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N.º 22
SESSÃO DE 1 DE JUNHO DE 1887
Presidencia do exmo sr. João Chrysostomo de Abreu e Sousa
Secretarios — os dignos pares
Frederico Ressano Garcia
Conde de Paraty
SUMMARIO
Leitura e approvação da acta. — Correspondencia. — Antes da ordem do dia, o digno par o sr. Osorio de Castro justifica as suas faltas ás sessões e faz uma rectificação coai referencia ao seu discurso anterior. — O digno par o sr. conde do Rio Maior declara que por doença não tem comparecido ás sessões. — O digno par, o sr. Margiochi manda para a mesa um requerimento. É expedido. — O digno par o sr. Sequeira Pinto mando para a mesa um parecer da commissão de verificação de poderes. Foi a imprimir. — O digno par o sr. Hintze Ribeiro pede a palavra para quando esteja presente o sr. presidente do conselho. — O digno par o sr. marquez do Rio Maior, propões que se suspenda a sessão até comparecer o sr. ministro dos negocio estrangeiros. A camara approva. — Entra pouco depois o sr. presidente do conselho e usa da palavra o sr. Hintze Ribeiro. — Responde lhe o sr. presidente do conselho, que manda para a mesa uma proposta de accumulação, que é approvada. — Ordem do dia: continuação da discussão sobre a resposta ao discurso da coroa. Já presente o sr. ministro dos negocios estrangeiros, prosegue no seu discurso, encetado na vespera, o digno par o sr. Fernando Palha, que envia para a mesa uma moção. — Responde-lhe o digno par o sr. marquez do Rio Maior. — Levanta-se a sessão e designa se a immediata e a respectiva ordem do dia.
Ás duas horas e meia da tarde, estando presentes 29 dignos pares, o sr. presidente declarou aberta a sessão.
Lida a acta da sessão precedente, julgou-se approvada, na conformidade do regimento, por não haver reclamação em contrario.
Mencionou se a seguinte:
Correspondencia
Um officio do ministerio do reino, enviando 100 exemplares das contas do mesmo ministerio, relativas á gerencia do anno economico de 1885-1886 e ao exercicio de 1884-1885, a fim de serem distribuidos pelos dignos pares.
Mandaram se distribuir.
(Estava presente o sr. ministro dos negocios estrangeiros. Entrou depois o sr. presidente do conselho de ministros.)
O sr. Osorio de Castro (s. exa. não reviu):— Sr. presidente, pedi a palavra para participar a v. exa. e á camara, que me não foi possivel comparecer hontem á sessão por incommodo de saude, e que terei tambem de faltar a mais algumas por me ser necessario retirar por alguns dias da capital, em consequencia de negocios domesticos.
Alguns jornaes referiram-se a uma moção de ordem, que affirmaram ter eu mandado para a mesa. Houve n’isto um equivoco.
Eu em verdade, não mandei para a mesa moção nenhuma. É certo que li uma, porém disse logo que não a apresentava, nem apresentei, porque ella estava implicitamente incluida na moção mandada para a mesa pelo sr. Thomás Ribeiro.
Quando pedi a v. exa. que me dissesse se eu estava inscripto sobre abordem ou, sobre a materia, era para que ninguem imaginasse que eu pretendia escalar a palavra. Respondeu-me v. exa. que eu estava inscripto sobre a materia. Então declarei que ia entrar n’ella, e tudo quanto dissesse era minha opinião individual, e sobre isso architectei, não direi um discurso, mas algumas palavras com que occupei a benevolencia da camara por mais tempo do que devia.
Esta declaração tem por fim restabelecer a verdade dos factos.
Se tivesse apresentado uma moção, não me retiraria sem que terminasse este debate.
O sr. Presidente: — Era presença do que acabou fie dizer o digno par o sr. Osorio de Castro, considera-se a sua moção como não apresentada.
O sr. Marquez de Rio Maior: — Sr. presidente, não tenho comparecido ás sessões por ter estado gravemente incommodado de saude.
V. exa. póde imaginar quanto me tem sido desagradavel não estar presente durante este debate, sendo eu o relator do projecto de resposta ao discurso da corôa. Hoje estou aqui para cumprir o meu dever e para discutir com profundas convicções.
Peço a v. exa. que me inscreva na altura que me competir como relator da commissão.
(S. exa. não reviu.)
O sr. Presidente: — Serão satisfeitos os desejos do digno par.
O sr. Margiochi: — Mando para a mesa o seguinte requerimento.
(Leu.)
Leu-se na mesa e é do teor seguinte:
Requerimento
Requeiro que, pelo ministerio das obras publicas, seja remettida a esta camara uma nota das importancias despendidas em obras e melhoramentos ferroviaes na Granja do Marquez, desde 1882, anno em que aquella propriedade foi arrendada pelo governo para estabelecimento da quinta regional de Cintra, hoje escola pratica central do agricultura.
Camara dos pares, 1 de junho de 1887.= O par do reino Francisco S. Margiochi.
O sr. Hintze Ribeiro: — Peço a v. exa. que me reserve a palavra para antes da ordem do dia, quando esteja presente o sr. presidente do conselho.
O sr. Presidente:— Vae entrar-se na ordem do dia.
O sr. Marquez de Rio Maior: — Peço que se adie, esta discussão até que esteja presente o sr. ministro dos negocios estrangeiros, a exemplo do que se tem feito em outras occasiões.
O sr. Presidente: — A camara de certo que accede ao pedido do digno par; por consequencia suspendo a sessão até que compareça o sr. ministro dos negocios estrangeiros.
(Eram duas horas e trinta e cinco minutos da tarde, quando entrou na sala o sr. presidente do conselho.)
O sr. Presidente: — Está presente o sr. presidente do conselho. Tema palavra o digno par o sr. Hintze Ribeiro.
O sr. Hintze Ribeiro (S. exa. não reviu.): — Como não vejo o sr. ministro dos negocios estrangeiros, v. exa. e a camara permittirão de certo, que eu aproveite o enseja de estar presente o sr. presidente do conselho, para me
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dirigir a s. exa., formulando, á boa paz, algumas perguntas sobre as quaes eu desejava obter de s. exa. declarações formaes.
O sr. presidente do conselho, como chefe do gabinete actual, é o primeiro responsavel pela situação ministerial e direcção dos negocios publicos, que prendem a attenção do governo, tendo por isso muito mais auctoridade e iniciativa sobre todos os assumptos.
O que eu tenho que dizer ao sr. presidente do conselho, está, de certo, na mente de s. exa.
O meu desejo é ouvir o seu modo de pensar sobre o assumpto para que vou chamar a sua attenção, e pedir a s. exa. uma significação qualquer ácerca do pensamento do governo.
Sr. presidente, ha uma cousa sobre que o sr. presidente do conselho de ministros não póde deixar de estar de accordo commigo, tão verdadeira e clara ella se nos apresenta, é que hoje a situação politica do governo, sob o ponto do vista dos preceitos constitucionaes, é positivamente irregular e difficil.
O governo, no intervallo das sessões parlamentares, não adoptou só uma medida dictatorial, assumiu propria e absolutamente a dictadura, o que é muito differente.
Por vezes tem acontecido que um ou outro governo pratique este ou áquelle acto de dictadura, isentando-se depois, da sua culpa, culpa, para com o parlamento, por meio de um bill de indemnidade.
Este governo, horém, no intervallo das sessões parlamentares, assumiu a dictadura em absoluto, promulgando medidas importantes, que dizem respeito a quasi todos os ministerios, medidas que não podem deixar de ter a sancção parlamentar, para terem força de lei.
Ora, sr. presidente, nós estamos em junho e d’essa dictadura, em que o governo entrou, e de que não veiu pedir á, camara que o absolvesse por meio de um bill de indemnidade, ainda não começou a sua apreciação.
O sr. presidente do conselho não póde deixar de convir commigo, que esta situação é verdadeiramente irregular, porque foram muito importantes as medidas dictatoriaes adoptadas pelo governo.
A situação do governo só se regularisa desde que essas medidas dictatoriaes sejam devidamente apreciadas, julgadas e sanccionadas pelo unico poder competente para as sanccionar, que é o poder legislativo. Mas ao mesmo tempo apresenta o governo o orçamento geral d’estado para o anno economico futuro e o orçamento rectificado relativo ao presente anno. Tanto, o orçamento geral como o orçamento geral como o orçamento rectificado se baseiam precisamente nas medidas de dictadura; a descripção das suas verbas, as importancias ali consignadas prendem intima e essencialmente com os actos ditactorias.
Pergunto eu ao sr. presidente do conselho: podemos nós entrar na apreciação, ou seja do orçamento geral do estado, ou seja do orçamento rectificado, sem que o bill de indemnidade esteja approvado, sem que aresponsabilidade1 do governo esteja liquidada, sem que as medidas dictatoriaes tenham a sancção parlamentar?
É claro que não podemos.
O sr. presidente do conselho sabe muito bem que rios orçamentos não se organisam serviços; os serviços organisam-se por leis ou decreto que, quando tomam a feição de lei, recebem primeiro a sancção do parlamento para depois se tornarem verdadeiramente exequiveis.
É, portanto, evidente que, sem as medidas dictatoriaes estarem sanccionadas, nós não podemos discutir nem um nem outro orçamento, porque não podemos discutir serviços comprehendidos em medidas que não estão ainda approvadas, que prendem com decretos que não têem força de lei, porque o parlamento ainda não lh’a deu;
Isto constitue uma verdadeira irregularidade para a situação do governo, e, no aperto de tempo em que nos encontrâmos, uma difficuldade importante para a sua gerencia.
O orçamento geral do estado tem de ser votado fatalmente, dentro de um pequeno praso, dentro d’este mez, para poder vigorar no anno economico de 1887-1888.
O orçamento rectificado tem um praso não menos urgente, porque se refere ao anno economico corrente, que termina, como é sabido, tambem no fim d’este mez.
Quererá o governo recorrer á lei de meios?
Mas reflicta o sr. presidente do conselho no seguinte:
O orçamento geral que foi apresentado para o exercicio de 1877-1888 não é calculado sobre as bases dos orçamentos precedentes: é um orçamento especial, muito distincto dos outros, mesmo na sua propria estructura; porque verbas que se consideravam outr’ora como despeza extraordinaria, passam, segundo a proposta do sr. ministro da fazenda, a considerar-se como despeza ordinaria.
Mas, suppondo que o governo recorre1 a lei de meios: a que ha de ella referir-se?
Ao orçamento geral, não, porque é muito differente dos orçamentos anteriores.
Ao orçamento rectificado?
Mas como, se este documento ainda não está discutido e approvado?
É demais, não póde deixar de ter uma larga discussão, porque representa uma grande differença em relação á lei de meios que foi votado no anno passado.
Eu não quero levantar um debate cheio de azedume com o sr. presidente do conselho.
Desejo apenas que s. exa. reconheça, em primeiro logar que o governo devia fazer approvar o bill de indemnidade, e em segundo logar que reconheça tambem as responsabilidades que lhe advem do facto de não obter do parlamento, já a approvação do orçamento geral do estado, já a approvação do orçamento rectificado dentro do praso marcado, isto é, até o fim deste mez. O que eu desejo é que o sr. presidente do conselho, com o seu bom senso, com a sua auctoridade como chefe do gabinete, como homem de estado e como parlamentar, envide todos os seus esforços, para que a posição do governo se regularise e nós possamos entrar na apreciação dos documentos que são essenciaes na gerencia da fazenda publica.
A questão, pois, que eu apresento ao sr. presidente do» conselho é a seguinte: as côrtes abriram-se a 2 de abril; já decorreram dois mezes, pois estamos em junho. Qual é o primeiro dever do governo? É regularisar a sua situação politica, é fazer approvar o bill de indemnidade, sem q que não póde dar um passo, porque o bill é a preoccupação de todos.
Desde que o governo assumiu a dictadura, promulgando medidas referentes a todos os ministerios, o seu primeiro dever era pedir ao parlamento que o relevasse da responsabilidade em que incorreu, assumindo funcções legislativas. Sem isso o parlamento não pôde, nem deve discutir proposta alguma ou qualquer projecto de lei.
O tempo é apertado daqui até o fira do mez. Temos que discutir o orçamento geral do estado e o orçamento rectificado, e creio que em tão curto espaço de. tempo, não tratar desde já de uma nem de outra cousa, visto que n’esses documentos vem descriptas verbas novas que se referem a, serviços creados pelas medidas- dictatoriaes, medidas que não podem vigorar sem ter a sancção parlamentar, é caso para perguntar ao sr. presidente do conselho, como quer sair d’estas difficuldades?
Aguardo as declarações de è. exa., pedindo desde já a v. exa., sr. presidente, que me reserve a. palavra, não para retorquir com intuito politico ou partidario ás explicações do sr. presidente do conselho nem para deixar, o governo n’uma situação mais deploravel e mais critica; mas unicamente para restabelecer a verdade dos principios, para que o mesmo governo trate quanto antes, como é indispensavel, de regularisar a sua situação politica.
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O que eu quero é que o sr. presidente do conselho faça uma declaração que nos socegue, que ponha termo a esta preoccupação, e que nos diga sinceramente se deseja entrar n’um caminho regular e sair d’esta anormalidade.
Se s. exa. se levantar para me responder que o governo já liquidou a sua responsabilidade, apresentando á outra casa do parlamento o bill de indemnidade, o orçamento geral do estado e o orçamento rectificado e que ás camaras é que pertence dirigir os seus trabalhos, e formular pareceres sobre as medidas que julgar mais convenientes, adoptando de preferencia as propostas de fazenda ou o bill de indemnidade, deve comprehender perfeitamente que tal resposta não me póde satisfazer.
Todos nós sabemos que é condição essencial para a vida de um governo, a intima harmonia que deve existir entre elle e os seus amigos politicos da camara dos senhores deputados, a confiança da maioria das duas casas do parlamento e a justa deferencia, que não póde deixar de haver por parte d’essa maioria, para com os desejos fundamentados do ministerio, com relação á gerencia dos negocios publicos, e, alem d’isso, a solicitude propria do parlamento em regular o bom andamento d’esses mesmos negocios.
Por consequencia, se o sr. presidente do conselho desejar, sinceramente que a sua maioria proceda, de preferencia a qualquer outro assumpto, á discussão do bill de indemnidade, como previa necessidade para poder discutir qualquer dos dois orçamentos, essa maioria não deixará de acceder promptamente aos seus desejos. Não nos venha, pois, s. exa. dizer que é a outrem que pertence regular os seus trabalhos, conforme julgar mais conveniente.
O sr. presidente do conselho sabe, que no fim das sessões parlamentares, o governo tem a franqueza e a hombridade de dizer ao parlamento quaes os projectos que julga indispensaveis para dirigir os negocios publicos, e as camaras têem sempre accedido a esse pedido, discutindo de preferencia as medidas que o governo deseja approvadas a outras quaesquer de menos importancia.
Por conseguinte, é evidente que em primeiro logar deve e póde vir ao parlamento a discussão do bill de indemnidade.
Desejo, pois, da parte do sr. presidente do conselho, uma declaração franca e categorica em resposta ás perguntas que acabo de dirigir-lhe. Repito as minhas perguntas.
Desejo saber se o governo está resolvido a apresentar desde já o bill de indemnidade, para em seguida submetter á sancção parlamentar, não só o orçamento ordinario, como tambem o rectificado.
Espero a declaração do governo, e conto que elle, desejando regular a sua posição politica, prometterá que ha de influir nos trabalhos parlamentares, de sorte que os documentos mais importantes da gerencia financeira do pai z possam ser discutidos com a serenidade e a amplitude reclamadas pela gravidade do assumpto.
Aguardo, pois, a declaração do governo, e tomarei de novo a palavra, se assim o julgar conveniente.
O sr. Presidente do Conselho de Ministros (Luciano de Castro): — Eu podia dizer ao digno par que me precedeu, o que outros ministros e outros governos me disseram em resposta ás perguntas que eu lhes dirigia quando era membro da opposição da outra casa do parlamento.
Podia dizer ao digno par que o governo apresentou já à camara dos senhores deputados a proposta de lei sobre o bill de indemnidade, e que a responsabilidade da discussão não pertence ao governo, mas ás camaras.
Podia dar esta resposta ao digno par, e tinha muitos bons precedentes com que abonar o meu procedimento; ao contrario, porém, digo ao digno par, franca e lealmente, que empenharei todos os meus esforços para que a situação do governo seja regulada quanto antes, e pedirei á camara que se occupe, com a brevidade compativel com os trabalhos parlamentares, em discutir e votar a proposta de lei sobre o bill de indemnidade que o governo apresentou.
Creio que essa declaração deve satisfazer o digno par. O governo ha de empenhar-se, de accordo com os presidentes das respectivas camaras e com as commissões, para que entre em discussão quanto antes o bill de indemnidade, a fim de ser regularisada a sua situação politica perante o parlamento e perante a constituição do estado.
Nada mais diria, se o digno par a quem estou respondendo não tivesse feito mais algumas considerações. S. exa. julgou que era indispensavel discutir previamente o bill de indemnidade antes de se discutir o orçamento do estado.
Eu desejo muito que antes de se discutir o orçamento geral do estado, seja discutido e approvado o bill de indemnidade, que confirma as medidas ultimamente decretadas em dictadura; mas não julgo indispensavel essa precedencia, porque o orçamento suppõe existentes e em vigor ás differentes leis ou decretos que regulam os serviços publicos, sem apreciar a legalidade ou a illegalidade d’essas providencias.
Entendo, pois, que a discussão do orçamento não depende, nem presuppõe a approvação do bill; mas esta minha opinião não importa o pensamento de recusar essa precedencia; antes, pelo contrario, repito, que empregarei todas ás minhas diligencias de accordo com os presidentes das duas camaras e com as commissões parlamentares, a fim de que o bill de indemnidade possa ser discutido e votado antes de qualquer das outras medidas importantes que o ministerio tenciona submetter ao exame legislativo.
Digo que empenharei a minha vontade para satisfazer os desejos do digno par, mas não faço affirmações categoricas, porque, tendo-se as camaras reunido em 2 de abril, e sendo hoje o 1.° de junho, não sei se haverá o tempo necessario para discutir até ao fim do mez o orçamento geral do estado.
Por ora, o que posso dizer ao digno par é que o governo ha de empregar todos os esforços para que o orçamento do estado seja discutido. O resto não pertence ao governo; as circumstancias é que hão de determinar o seu procedimento.
O que disse, para deixar bem clara e definida a opinião do governo, é que é possivel discutir o orçamento do estado antes do bill de indemnidade, porque o orçamento regula as receitas e despezas do estado sem entrar na apreciação da legalidade das providencias que as auctorisam.
Sr. presidente, creio que as difficuldades que s. exa. apresentou em relação á lei de meios, na hypothese de ser discutida e approvada, não são de tal maneira graves que possam embaraçar seriamente o governo.
Se o parlamento tiver de discutir este armo, o que eu não desejo, a lei de meios, póde introduzir n’essa lei algumas disposições especiaes que se encontram no orçamento rectificado, como por outras vezes se tem feito.
Terminou o digno par por me pedir que envidasse todos os meus esforços para regular promptamente a situação constitucional do gabinete.
Eu creio que as declarações que fiz, quando me levantei para responder ao digno par, bastavam para assegurar a s. exa. que é esse o meu sincero desejo.
Se eu não tivesse receio de maguar o digno par, o que não desejo, antes pelo contrario faço sempre inteira justiça á seriedade do seu caracter e á sua competencia em todos os ramos do serviço publico, como s. exa. sabe, eu invocaria em meu favor ou antes, invocaria contra s. exa. o precedente do ministerio de que o digno par fez parte a respeito da brevidade com que foi discutido o bill de indemnidade, apresentado ás côrtes em analogas circumstancias. Recordaria a s. exa. que o bill de indemnidade, que relevava o governo da responsabilidade constitucional em que incorrera por ter em 1881 decretado em dictadura a lei de meios e publicado outras providencias de natureza legisla-
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tiva, foi publicado no Diario do governo de 1 de julho, do anno economico seguinte!
Já vê o digno par que no tempo em que s. exa. fazia parte do ministerio não havia a mesma pressa que s. exa., hoje mostra de regular a situação politica do gabinete.
Todavia o governo, em vez de acceitar esse precedente pelo contrario, affirma e torna a assegurar a s. exa. que ha de empregar todos os esforços para que a sua situação constitucional se regularise perante o parlamento o mais breve que for possivel.
O sr. Sequeira Pinto: — Mando para a mesa um parecer da commissão de verificação de poderes que approva a eleição do digno par o sr. Carlos Testa.
Peço a v. exa. que lhe de o destino conveniente.
Foi a imprimir.
O sr. Hintze Ribeiro (S. exa. não reviu}: — Sr. presidente, eu registo a declaração do sr. presidente do conselho.
S. exa. disse que havia de envidar todos os seus esforços para que o bill de indemnidade seja discutido na outra casa do parlamento, a fim de que possa regular a situação politica do gabinete.
Esta discussão é de todo o ponto importante e preferivel a outra qualquer que se apresente, visto que ella tem por fim regular a situação constitucional do governo.
Com respeito ás outras considerações de s. exa., permitta-me lhe diga que não podem encontrar echo na minha maneira de pensar, por isso que se contrapõem aos preceitos fundamentaes das nossas leis de receita e despeza.
Sr. presidente, eu entendo que, sem o bill de indemnidade estar approvado, não podemos discutir nem approvar o orçamento geral do estado, nem o orçamento rectificado, ponderado que um e outro documento se referem a serviços creados e organisados em virtude de medidas tomadas em dictadura pelo governo.
Diz s. exa. que essas medidas estão em vigor. Peço perdão. Para nós, emquanto não estiverem sanccionadas pelo poder legislativo, não são, legaes..
S. exa. sabe .que o orçamento não é uma descripção arbitraria de, verbas, de despeza.
S. exa. sabe muito bem que no orçamento se não podem lançar as verbas: que não Atenham existencia legal.
As medidas decretadas dictatoriamente, emquanto não tiverem a gancção parlamentar, não as devemos reconhecer; e portanto, é claro que não podemos fazer obra por ellas para a discussão, do orçamento.
Para que possamos fazer é necessario primeiramente discutir e approvar o bill de indemnidade.
Approvado elle, é que então ficam tendo força de lei e auctoridade para o parlamento os actos de dictadura, em virtude dos quaes se organisaram serviços cujas despezas vem descriptas no orçamento.
Sem isso. sr. presidente, nada se consegue, senão que sejam violados os preceitos fundamentaes da redacção dos nossos diplomas de fazenda.
Ainda mais. Eu asseverei que nós tinhamos uma grave difficuldade em discutir a lei de meios, em substituição do orçamento, porque este orçamento, que foi apresentado ao parlamento, é muito differente dos orçamentos anteriores, não só na sua propria estructura como tambem na descripção de todas as suas verbas.
E, na verdade, existem n’elle verbas que pertenciam á despeza extraordinaria e que passam agora para a despeza ordinaria.
N’estas circumstancias, como é que nós podemos limitar-nos a votar uma lei de meios? ...
Uma de duas: ou essa lei de meios se ha dereferir ao orçamento proposto o anno passado e o qual o governo entendeu que não podiamos approvar, ou a lei de meios se ha de referir á organisação detalhada do orçamento que este anno se apresenta, tão diverso d’aquelles que foram apresentados nos annos anteriores
Podemos nós approvar um diploma que não tem base conhecida? Se a lei de meios promulgada o anno passado, que é da responsabilidade d’este governo, se refere ao orçamento rectificado e por consequencia á totalidade das despezas, é porque então o orçamento rectificado era uma lei que tinha tido a approvação do parlamento. Mas approvar agora uma lei de meios, sem estes precedentes, antes em condições perfeitamente anomalas, equivale a approvar um diploma para cuja elaboração não ha base assente. Insisto: na lei de meios do anno passado auctorisavam-se as despezas em harmonia, não só com a ultima lei de meios, porem, de accordo com a lei de 22 de março, que é o orçamento rectificado d’aquelle anno.
Mas proceder hoje de modo opposto, fazer referencias a leis que ainda não têem a sancção parlamentar, para dar vigor á lei do meios, não é logico nem justo.
É claro, pois, que para a fazer vingar, ou nos havemos de referir ao que legalmente não existe, ou devemos pôr de parte as propostas do sr. ministro da fazenda, servindo-nos dos antigos meios para a arrecadação das receitas. O dilemma está perfeitamente posto.
Devo ainda dizer ao illustre presidente do conselho o seguinte:
O governo, o anno passado, sem uma necessidade sufficientemente justificada de fechar tão promptamente o parlamento, pediu ás côrtes a lei de meios, que lhe foi votada sem restricções. Votámos-lh’a. Mas sabe V. exa. como o governo pediu a lei de meios? N’estes termos:
Receita ordinaria............... 32.271:150$000 réis
Despeza ordinaria............... .34.249:083$471 réis
Despeza extraordinaria.......... 3.890:000$000 réis
E como apresentou o governo o orçamento d’este anno?! O anno passado no orçamento rectificado do exercicio anterior tambem cresciam as receitas; mas agora vemos que as despezas que o governo inscreve no orçamento rectificado são 43.943:527$655 réis.
Na lei de meios inscreveu 38.139:083$471 réis, e no orçamento rectificado 43.943:527$655 réis:
Isto é a maior verba de despeza que tem apparecido.
Se compararmos esta verba com a anterior, temos um excesso de 5.804:444$184 réis.
Na despeza extraordinaria do corrente anno, o governo pretendeu ser severo, parco, economico. :
Pediu apenas 3.890:000$000 réis na lei de meios, quando eu, na minha proposta, inscrevera 4.285:000$000 réis.
Agora porém, no orçamento rectificado, pede réis 8.130:351$213, o que equivale a mais do dobro do que tinha pedido na lei de meios!
Sabe a camara quanto o governo pede a mais só para caminhos de ferro? 2.400:000$000 réis.
Ora, sr. presidente, já é preciso que a verba primeiro orçada tenha excedido em muito até agora, para se tornar precisa tamanha somma só para o pequeno espaço de tempo que medeia até o fim do anno economico.
Mas então como se teem effectuado os pagamentos fóra da auctorisação legal?
E tudo isto, sr. presidente, porque o governo se furtou quanto, póde a abrir as côrtes e a dar conta dos seus actos.
É claro que eu me vejo na obrigação, pela responsabilidade que me compete como ministro da fazenda da situação transacta, de discutir muito esta questão com o actual sr. ministro da fazenda. Hoje não faço mais detidas considerações a este respeito, não só por ser mais proprio discutir com o sr. ministro da fazenda este assumpto, como tambem porque não desejo intercalar esta questão ha discussão da resposta ao discurso da coroa, ou antes na da concordata.
É Porém necessario que não fiquem despezas a descoberto.
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E agora direi á camara que esta difficuldade provem sómente no sua maxima parte da gerencia do actual governo.
Eu direi apenas que o governo, quando o anno passado tomou a gerencia dos negocios publicos e se apresentou tanto n’esta como na outra casa do parlamento a pedir lhe votassem os meios para poder governar, o parlamento satisfez immediatamente esse pedido sem nenhuma condição.
Mas se as maiorias, então hostis ao governo, procediam assim, era unicamente para não obrigarem o governo a sair fóra do campo da legalidade; e não obstante, pouco tempo depois de ter adiado as camarás, assumia elle a dictadura.
Poderia acaso, o governo illudir-se até o ponto de julgar que a maioria da antiga camara dos deputados e da porte electiva da camara dos pares votariam as medidas promulgadas em dictadura, como votaram a lei de meios?
Por certo que não, e o que devia ter feito, desde que entrou no periodo da dictadura, era dissolver desde logo a camara dos deputados e a parte electiva da camara dos pares a tempo de poder proceder ás eleições, de fórma que tivesse todos os actos eleitoraes realisados em janeiro e abrir o parlamento já com camaras novas, podendo então regularisar as medidas que tomara em dictadura.
Mas não o fez, e não o fez para chegar a 2 de janeiro e tomar por pretexto a eleição do presidente da camara da deputados, que não tinha feição tal que podesse ser tomada como um acto de desconsideração e hostilidade politica ao governo, para dissolver a camara e convocal-a para 2 de abril.
E depois de ter procedido assim, vem á ultima hora dizer que o governo não poderá talvez fazer discutir o orçamento geral do estado dentro do praso estreitissimo que nos resta, no que em verdade tem rasão, pois que será impossivel discutil-o em taes circumstancias, e a camara, ver-se-ha por isso obrigada a votar sem discussão, sem analyse, sem sequer poder fundamentar e emittir a sua maneira de ver e pensar, sobre as medidas dictatoriass do governo.
Ora, não teria sido muito mais leal, mais franco e mais, legal o procedimento do governo, dissolvendo a tempo as antigas camaras e convocando as novas?
Não podia, durante o praso de seis mezes, regular a sua situação politica e entrar então desassombradamente na. administração dos negocios publicos?
O sr. Presidente: — Peço licença ao digno par para lhe observar que passou ha muito a hora que a camara costuma reservar para as questões levantadas antes da ordem do dia, e que é tempo de entrarmos n’ella.
O Orador: — Eu recordo a v. exa., que estou usando a palavra por a ter pedido para antes da ordem do dia e para quando estivesse presente o sr. presidente do conselho.
No emtanto, s. exa. chegou trop-tard, e se porventura se demora um pouco, mais, eu não teria o desgosto de ser agora interrompido por s. exa.
Eu ia justamente terminar.
As declarações de s. exa., comquanto não sejam tão claras e positivas como eu desejaria que fossem; comtudo, pela auctoridade que merecem as palavras do chefe do gabinete, pelo conceito que faço da sua lealdade e franqueza, satisfizeram-me por agora, porque estou seguro qu6 s. exa. interporá a sua auctoridade no, intuito de regular a situação politica do governo.
(O orador não reviu.}
O sr. Presidente do Conselho de Ministros: — Eu não quero abusar da concessão que v. exa. me fez para usar da palavra.
V. exa. comprehende perfeitamente que depois do sr. Hintze Ribeiro ter fallado tão largamente sobre assumptos politicos, economicos e financeiros, eu não posso deixar de
dizer algumas palavras muito resumidas em resposta a s. exa.
Sr. presidente, eu não disse que ia empenhar todos os esforços para que o bill de indemnidade fosse discutido de preferencia a todo a qualquer outro assumpto.
Eu disse que empregaria todos os esforços, de accordo com os presidentes das duas camaras e as respectivas commissões parlamentares, para que o bill fosse discutido com a maior brevidade, brevidade compativel com a boa urdem dos trabalhos parlamentares.
Eu não posso tomar sobre mim o compromisso de fazer com que o bill seja discutido de preferencia a outro qualquer assumpto.
O sr. Hintze Ribeiro, nas observações que fez, disse tambem que era indispensavel e urgentissimo discutir o orçamento rectificado com a brevidade que o assumpto reclama. Com respeito ao orçamento rectificado faço identica declaração á que já fiz relativamente ao bill de indemnidade, isto é, que tambem hei de empenhar todas as diligencias para que esse orçamento seja discutido com a possivel brevidade.
Sr. presidente, não desejo acompanhar o digno par nas observações politicas que expoz á camara.
Está em discussão n’esta casa do parlamento o projecto de resposta ao discurso da coroa, e, se s. exa. n’essa discussão tivesse feito quaesquer observações no mesmo sentido que acabou de fazer, ahi teria principalmente cabimento a minha resposta com respeito á ultima dissolução da camara dos senhores deputados e da parte electiva desta camara.
Pelo que toca ás enormes despezas propostas pelo governo de que tenho a honra de fazer parte, eu tambem não posso deixar sem resposta as observações de s. exa.
É verdade que no orçamento rectificado se propõe uma verba de despezas extraordinarias extremamente grande.
Quando só discutir esse orçamento, que é um orçamento de liquidação, a camara terá occasião de reconhecer que as verbas propostas não são para pagar unicamente despezas do actual ministerio, porque essas verbas referem-se na maxima parte a despezas que já estavam feitas.
Nós entendemos que deviamos liquidar todas as contas anteriores, e para isso apresentámos no orçamento rectificado, não só as despezas que eram nossas, mas as que estavam por pagar e que foram feitas pela administração anterior.
O sr. Antonio de Serpa: — E as despezas que o governo creou em dictadura?
O Orador: — O digno par quer encetar agora a discussão do bill de indemnidade?
Eu trato unicamente de responder ás observações que fez o sr. Hintze Ribeiro.
Repito, pois, que a verba de despezas extraordinarias, que no orçamento rectificado são propostas, refere se, não só a despezas nossas, mas principalmente ás provenientes da administração transacta.
O sr. Hintze Ribeiro: — Eu não quero antecipar a discussão da questão de fazenda.
Desejo apenas que fique registada a declaração que vou fazer, de que é completamente inexacto que a grande differença das despezas inscriptas no orçamento rectificado provenha da administração passada.
O Orador: — Sr. presidente, eu não quero deixar passar esta occasião sem declarar a v. exa. que uma grande parte da verba proposta no orçamento rectificado é proveniente das despezas que se fizeram com o caminho de ferro do sul e sueste e com o caminho de ferro do Douro.
Fica, pois, consignada a declaração de s. exa. e a minha tambem.
Na occasião da discussão se reconhecerá quem diz a verdade, posto que nem o sr. Hintze Ribeiro nem eu somos capazes de deixar de a dizer com intenção.
Parece-me, portanto, que é melhor aguardarmos a dis-
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cussão do orçamento rectificado, para tratarmos convenientemente do assumpto. (Apoiados.)
Por ultimo poço a v. exa. queira submetter á approvação da camara a seguinte proposta.
Leu-se na mesa a proposta do sr. presidente do conselho assim concebida:
Proposta
Senhores. — Em conformidade com o disposto no artigo 3.° do primeiro acto addicional á carta constitucional da monarchia, pede o governo á camara dos dignos pares do reino a necessaria premissão, para que o digno par D. Miguel Pereira Coutinho possa accumular, querendo, as funcções legislacom as do seu logar de chefe da 4.ª repartição da direcção geral da contabilidade publica,
Secretaria d’estado dos negocios da fazenda, em 31 de maio de 1887, = Marianno Cyrillo de Carvalho.
Foi approvada.
ORDEM DO DIA
Continuação da discussão do projecto, de resposta ao discurso da corôa
O sr. Fernando Palha: — É na verdade penoso para mim ter de occupar em dois dias seguidos a attenção da camara, sobretudo para ouvir a defeza de uma these que não é sua, de opiniões que não partilha.
Se pudesse, desistindo da palavra, não continuar no caminho que encetei hontem, creia v. exa. e creia a camara que o fazia. Mas não posso. E não posso por duas rasões; primeira porque do que disse hontem alguem podia induzir que eu atacando, não as glorias nacionaes, mas o que se dizia monumento d’essas glorias, viera defender os interesses da propaganda, e eu, que tão fracabagagem tenho de precedentes, n’esta questão tenho-os; não os desminto, quero conserval-os intactos. Bastava uma sombra de duvida a este respeito para não poder renunciar a completar o meu pensamento.
A segunda rasão é que não haviam passado cinco minutos depois de eu ter exposto á camara as reflexões que o assumpto me suggeriu, quando o meu pensamento me foi devolvido inteiramente transformado. Alguem me observou, mesmo aqui n’esta casa, que eu dissera que não havia moralidade sem dinheiro. Ora eu não disse tal cousa. E se estou e estarei sempre prompto a dizer alto e claro o que penso, a sustentar e a defender a minha, opinião por mais desagradavel que for aos que me ouvirem, nunca hesitarei em rectificar as rainhas asserções quando a minha palavra, desobedecendo á vontade, levar ao animo dos que me escutarem, proposições que não quiz avançar.
Quer-me parecer que fiz uma distincção bem clara entre o estado e o individuo.
Não fallei da moralidade este.
A moralidade do individuo póde existir no mais alto grau no estado mais corrupto. Marco Aurelio era César, nem por isso é para apontar a moralidade dos Cesares.
O que disse, o que sustento, o que estou prompto a defender é que o capital constitue hoje a força, o nervo, o sangue das sociedades modernas; sem elle não existe absolutamente- nada- d’aquillo que mais presamos, que mais louvâmos, a arte, a sciencia, a, propria moral, porque á moral vem da educação, vem da escola, e sem dinheiro, e muito, não ha escolas. Referi-me á riqueza dos estados, não á dos individuos.
Negar que possa haver moralidade e virtude com pobreza, não era possivel que o fizesse eu, que, em virtude do cargo que hoje occupo, me vejo forçado a devassar todos os dias os segredos da miseria. E quer v. exa. e a camara, saber a lição que tenho tirado d’este forçado ensinamento?
Diz-se que entre nós ninguem morre de fome. É verdade, mas é assim porque a caridade dos pobres acode aos pobres a dos ricos, que é muita, não bastaria. Quando a creança fica abandonada, é a vizinha pobre, desgraçada, que partilha com ella o bocado de pão; não é p rico, esse vem depois, quando vem.
Rectificado assim o meu pensamento, vou continuar na ordem de idéas que hontem comecei a expor.
Apresentei aqui uma these nova, completamente estranha á opinião vulgar e formulei-a n’uma moção, declarando que me parecia que a melhor de todas as politicas em relação ao padroado era o seu completo abandono, por isso que a conservação d’elle não podia servir senão de embaraço á administração e á politica portugueza.
Esta these, sr. presidente, foi classificada pelos mais benévolos, de paradoxal. Acceito a qualificação se me acceitaram a definição. Paradoxo, no meu modo de ver, é a these verdadeira sustentada por uma fórma absurda ou contraria á opinião vulgar. Definido o paradoxo por esta fórma, acceito, pois, o modo como foi classificada a minha these. E, permitta me v. exa. e a camara que eu, usando da facil erudição, de diccionario, escude a minha definição com a citação de tres auctoridades que por certo a camara não recusará.
«Antes quero ser homem de paradoxos do que homem de preconceitos.»
«Nunca houve verdade que no dia da sua publicação não fosse taxada de paradoxo.»
«Os paradoxos de hoje são as verdades de amanhã.»
A primeira, sr. presidente,- é de Rousseau. A segunda é de ... não digo....
Vozes: — Diga, diga.
O Orador: — Não digo, porque receio que alguma commoção mais violenta me faça desabar sobre a cabeça algum fragmento de cimalha. Mas affirmo á camara que este segundo cujo nome não cito, foi, em materia de paradoxo notavel auctoridade.
Chegava á praça publica, atirava o paradoxo como quem dispara um tiro e depois de ter assim despertado a attenção dos ouvintes, dizia um sem numero de verdades chas e vulgares, filhas do seu espirito eminentemente pratico e racional.
A terceira citação, sr. presidente, é de Laboulaye, um homem dos nossos dias, de idéas iguaes ás que por todos nós são respeitadas como verdades, um dos mais elevados caracteres e um dos mais respeitaveis homens d’estado da França moderna.
Com tão bons companheiros acceito, pois, a qualificação de paradoxo para a minha these e como tal a vou defender.
Permitta-me ainda v. exa., e permitta-me tambem a camara que eu, antes de proseguir, faça um resumo muito breve do que hontem disse.
Provei ou julgo ter provado, o que é differente, que o direito do padroado, util e necessario na sua origem, não tem hoje justificação porque a missão do estado não é collaborar na evangelisação dos idolatras que habitam territorios estranhos, sobretudo quando um paiz, como o nosso, pobre, pequeno e definhado, não póde ter a ambição de se expandir á custa do que a outros já pertence.
Disse e sustentei que o padroado, dada a hypothese de Roma nos consentir o exercicio d’esses direitos, é encargo para que não temos os recursos necessarios.
Disse e sustentei mais que esses direitos não eram elemento de influencia e, dado que o fossem, essa influencia era completamente inutil nas nossas mãos.
Por ultimo comecei a contestar que o padroado seja um monumento das nossas glorias, porque, e isto não o disse hontem mas digo-o agora, lhe faltam os principaes requesitos que um monumento requer, nomeadamente o mais essencial: ser ou poder ser de todos conhecido. Ut sit omnes documento.
Monumento é o poema escripto com tal riqueza de linguagem, por fórma tão genial, que basta um lêl-o para que
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de todos seja conhecido, para que seja traduzido em todas as linguas cultas; os Luziadas!
Monumento é a cidade reedificada sobre o solo conquistado embora os palacios em ruina, os templos desertos, os baluartes derrocados fallem só de passadas victorias, de grandezas que não voltam; Goa!
Monumento é o templo construido com tal harmonia, cinzelado com taes primores de arte, que ao vêl-o ninguem deixe de perguntar qual foi a acção grande que inspirou o artista; a Batalha, os Jeronymos!
Monumento não póde ser o direito, intermittentemente exercido, e que ninguem conhece!
Quem na Europa sabe que o padroado nos pertence?
Roma e a propaganda para o contestarem, e, dos inglezes, os que têem conhecimento das cousas da India, e nem todos.
Mesmo entre nós, sr. presidente, se v. exa. consultar; nove decimas partes dos portuguezes, e fallo dos portuguezes cultos, ha de ver que não sabem o que é o padroado, em que consiste, em que territorios se exerce, quando se fundou e a origem que teve.
Aqui está a rasão porque eu hontem comecei a contestar que opadroado seja um monumento de gloria nacional, e por que continuo hoje.
Perdoe-me a camara se insisto nesta ordem de idéas; mas a camara vê quanto eu sou sincero nas minhas convicções, e preciso demonstrar que não quero por fórma alguma atacar as verdadeiras glorias do meu paiz; ninguem as presa mais do que eu, nem tanto talvez, porque o meu sentimento chega a ser exagerado.
A minha opinião é que a ellas devemos principalmente o conservar hoje a nossa autonomia.
Sem ellas Portugal era uma Servia, uma Bulgaria, uma provincia de que a Europa dispunha nos seus congressos.
Mas quem se ha de atrever a destruir as fronteiras da patria de Vasco da Gama, de Affonso de Albuquerque, de D. João de Castro?
O nosso primeiro dever é pois sustentar alto as glorias nacionaes; são a nossa melhor bandeira, são o melhor estandarte para Portugal; mas d’aqui a chamar a tudo monumento de gloria vae muito longe. Eu é que lh’o não chamo.
Se insisto é tambem, sr. presidente, porque estou certo, que entre os que defendem a opinião contraria á minha, ha homens de boa fé, que eu desejava ver convencidos, porque convencido estou tambem que tomam a nuvem por Juno.
Outros ha de má fé, e esses cedem á tentação de discursar rhetoricamente ao paladar do maior numero. O seu papel é facil, o meu é difficil!
A prova que não sou só eu que não vejo no padroado um monumento de gloria nacional vou de novo buscal-a ás proprias palavras do digno par o sr. Thomás Ribeiro.
S. exa. admirou-se de ver as galerias sem espectadores, a propria camara deserta e lamentou-se porque julgou ver n’este facto um symptoma deploravel do estado do espirito publico. Ora onde s. exa. julgou ver descrença e scepticismo vejo simplesmente bom senso.
É facil demonstral-o.
Ha poucos dias, sr. presidente, um incidente desagradavel motivou nas duas casas do parlamento um debate irritante. A meu ver ha completa igualdade entre uma e outra discussão.
Então cera o governo accusado de ter violado a constituição do estado, attentando contra a liberdade de um deputado da nação.
Hoje é igualmente accusado de ter violado a constituição, ratificando um tratado em que se cede em parte uma das glorias nacionaes.
Acaba aqui a igualdade.
No primeiro caso, logo que o facto foi conhecido, levantou-se sobre elle um debate que se estendeu com a velocidade do raio, do norte ao sul de Portugal, não houve: espirito que se não preoccupasse, não houve um cantinho das galerias das duas casas do parlamento que ficasse desoccupado. A discussão do assumpto não foi só nas duas camarás, foi em todo o paiz. E isto prova que a descrença não existe, que o scepticismo é uma ficção de um espirito mal humorado, porque, como se vê, ainda ha assumptos que podem levantar a opinião publica.
Por outro lado discutimos o padroado, e esses mesmos, que habitualmente occupam essas galerias, abstêem-se de assistir ás nossas sessões. Ora, eu pergunto: o que valerá mais, a liberdade e mesmo a vida de um homem, seja elle quem for, ou uma gloria nacional? A resposta é facil: pelas glorias nacionaes costumam-se arriscar a liberdade e as vidas dos homens de valor igual ao do sr. Ferreira de Almeida.
E discute-se a perda do que se diz ser uma gloria patria, e o publico, que se sobresaltou pela liberdade de um homem, fica em casa! A conclusão é tambem facil: o publico não se, deixa illudir pelas phrases sonorosas dos oradores patriotas e diz commigo: o padroado não é monumento de gloria.
E não era para espantar que houvesse quem seguisse os passos do digno par o sr. Thomás Ribeiro e dos illustres oradores que me precederam. É essa a feição ordinaria do nosso espirito. Quando ha dois. dias o digno par o sr. Agostinho de Ornellas. que não vejo presente, usou da palavra nesta casa, notou que, sempre que entre Portugal e uma potencia estrangeira se assignava um tratado, havia logo quem affirmase que fôramos burlados, que cederamos sem compensação direitos valiosos. Se n’essa occasião tivesse estado ao lado de s. exa., ter-lhe-ia dito em aparte que o facto não era para estranhar, porque a balda nos ficara do tratado de Methuen.
Mas, se o facto é explicavel não deixa pôr isso de ser a observação de s. exa. profundamente exacta. E não se limita á occasião em que os tratados se assignam, o echo das lamurias vae-se prolongando pelo andar dos tempos.
Prova. Bombaim foi dado á Inglaterra no dote de uma Infanta de Portugal. Era então, como é hoje, uma posição maritima de primeira ordem, um porto amplissimo, accessivel em todos os tempos e segurissimo, mas era tambem, o que não é hoje, uma aldeia sem valor; e assim ficaria se continuasse a ser nossa. Pois, sr. presidente, ainda hoje ha quem visite a Índia e quem volte enthusiasmado com as riquezas de Bombaim, com os seus bazares, com o seu commercio, dizendo que poucas cidades ha na Europa que lhe sejam comparaveis, e acrescentando: tudo àquillo podia ser nosso.
Sr. presidente, comparo esta asserção com a que faria o ferreiro que, tendo vendido a Benevenuto Cellini, o ferro de que elle fazia martellos e argolas de porta, primores de arte decorativa, dissesse depois de os ver cinzelados: isto foi meu.
A comparação é exacta porque Bombaim nas nossas mãos havia de ser sempre o diamante bruto que não acidou quem o lapidasse. Bombaim parados inglez e se a cabeça da India; para nós havia de ser tuna fortaleza, derrocada, como Damão, como Diu, que tambem no seu tempo foi emporio do commercio.
Sr. presidente, eu sei que estas idéa, alheias ao convencionalismo patriotico, não agradam à muitos, mas não tenho outras, o meu patriotismo é assim e já o disse, não hesito nem hesitarei nunca em dizer o que sinto e como o sinto, logo que n’isso veja utilidade.
Outro exemplo ainda, sr. presidente, de tendencia do nosso espirito nacional.
O que «e não disse, que discursos se não fizeram, que accusações sangrentas deixaram de se formular .por causa do Congo? Pois, sr. presidente, se eu então tivesse voz nesta ou na outra casa do parlamento teria, com a mesma franqueza e a mesma ousadia de que hoje estou usando,
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dito o contrario de tudo quanto se disse a respeito do Congo e já teria tido o gosto de ver a minha opinião, muito parecida com a que tenho sobre o padroado, confirmada por factos que já n’esta camara se revelaram. Não ha muitos dias que, não me lembra se o sr. Antonio de Serpa se o sr. Bocage, interpellou o governo para saber o que se fazia do Congo portuguez, porque se não nomeavam as auctoridades, porque se não organisava a provincia.
Se o Congo chegar a ser organisado, ha de viver sempre como o padroado, uma vida mesquinha, porque com os nossos limitados recursos, tendo ao lado d’elle Angola e por traz de Angola Moçambique, as perolas dos nossas possessões, seria um crime de lesa nação se distratássemos um real sequer d’aquellas colonias para o virmos gastar n’uma possessão que evidentemente nunca poderemos explorar proficuamente. Se na occasião do tratado do Congo eu estivesse, por desgraça rainha, occupando uma cadeira de ministro, não hesitaria em ceder de todos os direitos de soberania. E não havia que receiar que a gloria com isso se perdesse, pois havia de ficar consignada, reconhecida, homologada pela Europa inteira num tratado solemne e nunca mais depois d’este facto alguem ousaria contestar-nos a prioridade d’aquella descoberta. E mais alguma cousa havia de salvaguardar; se eu entendia que o estado não podia nem devia ambicionar a posse de novos territorios, nem por isso eu queria coarctar e pôr peias á iniciativa particular dos subditos de Portugal e havia de estipular, e era facil n’aquella occasião, que em todos os tempos fosse qual fosse o soberano a quem o Congo obedecesse, o portuguez, o representante do descobridor, havia de ser sempre privilegiado, havia de ter direitos iguaes, senão superiores, aos dos subditos d’esse soberano, e nunca inferiores aos que hoje lá tem. É possivel que depois dotal façanha a opinião publica desvairada, a meu ver, fizesse cair o ministerio a que pertencesse. Pouco me importava, caia abraçado a uma idéa, não ficava agarrado a uma cadeira contra os dictames da minha consciencia.
Deixando o incidente e voltando ao meu assumpto continuo no meu empenho em demonstrar que o padroado não é padrão de gloria que valha, a pena conservar.
Eu não venho aqui fazendo estendal de erudição, que não tenho, apresentar factos desconhecidos em favor da minha these cito apenas factos que todos conhecem e de que é licito tirar conclusões.
As glorias de Portugal não estão ligadas a assaltos a principes, que se, não podiam defender ou a roubos de pagodes. As nossas glorias nacionaes são mais subidas e de caracter puramente militar. Estão compendiadas na historia dos governos de D. Francisco de Almeida, de Affonso de Albuquerque e dos governadores, da India até D. João de Castro, e paro aqui. Não foi para propagar a fé que Affonso de Albuquerque atacou Aden, por duas vezes assaltou Ormuz e conquistou Malaca. Não era a cruz que empunhava, mas uma espada de boa tempera.
A sua idéa, o seu plano verdadeiramente genial realisou-o a Inglaterra seculos depois. Merecia ter sido inglez, merecia ter tido atraz de si uma Inglaterra, um paiz forte e poderoso que podesse colher os fructos da sua empreza?
Commemorará o padroado esta gloria? Não. Os chronistas quando narram estas façanhas inumeram cuidadosamente os homens que combateram, arrolam minuciosamente as armas empregadas, os berços, os leões, os espalhafatos e as panellas de polvora, e não nos dizem que ao missionario pertença o que o soldado realisou. Não desprezemos, pois, as glorias nacionaes, mas, por Deus, não chamemos gloria ao que o não é.
Alguem dirá que nem só as glorias militares são dignas de ser conservadas, e que as glorias religiosas se não lembram actos de força, provam a elevação do espirito dos nossos maiores, as suas virtudes e abnegação.
Não o contesto, nem desprezo as glorias religiosas mas sustento que não é ao estado que incumbe fazer sacrificios para as conservar, pertence á igreja, á igreja lusitana, não como parte integrante do estado portuguez, mas como parte inseparavel d’esse grande todo que constituo a igreja universal. Não é nos fastos das conquistas que devemos procurar os martyrios dos nossos sacerdotes, devem achar-se consignados nos annaes da fé catholica.
Para os que presam sobre tudo glorias d’esta ordem, direi de passagem, que não precisam ir á India, e fazer sacrificios, porque sem sair de Portugal as encontram, como poucos paizes as terão iguaes. Basta lembrar que duas das instituições mais elevadas devidas á fé religiosa, á piedade christã, são portuguezas: os hospitaleiros fundados por S. João da Cruz, um portuguez, cuja caridade, nem foi igualada por S. Vicente de Paula, porque se empregou em misteres mais repugnantes, e as misericordias, a mais completa das instituições de caridade, que ainda não póde ser igualada até hoje, fundada por uma minha portugueza, inspirada pelo seu confessor, que na verdade não era portuguez, o que não tira o merecimento á fundadora que o era.
Analysemos agora essas glorias religiosas, tão apregoadas, e que o padroado é destinado segundo dizem a conservar. Perguntarei: São todas de boa lei? A minha resposta é: Não.
Já hontem disse aqui, o que signifivaca no seculo XV o resgatar almas na costa de Africa; mostrei que devia ler-se: vender pretos. Agora tocarei em alguns pontos caracteristicos da nossa acção religiosa na India.
O digno par o sr. Costa Lobo mostrou o seu espanto pela fórma por que se faziam tão numerosas conversões e tantas ao mesmo tempo; trezentos, quatrocentos n’um dia. Voltem os tempos, voltem as circumstancias, e s. exa. verá como essa facilidade reapparece tambem. Se s. exa. examinar bem os auctores onde encontra essas narrações ha de ver sempre ou quasi sempre que o rajah que assim se convertia tinha um tio, um primo, um irmão, cujo throno usurpara, ou cuja usurpação temia e que, ao mesmo tempo que pedia a agua do baptismo, requisitava o troço de soldados que lhe consolidasse o solio; e estas conversões, em que a cruz ia escoltada pelas lanças, duravam o tempo que durava o interesse que as determinara, e não me consta que um só dos soberanos da India convertidos por esta fórma se conservasse na fé catholica. O trabalho paciente, diario, constante do missionario, e n’esse houve muito exemplo de virtude, de valor, muita palma de martyrio, era o que produzia resultados duraveis, e d’esse provem ainda hoje os subditos do padroado.
Tambem as chronicas registam e apontam como acções meritorias e serviços á fé a destruição dos templos pagãos. Vejamos em que consistiam. Estas expedições, verdade seja dita, foram quasi sempre de iniciativa particular. Dava-se a noticia que em tal ou tal ponto não muito distante do territorio occupado existia um pagode em que os Idolos cobertos de oiro e pedrarias eram detentores de thesouros fabulosos, e logo, a cubica despertava no animo de algum d’aquelles aventureiros.
Juntavam-se trinta ou quarenta d’aquelles homens, sem fé nem lei, que só confiavam na espada, e só pensavam em juntar o peculio com que haviam de voltar á patria, fosse qual fosse o meio por que o conseguissem e, verdadeiros piratas, destruiam o pagode e os idolos, mas recolhiam o oiro e a pedraria. Scenas d’estas são as sombras de tanto feito glorioso; não illustram, deslustram.
Para complemento, para fecho do edificio religioso que edificámos na India, veio finalmente a inquisição de Goa, a mais horrivel, a mais cruel, a mais tremenda manifestação d’aquelle nefando tribunal; pois se no reino a illustração relativa permittia que todos podessem ter conhecimento da doutrina catholica e eram justificaveis, se justificação podem ter, os meios empregados para conservar intacta a unidade da fé, como desculpar o uso dos mesmos rigores para com os indios imperfeitamente convertidos, ignorantes
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e supersticiosos, cujo unico crime era cairem insensivelmente nos antigos usos, nas velhas praticas. E são estas glorias de que não queremos se perca a memoria.
Affirma-se que devemos grande parte da nossa gloria e do poderio que tivemos á influencia das missões; pois não me consta que os missionarios trouxessem para a jurisdição de Portugal territorio algum, e pelo contrario o que a historia me ensina é que a Igreja não medrou, a fé não fez conquistas efficazes e duradouras, senão onde podemos estabelecer dominio effectivo e até não são raros os exemplos de ter a sua acção sido nociva ou contraria aos nossos interesses. Lembro como exemplo a missão do Japão, uma das mais gloriosas debaixo do ponto de vista religioso, das que emprehenderam padres portuguezes, uma das que mais foi regada com o sangue de martyres. Pois teve como resultado sermos d’ali rechassados, e ser tal o odio ao nome portuguez, que mesmo passado um seculo, quando os hollandezes já lá tinham obtido feitorias, e negociavam em liberdade, não podia um portuguez desembarcar nos seus portos, porque ainda eram considerados perturbadores da ordem.
Lembro ainda a má vontade e resistencia que nos jesuitas encontrou Salvador Correia de Sá, quando, depois da restauração, restituiu Angola á corôa de Portugal.
Não posso, pois, partilhar o enthusiasmo que vejo manifestar a alguns dos mais illustres membros d’esta camara pelo emprego das missões religiosas como principal meio de colonisação, porque até hoje o que tenho visto é que os resultados não correspondem aos esforços que empregam. No Canadá, por exemplo, onde as missões largamente se desenvolveram, o resultado foi a extincção quasi completa da raça autochtona. Isto não é colonisar. Do Paraguay não fallo, porque basta lembrar-lhe o nome. Nego, pois, a these aqui formulada de que sem missões não ha colonias. As missões necessarias são outras.
Eu pergunto ao digno par o sr. Bocage, porque o sabe bem, quantos missionarios eram necessarios para fazer na Africa o que tem feito um portuguez chamado Anchieta, homonymo de um distinctissimo missionario, no verdadeiro sentido da palavra, portuguez tambem que viveu no seculo XVI? Pergunto se elle com seu escalpello, com a sua lanceta, com a sua chave ingleza e os seus instrumentos de lavoura, não tem feito mais, a favor da civilisação e da cultura da terra do que poderiam fazer trinta missionarios em trinta annos? O proprio sr. ministro da marinha, dizendo-nos ha pouco quaes os serviços prestados pelos missionarios que nomeou, não sé esqueceu de nos dizer que elles ensinavam ao indigena a lavrar a terra. Ora para o fazer não é necessario ser ministro do Evangelho. E missionarios como eu quero não são só necessarios em Africa, tambem o são em Portugal, onde ás vezes estamos tão atrazados como os proprios africanos. Eu mesmo já fui missionario.
Sou agricultor, toda a gente o sabe; por muito tempo não fui outra cousa. Possuo no Alemtejo terrenos quasi tão desertos como os da maior parte da Africa. Quando pela primeira vez visitei a minha casa, reconheci que enormes tratos de terreno inculto e improductivo podiam transformar-se facilmente pela cultura da vinha, por isso que alguns hectares lá tinha eu produzindo perfeitamente. Havia, porém, uma difficuldade grande, a falta de braços para o amanho. Tentei suppril-os. Sabendo que em França, que em Hespanha, se lavravam com vantagem vastas regiões vinhateiras, tentei introduzir a lavoura das vinhas. Luctei com dificuldades, mas ao cabo de tres annos consegui o meu fim. Escusado é dizer que o meu paradoxo agricola foi recebido na Vidigueira com o mesmo favor com que é hoje recebido nesta camara o meu paradoxo politico; eram muitos os incredulos, muitos os detractores. Mas, no fim de mais tres annos, o exemplo tinha feito o seu effeito, e hoje não ha naquella região quem não lavre vinhas. Bem vêem que a minha missão não foi das mais mal succedidas.
D’estas é que são necessarias muitas em Africa. Ensinar a civilisação com o exemplo do homem civilisado.
Não quero dizer com isto que a missão religiosa deve ser posta de parte, mas sómente que quem só n’ella confiar póde achar se enganado. Que haja missionarios, mas que sejam portuguezes e que não pertençam a congregações. Exclusão completa e absoluta de frades; exclusão mais completa e ainda mais absoluta de jesuitas; com esses sou irreconciliavel. E dizendo portuguezes, excluiu-os a todos, porque pela lei nenhum portuguez residente em territorio do Portugal póde pertencer a uma congregação.
Disse hontem, sr. presidente, que hesitava sobre se o governo não teria dado prova de maior habilidade, oppondo ás exigencias de Roma, que lhe impunha um praso curtissimo para prorogar a jurisdicção do arcebispo de Goa, meios dilatorios que conservassem as cousas no statu quo.
A meu ver, os resultados immediatos da concordata, que o governo ratificou, são deploraveis, e dizendo-o sou coherente com a ordem de idéas que tenho sustentado.
Se Portugal tivesse as suas finanças equilibradas, sobras no seu orçamento, não havia rasão para lamentar que tivéssemos ido crear uma nova fonte de despeza sem proveito algum para a prosperidade do paiz; era rico, podia impunemente ser extravagante. Infelizmente, o orçamento que todos promettem equilibrar, está longe d’esse ideal, e quer se classifiquem de expedientes, quer se classifiquem de medidas de grande alcance, as que até hoje mais apregoadas têem sido, por emquanto tudo isto não passa de uma esperança. Portanto, emquanto este estado de cousas durar, a nossa primeira obrigação é não consentir em despezas inuteis, que se traduzem fatalmente em sacrificios penosos para o contribuinte. E dado o caso, que, apesar do nosso estado financeiro, julgássemos dever augmentar as despezas com o culto, temos muito onde o fazer proficuamente em territorio nosso, antes de o fazermos na India em territorio estranho.
Um dos oradores que me precederam sustentou e muito bem que se a Asia representa um passado glorioso, na Africa está a futura grandeza do Portugal. Pois então o dinheiro que havemos de gastar na India, gastemol-o antes em Africa. E a este respeito não posso deixar de commentar uma das asserções do digno paro sr. arcebispo resignatario de Braga, comquanto s. exa. o sr. ministro da marinha já hontem lhe tenha dado a devida resposta. Disse o reverendo arcebispo que era mais vantajoso manter, o padroado da indiado que ir despender dinheiro na Africa, por isso que os pretos são boçaes. O nobre prelado, ao fazer esta asserção, esqueceu-se de duas cousas; a primeira é que Christo, o Divino Mestre, a quem se dirigiu sempre de preferencia foi aos boçaes, aos humildes, não só de situação, mas de espirito; a segunda, e mais essencial, é que, sendo a religião christã uma instituição divina, um Deus na o podia tel-a feito de modo que de todos não fosse comprehendida. E mais teria que dizer a s. exa. se o visse presente; assim abstenho-me.
Tanto mais justificada seria esta preferencia, que eu desejaria ver dada ás nossas colonias africanas quanto é certo que é lamentavel o estado do clero em algumas das nossas possessões. O sr. ministro da marinha não ignora que a provincia de Moçambique, por exemplo, que constitue não um bispado mas uma prelazia, sujeita á jurisdicção do arcebispado de Goa, e que se compõe de quinze parochias tem actualmente onze padres. Ora se sobram em Goa, que vão para Moçambique; têem lá muito que fazer e não saem do seu bispado.
Mas se cuidámos em dar ao culto o incremento que precisa não saiamos do continente europeu; mesmo sem sair do patriarchado por falta de clero ha padres que teem licença de dizer duas missas, e no Alemtejo, ás portas de Lisboa, ha parochos que têem a seu cargo duas e tres freguezias, o que dá como resultado que os fieis que habitam
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aquellas regiões, passam um ou dois domingos sem cumprirem o preceito da Igreja.
Pouco mais occuparei a attenção da camara e desde já vou apresentar a conclusão de tudo quanto tenho dito.
Se o padroado não é uma parte da nossa soberania, se não é um elemento de influencia, se não é um monumento de glorias passadas, o que é?
Quanto a mim é apenas um encargo, e mais nada. É um encargo pura e simplesmente, supportado em favor do, clero de Goa, que precisa ter prebendas, conezias e parcchias.
Vou concluir, sr. presidente, mas antes de o fazer não quero deixar de me referir a uma phrase que hontem pronunciei e que desejo esclarecer.
Disse eu que ficaria completamente satisfeito no dia cru que visse consignado na constituição do meu paiz o unico preceito que considero verdadeiro em materia de relação do estado com a Igreja, ou melhor, como eu não o disse, e como o disse Cavour, a Igreja livre no estado livre.
Defendendo esta doutrina defendo os meus principiou sociaes que me levam a negar ao estado o exercicio de direitos que pelo cidadão podem ser exercidos sem a sua intervenção e não vejo a necessidade d’elle, para que eu ou qualquer dos meus concidadãos subsidie o culto que mais lhe aprouver. Não póde haver justiça em obrigar o judeu, o protestante, (e não deixão por isso de ser cidadãos portuguezes) o proprio indifferente, a contribuirem para um culto que não seguem, para a propagação de uma fé que não é a sua, e se esta violencia recáe sobre um crente, porque tambem os ha fóra da religião catholica, fóra mesmo de qualquer religião, é um dos attentados mais crueis a que está sujeita a consciencia humana. Repito, obrigar qualquer a subsidiar um culto que a sua consciencia ou a sua educação repudiam, é um dos factos mais revoltosos que eu conheço.
Só n’uma hypothese seria admissivel o regimen da religião do estado, tal como existe em Portugal; quando num paiz nem um só homem deixasse de professar a religião subsidiada. Ora, embora a minha crença me diga que um dia ha de chegar em que a fé ha de ser uma só, a historia affirma-me que até hoje esse ideal nunca foi realisado.
Poude-se com extraordinaria violencia obter uma apparente unidade, mas mesmo então sempre appareceu um Galileu, que com o seu e pur si muove lavrava em presença ainda do tribunal que o condemnava um solemne protesto contra a violencia que lhe impunham. Obteve-se temporaria e apparente unidade, mas mal das valvulas, que em França se chamavam as dragonadas e na Peninsula a inquisição, se aliviava o peso que as mantinha, surgia um Voltaire a dizer que tinha sido baldado o esforço empregado, e um espirito como o de Voltaire não apparece isolado, provem sempre de uma longa geração de pensadores.
Venha pois a liberdade para todos, para os catholicos como para os que o não são, e que cada um adore e sirva Deus e a sua Igreja como lhe approuver, comtanto que o faça pelos proprios recursos e que se sujeite á lei que deve ser para todos.
Eu bem sei que espiritos eminentemente liberaes objectam, que, no actual estado de civilisação das massas, desde o momento que a religião catholica deixasse de ser a religião do estado, os inconvenientes eram maiores do que as vantagens. Não os temo. Parece-me facil o remedio. Está elle na propria liberdade e na melhor organisação da escola, tornada obrigatoria, e em que se ensine a verdade; a verdade historica e sobretudo a verdade politica, que essa anda muito esquecida pela Igreja e por ella muito deturpada. Não são factos de ha cem annos, são factos de hoje. Quem se esqueceu já que Pio, IX, um dos Papas que pelas .suas virtudes pessoaes maior brilho tem dado ao solio pontificio, mas tão bem um dos que pelo exaggero das suas doutrinas, filhas da sinceridade das suas crenças, mais contribuiu para lançar a sizania entre os fieis catholicos, entre os filhos da mesma nação, anathematysou no syllabus tudo quanto constituo a organisação social das nações modernas?
E não é porque a Igreja devesse desconhecer a verdade politica que desde a origem lhe foi revelada. Encontra-se no Evangelho onde tudo se encontra. Christo foi o primeiro que formulou a doutrina da Igreja livre no estado livre quando disse: «Dae a Cesar o que é de Cesar»; mas n’este caso, como em muitos, a letra matou o espirito, e como o Cesar de então era Tiberio; a Igreja entendeu que todos os Césares deviam ser Tiberios, e para ella Reis constitucionaes tutelados por assembléas, as proprias assembléas e os directorios não são Cesares.
O ideal para mim seria pois, sr. presidente, a completa separação da Igreja e do estado; mas como esse ideal está longe, e como, se eu não receio um regimen de liberdade em que á sombra da lei e respeitando-a cada qual exerça o seu ministerio como quizer, em congregações ou fóra d’ellas, receio pelo contrario a acção abusiva d’aquelles que a lei não reconhece, direi agora que emquanto a liberdade não for geral para todos, é necessario a maxima cautela, para que alguns não saiam dos limites que a, lei lhe impõe.
Prevejo, sr. presidente, que o que vou agora dizer me tornará para muitos ridiculo.
Não ignoro como hoje costuma ser acolhido o homem que se preoccupa com os jesuitas.
Provoca o sorriso, encolhem-se-lhe os hombros e diz-se-lhe: «Isso é de 1830, não é de hoje». Pois, apesar de todos estes inconvenientes, eu não hesito em confessar que tenho medo dos jesuitas, e por isso mesmo que os temo hei de combatei-os em toda a parte onde os encontrar.
Não sei qual será o meu futuro politico, creio mesmo que não terei futuro politico, sobretudo se continuar a usar da franqueza de que tenho usado ha dois dias n’esta casa. E não me preoccupo com isso porque as minhas ambições são curtas. Limitam-se, sr. presidente, a ter uma tribuna onde diga o que penso com a franqueza que me é propria; se for n’esta camara, a ser o successor de um membro d’ella que todos choramos, que todos respeitamos, e seu muito especialmente, o visconde de Fonte Arcada. (Riso.)
Ter uma tribuna onde com a liberdade e franqueza que me é garantida, tão livre de compromissos como hoje estou, possa louvar o que for louvavel, defender o que julgar defensivel, e censurar o que for digno de censura.
Com isto, sr. presidente, ficam as minhas ambições completamente satisfeitas.
Voltemos aos jesuitas. Por tal forma me preoccupam que eu não posso deixar de chamar a attenção do governo para os factos que se estão passando.
O sr. ministro da marinha, na occasião em que fallava o digno par que habitualmente se senta n’esta cadeira, a respeito dos frades, proferiu uma aparte, que talvez a camara não ouvisse, mas que eu ouvi; disse s. exa. quando o digno par insistia para que não houvesse frades nas colonias, que já lá os havia, e isto com satisfação, e eu acrescento que não os ha só lá, tambem já cá os ha.
S. exa. deseja interromper me?
O sr. Ministro da Marinha: — É unicamente para esclarecer um ponto. No meu aparte referia-me ás missões do Congo, que pelas estipulações do tratado de Berlim são livres, não só no Congo propriamente dito, mas em todo o valle do Congo, que é extensissimo, e abrange todos os territorios entre o Zambeze e o Zaire. Era a isso que me referia.
O Orador: — Estimei immenso que v. exa. me. interrompesse. Registo com satisfação a declaração do illustre ministro, porque d’ella concluo que não ha missionarios congreganistas senão no Congo; e ahi pouco me importa, porque, já o disse, creio pouco na colonisação d’aquella provincia, e não penso do mesmo modo com relação a Angola.
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É costume dizer-se, sr. presidente, que os jesuitas de Pascal não são os jesuitas de hoje. Pois, sr. presidente, nada esqueceram nada aprenderam.
Não julgue a camara que eu venho aqui reproduzir as accusações de Pascal, e podia fazel-o, porque me dei ao trabalho de refazer o livro de Pascal; por tal forma me impressionaram as suas asserções, que uma a uma lhe verifiquei as citações e nem uma só achei errada. Não venho tambem reproduzir o livro mais recente de Paul Bert. Não cito observações feitas por outros, cito as minhas proprias. Fallo de visu.
Tenho sido testemunha das consequencias desastrosas da intervenção dos jesuitas na sociedade portugueza. Eu vi sr. presidente, eu assisti dia a dia, hora a hora, ao assassinato de uma alma; vi um homem saido do nosso meio social, com illustração não vulgar, identificado com a idéas de todos nós, partilhando-as, cair debaixo da influencia nefasta d’aquelles homens e d’ahi por diante serem a sua unica preocupação as penas do inferno; vi-o, elle cujas tradições de familia eram brilhantissimas, renegar esse passado. E tal impressão me causou este espectaculo que não ha nada que a apague do meu espirito.
Tenho visto creanças, de caracter franco, aberto e leal, entrarem para os collegios de jesuitas e sairem de lá dissimulados, traiçoeiros, com o caracter perfeitamente estragado! Chamam-lhes educadores, o que elles são é atrophiadores, e se o duvidam leiam as instrucções que distribuem aos alumnos que lhes são entregues.
Sr. presidente, tudo isto se faz, porque as leis senão cumprem. A legislação do marquez de Pombal não está revogada, teve pelo contrario a sua confirmação em 1833. Os governos, que ainda não tiveram tempo para nomear uma commissão, que tanto bastava, para reformar os artigos de guerra de 179&, que não hesitam, em applicar uma lei, que se não é obsoleta é pelo menos antiquada, e não os censuro por isso visto que ainda não foi revogada, porque é que não applicam as leis do marquez de Pombal, que ainda estão em vigor.
A companhia de Jesus teve a coragem, a audacia de annunciar urbi et orbi o restabelecimento da provincia de Portugal, nomeou provincial, abriu collegios aqui, ás portas da capital, no Bairro, em S. Fiel, não sei onde mais, onde as creanças se contam aos centos, e os governos riem-se quando se lhes falla em jesuitas!
O caso é serio, não é para rir. O trabalho é de sapa mas a mina pôde-nos cair sobre a cabeça.
Desculpe-me a camara o calor com que estou fallando, mas se ha cousa em que tenha convicções é esta.
A lei do marquez de Pombal póde não ser boa; se o não é, haja a coragem de a revogar; mas emquanto o não está é lei do estado, tem de se cumprir. Ha milhares de creanças nos collegios da ordem, pois a impressão mais funda que colhem do ensino, áquella que nunca mais se apagará é que nem todas as leis se cumprem. Não ignoram que está: proscripta a ordem a que os entregaram, e sem embargo da proscripção vêem-nos diariamente ensinando as doutrinas que muito bem querem. Como hão de futuro ter respeito á lei? E é por tudo isto, sr. presidente, que eu com franqueza e lealdade direi ao sr. ministro dos negocios estrangeiros que não foi sem me preoccupar que o VI tomar conta da pasta da marinha. Respeito muito as nobilissimas qualidades dó seu caracter, o seu talento, a sua honestidade inconcussa e a força das suas convicções, e por isso mesmo como sei que s. exa. não pensa como eu, receio que essas mesmas convicções o levem à arrastar os seus collegas para um caminho que póde ser fatal ao paiz.
Organise-se devidamente a instrucção publica, fiscalisem-se as doutrinas ensinadas na escola, prepare-se o povo contra as que lhe querem incutir, dê-se depois a liberdade a todos, e não serei eu que me insurja, mas até então, não se consinta que se esteja a educar uma geração tão differente da nossa que um dia nos achemos com adversarios onde cuidamos achar filhos.
Tenho dito.
(O orador foi muito cumprimentado.)
O sr. Marquez de Rio Maior (relator):—Tarde entro no debate, porque, infelizmente, o meu estado de saude me tem impedido de assistir ã esta importante discussão; mas ainda venho a tempo de cumprir o meu dever de relator, o dever da minha consciencia.
A resposta ao discurso da coroa, que eu tive a honra de redigir, refere-se ás questões de politica interna e ás negociações internacionaes. Quanto ás primeiras, todos os oradores, mesmo os chefes da opposição, julgaram que se deviam abster, e o debate tem-se concentrado na concordata, assignada em 23 de junho ultimo com a Santa Sé, que definiu os direitos do padroado nas Indias orientaes, já regulados pela concordata de 21 de fevereiro de 1857. Sobre este assumpto, tambem eu apresentarei com toda a lealdade e com todo o desassombro o meu modo de ver, e o meu pensamento completo; assim o tenho feito sempre, desde que sou membro do parlamento.
Dignos pares do reino, o homem, que falla neste momento perante vós, não é um reaccionario. (Apoiados.)
Não bebeu elle taes idéas no leite maternal, nem ainda nas lições, que de pães e mestres recebeu na adolescencia! Os meus estiveram no exilio nas masmorras, e foram mal feridos nos campos de batalha, combatendo pela liberdade! (Muitos e repetidos apoiados.)
Essas tradições mantenho-as todas! Ainda nas luctas constitucionaes de 1846 e 1847 os meus estiveram do lado da junta do Porto! Portanto, se me vierem chamar reaccionario, respondo a esses, que tiverem tal ousadia, que lhes rejeito o epitheto. Onde, nesta já um tanto larga carreira parlamentar, se encontram palavras ou actos, demonstrando tamanha culpa?! As minhas convicções são profundas, sinceras as minhas crenças, nobilissimas as tradições de familia; é dever de todos respeital-as.
Sou portuguez e sou catholico! Catholico com todos os adjectivos, que se encontram na formula do juramento prestado ao tomar assento n’esta camara, juramento que é o meu e de todos os meus dignos collegas. Não assisti á sessão de hontem por falta de saude, mas li nos jornaes, e, embora com ligeiras attenuantes, ouvi hoje repetir ao digno par, Fernando Palha, a doutrina perigosa, falsissima a meu ver, que s. exa. durante dois dias aqui encareceu, e que se resume na apotheose do Bezerro de Oiro! Desculpa o digno par, ferio-me dolorosamente a manifestação de taes opiniões. (Apoiados.) Para traz o Bezerro de Oiro! Para traz!
Não, não é esta, graças a Deus, a força unica, mesmo principal das sociedades modernas! O oiro cria caminhos de ferro, contribue, poderosamente, para todos os progressos materiaes das nações e povos do universo. A industria, o commercio e as artes devem-lhe muitas das suas mais grandiosas manifestações, mas acima d’elle está uma força superior, que nos governa e rege. O sentimento, do justo, do bem e do dever, é que eleva o homem, e guia a sua alma immortal distinguindo o dos seres irracionaes. (Apoiados.)
Hontem ardia em Paris o theatro da Opera Comica, lá estavam os heroicos bombeiros da grande cidade disputando á violencia das chammas as vidas de centenares de creaturas humanas.
Não era o oiro, que os levava a tão arrojadas emprezas, com risco de suas proprias vidas, porem incitava lhes á valentia uma voz interior, que lhes bradava, ali, no meio d’esse incendio, está o caminho que vos leva ao cumprimento do vosso sublime dever! Não hesitavam elles perante o perigo dos ferimentos e da morte, obedecendo satisfeitos aos dictames das suas rectas consciencias! (Apoiados.)
Sr. presidente, hoje mesmo vemos a prova, n’esta camara, que o Bezerro de oiro não é o unico e principal factor
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de todos os actos, que se praticam no movimento revulsivo da vida humana. Assoberba-nos o nosso estado financeiro, urge resolver a questão de fazenda; todavia aqui estamos todos discutindo, largamente, o direito do padroado, e a nossa missão evangelisadora, a nossa influencia nas christandades de alem-mar! Será o Bezerro de oiro, que domina o nosso procedimento? Não, mil vezes não!
Responde a nossa palavra e o nosso voto ás gloriosas tradições da historia, o amor da patria guia este enthusiasmo, que defende a continuação do, predominio portuguez! (Muitos apoiados.}
Perdoe-me a camara o calor com que fallo, mas animam-me as convicções mais profundas, são as da minha familia, e tambem as de toda esta nobre e fidelissima nação! (Apoiados.).
Na questão, que se discute, trata-se de soberano a soberano. Se o Papa, se o vigario de Christo na terra, não tem atrás de si um milhão de bayonetas, como outros potentados dispõem, pertence ao supremo Pastor da nossa fé a direcção de milhões de almas. E quem ha ahi que ouse não se inclinar reverente diante d’esse grande homem, que se chama o Papa Leão XIII?! Representa elle, elle sim, a força mais viva, mais altamente graduada da sociedade actual no seculo XIX! (Apoiados.)
Dizia Victor Hugo, no seu magnifico monologo do Hernani, n’esses versos, escriptos ha cincoenta annos, que ainda hoje têem tanto echo. « O Papa e o Imperador! Eis ahi as grandes forças, que governam o mundo!
E bem cantava o poeta, que os tempos, que vão passando, consagram hoje o seu maior preito áquelles, que os seculos anteriores sempre respeitaram e veneraram.
Não estamos já rio periodo historico em que ò Papa Gregorio VII punha os pe sobre a cabeça inclinada do Imperador Henrique IV d’Allemanha; mas o Pontifice, que vive no Vaticano, é hoje o arbitro escolhido entre as nações. Depois das Carolinas, lá está a protestante Inglaterra, invocando a sua influencia, como mediador, ha questão da Irlanda; agora mesmo, esta manhã, n’um jornal estrangeiro, o Figaro que acabo de receber, leio a noticia que o chefe do gabinete italiano, o sr. Depretis, reunindo os collegas em conselho, disse-lhes- «A ultima allocução do Papa impõe a obrigação d’esse examinar sem demora, quaes são os alvitres e as condições de Leão XIII, que podem dar esperança de se chegar, finalmente, a uma conciliação com a Santa Sé tão desejada por todos os verdadeiros amigos da Italia».
Aqui está, sr. presidente, como se pensa lá fóra, como se julga o Papa, e a importancia do seu immenso poder moral, superior a todos os outros poderes.
Nós sabemos como Pio VII esteve preso em Fontaine-bleau, depois voltou para Roma, è o seu adversario, o vencedor de Austerlitz, o auctor da paz de Tilsitt, foi morrer para Santa Helena, em quanto o Papa, representado pelo cardeal Consalvi, se sentava no congresso de Vienna, regulando os destinos da Europa moderna ao lado de Talleyrand, de Castlereagh, de Metternich, de Palmella é de Nesselrode.
É assim que procediam esses grandes homens, e que hoje procedem os seus; illustres successores!
O sr. Fernando Palha referiu-se a Paul Bert, me parece; pois bem eu respondo, entre o Paul Bert da camara frahceza e Paul Bert presidente francez no Tonkin, ha um abysmo. O homem, que, tão cruelmente, como ministro e deputado combateu os padres e as congregações religiosas, chegado ao Tonkin protegeu os julgando que a influencia da França carecia doestes auxiliares poderosos, e, convivendo com elles, teve tão cordiaes relações, que á sua morte alguns pensaram que se tinha convertido. Não era assim, e elle a respeito de crenças morreu como sempre viveu; não as tinha, infelizmente, a religião não póde por isso acompanhal-o no seu leito de morte.
Ha uma phrase notavel, que eu encontro na pagina 245 do segundo volume do Livro branco, é no despacho de 11 de maio de 1886 do sr. Mártens Ferrão, enviado ao sr. ministro dos negocios estrangeiros; diz s. exa.: «Quando se examinam e estudam as recentes negociações da Santa Sé entre outras nações com a Prussia e a França, reconhece-se bem que o tempo das ameaças tão proverbiaes com relação a Roma passou. Veja v. exa. quantas vezes nas notas d’ahi enviadas para a Santa Sé se fez referencia ás comminações das antigas bullas contra quem não mantivesse a integridade do padroado, e esse ponto nem nunca chegou a ter resposta. Eu é que cessei com essa ameaça, e não creio que isso prejudicasse a negociação». Bem dizia o sr. Mártens Ferrão. As iras dos santos, Apostolos, com que até chegámos a ameaçar Roma, é um dos maiores ridiculos que conheço, e que representa uma das notas tristes d’esta muito longa negociação. S. exa. teve toda a rasão na maneira discreta o dignissima como se houve nas suas relações com a Santa Sé, e, como bem diz no seu despacho de 18 de novembro de 1885, as bases da nova concordata foram essencialmente praticas; tendo, portanto, a felicidade de chegar a uma conclusão, que em trinta annos de lucta nunca se tinha podido obter. Presto toda a homenagem do meu respeito ao sr. Bocage, que teve a iniciativa, como ministro, do acto diplomatico, hoje ratificado pelas altas partes contratantes. Não menos louvo o sr. Barros Gomes, actual secretario dos negocios estrangeiros, que pela sua intelligencia é inexcedivel boa vontade tanto contribuiu para manter o nosso padroado e a nossa influencia nsa Indias orientaes.
Sr. presidente, entre as propostas, que teem sido apresentadas ha uma do sr. Miguel Osorio Cabral, digno membro da nossa magistratura, que não posso acceitar, como relator da commissão; sei perfeitamente quaes são as firmes idéa a religiosas e politicas, que dominam s. exa.; comtudo, permitta-me que lhe diga que eu não concordo com a sua proposta, porque envolve uma censura para uma das altas partes contratantes.
Sentir que a Santa Sé não correspondesse mais amplamente á solicitude do governo portuguez, é uma censura directa ao Santo Padre, que seria impossivel esta camara poder votar. Não podemos censurar soberanos estrangeiros em côrtes portuguezas.
Outra proposta, fez o digno par o sr. Thomás Ribeiro. S. exa. entende que o governo deve cumprir o disposto no artigo 10.° do acto addicional de 1852.
Permitta-me o digno par que lhe diga que o governo não tem de cumprir este artigo. Se s. exa. se der ao incommodo de tornar a ler o acto addicional, ahi verá, tambem, o artigo 15.°, que permitte ao governo legislar em relação ao ultramar. Portanto, admittindo mesmo que se tratasse de uma nova concordata, e eu sustento que se trata apenas da execução da concordata de 1857, ainda assim o governo, em vista d’este artigo 15.°, estava dentro dos limites constitucionais.
Como gosto de me soccorrer a auctoridades insuspeitas, vou apresentar duas opiniões, que considero de grande valor.
Não sei se tenho repetido argumentos já adduzidos; infelizmente não pude vir ás primeiras sessões d’este debate, e, embora tivesse o cuidado de ler nos jornaes o que se passava na camara, é possivel que esteja repetindo, o que outros oradores já melhor disseram, e sustentaram, com mais auctoridade e eloquencia; mas, sendo assim, a benevolencia da camara me desculpará.
Trata-se apenas da execução da antiga concordata de 1857. Em abono d’esta opinião, a primeira auctoridade que invoco é a do digno par, e meu collega na commissão de resposta ao discurso da corôa, o sr. Andrade Corvo.
Le-se num officio de s. exa. a pagina 201 do primeiro volume do Livro branco:
«E tempo já de concluir esta larguissima negociação, que não tem tido outro fim senão a execução de um trata.
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do, concluido ha quasi vinte annos, e acceito sem protesto, nem reserva alguma pelas duas altas partes contratantes.»
(Pausa.)
Sr. presidente, não posso hoje concluir as minhas reflexões; tenho ainda muito que dizer; e, apesar de estar prestes a dar a hora, cumprindo, todavia, o que manda o regimento, supplico aos dignos pares queiram escutar-me por mais cinco minutos, e peço, tambem, perdão se abuso da paciencia de s. exa.
Citei o que escreveu o sr. Andrade Corvo. Ouçam agora o sr. Mártens Ferrão.
No segundo volume do mesmo livro, pagina 146, lê-se:
«O abaixo assignado, embaixador extraordinario de Portugal junto da Santa Sé, tem a honra de apresentar a s. era. o cardeal Jacobini, secretario d’estado de Sua Santidade, as bases que, segundo as instrucções do seu governo, formulou para o accordo conveniente ácerca da execução de alguns artigos da concordata, celebrada entre a Santa Sé e o governo de Portugal, em 21 de fevereiro de 1857, ratificada por carta regia de 6 de fevereiro de ]860.»
Ainda no mesmo livro, pag. 273, na conclusão da negociação, diz mais:
«A nova concordata é toda comprehendida nas auctorisações legaes da concordata vigente de 1857.»
Á vista d’estas duas opiniões, e muitas mais podia invocar, dou me por satisfeito de estar ao lado de dois homens d’estado, tão illustres como são os srs. Andrade Corro e Mártens Ferrão. Ambos sustentam que se trata apenas de dar cumprimento e execução á concordata de 1857.
Argumentou-se que era indispensavel dar ao governo um bill de indemnidade por ter feito a ratificação d’este documento, sem o apresentar primeiro ás côrtes. Nego a conveniencia d’esse bill, e pergunto: quaes eram as consequencias politicas, que resultavam, se elle fosse rejeitado? O governo, como bem o declara no seu relatorio e decreto de 22 de julho do anno ultimo, approvando o convénio com a Santa Sé de 22 de junho, acceitaria as consequencias, que lhe podessem directamente advir do veredictum, proferido a tal respeito pelos representantes da nação.
Mas outros perigos resultariam da rejeição do bill. Qual seria a situação em que ficaria o accordo diplomatico, ratificado pelas duas altas partes contratantes? Não seria isto gravissimo, considerado debaixo do ponto de vista das relações internacionaes; sobretudo tratando-se do Papa e do reino fidelissimo? Não vale nada a questão religiosa? E as difficuldades que se podem levantar com o Supremo Pastor das almas não têem importancia?!
Esqueçam-se agora os meus illustres adversarios, que se trata do Papa. Pergunto, se o tratado tivesse sido ratificado com o imperador de Allemanha ou com a Inglaterra? Não respondo á perguntai respondam s. exa.
Vejo que o sr. Thomás Ribeiro toma nota d’este meu argumento, ainda bem. S. exa. dirá depois, qual seria a situação diplomatica em que ficaria o governo portuguez, se effectivamente fosse rejeitado o bill de indemnidade?
Pelo que se refere á posição do governo ou ás suas responsabilidades ministeriaes, sei que tal rejeição importaria a queda do gabinete.
Este facto agradava ao digno par.
O sr. ministro dos negocios estrangeiros já disse n’esta camara, mais de uma vez, que o seu maior desejo foi sempre que este assumpto fosse devidamente apreciado pelas côrtes; mas s. exa. não é culpado, não conseguindo obter da curia o praso de um anno para a ratificação da concordata. O Pontifice marcou o praso de tres mezes, e não prescindiu d’elle; quiz publicar em outubro a organisação da igreja das Indias. Que havia de fazer o ministro portuguez? Havia de perder as vantagens de tão porfiada negociação?
Não por certo. O sr. Barros Gomes em telegramma de 20 de junho auctorisou o embaixador a acceitar o praso marcado pelo Papa, e fez bem.
Esta é a verdade. Sua Santidade tinha motivada pressa, e punha por condição que o convénio fosse ratificado dentro dos tres mezes.
Deu a hora, peço a v. exa. que me reserve a palavra para a sessão seguinte.
(O orador foi comprimentado por muitos dignos pares.)
O sr. Presidente: — A seguinte sessão será na proxima sexta feira, e a ordem do dia a continuação da que vinha para hoje.
Está levantada a sessão.
Eram cinco horas da tarde.
Dignos pares presentes na sessão de 1 de junho de 1887
Ex.m0s srs.: João Chrysostomo de Abreu e Sousa, João de Andrade Corvo; duque de Palmella; marquezes, de Rio Maior, de Sabugosa, condes, de Alte, de Castro, da Folgoza, de Gouveia, de Linhares, do Magalhães, de Paraty, de Penha Longa; viscondes, da Arriaga, da Azarujinha, de Benalcanfor, de Borges de Castro, de Carnide, da Silva Carvalho; barão do Salgueiro; Adriano - Machado, Braamcamp Freire, Aguiar, Sá Brandão, Sousa Pinto, Couto Monteiro, Senna, Oliveira Monteiro, Serpa Pimentel, Costa Lobo, Barjona de Freitas, Sequeira Pinto, Pinheiro Borges, Hintze Ribeiro, Fernando Palha, Francisco Cunha, Margiochi, Van Zeller, Ressano Garcia, Barros Gomes, Henrique de Macedo, Jayme Moniz, Candido de Moraes, Mello, Ferreira Lapa, Holbeche, Valladas, Vasco Leão, Coelho de Carvalho, Gusmão, Braamcamp, Bandeira Coelho, Baptista de Andrade, Castro Guimarães, Pedreira, Castro, Silva Amado. José Luciano, Lobo de Avila, Raposo do Amaral, Teixeira de Queiroz, José Pereira, Mexia Salema, Silvestre Ribeiro, Sampaio e Mello, Bocage, Camara Leme, Pereira Dias, Vaz Preto, D. Miguel Coutinho, Osorio Cabral, Cabral de Castro, Placido de Abreu, Calheiros, Thomás Ribeiro, Thomás de Carvalho, Serra e Moura.
Redactor = Ulpio Veiga.