DIARIO DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO 133
confiança das camaras é tão essencial ao exercicio do poder com a confiança do Rei, póde sustentar-se que esta attribuição da corôa está realmente limitada, está sujeita a regras e a condições que excluem o arbitrio.
É de ver de todos aquelles a quem cumpre dar observancia e execução ás disposições da carta interpretal-as sempre scientifica e racionalmente, de modo que da sua execução não resultem inevitavelmente consequencias absurdas ou desastrosas, etaes que o exercicio regular, o jogo natural dos differentes orgãos da soberania nacional seja impossivel, ou que o estado não possa ter vida normal. - Se esta não fosse a norma por que em differentes epochas se dirigiram os legisladores nossos antepassados, como poderiam elles ter estabelecido a lei do censo eleitoral de um modo e fórma tão differente da que estava legislada nos artigos 65.° e seguintes da carta constitucional? Como poderiam elles ter decretado, por duas vezes, uma lei da regencia distincta, differente, e totalmente diversa da que está estabelecida na carta? Como poderiam elles, por duas vezes tambem ter dispensado na clara, expressa, terminante, e incondicional disposição do artigo 90.° da carta? Como poderam elles, ainda, ter dispensado uma vez na disposição do artigo 91.°?
Longe, muito longe, nos levaria a indicação das rasões da perfeita analogia que existem entre todos estes precedentes e a materia do projecto de que agora nos occupâmos. Esta demonstração excederia os limites rascaveis de um parecer e relatorio destinado a esboçar as principaes rasões da justificação do projecto que está confiado aos nossos estudos: - persuade-se porem a commissão que, sem perigo de ser contestada, póde assegurar que todas as rasões de sciencia, de boa politica e de conveniencia publica que tiveram os nossos antepassados para adoptar as leis e as providencias que ficam indicadas, são hoje applicaveis em tudo ao caso e á materia de que se trata. - Não póde porém a vossa commissão dispensar-se, ainda, de dizer que a opinião que apresenta, e que submette á vossa approvacão, está recommendada pelos exemplos e precedentes das legislações das nações estrangeiras que vivem sob o regimen, constitucional e representativo. - A carta constitucional franceza estabelecia a existencia de uma camara de pares nomeada pelo Rei sem outra alguma condição, mas pela lei de 29 de dezembro de 1831 não só foram estabelecidas categorias dentro as quaes unicamente o Rei podia escolher pares, mas foi declarado tambem que as condições de admissibilidade ao pariato, isto é - que as categorias poderiam ser modificadas por uma lei ordinaria.
Esta disposição de lei de 1831 é importante, para a materia de que tratâmos. O legislador indicou clara e distinctamente a differença que havia, não só entre o poder constituinte e o legislativo ou constituido, mas tambem a que havia entre a natureza ou caracter constitucional da camara alta e as condições de admissão dos seus membros; preceituando que a natureza e o caracter da camara dos pares não podia soffrer modificações, mas que as condições de admissibilidade ao pariato podiam soffrer alteração e entravam na esphera da legislatura ordinaria.
Temos, alem d'isto, outros exemplos e precedentes tirados das constituições da nação vizinha. Pelo artigo 15.° da constituição hespanhola de 1845, foi declarado que as condições necessarias para ser nomeado senador poderão variar por uma lei. Esta mesma declaração se encontra, ipsis verbis, transcripta no artigo 15.° da reforma constitucional de 17 de julho de 1857. - E para nada faltar de auctoridade e de valor que possa recommendar a opinião que aqui sustentâmos, ainda- na ultima constituição da monarchia hespanhola, promulgada em 2 de julho de 1876, se encontra o artigo 23.° que diz: "as condições necessarias para ser nomeado e eleito senador poderão variar por virtude de uma lei".
Em sentido opposto providenciou a constituição imperial de 1870. No artigo 24.°, tratando-se da nomeação dos senadores, declarava-se: "que nenhuma condição poderia ser posta á escolha do Imperador". - Entendia e entendeu o legislador constituinte que, se esta declaração não ficasse assim expressamente feita na constituição, a legislatura ordinaria poderia estabelecer categorias, e por isso fez essa próhibição. O legislador constituinte limitou expressamente os poderes da legislatura ordinaria.
Nada ha mais claro, o mais procedente, que estes exemplos tirados das leis e das constituições dos povos que se regem por constituições analogas á nossa. Fazem ellas expressa e radical distincção entre o poder constituinte, que tinha o direito de estabelecer a camara alta e de fixar a sua natureza, e o poder legislativo ao qual ficou confiada a missão, e incumbida a obrigação de regular o modo pratico, o methodo de realisar o pensamento primitivo e a idéa primordial.
Assim a camara dos pares é hereditaria, vitalicia ou inamovivel, não tem numero fixo, e a nomeação dos seus membros pertence ao Rei, - foi esta a obra do poder constituinte, e por é isso inalteravel; - tudo quanto respeita ao methodo, ao modo e á fórma de nomeação dos pares, pertence ao poder legislativo, do mesmo modo que, estando dogmaticamente estabelecido, na carta, que a camara dos deputados seja temporaria e electiva, não se elevou o methodo e o modo de eleição á categoria de principio fundamental, ou de base cardeal da sua constituição.
Alem d'isto: - á camara, dos pares pertence o direito de verificar os poderes dos seus membros, hereditarios ou nomeados (artigo 21.° da carta), e, consequentemente, não póde deixar de lhe pertencer tambem o direito de apreciar e resolver ácerca das condições legaes da sua admissibilidade ao exercicio das funcções do pariato. O direito de nomear pares, ou o de succeder no pariato, não deve confundir-se com o exercicio das funcções do pariato. A prerogativa da ctirôa, ou direito successorio, e o exercicio do pariato são cousas essencialmente distinctas. Se a carta concede ao Rei a faculdade de nomear pares e estabelece o direito de hereditariedade no pariato, concede igualmente á camara dos pares a faculdade de apreciar e resolver ácerca da verificação de poderes dos seus membros, e de os admittir ao exercicio do pariato.
Assim; ou se ha de dizer, e suppor, que a faculdade que pertence á camara - de verificar os poderes dos seus membros - nada vale e nada significa,
cumprindo-lhe acceitar e admittir, sempre e em todos os casos, ao exercicio do pariato todo aquelle que se apresentar com uma carta regia de nomeação, sejam quaes forem as suas circumstancias legaes e moraes, o que equivaleria a supprimir a parte correspondente do artigo 21.° da carta; - ou se ha de dizer e reconhecer que na mente e na intuição do legislador constituinte esteve presente a distincção supra indicada.
O direito que pertence á camara de verificar os poderes dos seus membros, e portanto a capacidade legal d'elles para o exercicio do pariato, não é incompativel nem inconciliavel, com a faculdade e prerogativa que pertence ao Rei. Ambas estas attribuicões estão garantidas na carta, e ambas devem ser respeitadas, em modo que não se destruam reciprocamente, mas se auxiliem e se fortifiquem.
Admittida, reconhecida e justificada a distincção entre a faculdade de nomear pares e o direito de apreciar as condições legaes do admissibilidade ao exercicio do pariato, podemos dizer que as disposições do projecto, quer se considerem só e directamente, em relação á faculdade e prerogativa regia, quer se considerem tambem e conjunctamente em relação ao direito da camara verificar os poderes dos seus membros, podem muito bem ser votadas por todos, até mesmo pelos mais suspeitosos ácerca da sua inconstitucionalidade.
Nem esta distincção é nova ou inventada agora para sophismar e restringir a prerogativa regia. - É velha e antiga, porque está no nosso regimento, o qual tambem não foi feito n'esta occasião para resolver a questão que na actualidade