DIARIO DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO 181
abaixo d'elle na escala. - Damasio era na ordem numerica dos tenentes coroneis o 11.°, e Affonso de Campos o 19.° - Como podia, pois, Affonso de Campos ser prejudicado e preterido pelo decreto que elevou Damasio a coronel, quando na escala dos accessos d'esse anno, e dos anteriores estavam abaixo de Damasio??!! - Entre Damasio e o mais antigo dos reclamantes havia oito tenentes coroneis. Coroo era possivel que um official collocado superiormente na escala causasse preterição aos inferiores? - Como é possivel que o ll.° pretira ao 15.° ao 17.°, ao 19.°? - Se Affonso de Campos, em 1866, estivesse collocado primeiro que Damasio poderia ter sido preterido por este; mas, estando á esquerda, não se comprehende como tal preterição podesse existir.
O almanak do exercito é o documento official que resolve esta questão. O do anno de 1865 colloca Damasio, como dito fica, no decimo primeiro logar, e a Affonso de Campos no decimo nono. Todos, reclamantes e o reclamado, haviam obtido os postos intermedios de capitães, de majores e de tenentes coroneis. - Damasio precedeu sempre a Affonso de Campos, e aos outros dois reclamantes, em todos estes postos. Contra esta collocação nunca tinha havido queixa nem reclamação. Como podia pois surgir de repente esta reclamação, em 1866, não tendo havido alteração alguma na escala?
São incontroversos os factos officiaes. Protestam contra a pretensão da preterição accusada por Affonso de Campos e pelos seus dois companheiros de reclamação; protestam tambem contra os fundamentos do decreto de 10 de setembro de 1880 e contra a legalidade d'esse decreto.
IV
Se os factos officiaes accusam a improcedencia da pretendida illegalidade de situação militar do general Damasio e testificam a illegalidade do decreto de 10 de setembro, os principios do direito, as disposições das leis, e os precedentes da nossa historia militar convencera irrecusavelmente a verdade d'estas asserções.
O general Damasio era alferes da 3.ª secção do exercito quando em 1835 foi demittido, pelo pedir. - Em 1846 estava o paiz em estado de guerracivil. O governo, o poder executivo, impellido pela força das cirrcumstancias e pela necessidade de restabelecer a ordem, que é a primeira condição da vida dos estados, assumiu a dictadura, tornou-se legislador. Os seus actos foram obedecidos como leis, e muitos d'elles ainda hoje vigoram. - Legislador e executor concentrou em si o exercicio pleno da soberania nacional. - A nação acceitou, primeiro pela obediencia e depois pela approvação directa, este estado de cousas. Reconheceu como leis do estado todas as providencias tomadas pelo governo, ainda mesmo aquellas que em circumstancias ordinarias constituiria na uma exorbitancia de auctoridade, um excesso de poder. - Acceitou como estado juridico de facto aquillo que realmente era anormal, e constituiu depois por acto expresso de approvação ou confirmação, um rigoroso estado de direito. - Os estados, as nações, não podem existir e viver sem governo, e a soberania do estado precisa ter sempre constituidos e vivos os orgãos officiaes da sua expresso e manifestação. Estes constituem-se umas vezes normal e regularmente, outras só anormalmente. É o imperio das circumstancias, a força da necessidade, que os cria, que lhes dá origem, e lhes conserva a existencia, mas desde que são obedecidos tornam-se regulares, e os seus actos são legitimos.
Taes eram as circunstancias da sociedade portugueza em 1846; e foi n'este estado de cousas que o general Damasio foi readmittido ao exercito, pelo decreto de 22 de dezembro de 1846, no posto de tenente e com a antiguidade, d'este posto, desde 18 de julho de 1834. - Houve n'isto, realmente, duas exorbitancias. A primeira consistiu em fazer de um paizano um tenente. A segunda em mandar contar como tempo de serviço militar effectivo aquelle em que Damasio esteve demittido. - Não foi, esta segunda, maior exorbitancia que a primeira. Se pelo facto de se mandar contar como tempo de serviço effectivo aquelle em que Damasio esteve demittido, foram prejudicados todos os tenentes que então existiam, pelo facto de ser admittido ao exercito um paizano com o posto de tenente foram prejudicados todos os alferes, os quaes tinham tambem direito, garantido nas leis, a serem promovidos e a ascenderem aos postos immediatos pela escala da sua antiguidade. - Apesar d'isto e não obstante taes exorbitancias, este acto foi praticado pela unica auctoridade legitima que então estava constituida; - emanou do unico poder politico que de facto exercia a soberania do estado, e por isso tornou-se legal e legitimo.- Em circumstancias ordinarias, este acto constituiria um excesso de poder, uma usurpação legislativa; mas nas circumstancias extraordinarias e anormaes em que foi praticado foi filho d'essas circumstancias e por ellas foi legitimado.
E seriam as pessoas prejudicadas as competentes para qualificar de legaes ou illegaes esses actos? para lhes recusar ou negar obediencia? - para accusarem o governo que os praticou -, para o julgarem, absolverem ou condemnarem pelas exorbitancias que commetteu? Ninguem o dirá. - Ao governo do estado só a nação representada em côrtes pôde tomar contas. E assim aconteceu. - Logo que foi terminada a guerra civil estando o paiz já em estado de paz, tendo cada um dos poderes politicos entrado na orbita constitucional das suas attribuições, estando o governo reduzido ás funcções meramente executivas, e a nação legitimamente representada em côrtes pelos seus orgãos officiaes regularmente constituidos deu o governo conta ao parlamento dos actos inconstitucionaes que havia praticado, e todos foram approvados, confirmados e sanccionados legislativamente.
A inconstitucionalidade, que era o vicio originario e primitivo da readmissão de Damasio, desappareceu tornando-se regular e legitima. - A lei de 18 de agosto de 1848 é expressa e terminante mandando que continuem em vigor e a ter observancia todos os diplomas contendo materia legislativa, e de execução permanente, publicados pelo governo desde 20 de maio de 1846 até que sejam revogados ou alterados pelo poder legislativo. - N'esta confirmação, ou revalidação legislativa, está comprehendido o decreto que readmittiu Damasio ao exercito. -Este decreto é de execução permanente, pois nada ha mais permanente que o posto e á patente de um official. - Contém materia legislativa, porque só o poder legislativo tem competencia para auctorisar a admissão no exercito de um paizano com o posto de tenente.
Muitos casos ha, na nossa legislação, de leis especiaes de admissão ou readmissão ao exercito de individuos que haviam sido demittidos, ou que tinham passado a, situaçõès estranhas aos quadros da actividade. - Se no caso presente a readmissão não foi directamente decretada pelo legislador; se tambem não foi previamente auctorisada pelo poder legislativo, foi decretada primeiro pelo governo e depois confirmada pelo parlamento; - tem por isso a mesma força, e a mesma legitimidade.
A situação do general Damasio, pois, está legal e legitimamente constituida. Está assentada na lei; e estando-o não causou preterição. Poderá ter causado prejuizo à alguem, mas offensa de direitos não. - A preterição militar verifica-se quando o poder executivo offende o direito de accesso garantido nas leis. - Só o governo póde causar preterição, porque só elle póde offender ás disposições das leis que regulam as promoções. - O poder legislativo não póde causar preterição a ninguem. O legislador revoga, altera, modifica, dispensa na lei, mas não a viola, e portanto não causa preterição. Póde haver e tem havido casos de preterições causada pelo governo, mas causadas pelo legislador nunca,