulamento ou como queiram chamar-lhe, por ter sacrificado o direito que lhe dava este artigo 14.°, que s. exa. aliás classificára em tempo de méra ostentação, e clausula sem valor pratico. O que me vale porém, é que opinião de s. exa. de hoje eu tenho a contrapor, não direi a minha, que não teria a necessaria auctoridade, nem a do sr. Mártens Ferrão, cuja competencia aliás ninguem poderia contestar, mas a que eu não me reporto porque sendo esta negociação sua e tendo-lhe s. exa. o affecto que um pae tem a um filho seu, poderia ser taxada de suspeita; mas sim a opinião do sr. Vicente Ferrer, que até saiu do ministerio para poder continuar a combater a doutrina que se firmára com concordata de 1857.

Não lerei á camara todos os trechos do parecer do sr. Ferrer, escripto em 1859, como membro da commissão dos negocios ecclesiasticos da camara dos senhores deputados; no emtanto ouça a camara o que entre outras cousas elle dizia:

"O real padroado da Índia fica com as cinco dioceses de Goa, Cranganor, Cochim, Meliapor e Malaca (artigo 9.° da concordata), e os limites dos bispados já mencionados hão de ser circumscriptos, e o seu territorio ter tal extensão, que n'elle se não difficulte o prompto e proficuo exercicio de jurisdicção episcopal (são palavras do artigo 10.° da concordata). Já se vê que os perimetros das dioceses hão de ser infinitamente pequenos em comparação das que actualmente têem, comprehendendo cinco bispados actualmente as immensas regiões da India."

Ora é n'este ponto que está a differença capital entre as consequencias a que o sr. Ferrer julgava que dentro da concordata se podia chegar, e aquellas a que chegámos, na realidade.

As actuaes dioceses foram reduzidas, mas ficaram como deviam ser e como se suppunha que pela concordata de 1857 necessariamente deviam ficar, isto é, com a extensão necessaria para se não difficultar n'ellas o proficuo exercicio da jurisdicção episcopal.

Continuára depois o sr. Ferrer: "Feita a circumscripção que ha de ser reduzida a um acto addicional (artigo 11.° da concordada) e a actual concordada equivale a este acto addicional, hão de erigir-se nas immensas regiões, que ficaram de fóra d'aquellas dioceses, novos bispados, e para todos se exigem as mesmas formalidades (artigo 14.° da concordata)" e aqui estamos com o famoso artigo 14;° a contas, e por isso eu peço para o que vou ler, toda a attenção da camara.

"Logo, todos estes novos bispados devem de ter um territorio que não difficulte o prompto e proficuo exercicio da jurisdicção episcopal. E quantos bispados novos terão de erigir-se n'estas terras? A commissão confessa que não póde calcular com exactidão o numero, mas olhando para a carta geographica da India ingleza, parece-lhe que não será excessivo o numero de cincoenta. E póde o governo portuguez edificar tantos seminarios, catedraes, paços episcopaes, crear tantos cabidos e dotar todos estes estabelecimentos em seis annos, em regiões remotissimas, como as da India ingleza, e onde não tem poder temporal?

"Á commissão parece impossivel."

Não se está vendo aqui antecipadamente descripto artigo por artigo a concordata de 1886?

Depois d'isto pergunto eu qual havia de ser o juiz da necessidade da creação d'essas cincoenta dioceses?

Havia de ser Portugal?

Havia de ser a Inglaterra, que nada quer saber do que diz respeito á jurisdicção ecclesiastica e catholica da India?

Evidentemente não.

A Santa Sé era o unico juiz.

A Santa Sé dirigindo-se ao Rei de Portugal dir-lhe-ia pois:

"Vós sois o padroeiro e careceis de crear tantas dioce

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ses; cumpri o vosso dever, sem o que não podereis entrar no goso d'esse direito."

Ora a proposito d'isto dizia o sr. Ferrer o seguinte:

"E qual será o resultado de se não cumprir esta condição? PELA CONCORDATA se vê que não continuará o real padroado n'estes territorios, que ficaram fóra dos limites marcados ás dioceses existentes (artigo 14° da concordata) e pelo ultimatum, n.° 3.°; findos os seis annos expirará a jurisdicção delegada ao arcebispo de Goa e aos padres seus substitutos, e o Santo Padre nomeará vigarios apostolicos (como logo se mostrará) para governar a maxima parte do real padroado; de modo que em ultima analyse viremos a ficar com a diocese de Goa, e se o commissario romano quizer concordar com o nosso teremos tambem as limitadas dioceses dos outros quatro bispados existentes."

Aqui está o que dizia o sr. Ferrer em 1859, analysando as consequencias lógicas da concordata. O padroado portuguez na India não poderia, passado tempo, e como consequencia d'esse facto, dentro inteiramente do que elle dispunha, deixar de se circumscrever ás dioceses concordatarias, cessando em todo o resto da India ingleza. Foi o que succedeu.

Era esta a opinião do sr. Ferrer que não póde ser suspeito, pois escrevia em 1859, e eu creio assim que estou em boa companhia, quando affirmo hoje que um pacto, como a concordata de 1886, não passa de acto addicional ou regulamento auctorisado pelo artigo 11.° da concordata de 1857. Onde ficará n'estes termos o crime do governo?

Sr. presidente, nada mais acrescentarei a este respeito.

Agora cumpre-me dizer ainda algumas palavras em resposta ás observações que o sr. Bocage fez n'uma das ultimas sessões.

Não respondi immediatamente a s. exa. n'essa sessão, pelos motivos que já tive occasião de expor.

S. exa. merece-me toda a consideração, e nunca poderia entrar no meu espirito o ser desagradavel a quem, por muitos titulos, respeito.

S. exa. referiu-se á circumscripção das dioceses, e sobre isto fez algumas considerações.

Ora eu devo dizer ao digno par que a circumscripção que s. exa. criticou não era uma circumscripção nova para s. exa., já existia proposta pela Santa Sé e tacitamente acceita por s, exa. antes de abandonar o ministerio.

A diocese de Cochim, por exemplo, encontra-se descripta, quasi nos termos em que figura na concordata, em uma nota transmittida de Roma ao sr. Bocage, e ácerca da qual não consta que houvesse protesto ou reclamação de s. exa., vendo-se, pelo contrario, do Livro branco, que a negociação continuou em Roma sobre a base d'essa proposta, apenas ampliada com a condição de se não perder nenhuma das nossas christandades.

O sr. Barbosa du Bocage: - Era a Cochim que eu me referia.

O que eu desejava saber era a maneira por que estava feita a demarcação da diocese de Cochim, e se p nobre ministro tinha adquirido provas incontestaveis de que era com effeito uma diocese continua, isto é, em uma circumscripção territorial continua.

Ao encontrar esta diocese definida apenas por uma simples lista de nomes, que eu não sei a que correspondem, se a igrejas se á localidades, não ficava o meu espirito sufficientemente elucidado ácerca de ser a diocese de Cochim, sim ou não, uma diocese continua.

Não me tinha pronunciado de uma maneira positiva, nem podia pronunciar, porque não possuo informações seguras ácerca da demarcação proposta e acceite na concordata.

O Orador: - O que posso assegurar é que a demarcação existente é a que vinha na proposta sobre que s. exa. declarou não se ter pronunciado, mas ácerca da qual houve negociações no seu tempo, que s. exa. não repudiou, e que continuaram, depois que o nobre ministro abandonou o poder.

Posso tambem assegurar que esta diocese é continua, e abrange todo o territorio que existe entre a diocese de Verapoly e a de Coulão.

Emquanto á nomeação de cabidos não posso saber se essa exigencia se faz por igual nas dioceses da propaganda. Nada tenho com isso. Faz-se, é certo, para nós, e não admira pois que os cabidos são instituição que sempre acompanha os bispos, mas posso assegurar á camara, que a Santa Sé que insistiu pela nomeação dos bispos, se mostra disposta a não insistir por emquanto de modo igual no que respeita ao provimento dos cabidos.

Creio que eram estes os pontos principaes sobre que s. exa. tinha chamado a minha attenção e a que eu não queria deixar de responder tanto quanto em mim coubesse, se algum mais me escapou, a benevolencia de s. exa. avivará a minha memoria, e dar-me-hei pressa como me cumpre e convem, a qualquer explicação que ainda se torne necessaria.

(S. exa. não reviu as notas tachygraphicas.)

O sr. Fernando Palha (sobre a ordem): - Mando para a mesa a minha moção, que consiste no seguinte additamento. (Leu.)

Sr. presidente, não tencionava entrar n'este debate e as rasões são obvias; não tendo ainda tido a honra de usar da palavra n'esta casa, estranho pareceria que escolhesse, para o fazer pela primeira vez, um assumpto em que a minha opinião, a minha moção o está dizendo, é tão diametralmente opposta, estou convencido, á opinião da maioria dos membros da camara; alem d'isto não me julgava, como não me julgo ainda, com auctoridade para lançar luz sobre uma questão tão larga e proficientemente tratada pelos oradores que me têem precedido.

Só a minha, consciencia me poderia impellir a justificar o meu voto se a concordata estivesse sujeita á deliberação da camara; mas como o governo, bem ou mal, não discuto o ponto, entendeu não dever ou não poder sujeital-a a esta prova, nem esse motivo me restava.

Manteria o meu proposito se um periodo do discurso do digno par o sr. Thomás Ribeiro não tivesse vindo despertar essa mesma consciencia e obrigar-me a sair do silencio.

É necessario, disse s. exa., que em Portugal haja vozes que não tenham receio de dizer o que pensam. E no intimo da alma respondi immediatamente que queria ser uma d'essas vozes. Comtudo ainda esperei; quiz ver se nos numerosos discursos, que a inscripção me dizia iam ser pronunciados n'esta casa, algum argumento me convencia e demovia de usar da palavra. Esperei em vão. Usarei da palavra e a camara julgará se a minha coragem não é muito superior á coragem do sr. Thomás Ribeiro. A s. exa. que dispõe de uma voz que, ainda quando quer parecer irritada, nunca deixa de ser a voz do cantor do D, Jayme e da Delphina do Mal, é facil vir aqui, exaltando sentimentos patrioticos, sacudindo esse véu em que as lantejoulas alternam com as gemmas preciosas das nossas glorias nacionaes, é facil, digo, fallando ao paladar dos que o escutam obter os applausos de todos: emquanto que a minha missão é tudo quanto póde ser de mais ingrata. Ser eu, um dos membros d'esta casa que mais cabellos pretos conserva, que venha fallar em nome do que supponho ser a voz da rasão quando venerandos anciãos, que deviam ser os primeiros a fallar em nome d'ella e só a ella escutarem, se exaltam e enthusiasmam, a ponto de chorarem sobre as ruinas do que dizem ser um padrão de gloria para Portugal. Para quem hão de ser as sympathias senão para elles, para quem os apodos senão para mim?

Não hesito ainda assim e não recuarei diante da missão que me impuz. Sem ter a esperança de convencer ninguem... Esperança tenho, porque estou intimamente convencido que muitos do que me escutam partilham os sen-

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timentos que me animam, embora não tenham a coragem de me dar os seus apoiados.

O sr. Adriano Machado: - O meu tem-n'o já.

O Orador: - Muito obrigado.

Sr. presidente, eu applaudo a concordata. Applaudo-a o pelas rasões com que a tenho visto defender n'este camara, não porque me convencessem os argumentos que em favor d'ella produziu o meu illustre amigo o sr. ministro dos negocios estrangeiros, não ainda porque a ferocidade de leão (foi s. exa. o ministro que assim o classificou), do nosso illustrado embaixador em Roma logrou em troca de 38:000 almas conquistar para o padroado 40:000, nem mesmo por causa d'aquellas 15:000, e uma que o reverendo arcebispo resignatario de Braga acaba de nos dizer que adquirimos em Pondá, mas unica e simplesmente porque por ella abandonou Portugal uma parte d'esses direitos que até aqui tem pretendido exercer.

Applaudirei com mais enthusiasmo ainda aquella em que todos esses direitos, quando não exercidos em territorio nosso, forem, abandonados por completo, é o meu espirito ficará plenamente satisfeito quando vir consignado na constituição do meu paiz, o unico principio que considero verdadeiro em materia de relações do estado com a igreja, a sua completa separação. (Apoiados.) porque n'esse dia, sr. presidente, as concordatas tornar-se-hão ispo facto desnecessarias.

O meu applauso não é comtudo despido de hesitação e não sei se não teria sido mais habil da parte do governo, usando de apparente inhabilidade, oppôr ás exigencias de Roma continuadas dilações, conservar o statu quo, ou mesmo deixar com ellas perdeu o que a meu ver não merece ser conservado. O facto consummado evitava posteriores difficuldades.

Entro na questão. O que é o padroado? Alguem disse, e julgo ter sido o sr. ministro da marinha, que o padroado é uma parte da soberania de Portugal. Sel-o-ia talvez se conservássemos hoje a organisação social que tinhamos ca epocha em que foi fundado, porque então o Rei, representante unico da nação, chefe supremo do estado, compendiava em si todos os poderes e prerogativas que hoje pertencem e são exercidos por elle, em parte, mas tambem por entidades differentes, e os seus direitos, embora pessoalmente lhe pertencessem, constituiam a soberania nacional. As idéas de hoje são bem diversas; a nossa organisação social obedece a outros principios. A soberania exerce-a ainda o Rei; mas com elle collabora o poder legislativo e o poder executivo, e uns e outros não têem, nem podem exercer, direitos que não pertençam a todos os cidadãos e que por elles lhes não forem delegados; direitos que não podem ser proficamente exercidos por cada um individualmente é que constituem a soberania. O ideal da moderna sociologia, ou pelo menos da escola com que mais sympathisa o meu espirito, ideal irrealisavel em absoluto, é uma descentralisação tão completa que o papel reservado ao estado venha a ser nullo ou quasi nullo. Postos estes principies, desde o momento que os cidadãos portuguezes não têem o direito exclusivo de evangelisar, cathechisar e parochiar (e n'isto consiste o padroado) as terras do oriente que estão fóra do nosso dominio effectivo, esse direito não póde fazer parte da soberania nacional.

Não era assim no tempo em que o padroado foi fundado. N'esses tempos, tão gloriosos, - e seja me permittido dizer desde já de passagem que eu, por querer separar o trigo do joio, não nego nem amesquinho as glorias patrias, antes as exalto e engrandeço, - n'esses tempos tão glorioso, repito, em que Portugal fazia tremular a sua bandeira e estendia o seu dominio pela Africa, pela Asia, pela America e pela Oceania, e não lhe restava mar por devassar, o padroado era não só um direito, mas uma necessidade. Direito porque era lei commum da igreja que todo aquelle, Rei, principe ou simples cidadão, que fundava uma igreja em terra de infieis, tinha jus a ser pela curia reconhecido padroeiro d'ella, com a condição, porém, de a manter e de prover ás necessidades espirituaes das almas que resgatára.

Para o desempenho da missão que Portugal se impoz na Asia, o exercicio d'esse direito era absolutamente indispensavel. O que teria sido o nosso já tão ephemero e tão precario dominio, se em vez de ser Portugal que provesse as igrejas que se iam fundando nas terras conquistadas ou limitrophes das conquistas, outra entidade, fosse qual fosse, estranha aos nossos interesses e visando a outros fins, fosse chamada a fazel-o?

Por consequencia, n'essa epocha, os direitos que agora queremos reivindicar, não só eram uteis, mas necessarios, tanto mais que eram a consequencia logica das idéas a que obedeciam os promotores das nossas navegações e conquistas: o engrandecimento dos seus dominios e a propagação da fé. E, seja dito de passagem, eu não acceito sem commentarios as conclusões que hontem o digno par, o sr. Costa Lobo, tirou da leitura dos clássicos, e em especial dos textos, que nos leu, isto é, que o fim principal dos nossos maiores foi a propagação da fé.

Temos obrigação, quando lemos hoje a historia escripta pelos contemporaneos, de lhe acceitarmos os factos, sim, mas de os submettermos de novo ao nosso, raciocinio, e nem sempre as conclusões tiradas hoje se podem harmonisar com as palavras escriptas então. A cada passo, ao ler o facto apontado como mais uma cavadella na vinha do Senhor, o espirito hesita em o classificar como tal, e muitas vezes é forçado a chamar acção de pirata o que o chronista chamou feito de apostolo.

Azurara, por exemplo, o primeiro chronista da conquista da Guiné, não descreve o roteiro de cada um dos pilotos e capitães portuguezes, que não consigne cuidadosamente o numero de almas que cada um d'elles resgatou. Até aqui muito bem, mas se attentarmos no destino que era dado áquellas almas quando as caravellas fundeavam no porto, vemos, com espanto, que eram vendidas na praça publica. A este resgatar de almas do seculo XV chamava-se, dois seculos depois, vender pretos, e contra tão nefando trafego se colligaram todas as nações da Europa, e com ellas Portugal.

Da mesma fórma, é verdade que fomos a Ceylão, mas iriamos sobretudo para propagar a fé? Lá havia almas, é certo, mas tambem havia perolas, e se s. exa. quizer examinar bem o livro immortal que hontem aqui citou, ha de n'elle encontrar, estou convencido, que o motivo determinante da primeira expedição a Ceylão, foi estender o dominio portuguez sobre a ilha que banhava o mar das perolas.

Affonso de Albuquerque se fez tanto empenho em se estabelecer em Ormuz, foi porque era d'ali que a India se abastecia de cavallos; se mandou descobrir as Molucas, foi porque de lá vinha o cravo; se tentou relacionar-se com a China, foi porque lhe apeteciam as suas sedas; e finalmente, se, com tanta gloria conquistou Malaca, foi porque não desconheceu que era aquelle o melhor ponto em que com aproveitamento das monções, n'aquelles tempos de navegação imperfeita, se podia fazer a troca e escambo das mercadorias do extremo oriente com as da India. Amavam muito, não o nego, a gloria da Igreja, mas não desprezavam tambem os bens d'este mundo.

Sobre as citações que hontem aqui fez o digno par, o sr. Costa Lobo, ainda tenho que dizer mais alguma cousa, mas será a seu tempo.

Dizia pois que a intervenção na organisação religiosa dos territorios do padroado, util e necessaria, no seculo XVI, não póde ser considerada uma parte de soberania nacional. Combatemos por uma jurisdicção puramente religiosa exercida em territorio estranho e que não nos póde nem deve pertencer.

Comprehendo que nos territorios onde temos dominio effectivo, nas actuaes colonias, n'aquellas em que conserva-

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mós auctoridade e onde as leis portuguezas são respeitadas, comprehendo que ahi, como em todo o reino, o governo intervenha na nomeação dos que vão exercer o sagrado ministerio, sobretudo emquanto esse ministerio estiver essencialmente confundido com funcções administrativas. Ahi perfeitamente, em territorio estranho praticamos uma usurpação.

Os representantes de Christo e dos seus apóstolos na terra não somos nós, sr. presidente, nem o são os homens de estado de qualquer paiz; não foi a nós que elle disse: ide e ensinae todas as gentes. Á igreja é que foi confiada essa missão. Pôr-lhe n'ella embaraços, coarctar-lhe a sua acção, sobretudo quando nada justifica esse procedimento, quando nenhum perigo nos póde advir do contrario, é dar prova de pouca fé religiosa, é suppor, o que não é licito, que o Rei de Portugal, ou os seus ministros têem mais competencia na escolha de quem ha de propagar a fé do que o supremo pastor, o chefe supremo da christandade.

Quando o governo nomeia bispos para as dioceses, não é porque lhe pertença escolher successores para os apostolos, nomeia funccionarios que vão buscar a Roma a jurisdicção religiosa que o governo lhe não póde conferir. São cidadãos portuguezes, são funccionarios portugueses sujeitos ás leis do seu paiz, mas emquanto bispos o seu superior é o Papa e só elle, e se o governo intervem com elles em materia religiosa é em virtude de tratados e convenções negociadas e estipuladas com esse superior, e provenientes da confusão de funcções que pelos bispos são exercidas.

Não confundamos; se o bispo é nomeado para paiz onde Portugal não exerce soberania, elle não póde exercer, como no reino, funcções administrativas; desapparece o funccionario e fica só o prelado; logo, deve tambem desapparecer toda a intervenção, outra que não seja a do pontifice, na sua nomeação.

Mesmo aquelles que justamente são nomeados pelo governo, quando a vontade de Roma se achar em opposição com a vontade do imperante, devem obedecer ao Pontifice; isto póde não ser patriotico, mas é logico, e quem não quizer achar-se em tão penoso dilemma resista á vocação, não se ligue por laços que mais tarde não póde quebrar.

Não posso, pois, deixar de dizer que Roma, que incessantemente tem porfiado por nos arrancar estes direitos, tem cumprido com o seu dever, e Roma não teria talvez rasão para se mostrar tão zelosa, se podessemos ao lado d'este patriotismo, com que temos sempre defendido o padroado, provar que tão bem como o Pontifice nos desempenhamos dos deveres que voluntariamente assumimos. Podemol-o fazer?

Respondem varios membros d'esta camara, responde o sr. ministro da marinha, responde o proprio sr. Thomás Ribeiro, porque todos confessam que o nosso desleixo tem sido grande. Portugal não tem cumprido os seus deveres de padroeiro, e embora em parte isso se possa attribuir ás resistencias que tem encontrado, é facto incontestavel que a nossa iniciativa tem sido bem pequena.

E este desleixo ha de continuar; passada esta primeira influencia da concordata, em que se quer justificar a energia com que se negociou, com a brevidade com que se provêem as dioceses, os ministros da corôa hão de esquecer-se muitas vezes, e tanto como o faziam até aqui, das necessidades do padroado, para attenderem ás necessidades da fazenda e da administração publica, e não serei eu que por isso os censure.

Hão de esquecer por mais de uma vez que as dioceses estão sem bispos, os cabidos sem conegos, os seminarios sem theolgos; e quando chegarem as representações pedindo o provimento das sédes vagas, hão de ficar sem despacho porque, desde já o prognostico, os governos hão de cansar-se de ver voltar do oriente collecções de bispos resignatarios que, ou hão de ser providos nas sés do reino, quando as houver; ou hão de receber pensões do estado, se voltarem pobres, como é de esperar, porque a corôa de Portugal não ha de consentir que bispos portuguezes sejam forçados a pedir esmola para viver.

É, embora o digno par e reverendo arcebispo resignatario de Braga diga que nenhuma nação nos póde contestar o direito que vamos exercer, eu não posso partilhar a confiança de s. exa. Não se trata da jurisdicção inherente á soberania, que toda a nação civilisada conserva sobre os seus nacionaes, mesmo quando elles residem em paiz estrangeiro, por via dos seus funccionarios, consules ou embaixadores, e em virtude de tratados mais ou menos priviligiados, ou simplesmente em virtude do direito das gentes respeitado por todas as nações cultas. Trata-se, pelo contrario, de exercer sobre subditos de uma nação amiga e alliada, porque o são na grande maioria, uma jurisdicção que nação alguma do mundo exerce fora do seu territorio. A Inglaterra, até hoje, coherente nisso com a sua politica religiosa, nenhum obstaculo tem posto ao exercicio dos nossos direitos, mas, como os precedentes não a obrigam, como não ha tratados que a liguem a assim continuar a proceder, pois, se não me engano, apenas quando Bombaim foi dado em dote de uma princeza portugueza, se fez relativamente a esta cidade reserva dos direitos do padroado, as circumstancias podem mudar, e causas que não posso prever, mas facilmente admissiveis, podem-no levar a proceder de outra fórma. Lamentaremos então, mas fôra de tempo, o não ter afastado o pretexto de violencias a que não podemos resistir.

De mais tenho respondido a quem chamou ao padroado uma parte da soberania de Portugal.

Houve tambem quem disesse que era um meio poderoso de estendermos a nossa influencia. Pergunto: que influencia? Colonisadora? Ha quem queira voltar ao tempo das aventuras? Ha alguem que supponha a possibilidade de podermos representar de novo o papel que desempenhamos no oriente? Suppondo mesmo uma convulsão politica na India, suppondo uma invasão possivel de russos que viesse abalar e mesmo destruir a dominação ingleza, eu ainda assim não creio na possibilidade de augmentar os nossos dominios nem desejaria que o tentássemos; seria voltarmos aos tempos das emprezas aventurosas, para colhermos mesmos fructos que d'ellas colheram os nossos maiores. Bem gloriosas foram e comtudo tiveram por conclusão logica Alcacer Kibir e sessenta annos de dominação estrangeira. Hoje não póde haver Alcacer-Kibir, porque tambem já não póde voltar um D. Sebastião, que em tal empreza empenhe e arrisque todas as forças vivas do paiz; mas ha a bancarrota, o Alcacer Kibir das nações modernas, e sobretudo das nações pequenas, cujos desastres não são menos para temer que os do campo da batalha. (Apoiados.) Levam igualmente á perda da nacionalidade e se custam, menos vidas, se são menos ensaguentados, causam ruinas mais completas, mais duradouras, aggravam a pobreza do pobre e abalam profundamente toda a constituição interna de um paiz.

O digno par o sr. Costa Lobo fallou no bezerro de oiro como que estranhando que houvesse quem o adorasse. Pois eu direi que quem hoje o adora faz o que deve porque não desconhece qual é maior força da moderna sociedade.

Sem o oiro, que elle symbolisa, sem essa poderosa alavanca faltaria nos estados modernos tudo quanto nos é mais caro, tudo quanto contribuo para engrandecer e enobrecer o nosso viver social, a arte, a sciencia, a instrucção e a moralidade. De que serve mandar, com grosso despendio, educar artistas nas escolas mais afamadas se ao regressarem, o esculptor tiver de fazer-se santeiro e o pintor tiver de pintar taboletas para viver?

Como havemos de figurar dignamente no mundo, scientifico se nem tivermos escolas bastantes para que todos aprendam ao menos a ler? E não as temos (Uma voz: - Muito bem.)

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310 DIARIO DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

Influencia mercantil? Risum teneatis.

Pois estamos a ver os productos da nossa principal, porventura unica, industria, a agricultura, supplantados, e com vantagem, n'esses mesmos mercados onde circumstancias excepcionaes nos deviam manter o predominio, estamos a reconhecer que nem os proprios mercados internos podemos abastecer, e havemos de suppor que alcançamos qualquer influencia mercantil na India, emparedados por uma nação como a Inglaterra, essencialmente commercial, poderosamente productora?

Nem vale a pena demorar-se com a hypothese. Não basta para isso ser a nossa lingua a mais vulgarisada; e já que d'isso fallo, permitta-me o digno par, o sr. Thomás Ribeiro, que eu lhe diga que o argumento que pretendeu deduzir do livro que apresentou a esta camara é contraproducente. Não prova que o padroado seja necessario para conservar o predominio á lingua portugueza, prova pelo contrario que a despeito da perda do padroado a lingua ha de conservar-se. Se não, vejamos. O que é o livro? Uma biblia, o Pentateucho, edição, se não me engano, de 1883, traduzida no portuguez corrupto de Ceylão. Para quem? Para catholicos, não, porque a estes é defezo lel-a em linguagem vulgar, ou pelo menos sem notas, e eu não lh'as vi. Logo, é para protestantes, isto é, para individuos que não pertencem ao padroado e que ainda assim fallam portuguez.

A lingua do conquistador é quasi sempre o traço mais indelével impresso na raça conquistada. Por toda a Africa, pela Asia, onde dominámos, se encontra hoje a lingua portugueza, da mesma fórma que as innumeras palavras arabes de que nos servimos são ainda hoje o mais apparente vestigio da dominação arabe em Portugal. Estos é que são verdadeiros monumentos de conquista.

Sr. presidente, o sr. Thomás Ribeiro tambem fez comparações pouco lisonjeiras entre o procedimento do governo portuguez n'esta negociação, e o do governo hespanhol no incidente das Carolinas, que tanto sobresaltou o espirito patriotico da nação vizinha. Permitta-me s. exa. que eu lhe diga que a comparação é injusta. A Hespanha viu-se atacada nos seus direitos de soberania (e esses reaes e positivos), e obrigada a fazel-os respeitar por uma potencia muito mais poderosa do que ella; nós tratavamos com o Papa, que nem tem armadas para nos bloquear os portos, nem exercitos com que nos invada o territorio. Restam-lhe, é verdade, as armas espirituaes, e do conflicto podia resultar o scisma, mas esse mesmo era pouco para receiar, porque o proprio, interesse do Pontifice, que consiste era conservar unidos á curia o maior numero de fieis, faria com que as cousas não chegassem a esse extremo. E estou bem convencido que entre a cessação de relações com uma nação catholica e a conservação de alguns milhares de almas no padroado, Roma nunca havia de hesitar. Em todo o caso nunca é vergonha ceder aos fracos.

Disse-se, finalmente, sr. presidente, que abandonar o padroado era demolir um dos monumentos do nosso glorioso passado. Admitto que o seja; não o poderemos substituir com vantagem? Não haverá outros que mais claramente fallem do dominio que exercemos? Os Lusiadas, as Devidas de Barros e de Gouto, livros immortaes; Goa, a velha, com seus palacios em ruina, que contam grandezas que não voltam; o proprio titulo de primaz do oriente, dado ao arcebispo de Goa, que ninguem lhe contesta e que diz bem claro que, o primeiro bispo que na Índia exerceu o o sagrado ministerio foi o bispo portuguez. Não bastará isto?

O digno par b sr. Costa Lobo, no seu empenho de satisfazer aos desejos das christandades de Cevlão, que querem continuar sujeitas ao padroado portuguez e não aos padres da propaganda, quiz hontem demonstrar-nos com a leitura de varios trechos de Diogo do Couto que só pela fé desembarcámos naquella ilha e que por consequencia o padroado ali é o unico monumento das glorias que n'ella conquistámos. E não creia, s. exa. que eu combato a sua argumentação por me querer oppor por qualquer fórma a que sejam attendidas as supplicas dos singhalezes. Não, são tão raras estas manifestações de amor desinteressado que não se devem desprezar. Amor amore compensatur. E se por qualquer fórma eu podesse contribuir para a satisfação dos seus desejos de prompto o faria, tanto mais que sendo o meu desideratum que tudo se abandonasse, desde que o abandono não é completo, pouco importa a meu ver, que seja maior ou menor, sobretudo se, como dizem, esses novos subditos não são causadores de novos gastos.

Como prova das nossas glorias, sr. presidente, contou-nos s. exa. duas retiradas vergonhosas.

O sr. Costa Lobo: - Vergonhosas não, desastrosas.

O Orador: - Vergonhosas, sustento, porque é vergonha não saber o general conservar unidas as suas forças quando em retirada atravessa territorio inimigo, e o proprio texto que s. exa. nos leu, conta que elles vinham tão separados e distantes que não se podiam soccorrer uns aos outros, quer dizer que vinham em debandada.

Os factos da historia indiana da primeira metade do seculo XVI estão tão cheios de victorias, de conquistas e de feitos de valor devidos ás nossas armas, que não teve s. exa. a mão feliz escolhendo a narração de duas retiradas para demonstrar a gloria dos portuguezes. Tanto mais que n'ellas figuraram mais de setecentos soldados, que tantos foram os que ficaram mortos. Com pouco mais de setecentos portuguezes sustentou Antonio da Silveira o primeiro cerco de Diu, com igual numero se defendeu D. João de Mascarenhas na mesma praça durante mezes, com pouco mais de setecentos destroçou D. Francisco de Almeida, não já multidões de naires effeminados e inermes mas a esquadra dos rumes, aguerrida e tripulada por gente igual á que a fortuna de D. João de Austria foi derrotar .em Lepanto para que não avassallasem a maior parte da Europa.

Eu não posso, pois, acompanhar s. exa. no enthusiasmo que lhe despertou a leitura d'aquelles trechos, como não o posso acompanhar nas conclusões que julgou dever tirar da missão que os frades franciscanos realisaram na mesma epocha no reino de Candea. Contou-nos s. exa., para provar que os ministros do evangelho preparavam o terreno aos conquistadores e negociantes, que aquelles benemeritos religiosos apenas chegados junto do principe Singhalez tinham convertido centenares de almas e fizerem com que o soberano chamasse os capitães portuguezes para junto d'elle se virem estabelecer. Mas, continuando a sua leitura com a boa fé propria do seu caracter, não nos póde occultar o resultado obtido com estas tentativas, terminando, uma sem os portuguezes chegarem mesmo ao ponto para que se dirigiam e outra com o desastre a que já me referi. Singular exemplo adduzido para provar que os religiosos sabiam conquistar as sympathias dos rajahs, singulares sympathias, que se manifestavam por logros, ciladas e traições.

E emquanto ao caso, por s. exa. tambem referido, de terem os fidalgos e auctoridades portuguezas recusado vender o dente de Budha, conquistado em Japanapatão, dando assim prova de mais prezarem as suas crenças do que as exigencias do estado, proceder que motivou os louvores de s. exa. e o levou a duvidar que hoje se procedesse assim, direi, que não tenha duvidas. Hoje vendiam a reliquia e faziam muito bem, sobre tudo se com isso resolvessem as difficuldades da administração. Vendiam, mesmo sendo catholicos ferventes, porque são felizmente menos ignorantes; vendiam, porque sabiam que aquelle objecto não era mais do que uma reliquia e não idolo, venerada não adorada; vendiam porque sabiam que Budha não é um Deus para os hindus, mas um reformador da antiga crença, venerado e não adorado; vendiam porque sabiam que nem mesmo por destruir o idolo se destruia a idolatria.

E não nos espantemos nem estranhemos esta ignorancia dos nossos maiores, porque a leitura de nossas chronicas

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SESSÃO DE 31 DE MAIO DE 1887 319

as mais exactas e conscienciosas, deixa-nos impressão de que se era notavel o valor, a ousadia, ás vezes a virtude dos homens que de Portugal saiam para o oriente, notavel era tambem a sua ignorancia... mais, a sua incapacidade para perceber a arte, os costumes, a religião dos povos que conquistavam. Mais de um seculo dominámos na Índia e para a conhecermos foi necessario que outros a fossem devassar.

Parece que os heroes portuguezes não tinham olhos para ver e que o seu horisonte era circumscripto pelo raio das suas espadas.

Registavam cuidadosamente os feitos militares ou religiosos e do mais não curavam, e se, por excepção, se encontra alguma particularidade relativa ao viver intimo dos povos descobertos é raro que não seja ou falsa ou pueril. As proprias decadas não estão isentas d'este vicio. Garcia da Horta, homem de sciencia para o seu tempo, ao lado de muito curiosas observações, narra com seriedade pasmosa as mais grosseiras patranhas, e se alguns houve que mais illustrados ou mais conscienciosos narraram com verdade o que viram da flora, da fauna e da topographia das regiões que atravessaram, das instituições e do viver social dos povos que visitaram, como Fernão Mendes Pinto, que ha trezentos annos contou a China que hoje conhecemos, como os chronistas das expedições da Abyssinia, que descreveram o que viajantes modernos como Abbadie e outros confirmam agora, pelos contemporaneos foram taxados de mentirosos.

Fernão Mendes, por exemplo, com a sua exactissima relação, só conseguiu ser conhecido por longos annos por Fernão Mendes Minto.

O sr. Presidente: - Devo lembrar ao digno par que já deu a hora.

O Orador: - Se v. exa. me permitte, ficarei com a palavra reservada para ámanhã continuar.

(O orador foi cumprimentado por muitos dignos pares.)

Leu-se na mesa a moção do digno par o sr. Fernando Palha, que é do teor seguinte:

"Depois das palavras-exaltar com justiça o nome portuguez -, acrescentar -lamentando ao mesmo tempo que as circumstancias ainda não permitiam o abandono completo, do direito cujo exercicio em territorio estranho só póde ser causa de difficuldades e em nada contribue para a prosperidade da patria. = Fernando Palha."

Foi admittida á discussão.

O sr. Presidente: - A proxima sessão terá logar ámanhã, e a ordem do dia será a continuação da que estava dada para hoje.

Está levantada a sessão.

Eram cinco horas da tarde.

Dignos pares presentes na sessão de 31 de maio de 1887

Exmos. srs.: João Chrvsostomo de Abreu e Sousa, João de Andrade Corvo; duque de Palmella; marquez de Sabugosa; arcebispo de Braga (resignatario); condes, de Alte, do Bomfim, de Castro, da Folgoza, de Gouveia, de Linhares, de Magalhães, de Paraty, de Valenças; viscondes, da Arriaga, de Benalcanfor, de Carnide, da Silva Carvalho, de S. Januario, barão do Salgueiro; Ornellas, Adriano Machado, Braamcamp Freire, Aguiar, Silva e Cunha, Senha, Oliveira Monteiro, Serpa Pimentel, Costa Lobo, Telles de Vasconcellos, Barjona de Freitas, Cau da Costa, Bazilio Cabral, Sequeira Pinto, Pinheiro Borges, Hintze Ribeiro, Fernando Palha, Francisco Cunha, Margiochi, Ressano Garcia, Barros Gomes, Henrique de Macedo, Jayme Moniz, Melicio, Valladas, Vasco Leão, Coelho de Carvalho, Gusmão, Bandeira Coelho, Baptista de Andrade, Castro Guimarães, Castro, Silva Amado, José Luciano, Teixeira de Queiroz, Sá Carneiro, José Pereira, Mexia Salema, Sampaio e Mello, Bocage, Camara Leme, Seixas, Pereira Dias, Vaz Preto, D. Miguel Coutinho, Miguel Osorio, Calheiros, Thomás Ribeiro, Thomás de Carvalho, Serra e Moura.

Redactor = Carrilho Garcia.

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