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CAMARA DOS DIGNOS PARES

SESSÃO EM 19 DE MARÇO DE 1864

PRESIDENCIA DO EX.MO SR. CONDE DE CASTRO

Secretarios, os dignos pares

Conde de Peniche

Conde de Mello

As duas horas e tres quartos da tarde, sendo p 46 dignos pares, declarou o sr. presidente aberta a sessão.

Lida a acta da precedente) julgou-se approvada na conformidade do regimento, por não haver reclamação em contrario.

O sr. Presidente: — Não ha correspondencia. Passámos á ordem do dia, e continua com a palavra o digno par o sr. Moraes Carvalho.

ORDEM DO DIA

CONTINUAÇÃO DA INTERPELLAÇÃO DO DIGNO PAR O SR. MARQUEZ DE VALLADA, SOBRE A NOMEAÇÃO DO ESCRIVÃO DA CAMARA ECCLESIASTICA DE COIMBRA

O sr. Moraes Carvalho: — Sr. presidente, tive hontem de interromper o meu discurso, por ter dado a hora, quando fazia a apreciação da natureza do emprego do escrivão da camara ecclesiastica de Coimbra, e mostrava a differença que havia entre escrivão de camara ecclesiastica e secretario particular de bispo, entidades mui diversas. Tenho hoje de proseguir n'esta tarefa, mas antes d'isso permitta-me a camara que faça algumas reflexões para responder a alguns dos argumentos apresentados pelo em.mo patriarcha.

S. em.ª, fallando da responsabilidade, quiz combater o sr. ministro da justiça, dizendo que a responsabilidade não era só d'elle; n'isto estou eu de accordo com s. em.ª; a responsabilidade do sr. ministro é a da nomeação, e antes da posse; e a responsabilidade depois da posse pertence toda ao prelado que conservar ou não punir um empregado que commetta erros ou crimes. Nem isto é cousa nova, succede em quasi todos os empregos. Nomeia se um escrivão do eive! ou do crime, o ministro da justiça tem a responsabilidade d'essa nomeação; mas se elle depois de entrar no exercicio das suas funcções, não sabe cumprir com as suas obrigações, ou se prevarica, então o responsavel á o juiz perante quem serve, se não toma as providencias para evitar o mal.

Portanto estou de perfeito accordo com as opiniões de s. em.ª a tal respeito. Mas nem differente doutrina sustenta o sr. ministro da justiça. Já lhe ouvi dizer, parece-me que na outra casa do parlamento, sobre este objecto, que lhe parecia que o nomeado á vista das habilitações litterarias que tinha estava no caso de desempenhar bem aquelle officio, e se o ex.mo bispo de Coimbra conhecesse depois que o individuo não tinha as habilitações convenientes e não sabia cumprir com os seus deveres ou os cumpria mal, que o suspendesse, que o processasse, que estava no seu direito; e portanto estamos todos de perfeita harmonia sobre este assumpto

Sr. presidente, s. em.ª quer mais, quer que os bispos possam ter conhecimento d'essas habilitações, anterior ao facto da posse, e que possam por consequencia repellir aquelle que for nomeado pelo governo.

Parece me que esta doutrina não se compadece muito com as disposições mesmo do concilio tridentino, que na secção 22.ª, capitulo 10.º diz que, «como da imperícia dos notários possa provir muitos damnos o originar-se muitas lides, o bispo póde, por meio de exame, indagar a sua suficiencia, e não os achando idoneos no seu officio, ou vendo que prevaricam, suspende-los perpetua ou temporariamente».

E poderá suspender-se alguem sem primeiro entrar no exercicio do seu emprego? Não é possivel. É preciso primeiro haver a posse, para depois poder haver a suspensão.

Sr. presidente, eu comtudo sou tão latitudinario que ainda concedo a s. em.ª que os prelados tenham direito de proceder ao exame antes da posse; n'essa hypothese o ex.mo bispo de Coimbra mandasse proceder ao exame e informasse o governo, se não achasse idóneo o nomeado; mas sem isso poderia repelli-lo desobedecendo ás ordens do governo? Parece-me que não.

Eu sei, sr. presidente, que se diz que não é só as habilitações que são necessarias para desempenhar o emprego, são tambem as qualidades, as virtudes do individuo e a confiança que elle póde merecer. E s. em." foi buscar um símile ao direito doa padroeiros nos provimentos de beneficios, em que os bispos podem recusar os apresentados.

S. em.ª não admitte, contra o que dispõe a carta, que ninguem possa nomear senão o padroeiro que tem o direito do padroado; e assim mesmo s. em.ª disse que isso era uma ferida feita nas attribuições do episcopado; porém não se queixou das reservas pontificaes que fizeram n'essas attribuições mais profunda ferida do que as attribuições do monarcha tiradas do jus circa sacra. Trazendo este exemplo, disse s. em.ª que quando o padroeiro nomeia um individuo para um beneficio, o bispo tem o direito de o repellir, como não ha de ter a mesma attribuição a respeito do escrivão da camara ecclesiastica? Aqui ha uma circumstancia omissa; o prelado tem o direito de repellir, mas ha de mostrar a causa legal da recusa; assim n'este caso tinha o em.™ bispo de Coimbra o direito de expor e provar as circumstan-

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cias legaes de recusa e os defeitos do nomeado; estou certo que o sr. ministro havia de attender ás rasões do illustre prelado.

Sr. presidente, eu devo dizer, porque nutro por aquelle prelado a maior sympathia, e tenho-lhe a maior affeição, tratei com elle algumas vezes pessoalmente, e achei que era um pastor que conhecia os seus deveres, que era instruido, e que tinha feito serviços á causa da patria; mas o que me admirou e parece inacreditavel é que os documentos que lhe são attribuidos, e que foram estampados no Diario de Lisboa, estejam de harmonia com o espirito de s. ex.ª Podiam saír da pena, mas não saíram de certo do seu coração; faço-lhe esta justiça. Demonstrarei agora que rasões apresentou o ex.mo bispo contra a idoneidade d'aquelle individuo, e logo tratarei do objecto e das habilitações; mas por emquanto permitta-se-me que diga que s. ex.ª não achou outra cousa mais senão o dizer que o nomeado era um apóstata das ordens. Isto para quem não sabe o que é ser apóstata das ordens dirá: pois o governo foi nomear para um emprego ecclesiastico um apóstata!... Eu mais tarde mostrarei que não concorre cousa nenhuma n'este individuo que o impossibilite de exercer aquelle officio.

S. em.ª accusou a secretaria da justiça, e accusou-a acremente. Eu vou referir as palavras de s. em.ª, se não forem estas, espero que s. em.ª haja de me corrigir e de as rectificar. S. em.ª disse «nunca a secretaria da justiça foi mais arbitraria do que no tempo do governo constitucional». Disse mais «a secretaria está no empenho constante de cercear as attribuições do episcopado». Foram estas as palavras proferidas por s. em.ª?

O sr. Patriarcha: — Apoiado.

O Orador: — Muito bem, s. em.ª apoia. Sr. presidente, estas frases comprehendem uma aspera censura, não só a este ministro, mas a todos os' ministros da justiça do systema constitucional. Não limita a tempo certo, abrange todos os tempos deste systema, são expressivas as palavras « desejo constante de cercear as attribuições do episcopado». Muitos dos membros desta camara, que me estão ouvindo, foram ministros da justiça; alguns já estão inscriptos, e elles dirão se, com effeito, aceitam ou não aceitam a censura de s. em.ª

Sr. presidente, nas frases assim enunciadas, que s. em.ª acaba de ratificar, parece ver-se um espirito, um desejo ou um empenho de combater o systema constitucional; não póde ser outra cousa. Pois ha de ser este systema tão fraco ou tão injusto que consinta uma pressão constante sobre o episcopado, e que os ministros da justiça cerceiam as suas attribuições?!

Mas passando aos factos que apontou s. em.ª, accusa o governo por não ter dado ampla execução ao decreto de 1833; por não ter nomeado provisores, nem vigários geraes e outros empregados; mas isto longe de mostrar arbitrariedade da parte do governo, em usurpar as attribuições do episcopado, mostra, por assim dizer, omissão ou deferencia para com elles, deixando de nomear áquelles que tambem s. em.ª disse que eram empregados ecclesiasticos. Por consequencia nada prova o argumento, porque prova de mais. S. em.ª disse que o decreto é de tal natureza que abrange tambem os provisores e vigários geraes, e que o governo os não tem nomeado. Era melhor mostrar que o governo não tinha nomeado escrivães da camara ecclesiastica, então podia colher o argumento, mas d'aquillo não póde tirar ilação logica para censurar a nomeação do escrivão da camara ecclesiastica de Coimbra. S. em.ª fez largas considerações a este respeito, ponderando que o decreto de 1833 abrangia os vigários geraes, e que não era possivel que o poder temporal se ingerisse na nomeação d'esses empregados, denominados vigários geraes, que são como os immediatos dos prelados e os seus logares tenentes, porque exercem as suas funcções e não devem ser senão da plena confiança dos bispos; mas s. em.ª ha de convir comigo, que se a confiança dos bispos é precisa para a nomeação dos vigários geraes, pelo mesmo motivo lhes deve pertencer o direito de os demittir quando quizerem e tenham perdido essa confiança. Julgo que esta conclusão é logica.

Pois, sr. presidente, eu vou ler um documento que é muito importante, e fará o reverso do quadro que s. em.ª nos apresentou, citando uma carta regia de El-Rei D. João IV, pela qual mostrou que pertencia n'aquella epocha aos bispos a nomeação de todos os empregos ecclesiasticos, e fez-lhe grandes elogios talvez desconhecendo a epocha em que ella foi publicada, as circumstancias em que estava Portugal, e as dissenções que havia com a corte de Roma, e que até, como medida politica, não devia El-Rei de fórma nenhuma fazer conspirar contra si o clero.

Imitando pois o proceder de s. em.ª, referir-me-hei a um documento do tempo em que tambem havia ruptura com a corte de Roma, documento que partiu de um ministro illustrado, que sabia quaes eram as divisas nas relações entre o espiritual e o temporal, quaes as regalias da corôa, e quaes as attribuições do episcopado; e que por seus actos fez ver ser um d'aquelles estadistas que apparecem de seculos a seculos.

Peço a attenção da camara para a leitura deste documento; é a carta regia de 15 de março de 1776, dirigida ao arcebispo da Bahia, do teor seguinte:

«El-Rei, meu Senhor, vendo a petição da copia inclusa, que á sua real presença fez chegar pelo meu expediente Gonçalo de Sousa Falcão, em que representa a notória violencia, que V. ex.ª lhe fez, depondo-o dos logares de ministro da mesa arcebiscopal de V. ex.ª, que havia occupado por mais de trinta annos e de vigario geral d'esse arcebispado por mais de vinte e sete annos, havendo-o V. ex.ª confirmado nos ditos logares; e tendo-os servido com o mesmo zêlo e préstimo até ao tempo que o suspendeu; sem que V. ex.ª para este procedimento lhe fizesse, como devia, culpa e sobre ella o ouvisse, e lhe admittisse a sua defeza, para que no caso de não ser esta relevante, tivesse então logar a referida deposição; e não podendo deixar de se fazer muito reparavel á indefectivel justiça do mesmo senhor a celeridade e ultraje, que V. ex.ª (usando de poder absoluto) fez ao sobredito vigario geral.: manda Sua Magestade significar a V. ex.ª, que deve logo restituir o referido vigario geral aos sobreditos logares, de que não podia ser deposto, senão depois de haver sido citado e ouvido, e de se guardarem no seu livramento os termos, que o direito natural e divino se fizeram sempre impreteriveis, resultando da falta de observancia d'elles uma clara violencia, que se costuma fazer cessar pelo meio de recurso, o que Sua Magestade houve por bem obviar camarariamente n'este caso, attendendo ao decoro do caracter de V. ex.ª, para o não expor á estrepitosa publicidade do foro nas circumstancias acima referida.»

Eis-aqui como então se entendia o principio da confiança, e nem por isso aquelle prelado julgou offendidas as suas attribuições, nem pediu a sua resignação.

Queixou se s. em.ª de que a secretaria da justiça, por meio de regulamentos, tinha usurpado as attribuições episcopaes. O governo tem estabelecidas na carta constitucional as suas attribuições, e póde fazer todos os regulamentos que julgar necessarios para a execução das leis, ainda mesmo que digam respeito a assumptos ecclesiasticos. E um direito que lhe não póde ser tirado emquanto existir a carta constitucional.

Mas, sr. presidente, o que é mais para notar é que, dizendo-se que o governo não tem direito para fazer estes regulamentos, os proprios reverendos prelados tenham algumas vezes pedido que elles se façam, vindo agora a esta camara arguir o poder executivo por este os ter feito! Não me demorarei em mencionar muitos regulamentos de que me lembro, e entre elles um que se fez no tempo em que eu tinha a honra de exercer as funcções de ministro da justiça, e que dizia respeito a um objecto muito mais insignificante do que de certo é o de, escrivão da camara ecclesiastica: refiro-me aos thesoureiros das freguezias; regulamento feito a pedido de alguns prelados do reino e a cujas disposições 8. em,* tambem annuiu. Note bem a camara que este regulamento foi feito de accordo com o reverendo prelado. Ora, se s. em.ª entendia que o governo não podia fazer este regulamento, porque se tratava de negocios puramente ecclesiasticos, porque não recalcitrou contra as tentativas do governo em fazer esse regulamento pedido por varios bispos? Porque lhe não disse que elle não tinha o direito de o fazer? Mas não é só isto, sr. presidente. Um illustre prelado desta diocese concebeu uma idéa luminosa (e eu lhe dou por isso os meus parabens): para dar impulso á educação do clero, propoz que se provessem seis canonicatos da sè de Lisboa com o onus de ensino no seminario de Santarem. Note bem a camara que tudo isto diz respeito a negocios ecclesiasticos. Este reverendo prelado requereu ao governo que regulasse o caso. Este illustre prelado é s. em.ª; o ministro que fez o regulamento, o sr. conde d'Avila.

Sr. presidente, s. em.ª fez-nos uma demonstração, de que se o reverendo bispo de Coimbra ou qualquer outro quizesse inutilisar a nomeação feita pelo governo, não tinha mais do que chamar a si todo o expediente da secretaria da camara ecclesiastica. Eu não sei se uma repartição onde se trata de processos, de patrimónios que affectam a propriedade; onde se processam ordens, onde se trata de matrimónios, objectos que dizem respeito ao estado civil do cidadão; e cujos documentos authenticos regulam muitos actos das transacções da vida civil o das successões hereditárias; não sei, repito, se uma repartição d'estas que não costuma nem deve passar esses documentos, sem que sejam assignados por um escrivão que lhes dá a fé, e pelo prelado ou por aquella pessoa que faz as suas vezes, póde ser anniquilada pelos ex.mos prelados, sem se estabelecer na sociedade uma anarchia completa e sem levantar uma barreira entre o estado e a igreja.

Sr. presidente, s. em.ª quiz demonstrar que o escrivão da camara ecclesiastica não era um empregado; eu até tomei nota das proprias palavras de s. em.ª quando disse: «Pois aquillo é algum emprego?» Era n'este ponto que eu me achava quando hontem interrompi o meu discurso por ter dado a hora, e no qual vou hoje proseguir.

Sustentou s. em.ª que o poder temporal não podia prover beneficios senão a titulo de padroado; que não podia fazer regulamentos, e que isso era uma usurpação das attribuições do poder espiritual; que a nomeação de todos os beneficios ecclesiasticos pertence aos bispos, e que estava firme no seu posto para defender este direito da igreja.

O sr. Cardeal Patriarcha: — Não disse isso.

O Orador: — Se não disse não continuo, porque não quero de modo algum attribuir a V. em.ª proposições que não avançasse.

S. em.ª disse = que o padroado só podia ser exercido pelo governo em relação aos beneficios de cura d'almas. =

S. em.a fez distincção entre beneficios que têem cura d'almas e os que não têem cura d'almas, mas como tem duvida sobre a apreciação que eu fiz das suas palavras, por isso não proseguirei sobre este ponto.

Como dizia, o reverendo cardeal patriarcha contestou o direito que o governo tinha de nomear empregados ecclesiasticos...

O sr. Cardeal Patriarcha: — E disse que havia muitos empregos d'esta natureza que não haviam sido nomeados pelo governo.

O Orador: — Nesse facto convenho eu Mas s. em.ª soccorreu-se muito ao decreto promulgado pelo Senhor D. João IV, e eu devo responder que a differença é que o decreto do Senhor D. João IV tem a data de 1646, e o do Senhor D. Pedro IV é de 1833, e por isso é este que está

em vigor; tendo sido rubricado pelo sr. José da Silva Carvalho, cuja memoria todos respeitámos.

Sr. presidente, o digno par, o sr. marquez de Vallada tinha aqui citado a opinião de Van-Espen, acrescentando que estava convencido que mais alguem n'est'a camara citaria a opinião d'este escriptor. Mal pensava o digno par que se estava referindo a mim! Sou eu, er. presidente, que recorro á auctoridade de Van-Espen; pois é este auctor que no tomo IV, parte int titulo vi, capitulo IV, falla sobre secretários das camaras ecclesiasticas, e os considera como empregados publicos. Não quero fatigar a camara com a leitura textual desse escriptor, e mesmo porque não me acho com forças para isso; tomára eu te-las para acabar o meu discurso.

Sr. presidente, ha ainda alem d'aquella auctoridade um documento muito importante e que não póde seguramente ser estranho a s. em.ª, não só porque havia de consulta-lo muitas vezes, mas porque o illustre prelado antes de subir á alta dignidade em que hoje se acha, regeu o bispado de Coimbra de cujo escrivão nos occupamos agora. Esse documento é o regimento dos officiaes do auditorio ecclesiastico do bispado de Coimbra, o qual tem um capitulo que trata do escrivão da camara ecclesiastica, a cujo cargo dá o nome de officio. Diz este regimento que o nomeado para servir o officio deve ter uma provisão, de nomeação, e ser ajuramentado; que o escrivão deve ter um livro de registo, como de notas, que este livro será authentico, que depois de findo será guardado na arca das escripturas; e quando falla dos emolumentos e no salario que deve ter o escrivão, declara que se ha de conformar com o regimento d'El-Rei nosso Senhor.

Conclue-se portanto que isto é um emprego e emprego publico; e quando não houvesse esta auctoridade e este documento, lá estava a ordenação do reino, livro II, titulo XX, para tirar todas as duvidas; sendo pois emprego ecclesiastico, e d'esta natureza, não se póde duvidar que está comprehendido no decreto de 1833.

Sr. presidente, o governo não é legislador; o governo encontra uma lei, e trata por consequencia de a cumprir, do que não póde ser arguido. Não se diga pois que é uma vergonha guiarmo-nos hoje pelo decreto de 1833. As leis, emquanto não estão revogadas, devem ser observadas por todos, e não é portanto vergonha que esta lei seja cumprida. O que faltou a s. em.ª foi dizer que, se o decreto de 1833 dava ao governo o poder de nomear outros empregados ecclesiasticos, não lh'o dava para nomear escrivães da camara ecclesiastica. Pois é inteiramente o inverso: se o governo tem auctorisação para nomear uns, tambem a tem para nomear outros.

Eu tenho uma nota, não de todas, mas de algumas nomeações feitas pelo governo para escrivães de camaras ecclesiasticas, e foram ellas feitas pelo sr. Vieira de Castro, pelo sr. Mello e Carvalho, pelo sr. Aguiar, pelo sr. Mártens Ferrão, pelo sr. Antonio Bernardo da Costa Cabral, hoje conde de Thomar, e por muitos outros.

Por consequencia se esta lei tem sido executada constantemente nesta parte, como se vem fazer uma accusação ao actual ministro por ter feito o mesmo que muitos dos seus antecessores fizeram?

Tenho demonstrado que o sr. ministro da justiça estava no seu direito de nomear; agora passarei a tratar da outra questão, a saber, se tinha obrigação de pedir informação ao prelado. Poderia responder simplesmente que não, porque não está regulado o meio de exercer esse direito; mas acrescentarei que não me consta que exista lei ou disposição alguma que n'este caso impozesse ao sr. ministro tal obrigação, e não havendo como se póde dizer que o sr. ministro seja um violador dos seus deveres? Mas, sr. presidente, seria conveniente que o ar. ministro ouvisse o prelado? Direi com franqueza, porque não venho aqui dizer senão a verdade, a verdade nua e crua. Desejaria que s. ex.ª o tivesse ouvido (apoiados), não só por deferencia, mas até para tirar o pretexto de elevar uma questão pequena a uma alta questão de estado (apoiados). Esta falta de deferencia não importa porém desconsideração, de que o sr. ministro é accusado. A desconsideração encerra em si a idéa de uma offensa; não se póde presumir que existe offensa quando não ha o animo e a intenção de a fazer, e esta intenção, este animo não póde existir sem causa; ora eu não sei que o sr. ministro tivesse causa para offender o prelado, nem a tenho visto allegar, não creio pois que houvesse intenção de o desconsiderar. Que empenho poderia ter o sr. ministro em promover esta questão e dar origem a um conflicto? Tinha algum motivo para desconsiderar, para offender o prelado? Não tinha. Se não havia causa para a offensa, para que é presumi-la? Eu, pela minha parte, achava mais proprio que o digno prelado, revestindo-se de sentimentos evangélicos, attribuisse antes a omissão do sr. ministro a um erro, porque ninguem neste mundo está isento de errar, nem o mesmo summo pontífice: o proprio principe dos apostolos errou, negando tres vezes o Divino Mestre.

Assim se explicava tudo. Se o sr. ministro praticou uma falta, attribua-se a um erro.

O sr. Marquez de Vallada: — Ha um erro de data.

O Orador: — Não me admira. V. ex.ª o corregira, e eu aceitarei com gosto a correcção. O que é certo é que quando entre cavalheiros ha uma contestação de honra, logo que aquelle que se julga offendido recebe a devida satisfação do offensor, apertam as rasões e continuam as relações; na questão com o sr. bispo de Coimbra, o sr. ministro da justiça declara ao prelado que as suas intenções não foram offende-lo, que nunca teve em vista desconsidera-lo. Esta satisfação não é aceita, o sr. bispo de Coimbra continua a presumir desconsideração e retribue, o que é mais, offensa por offensa. Eu leiu, sr. presidente, no antigo testamento =Non queeras ultionem, nec memor eris injuriai civium tuolrum=. Levit. 19-18.

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E no novo testamento diz-se isto mesmo pela bôca do principe dos apostolos = Non redentes malum pro maio; nec maledictum pro maledicto, sed e contrario benedicentes ==S. Petr. 3, 19.

Mas qual foi a causa que o sr. bispo attribuiu ao procedimento do sr. ministro da justiça?

Eis as suas palavras = Parece pois que o governo de Vossa Magestade com este seu procedimento injustificado, ou não quer o bem d'esta diocese, ou quer desconsiderar o seu pastor =.

Em qualquer dos pontos d'este dilema que estivesse envolvido o sr. ministro, quando fosse verdade, era indigno de se sentar n'aquellas cadeiras. Pois o sr. ministro póde deixar de querer o bem de um bispado, de todos elles? Pôde ter interesse em desconsiderar um prelado?

Desconsideração! Desconsideração por não ter sido nomeado para escrivão da camara ecclesiastica o individuo proposto pelo prelado, o qual individuo requereu depois e obteve outro emprego de mais alta categoria; pois o logar de conego não póde comparar-se com o de escrivão da camara ecclesiastica, e foi despachado para esse logar. Grande acto de desconsideração! Desconsideração, sr. presidente! Persuado me que no estado em que as cousas estavam collocadas, o sr. ministro fez um assignalado serviço ao sr. bispo em não ter mandado que fosse ouvido. Se o mandasse ouvir, o que responderia s. ex.ª, que se tinha collocado n'uro plano inclinado, que forçosamente o havia de precipitar no abysmo da inconsequência. A demonstração ei-la: No seu officio primeiro, em que faz a proposta, diz o prelado o seguinte =E de necessidade que seja provido quanto antes, e que o seja não em pessoa que o procure para modo de de vida, etc... = e mais abaixo diz, fallando do proposto = se elle merecer regia confirmação, a igreja e o estado ficarão bem servidos, sem se excitar a cobiça de muitos, porque muitos se preparam para requerer =.

Eu não posso conceber que quem requer um emprego retribuido o não requeira como modo de vida, salvo se renuncia aos proventos; nem que o facto de requerer possa ser considerado como cobiça. Quem requer um emprego, porque se julga habilitado para o exercer, não pratica acto reprehensivel, e tem direito aos seus proventos. A doutrina contraria podia voltar-se contra o sr. bispo, não só porque feria o seu proposto, que tambem requereu o emprego sem dizer que renunciava os proventos do officio, mas até porque o inhibia de informar sobre os outros; que diria elle se o sr. ministro o ouvisse, e não quizesse ser in consequente? Diria = todos esses requereram, e n'isso mostraram a sua cobiça; nenhum disse que renunciava aos emolumentos, e por isso buscam o como moo de vida; portanto todos são indignos =. Similhantes principios não são compativeis com a publica administração.

Desconsideração! Se a houve no acto do sr. ministro, então tem-n'a havido em todos os tempos, não só nos do governo constitucional, mas nos tempos passados, pelos quaes muita gente chora e suspira. E ha até uma differença. N'esses tempos não só se praticava a denominada desconsideração, mas até preceituava-se nas leis, o que é mais alguma cousa.

No alvará, denominado das faculdades, de 14 de abril de 1781, onde se mandava ao bispo do Funchal, que para o provimento dos beneficios collados ou não collados (precedendo para aquelles concurso) fizesse proposta graduada dos tres mais dignos, lêem-se estas memoraveis palavras:

«Havendo eu por bem nomear outros ecclesiasticos em logar dos propostos, instituireis e collareis os que pelas referidas cartas vos constar, que foram por mim apresentados; e os fareis logo investir na posse dos seus beneficios.»

Eis aqui uma disposição, onde se diz positivamente, que os prelados fazem as propostas, mas que se o soberano nomear outros, esses serão collados e se lhes dará posse. Temos tambem o alvará de 14 de fevereiro de 1800, que amplia as disposições do outro; ordena que a mesa da consciencia e ordens proceda como se não houvesse propostas dos bispos, e que consulte os propostos e os não propostos.

De maneira que n'aquelles tempos dizia-se aos prelados: «Vós podeis propor, mas o governo ha de nomear quem quizer, ainda que não tenha sido proposto». Eis aqui está a desconsideração preceituada nas proprias leis. Podemos nós acreditar que uma rainha tão piedosa como era a Senhora D. Maria I, e um principe tão religioso como o Senhor D. João VI, quizessem desconsiderar os prelados estabelecendo estas disposições nas suas leis? Certo que não.

Antes da portaria de 13 de agosto de 1849, que veiu regular os concursos ecclesiasticos, raro foi o ministro que não despachasse para beneficios collados, o que é muito mais importante, muito mais transcendente do que a nomeação de escrivão da camara ecclesiastica, sem ouvir os prelados. Consultem se os archivos do ministerio da justiça, onde muitas vezes tenho recorrido (porque isto não são materias que se tratem de leve); consultem-se esses archivos, e lá se verá á verdade do que digo. Ali se encontrarão decretos de despachos ecclesiasticos feitos sem se ter ouvido os prelados, sem que por isso estes se tenham julgado desconsiderados e hajam pedido a sua resignação; ali se verá que este facto, sobre que versa a questão de que nos occupâmos, não é novo, tem havido muitas nomeações d'estas; em 1846, vagando o logar de escrivão da camara ecclesiastica de Aveiro, bispado que estava então governado por um governador que fazia as vezes do bispo, e que por consequencia, se para a nomeação d'aquelle emprego fosse indispensavel ouvir o prelado o governador do bispado devia ser ouvido; foi nomeado um individuo sem preceder esta formalidade.

Presidia aos destinos da sé archiepiscopal de Braga um varão eminentissimo em virtudes e igualmente em saber; um prelado que sabia cumprir exactamente todos os seus deveres, que conhecia até onde chegava a sua jurisdicção, e que sabia sustentar as prerogativas do episcopado; um homem, emfim, e portuguez tão perfeito, que ainda hoje vemos acatar seu nome e merecer a nossa veneração e respeito; fallo de Pedro Paulo! (Apoiados.) Ainda n'esta camara estão muitos dignos pares que, como eu, foram seus discipulos (apoiados). Estando elle á testa daquella diocese, vagou o logar de escrivão da camara ecclesiastica, e o governo nomeou um individuo que foi provido sem ter sido ouvido o prelado sobre as habilitações d'elle para esse emprego.

Pergunto eu, o ministro que mandou assim prover aquelle logar, esse ministro que sabia cumprir o seu dever, que sabe a fundo o direito canónico, e que ainda hoje é um ornamento d'esta tribuna, um ministro dotado de maneiras afiáveis q polidas quereria acaso desconsiderar um prelado como era o arcebispo de Braga, um homem daquella categoria!? Não era possivel.

Ora, sr. presidente, á face dos argumentos que tenho apresentado, alguem póde ainda censurar o procedimento do sr. ministro da justiça? Direi que a insistência não me parece justa. Verdade é que, da parte do sr. bispo de Coimbra algumas imputações se fizeram sobre as qualidades da pessoa nomeada, mas ainda que o sr. ministro já se justificou largamente dos fundamentos sobre que tinha baseado o seu despacho, notarei alguma cousa a este respeito, e sirva isso de resposta ao digno par o sr. marquez de Vallada.

Queixa-se aquelle prelado de que o sr. ministro não tivesse pedido informações á auctoridade competente. Pois todos esses documentos apresentados pelo pretendente, para provar o seu bom comportamento civil, como eram os da respectiva municipalidade, administrador do concelho e governador civil, documentos que mui propriamente juntara ao seu requerimento, bem como aquelles em que comprovava a circumstancia de ser bacharel formado em theologia e em direito, não seriam suficientes para poder exercer um emprego que muitas vezes tem sido servido, não direi por analphabetos, a que me daria direito o concilio tridentino, que já citei, mas por homens que não tinham as habilitações necessarias?

Pretendia o mesmo prelado, que sendo aquelle logar de confiança e exigindo o maior segredo, o individuo para elle nomeado fosse um ecclesiastico, que pretencendo á classe doa celibatários não tivesse familia!

Ora, eu não sei, sr. presidente, que o segredo seja um privilegio da classe clerical, e se o é, algumas vezes tem sido mal guardado, e por isso nos sagrados canones se acham as disposições necessarias contra 08 que revelam o sigilo. O segredo não é só para aquelles empregados, é para todos os empregados mesmo civis. Pois os empregados das secretarias d'estado não devem ser homens de segredo? Os escrivães que tratam dos processos civis e principalmente dos processos crimes, não devem guardar segredo? Os empregados das administrações e dos governos civis, onde o segredo é tão preciso, quando se trata de descobrir um crime, para o que é necessario tirar minuciosas informações e aceitar denuncias, em que ás vezes são compromettidas altas categorias, como succedeu no tempo em que estive á testa do governo civil de Lisboa, não deverão ser tambem homens de segredo? Se não fosse o segredo rigoroso que guardam estes empregados, quantas reputações não perigariam?! E que segredo não é preciso que guardem os tabelliães de notas? Seja-me permittido citar as palavras de um grande escriptor, mr. Villepen, que, fallando d'estes empregados, diz:

«Em todas as occasiões o segredo das pessoas e das familias é a seus olhos tão sagrado com os actos de que elle é depositário. Mas como são muito mais delicadas ainda as funcções do tabellião quando ellas consagram as ultimas vontades!»

Estes empregados, que são todos seculares, não pertencendo á classe dos celibatários, guardam segredo.

Ainda mais, sr. presidente, porque o individuo nomeado tinha tomado ordens e não proseguiu n'essa carreira, chama se lhe apóstata das ordens!

É necessario definir e explicar bem o que quer dizer apóstata das ordens, visto fazer se uma imputação ao sr. ministro da justiça, por haver nomeado para aquelle logar um apóstata. Eu vou explicar, não para a camara que não precisa d'essa explicação, mas para o publico que d'ella carecer, o que se deve entender por estas palavras.

Sr. presidente, o direito canónico reconhece tres especies de apostasias: a apostasia perfidice, a apostasia obdientice, e a apostasia regularitatis. A apostasia perfidice, é a defecção total da fé; dá-se quando o individuo abandona a religião christã, e abraça uma crença inteiramente differente; a apostasia obedientice, é a defecção do estado religioso, quando foi abraçado por meio da profissão, e a apostasia regularitatis, é a defecção do estado clerical, e reversão para o estado secular ou laical. Não é aquella attribuida ao nomeado a verdadeira apostasia, chamada perfidice, que é punida pelo codigo penal, porque então esse individuo devia estar condemnado e fóra de Portugal; não é a apostasia obedientice, porque elle não pertence a ordem alguma religiosa por meio de profissão; não é, por consequencia, senão, como o ex.mo bispo diz, a apostasia das ordens. Mas a esse respeito dizem alguns escriptores, que esta denominada apostasia, quando tem por base o passar para melhor bem, como, por exemplo, quando um individuo se não acha com uma vocação propria do estado ecclesiastico, longe de eer mal é um bem, e até te deve louvar o homem que não se achando com forças para abraçar o estado ecclesiastico o abandona (apoiados). Oxalá que muitos tivessem seguido o exemplo d'aquelles que têem abandonado a vida para que não tinham vocação, porque não teriamos de lamentar, não

digo em regra, mas como excepção, tantos clerigos indignos. —Agora quanto a ordena emanadas da secretaria da justiça, não posso deixar de notar que o proprio sr. bispo de Coimbra reconhece que as determinações enviadas d'aquella secretaria são determinações de Sua Magestade, porque elle mesmo o diz nos seus officios.

Com isto responderei ao que disse hontem s. em." quanto a não serem os prelados subordinados á secretaria da justiça. Eu notarei que os prelados, quanto ao espiritual, são superiores não só á secretaria da justiça mas a todos nós; eu rendo, e sempre rendi, a maior veneração e respeito a s. em.ª, como meu prelado e meu pastor; mas no temporal, temos outros deveres, e temos tambem a lei (apoiados). Aquelle prelado de Coimbra ao menos reconheceu que a ordem não era da secretaria mas sim do Rei. A secretaria é um intermediario; o ministro é o responsavel pelas ordens dimanadas do Rei, e ás ordens que são dimanadas do Rei, e em conformidade das leis, não podem os prelados desobedecer, dizendo: «não cumpro, porque esta ordem veiu da secretaria, e eu sou muito superior a ella». Não podem tambem dizer: «não posso cumprir as determinações de Sua Magestade, porque isso repugna á minha consciencia, e para evitar conflictos peço licença para resignar».

Eu tenho lido na sagrada escriptura um texto que era muito da affeição dos sectarios do antigo systema absoluto, é o seguinte: quid resistit potestati, dei ordinationi resistit. Ep. ad Rom. cap. 13.

Mas o sr. bispo de Coimbra não entendeu assim a sagrada escriptura, repugna á sua consciencia observar as determinações do governo, que estava no direito de fazer aquella nomeação, em virtude da lei de 1833!

Pois, sr. presidente, póde haver resistencia quando a lei é clara? S. ex.ª quando entrou para o episcopado, e quando subiu até essa cadeira e ahi prestou o juramento solemne de respeitar a constituição do estado e ser obediente ás leis do reino, não viu que a sua consciencia podia pôr-se de permeio? Porque aceitou então o episcopado e o paria-to? Porque prestou o juramento? Sr. presidente, entendamos bem, a consciencia não é attributo privativo do episcopado; a consciencia deu a Deus a todos os individuos, aos bons para sua satisfação, e aos maus para ser o seu juiz e o seu algoz. Se se consente que todo o individuo, bom ou mau, possa dizer: «eu não posso cumprir a lei, porque a minha consciencia rn'o veda», onde irá a administração publica com taes principios? Qual será a nação que se possa governar, quando os individuos que têem deveres a cumprir, poderem dizer: «não cumpro, porque a minha consciencia me não permitte».

Mas n'estas circumstancias perguntou o digno par do reino, por quem tenho toda a consideração, o sr. marquez de Vallada, querem arrastar um velho d'aquella idade aos tribunaes e encerra-lo depois n'uma masmorra? Digo que não, mil vezes não, não o desejo, nem tal ha de succeder; entretanto devo dizer a s. ex.ª que não ha nada superior á lei, e permitta me a camara que leia um documento de grande alcance, não de agora, mas do tempo em que se davam muitos privilegios ao clero, e este documento servirá de resposta a s. em.ª, sobre o direito que disse terem os bispos de rejeitar as nomeações dos apresentados.

O bispo do Porto não quiz collar o apresentado na igreja de Fandinhaes, houve no desembargo do paço accordão em que se mandou proceder contra elle na fórma da ordenação e estylos do reino; n'essa epocha ainda as temporalidades não estavam reduzidas a escripto, d'ahi nasceram duvidas entre os juizes da relação do Porto e o bispo d'aquella diocese, e providenciou se pela carta de 21 de junho de 1617 da maneira seguinte:

«Que não obedecendo os prelados ou juizes ecclesiasticos aos assentos do desembargo do paço, e dando ordem os ministros do dito tribunal que contra os prelados ou juizes ecclesiasticos se proceda na fórma do estylo; os ministros a que se der a dita ordem poderão proceder, mandando aos ditos prelados ou juizes ecclesiasticos sequestrar e embargar suas rendas patrimoniaes ou ecclesiasticas, e os moveis que se acharem fóra de suas casas... e outrosim embargar as cavalgaduras em que actualmente não forem a cavallo, e notificar aos creados seculares que os não sirvam, e continuando o serviço serão presos e castigados conforme a desobediencia. E sendo caso que precedendo todos estes meios (o que não se espera) os ditos prelados do reino e suas provincias, colleitor de Sua Santidade e juizes ecclesiasticos não obedeçam aos ditos assentos do tribunal do paço, poderão desnaturalisar os juizes ecclesiasticos. E quanto aos prelados e colleitores de Sua Santidade, embargadas as temporalidades, na fórma sobredita, pedindo o excesso da sua desobediencia maior demonstração se me dará conta.»

E que succedeu, sr. presidente? O bispo de Fossembruno, colleitor de Sua Santidade, veiu com o anathema da censura contra os desembargadores do paço, o que deu occasião a outra resolução de 28 de julho de 1620, em que se lêem estas notaveis palavras «a novidade d'este excesso se se permittisse, seria em grande prejuizo da soberania e poder real, e em grande vexação e perturbação d'este reino... e não é justo que o colleitor pretenda introduzir novidades e perturbar por este modo a soberania real. Hei por bem e mando, que em caso que elle ou algum dos seus successores procedam com censuras contra os desembargadores do paço pelo dito respeito, possam ser lançados do reino, sem para isso se esperar outra especial ordem ou mandado meu».

Não se carecia de mais ordem de El-Rei, bastava o facto da censura para o colleitor ser lançado fóra do reino.

Eis-aqui está, sr. presidente, como se procedeu então; não era no tem po constitucional, era nos tempos antigos, era mesmo no tempo de Filippe H, esse homem tão religioso que fez grandes serviços aos catholicos da Irlanda, e que pres-

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tou grandes soccorros de dinheiro e gente ao papa Paulo V, e foi esse homem um dos que soube manter as prerogativas da corôa.

O sr. Conde da Taipa: — E que metteu o filho na inquisição (riso).

O Orador: — A culpa não foi do homem era da existencia da inquisição e da ignorancia dos povos, que mantinham um estabelecimento opposto ao christianismo e á humanidade, e em que queimavam o homem vivo para lhe introduzir a fé do coração.

Sr. presidente, quanto a essas temporalidades, direi que propriamente não era uma pena, era um meio coercivo de obrigar os bispos ao cumprimento das sentenças dos tribunaes civis, não era como pena, mas era um meio para obter o fim.

Hoje, sr. presidente, substituiu-se por uma pena inefficaz, uma pena que póde fazer com que um bispo se sente no banco dos réus, mas não vae decididamente d'aqui para as masmorras, como disse o digno par marquez de Vallada.

Eu, sr. presidente, queria ver substituir as antigas temporalidades, porque não se compadecem com as idéas do seculo e a philosophia de direito; mas queria vê-las substituir por um meio efficaz, e que não fosse vexatorio como aquelle que se acha estabelecido no codigo penal, e que desejo que em pouco tempo seja substituido por outro.

Sr. presidente, qual será porém o resultado d'este conflicto, é muito facil saber; o nomeado requer ao sr. bispo de Coimbra a sua posse; s. ex.ª nega-a, e não posso duvidar d'isso, porque já o asseverou o sr. marquez de Vallada, e ha de ter motivos para isso (O sr. Marquez de Vallada: — Apoiado). O individuo recorre para os tribunaes, segue as formulas estabelecidas na nova reforma judicial pelo sr. conde de Thomar, e segue-se a sentença. Se dá provimento ao recorrente é porque o considera com justiça; se o nega é porque são fortes as rasões apresentadas pelo sr. bispo de Coimbra, que ha de ser ouvido n'este processo; portanto, dada a primeira hypothese, se a sentença for contra o recorrente deve o sr. ministro da justiça largar aquella cadeira; mas se a sentença for a favor do recorrente e contra o sr. bispo, elle ha de ser intimado para a cumprir, e até aqui não ha nada de processo criminal.

Ora eu desejava que o digno par, o sr. marquez de Vallada, me dissesse se está auctorisado para declarar que ainda, neste caso, o sr. bispo resiste? Será possivel que um prelado cheio de tantas virtudes, depois de resistir ás ordens do governo, resista tambem ao poder judicial que está entre nós, honra lhe seja feita, fóra dos partidos politicos para fazer justiça a todos? (Apoiados.)

Depois das cousas chegarem a este ponto, e depois das sentenças do poder judicial, ha de um bispo resistir a dois poderes do estado, o executivo e o judicial, e dizer — resisto e sou superior a tudo?! Eu não creio que o nobre par esteja auctorisado para me dizer que ainda n'este caso o illustre prelado resistirá. Mas se s. ex.ª resistir, aqui estão os seus pares que o hão de julgar, e segundo o julgamento o sr. ministro se retirará ou não do ministerio; nem o responder perante esta camara é ignominia, pelo contrario é uma gloria que s. em.ª invejou.

O sr. Cardeal Patriarcha: — Apoiado.

O Orador: — Mas eu sei o motivo, não é pela honra do logar, mas é porque hoje, que não ha perseguidores da religião, muitos desejam apresentar-se martyres d'ella.

Não são martyres da religião, são cidadãos que desobedecem ás leis, e se o sr. bispo de Coimbra for ao banco dos réus, lá têem ido outras pessoas não menos elevadas; nem a categoria se póde deshonrar de se sentar no banco dos réus quando pessoas de elevada posição já se sentaram n'elle; nos concilios economicos tem se defendido como réus não poucos pontífices, e alguns de lá saíram condemados, e outros foram depostos do pontificado. Portanto a desgraça de ser réu não deshonra, e então para que estamos fazendo tanta exageração de uma cousa tão simples?

Aqui está o processo que se ha de seguir, mas espero que as cousas se componham, e desejo-o do fundo de alma. Ninguém deseja mais do que eu a harmonia entre a religião e o estado, porque só assim é que póde florecer a religião e fructificar a liberdade (apoiados). São duas cousas intimamente ligadas, e que não estão separadas (apoiados).

Agora, sr. presidente, vou fallar n'um objecto em que tenho a maior repugnancia, mas o meu dever de par do reino, e ainda mais o de cidadão portuguez, me obriga a não ficar silencioso.

Sr. presidente, magoou-me, foi uma dor funda que penetrou o âmago de alma, quando vi algumas palavras que se acham na supplica, que o ex.mo bispo de Coimbra dirigiu a Sua Santidade, e por isso disse ainda ha pouco que as expressões que ali se acham escriptas não são filhas do espirito d'aquelle prelado tão esclarecido e tão virtuoso. As palavras a que me refiro são as seguintes:

«Jam priãem, Beatissime Pater, temporum adversitate contristatus, qiibus ecclesia Jesu Christi ubique vexatur, et animo speciatim volutans, quem cursum hoc in regno demum teneant res ecclesiasticos, alto dolore premebar.»

Sr. presidente, isto escreveu um portuguez! Estou vendo O Summo Pontífice exclamando e dizendo: Pois que? Portugal, essa terra de heroes, que levou o Evangelho á Asia, á Africa e á America, e que á custa de imensos despendios e sacrificios ali plantou a Cruz do Redemptor, tornou-se agora em perseguidor da religião e das cousas ecclesiasticas? Mas haveria para uma tal accusação algum fundamento? O sr. bispo de Coimbra apresentaria justas causas que o levaram a escrever estas palavras, que eu deixo em latim como estão, e desejo muito não as ver traduzidas em portuguez? Prossigamos: s. ex.ª especificou os motivos no officio que escreveu ao sr. ministro dos negocios ecclesiasticos e de justiça nos termos seguintes:

«Muitas vezes angustiado pelas providencias que o governo de Vossa Magestade tem tomado sobre cousas ecclesiasticas, eu forcejei sempre por concilia-las com os direitos sagrados, que me foram confiados, e sem faltar a estes tenho feito quanto posso por cumpri-las é evitar embaraços e conflictos.

Aqui estão essas accusações; são as invasões do poder executivo nas attribuições dos bispos, de que fallou aqui s. em.ª Mas o sr. bispo de Coimbra disse tambem que essas invasões eram de tal natureza que sempre póde combinar o cumprimento dos seus direitos sagrados, com o cumprimento das determinações do governo. Pôde combinar uma cousa com a outra! Grande violencia! Grande oppressão!

Sr. presidente, o ex.mo bispo pedia a sua resignação, eu tinha varios apontamentos sobre este objecto, mas pouco direi agora. S. ex.ª pedia a sua resignação para não levantar um conflicto; não duvido que essas fossem as suas intenções, mas é certo que se se quizesse estabelecer uma muralha entre o poder temporal e o espiritual, se se quizesse crear grandes difficuldades a estes poderes, não se poderia seguir outro caminho differente d'aquelle que seguiu aquelle respeitavel prelado. Não quer difficuldades para o governo, e pede a sua resignação? Mas um prelado tão illustrado, como o sr. bispo de Coimbra, sabe que os sagrados cânones têem estabelecido quaes as causas canónicas por que se póde pedir a resignação: e porventura a contestação entre um bispo e o governo será motivo para a resignação? E se o não é, como é que s. ex.ª a pediu?

Sr. presidente, no requerimento primeiro, ou officio que s. ex.ª dirigiu ao sr. ministro da justiça, ainda ao menos dizia que não podia continuar no governo da sua diocese pelas suas molestias e avançada idade; mas no requerimento ao Summo Pontifico disse que bem sabia que devia manter se no seu posto e sustentar aquellas contestações, não obstante a sua idade e doenças, o que equivalia a dizer que a resignação não tinha fundamento visto que não se achava impossibilitado para governar a sua igreja.

Se estes não eram motivos canónicos não podia pedir a resignação; mas bem fez o sr. ministro não negar a licença ponderando comtudo que não havia motivo para tal procedimento.

S. ex.ª hontem no seu discurso, referindo se com censura ás arbitrariedades da secretaria da justiça no? tempos constitucionaes, quiz mostrar a diversade das epochas; sempre a confrontação do presente e do passado! Sempre o elogio d'este e a censura d'aquelle!

Sr. presidente, se fosse possivel evocar dos tumulos e restituir á vida muitos prelados portuguezes que existiram n'essas epochas passadas, e depois pô-los em confrontação com alguns, não com todos dos presentes, os resuscitados diriam aos vivos: « Sois injustos e ingratos, e nós soffremos esbulhos nas attribuições essenciaes do episcopado, e esbulhos de grande magnitude, bem que não foi pelo poder temporal, e vós d'esse resto de direitos que ficaram estaes gosando, tendo a vosso lado o poder temporal para vos defender de novas invasões. Nós não tinhamos ingerência alguma no governo do estado, éramos chamados de annos a annos ou de seculo a seculo a dar um voto consultivo, ou para auxiliarmos o reconhecimento de algum principe ou soberano legitimo ou intruso, e vós tendes assento no parlamento, e tendes ingerência na feitura de todas as leis. Nós muitas vezes fomos victimas das ordens do governo, que nos separava das nossas ovelhas, e determinava o nosso desterro, e em algumas o Bussaco nos serviu de asylo, e a vós ninguem vos póde apartar do vosso rebanho nem impor a minima pena sem as formalidades das leis. Nós quando resistiamos ás sentenças dos tribunaes competentes eram sequestrados os nossos bens patrimoniaes ou ecclesiasticos, eram intimados os nossos creados para não nos servir, eram processados se o faziam, e se isso não era bastante éramos expatriados, e vós sois ameaçados unicamente com uma multa impropria e inefficaz. Nós obedecíamos ás ordens do governo, e se umas vezes dirigíamos as nossas supplicas ao soberano, outras o medo nos embargava a voz; e vós tendes uma tribuna onde podeis vir apresentar vossas queixas, propor a revogação das leis, e fazer amplo uso da palavra; portanto bem diriam os ressuscitados aos vivos = sois ingratos, sois injustos =.

Sr. presidente, vendo aquellas palavras no principio da supplica que ao Santíssimo Padre dirigiu o sr. bispo de Coimbra, não podia dispensar-me de vir aqui contradize-las, e como portuguez e membro do parlamento, dizer alto e bom som — que em Portugal, o Rei, o parlamento, todos os poderes constituidos, os nobres e os plebeus conservam intactos e inconcussos os sentimentos religiosos, taes como os herdámos de nossos avós (apoiados).

Sr. presidente, não sei se no decurso da argumentação proferiria alguma palavra que fosse menos digna, e que podesse offender a s. em.ª, ou a algum outro membro d'esta camara ou de fóra d'ella; se a proferi, retiro a. E cumprindo outro dever não posso deixar de agradecer á camara a benevola attenção com que me escutou.

Vozes: — Muito bem.

O sr. Conde de Thomar: — Por certo que o digno par que acaba de fallar, não teve a intenção de dizer cousa alguma que tendesse a offender a honra dos membros d'esta casa, mas é certo (e com sentimento o digo, porque s. ex.ª sabe que o tenho era muita estima) que usou de algumas phrases, que se não forem devidamente explicadas, como eu espero, não deixam de apresentar um collega nosso, a quem devemos respeitar por todos os titulos, como nutrindo ideias e pensamentos reservados contra o systema constitucional!

Sr. presidente, folgo de aproveitar esta tão solemne occasião para dar publico testemunho de que s. em.ª foi sempre um homem liberal e um ecclesiastico respeitavel, como liberal o conheci sempre, tomando parte nos esforços que todos fizemos para dar a liberdade á nossa patria, como ecclesiastico attenda-se á elevada posição a que chegou pelas suas virtudes e serviços á igreja. A que proposito pois levantar vozes contra s. em.ª, dizendo que da sua parte vem sempre o elogio do passado e a condemnação do presente! A que proposito deduzir das phrases que s. em.ª proferiu com referencia ao sr. bispo de Coimbra, que estamos na epocha de querer o martyrio, porque assim se torna necessario para conseguir certos fins?.!...

Não combino por certo com s. em.ª sobre alguns pontos de direito, que tocou no seu notavel discurso, mas nem por isso me atrevo a duvidar da boa intenção, da sinceridade e lealdade empregada por s. em.ª em toda a sua argumentação. Eis aqui a rasão por que não posso deixar de repetir que dou publico testemunho de que s. em.ª como politico foi sempre liberal, e como ecclesiastico exemplar (apoiados).

Sr. presidente, pedi a palavra sobre a questão que se discute quando o sr. ministro dos negocios ecclesiasticos e de justiça, tratando de responder á interpellação do meu nobre amigo, o sr. marquez de Vallada, disse que não só não reconhecia nos bispos o direito de nomear os empregados da sua dependencia, mas que tambem lhes não reconhecia o direito de os propor. O sr. ministro podia para ser coherente com os seus procedimentos, acrescentar = nem tambem lhes reconheço o direito de informar = Esta questão não póde ser tratada no campo do stricti júris, como fez o sr. Moraes Carvalho, com toda a eloquencia e provando conhecimento profundo em materias jurídicas. Peço licença ao meu nobre amigo e condiscípulo para observar, que nada vem para a questão examinar quaes são as causas, que segundo o direito podem auctorisar a renuncia de um bispo, sendo por tanto ociosa toda a analyse feita á carta do ex.mo bispo de Coimbra, para saber se as causas por s. ex.ª apresentadas na dita sua carta, são attendiveis para pedir, e ser-lhe concedida a renuncia da sua diocese. Não formámos concilio para discutir questões canónicas, nem somos auctoridade para avaliar as causas por que se pede a renuncia de uma cadeira episcopal, e ainda menos para a conceder ou denegar. Pertencem estes negocios a outro poder, que não é por certo esta camara (apoiados).

À nossa questão é outra e inteiramente differente. Contem-se e limita-se unicamente ao assumpto da interpellação do sr. marquez de Vallada, e por tudo o que se tem dito, julgo poder affirmar que a questão tem duas partes uma historica e outra juridica.

A parte historica é acompanhada dos episodios que são característico da epocha em que vivemos e da situação politica que nos governa. São esses episodios a mais cabal demonstração das contradições, dos nossos adversarios politicos, e não se admirem do que acabo de dizer. Todos reconhecem que a marcha que segue o partido dominante é a mais completa negação de todas as doutrinas, e de todos os principios que proclamara, sendo opposição. Tenho direito de fallar assim, porque tendo sido ministro muitos annos fui violentamente combatido por seguir doutrinas e principios, que vejo em grande parte adoptados, em contradição com todas as promessas feitas já na imprensa, já no parlamento, já no campo da revolta; que temos visto depois de todas essas promessas? A negação de todas essas promessas (repetidos apoiados). Sempre o contrario d'essas pomposas e fallazes promessas!

O sr. Visconde de Fonte Arcada: — Isso é que é verdade.

O Orador: — Os meus inimigos politicos, amparando se do poder por meios illegaes, fazendo o contrario do que prometteram, e adoptando em grande parte as medidas, que por todos os modos combateram, nada mais fizeram do que a rainha justificação (apoiados).

O sr. Conde da Taipa: — É isso muito exacto.

O Orador: — A presente questão era no seu principio muito simples, mas hoje é complicada, e póde dizer-se muito importante.

O sr. Marquez de Vallada: — Apoiado.

O Orador: — E importante principalmente pelo modo adoptado pelo sr. ministro da justiça para chegar á conclusão final do negocio de que se trata. Não será difficil demonstrar que o sr. ministro praticou um acto que póde ser classificado de precipitado e de irreflectido, sendo mais a demonstração plena da pressão, em vista da qual foi levado a obrar por tal fórma.

O sr. Conde da Taipa: — Apoiado, é isso uma verdade.

O Orador: — O procedimento do sr. ministro importa alem d'isso a par da provada desconsideração com um distincto e virtuoso prelado, o compromettimento da dignidade do governo e das prerogativas da corôa. Veiu ainda crear difficuldades pelo conflicto, suscitado entre o poder temporal e o espiritual, objecto de alta importancia, conflicto que pela primeira vez apparece entre nós, e que até agora tinha sido evitado pela prudencia e tacto, com que todo? os ministros haviam conduzido similhantes assumptos. Cumpria sobretudo não entregar este negocio a uni poder, com o qual é difficil tratar diplomaticamente, e o sr. ministro, levando o negocio á cúria romana, creou uma difficuldade, da qual não poderá saír airosamente, e sem offensa da dignidade do governo e da corôa.

O sr. Marquez de Vallada: — Muito bem.

O Orador: — E na verdade para admirar, que na quadra ara que vivemos, e em que todos tratam de ganhar posições elevadas e de fazer grandes Interesses, appareça um homem que occupando uma das. mais elevadas posições da sociedade, para não comprometter a sua dignidade, e não contrariar os dictames da sua consciencia, em logar

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de sustentar os direitos que suppõe pertencer-lhe, e que auctoridades respeitaveis lhe reconhecem, dê uma prova cabal dá sua independencia e da sua abnegação, renunciando a essa tão elevada posição, levado tambem do nobre sentimento de não causar embaraços ao governo da sua patria. Este homem foi o ex.mo bispo conde, e por este nobre procedimento, e sem exemplo, tinha sem duvida incontestavel direito a um procedimento bem diverso d'aquelle que o governo tem tido com s. ex.ª (apoiados).

O sr. ministro da justiça respondendo á interpellação do meu nobre amigo, o sr. marquez de Vallada, quiz apoucar ou antes limitar os termos da interpellação á simples nomeação de um escrivão da camara ecclesiastica, pertendendo assim fazer observar á camara, que negocio de tão pequena importancia não devia sequer merecer as suas attenções.

Disse ainda o sr. ministro, continuando no mesmo proposito, que se a accusação consistia apenas em não ter pedido informações ao sr. bispo conde, respondia que não havendo lei que lhe impozesse a obrigação de pedir taes informações, estava no seu direito de despachar sem taes informações, e que o seu procedimento não póde portanto ser classificado de criminoso.

Sr. presidente, admirei este modo tão argucioso de argumentar e responder á interpellação, empregado pelo sr. ministro na sua defeza. Um ministro, a quem está confiada a boa escolha dos empregados publicos, a qual jamais poderá verificar-se sem a informação dos chefes das repartições para que são nomeados, como mais competentes para conhecerem a aptidão e mais qualidades dos pretendentes, não póde, não deve intrincheirar-se nos prescriptos termos da lei escripta. Ha leis, que não estando escriptas, não são menos respeitaveis do que aquellas, e pelo menos obrigam a todo o homem, a quem está confiada, não a gerencia dos negocios de uma facção partidaria, mas a gerencia dos negocios que respeitam a toda a sociedade interessada, sem a menor duvida, na boa escolha dos servidores do estado (apoiados). Pois a lei da moral, pois a lei do decoro e consideração de vida a um respeitavel prelado, pois a decencia, pois o interesse immediato e a obrigação que tem o governo em fazer a nomeação de bons empregados, não são outras tantas leis que deviam aconselhar ao sr. ministro um procedimento differente d'aquelle que teve na nomeação do escrivão da camara ecclesiastica do bispado de Coimbra (muitos apoiados).

O sr. Aguiar: — Isso é fóra de duvida.

O Orador: — Que vemos nós infelizmente no assumpto de que se trata? Vemos um ministro da corôa desconhecer todas estas leis e boas doutrinas, e, o que é peior, vemos substituir todas estas boas doutrinas por outras que jamais deveriam por decoro ser apresentadas por um ministro. Disse s. ex.ª que nunca faltam ao governo informações para despachar os pretendentes aos cargos publicos, porque os padrinhos que os recommendam dão sempre completas informações sobre as suas qualidades; acrescentou ainda que este systema não é ignorado de ninguem! Custa a crer que tal se dissesse no parlamento, mas todos viram o desassombro com que o er. ministro expendeu estas tão erradas doutrinas (apoiados).

O sr. ministro prescindiu das informações do sr. bispo conde para nomear um empregado, que devia ser da sua plena confiança, porque os padrinhos desse pretendente lhe affiançaram, que tinha a idoneidade e qualidades precisas para tal emprego. Não carece de commentos este procedimento do sr. ministro, mas para lhe mostrar o valor e importancia das informações dos padrinhos dos pretendentes, vou narrar-lhe o que me aconteceu, occupando eu a pasta da justiça. Um amigo particular meu, do mais bondoso coração para não negar protecção a todos os que recorriam á sua bondade, um amigo, que foi nosso collega e cuja perda por todos é sentida, procurou-me um dia na respectiva secretaria, e me pediu que despachasse certo pretendente para um officio de escrivão. Respondi que nenhuma duvida haveria se o requerimento do pretendente estivesse devidamente documentado, e as suas informações fossem boas. Fiz vir á minha presença os requerimentos de todos os pretendentes aquelle officio, e entre elles estava effectivamente o do pretendente de que se tratava. Compulsei todos os documentos, e vi que davam boa idéa do mesmo pertendente, mas achava-se a final a informação da auctoridade competente, e n'ella se dizia que tal nomeação não podia nem devia fazer-se, porque o pretendente havia já sido condemnado em juizo, como ladrão!

Perguntei ao meu amigo, o que lhe parecia depois d'esta informação, aliàs provada com a copia da sentença condemnatoria? Resposta: «É verdade, mas o homem roubou para dar de comer á mulher e aos filhos, e ainda espero que despachará o meu recommendado».

Eis-aqui tem o sr. ministro o que valem as informações dos padrinhos, e se estas são a base dos despachos feitos pela s. ex.ª, a camara avaliará da capacidade, idoneidade e probidade dos agraciados. Concordo com o sr. ministro emquanto disse, que não infringiu lei alguma escripta, deixando de pedir informações ao sr. bispo conde para a nomeação do seu secretario e escrivão da sua camara ecclesiastica, mas espero que s. ex.ª ha de concordar e concordará toda a camara em que faltou a todas as leis de conveniencia, em virtude das quaes não só devia mostrar toda a deferencia, quando se tratava de nomear um empregado da intima confiança de um alto funccionario ecclesiastico, e quando devia lembrar-se de que um ministro da corôa na nomeação de um empregado qualquer deve attender ao serviço e utilidade publica, e não aos interesses partidarios, faltou ainda ás praxes, sempre seguidas em taes casos.

Julgava eu que se não podia produzir exemplo em contrario, mas o meu honrado condiscípulo o sr. Moraes Carvalho, apontou alguns exemplos de despachos de escrivães das camaras ecclesiasticas, sem que se pedissem informações aos prelados; peço comtudo licença para dizer que taes exemplos podem ser de epocha, em que os governos eram obrigados a não consentir na nomeação de empregados, inimigos da liberdade que tinham a peito consolidar.

O sr. Moraes Carvalho: — O de Braga, nomeado por V. ex.ª

O Orador: — E possivel, mas adicionando ao que acabo de expender, perguntarei se acaso póde ser considerado o mesmo. Deram-se os antecedentes n'esse caso, como se deram n'aquelle de que tratamos? Appareceu alguma opposição da parte do prelado a tal nomeação?

O sr. Moraes Carvalho: — Felizmente não se deu.

O Orador: — Appareceu algum conflicto?

Vozes: — O caso não é o mesmo.

O Orador: — Pois se o caso não é o mesmo, se é inteiramente differente para que citar taes exemplos? Não vê o digno par que, no caso de que se trata, apparece até a circumstancia da prevenção prévia do respeitavel prelado?

Sr. presidente, eu já disse que a parte historica d'este despacho é cheia de episodios importantes. O er. ministro narrou a historia do caso a seu modo para assim attenuar a grande responsabilidade que sobre elle peza; permitta-me s. ex.ª que eu não aceite a sua narração como exacta, e que lhe dê a historia verdadeira, e como ella está no dominio do publico, sem que eu receie ser contrariado na verdade das factos que vou narrar.

E certo que todos os partidos politicos tratára de adquirir elementos de força para a campanha eleitoral. No bispado de Coimbra, como em toda a parte, o escrivão da camara ecclesiastica, pela dependencia em que a maioria do clero está d'este empregado exerce uma grande influencia; individuos eleitos deputados por Coimbra, entenderam que não deviam perder a occasião de apoderar-se d'esse elemento, e contando com a fraqueza do sr. ministro, exerceram sobre elle toda a pressão e obrigaram-n'o a fazer tal nomeação! Com essa pressão contava já o digno prelado, e por isso querendo evitar o compromettimento do sr. ministro, e ao mesmo tempo obter uma boa nomeação, não só pediu que promptamente fosse feita a nomeação, mas propoz para merecer a approvação regia o ecclesiastico que julgou mais apto para o emprego.

Note se que o sr. bispo conde podia, como têem feito outros prelados, fazer por decreto seu aquella nomeação, mas s. ex.ª sempre disposto a evitar contestações e conflictos disse ao governo: «Não obstante o direito antigo, que me não consta estar ainda hoje definitivamente regulado, sujeito á approvação do governo, a nomeação do ecclesiastico, que merece a minha inteira confiança».

Que fez o sr. ministro já sujeito á pressão dos seus amigos? Demorou o despacho um anuo! Nem sequer em esse longo periodo teve a deferencia de responder ao attencioso officio do prelado, e só quiz ganhar tempo para praticar um acto que os seus amigos diziam contentaria o sr. bispo conde, ficando assim em posição de attender á conveniencia partidaria (apoiados). Mandou pôr a concurso dois logares de conego da cathedral de Coimbra, e como era natural que apparecesse no concurso o proposto do prelado, que occupava já uma cadeira de beneficiado na dita cathedral, e apparecendo effectivamente, folgaram os amigos do sr. ministro, excitaram-o a despachar para conego o proposto pelo bispo para escrivão da camara ecclesiastica, e exclamaram satisfeitos — assim contenta o sr. ministro a todos, ao bispo, porque nomeia conego o seu afilhado, a nós porque põem á nossa disposição o clero do bispado! (Apoiados.)

Vozes: — Foi isso mesmo.

O sr. Conde da Taipa: — E mais um meio de corrupção.

O Orador: — Quem não via que d'este procedimento resultariam embaraços para o sr. ministro, inconvenientes para o serviço publico e conflicto com o ex.mo bispo conde? Bem o reconheceram alguns amigos politicos do sr. ministro, que mui bem avisados quizeram evitar todos esses funestos resultados de uma nomeação feita por tal fórma e aconselharam para tanto ao mesmo agraciado, que pedisse a exoneração do cargo para que fóra nomeado.

Este meio conciliatório que porta termo a tão desagradavel conflicto, e que seria uma compensação da adherencia tão facil do sr. ministro ás exigencias do padrinho do agraciado, não foi levado a effeito, porque não obstante ter sido tomado em consideração tão prudente arbitrio, e ter-se por isso feito o requerimento, pedindo a exoneração, o padrinho do agraciado o reteve na sua gaveta, protestando que o acto da nomeação havia de produzir os devidos effeitos, sem que a isso devesse obstar nem a consciencia do prelado, nem a sua dignidade, nem finalmente qualquer resolução, que sobre incidentes que se seguiram houvesse sido tomada por Sua Santidade! Que nos importa a consciencia do bispo! Que nos importa que o Papa não aceite a renuncia do prelado, o decreto da nomeação ha de ser executado! Assim ouvi discorrer em outro logar, e quem assim discorre não peça bem o melindre dos conflictos entre o poder temporal e o poder espiritual, maxime quando imprudentemente se levar o negocio ao conhecimento da cúria romana (apoiados). Podem fallar assim, podem exercer sobre o sr. ministro toda a pressão em virtude da influencia que tem na maioria parlamentar, mas lembrem-se de que a cúria romana não é (ão facil em resolver como as maiorias parlamentares em votar (muitos apoiados). Nos parlamentos os negocios decidem-se pelo numero de votos que se conseguiram pela uma, mas quando esses negocios passam a outras regiões apparecem difficuldades que não é possivel remover, e que na ultima analyse trazem a desconsideração do governo, e o compromettimento da corôa (apoiados).

Sr. presidente, eis-aqui como se exprime o sr. bispo conde no seu primeiro officio ao sr. ministro da justiça (leu). Combine-se este nobre procedimento como que se seguiu por parte do sr. ministro n'este tão desagradavel negocio. Desde que no segundo officio o virtuoso prelado fundava um escrupulos de consciencia, e em offensa da sua dignidade a não execução do decreto em questão, offerecendo voluntariamente a renuncia da cadeira episcopal, pedia a prudencia, recommendava o bom censo, que o sr. ministro tratasse confidencialmente, e em boa paz, de discutir este grave negocio com o sr. bispo conde; em logar d'isso veja-se a correspondencia do sr. ministro, e todos se convencerão de que em logar de procurar remover as difficuldades, só tendeu a augmenta-las, parece que a pressão ganhava forças para mais facilmente precipitar o sr. ministro (apoiados).

Tendo occupado a pasta dos negocios ecclesiasticos e de justiça em epochas muito mais difficeis do que as actuaes, nunca estes conflictos appareceram; mas eu, como outros muitos ministros, reconhecendo um certo desarranjo em que estavam os negocios ecclesiasticos depois de certas medidas reclamadas pelas circumstancias, não só fui moderado no cumprimento e execução d'essas medidas, mas quando appareceram difficuldades por parte dos bispos, tratei sempre de as remover amigavelmente, ponderando e fazendo reconhecer por parte dos prelados as circumstancias em que nos achávamos, e folgo de poder dar publico testemunho de que achei sempre no episcopado o ardente desejo de não causar embaraços e difficuldades ao governo. O mesmo aconteceu sendo ministros outros cavalheiros, dos quaes muitos têem assento n'esta camara (apoiados). Foi preciso que apparecessem dois ministros, que são, ou pretendem passar por espiritos fortes para taes difficuldades e conflictos apparecerem tambem.

Reconheço que por mais de uma vez entre nós, e em outros paizes se têem suscitado questões entre o poder temporal e o poder espiritual, um e outro têem empregado os meios de invadir as attribuições alheias, mas não se queira só attribuir esta invasão ao poder espiritual. Os bispos têem direitos consignados nas leis, é mister reconhecer esses direitos, porque da sua violação não póde deixar de resultar a violação d'essas leis, e sempre a desconsideração do poder temporal, porque resultam conflictos impossiveis de resolver airosamente. Compete aos homens serios e aos que sómente são guiados pelo bem do estado e da igreja avaliar bem as circumstancias, e dar a Cesar o que é de Cesar, mas não negar a Deus o que é de Deus (apoiados).

Estes negocios ecclesiasticos não se decidem á valentona e por capricho (apoiados). Disse o sr. ministro da justiça que se o sr. bispo de Coimbra tivesse obrado por outra fórma, outro teria sido o resultado! Como é isto? Que pretendia o sr. ministro mais do que fez o digno prelado? Apesar de muito desconsiderado pelo sr. ministro, que nem se quer respondeu ao primeiro officio, em que se fez a proposta do individuo que parecia mais apto para o cargo de secretario e escrivão da camara ecclesiastica, apenas apparece o decreto nomeando outro, o ex.mo prelado leva duas queixas com a maior humildade ao sr. ministro da justiça, dá os motivos da inconveniencia da nomeação, diz que lhe repugna e se oppõe á sua consciencia executar um tal decreto, e que para não causar embaraços ao governo renuncia a sua cadeira episcopal! Que pretendia mais o sr. ministro, que outro comportamento esperava do digno prelado? Ha nada mais nobre, e direi maia christão, do que o comportamento d'este virtuoso prelado? (Apoiados.)

Note a camara que eu fallando por esta fórma estou tomando a defeza de um alto funccionario, que nunca foi do numero dos meus amigos politicos. Sempre o encontrei nas fileiras dos meus contrarios, muito embora lhe reconhecesse sempre a moderação e honesto procedimento, proprio do seu caracter e das suas virtudes. Esteve elle sempre do lado doa amigos politicos do sr. ministro da justiça.

Vozes: — É verdade.

O Orador: — O nobre prelado que agradeça aos seus amigos a maneira porque agora o tratam, pretendendo impor lhe para secretario e escrivão da sua camara ecclesiastica um individuo que repugna á sua consciencia. Acrescentarei ainda que o procedimento do sr. bispo conde é nobre, e tendente a não causar embaraços ao governo, porque elle podia, se assim quizesse, fundar-se no antigo direito, e nos actos de outros prelados, para apenas, vago aquelle cargo, fazer a nomeação do empregado que merecesse a sua confiança. Quando o digo assim, fundo-me no procedimento de um em.mo prelado, que foi membro d'esta camara, cuja perda deplorámos, por ter sido um dos homens politicos, e um dos prelados mais conspícuos, o em.mo sr. D. Guilherme de Carvalho (apoiados). Todos conhecem as questões que se suscitaram sobre a camara ecclesiastica do patriarchado. Uma commissão de inquerito foi nomeada, e em resultado, ou ainda durante os seus trabalhos, o escrivão da camara ecclesiastica, homem aliàs muito respeitavel, obteve a sua exoneração d'aquelle cargo; e quem o exonerou? Foi o em.mo patriarcha por decreto seu; e quem nomeou o successor? Foi o mesmo em.mo prelado, e tambem por acto seu. Julgou, como a camara vê, aquelle eximio prelado, que estava no seu direito tanto para exonerar como para nomear. O governo teve conhecimento á este facto, e nunca lhe fez opposição.

Ora o sr. bispo conde, em logar de proceder por esta fórma, fez a sua proposta, e pediu a confirmação do governo. Ha nada mais nobre, ha nada mais constitucional, ha comportamento mais adequado para evitar contestações e crear embaraços? Queria o sr. ministro outro comportamento, espero que nos diga qual devia ser (apoiados).

E não Be pense que eu partilho inteiramente a opinião de que os bispos têem o direito de nomear e demittir os escrivães das camaras ecclesiasticas, sem a intervenção do

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governo, em vista da actual legislação. Sou pelo contrario de opinião de que essa intervenção é legal, e n'esta parte sinto separar me da opinião do em.mo cardeal patriarcha, a quem muito respeito. Em primeiro logar cicio que, alem dos actos de jurisdicção voluntaria e graciosa dos prelados que são processados pelos escrivães das camaras, ecclesiasticas, ha reconhecimentos, era que elles prestam sua fé como tabelliães, e, n'este caso, julgo eu, que taes empregados carecem da intervenção do governo para exercer taes funcções; em segundo logar, o decreto de 5 de agosto de 1833 está concebido em termos tão genéricos que não é possivel deixar de comprehender na sua letra os cargos de escrivães das camaras ecclesiasticas.

Advirta-se, porém, que se eu, como cidadão, sou obrigado a reconhecer que o derreto citado, emquanto não for revogado, dá ao governo o direito da nomeação para todos os empregos ecclesiasticos, faço votos para que seja reconsiderado pelos poderes competentes o mencionado decreto, a fim de se pôr em harmonia com os bons e verdadeiros principios.

São estes, quanto a mim, os que teve em vista o sr. bispo conde, conformando se seguramente com as doutrinas do sr. Silvestre Pinheiro, cuja opinião não póde ser sujeita ao partido dominante. Consulte-se o tratado do direito publico d'este distincto escriptor, e ahi se verá que tratando—e das prerogativas do poder real, enumera entre ellas a da nomeação de todos os empregados da administração publica, mas não considera este direito absoluto, e não sujeito a for, mula alguma; a primeira lei, que o governo tem a seguir na nomeação dos empregados da administração publica, é O interesse do estado, mas este não poderá conseguir-se sem uma boa nomeação, e esta mal se poderá obter sem serem ouvidos os chefes das repartições para que são designados esses empregados; mal se poderá exigir a responsabilidade aos superiores, quando se lhe impozerem inferiores, sobre cuja idoneidade e capacidade não tiverem sido ouvidos, e quando, sobretudo, não mereceiem a sua confiança.

Assim, segundo a opinião do sr. Silvestre Pinheiro, a prerogativa do poder real é antes uma fiscalisação sobre as qualidades e capacidade dos empregados, a fim de que não sejam chamados aos empregos homens que possam prejudicar o bom serviço do estado. Demos portanto como boa doutrina, que o governo tem, nem póde deixar de ter a nomeação dos empregado", como tambem a demissão, pelo motivo e para o tira designado.

E absurda a doutrina do sr. ministro, emquanto quiz applicar aos bispos a doutrina dos empregados de confiança, que se demittem quando os chefes te retiram por qual quer motivo do serviço. Quem se atreverá a dizer que um bispo póde ser considerado empregado de confiança sujeito a poder largar a sua cadeira episcopal a arbitrio do governo. Esta rasão e defeza do sr. ministro nem sequer precisa de refutação (apoiados).

Tudo quanto tenho exposto pobre materia de doutrina applicada á nomeação dos empregados publicos pelo governo, diz principalmente respeito aos empregados da administração publica; mas poderá dizer te que não existe alguma differença, quando se trata da nomeação dos empregados ecclesiasticos?

E este um ponto sobre que póde apparecer grande divergencia de opiniões, mesmo com applicação aos secretários, ou escrivães das camaras ecclesiasticas. Apparecem exemplos por uma e outra parte, isto é, apparecem exemplos de nomeações feitas pelo governo, assim como apparecem exemplos de nomeações feitas por simules decreto dos prelados; o mesmo quanto ás demissões. Em taes circumstancias que cumpria ao sr. ministro? Visto que não era inteiramente liquido este negocio, e vistas as pretensões de alguns prelados a tal respeito (e dellas temos um cabal testemunho na opinião do mesmo sr. cardeal patriarcha), cumpria, que o sr. ministro obrasse com maia cautela e prudencia, e não praticasse um acto, que se por um lado satisfaz ás exigencias partidarias, pelo outro vem trazer um conflicto difficil de resolver, e que alem de outras mais consequencias, teve a de se pôr em duvida o direito de nomeação, que resulta ao governo do decreto de 5 de agosto de 1833 (apoiados).

E pois que fallei novamente no decreto é mister que eu seja franco, como foi tão recommendado por quem defende o procedimento do sr. ministro, digamos pois toda a verdade reclamada pelo sr. Moraes Carvalho.

Não creio que mereçam a censura de não ter sustentado a dignidade da corôa os ministros, que occuparam a pasta da justiça, e que umas vezes nomearam, outras vezes consentiram nas nomeações feitas pelos prelados para escrivães das camaras ecclesiasticas. Esses ministros viram que o decreto de 5 de agosto fóra uma medida de circumstancias, indispensavel na epocha da sua publicação, porque tratando se de plantar a liberdade era mister destruir todos os elementos que tendiam e conspiravam para de novo a destruir.

Julgou-se necessario destruir os prelados maiores, e devolver ao governo a nomeação de todos os empregados, que tinham ou podiam ter relação com áquelles eminentes cargos. Assim te fez e decretou no decreto de 5 de agosto, podendo sustentar se com boas rasões, que os empregos ecclesiasticos de que se trata n'este decreto, tão especial e designadamente os que respeitavam aos prelados maiores. Pela tendencia que têem os differentes poderes a arrogarem se maiores e mais largas prerogativas, o poder temporal arregou-se o da normação dos escrivães das camaras ecclesiasticas em alguns bispados e não tendo apparecido resistência da parte doa bispos sortiram o seu devido effeito taes nomeações.

Comtudo é forçoso reconhecer que para alguns bispados nunca o governo fez taes nomeações. Entro estes póde contar-se o patriarchado. E ouso repetir o que se passou pela exoneração e nomeação do escrivão da camara ecclesiastica do patriarchado, a que já me referi. Em tal estado do cousas entendi eu, entenderam os meus antecessores e successores na pasta da justiça, que cumpria marchar com prudencia; o facto prova que d'esse procedimento resultou sempre a melhor e mais completa harmonia entre o governo e os bispos, que se evitaram sempre conflictos iguaes aquelle que agora se apresenta com relação ao bispado de Coimbra.

Pôde crer-se que o sr. Aguiar e outros dignos pares presentes não sustentassem a dignidade da corôa. Não, senhores, a dignidade da corôa foi sempre mantida; mas a prudencia, e sobre tudo a imparcialidade e não o espirito partidario regulou os actos de todos os antigos ministros dos negocios ecclesiasticos e de justiça. Vimos todos que o decreto de 5 de agosto, sendo uma medida revolucionaria, exigida pelas circumstancias na epocha da sua publicação, não devia executar-se em todo o seu rigor, e conforme a sua significação litteral, porque entendida assim podia conduzir a conflictos que deviam evitar-se. Como já disse, póde sustentar-se com boas ratões que os empregados do que trata o artigo 2.° do mencionado decreto podem considerar-se somente os que respeitavam aos prelados maiores.

Mas não seja assim, e demos como doutrina segura que o artigo 2.° do decreto comprehende, nos termos genéricos em que se acha concebido, os escrivães das camaras ecclesiasticas. Admittido assim, ninguem deixará de considerar que existe a mesma rasão para considerar comprehendidos os vigários geraes, os provisores, os promotores, e até os sineiros, os chaveiros e organistas das cathedraes. Isto será por certo classificado de absurdo; e quando da intelligencia da lei se segue absurdo sabem todos o que deve fazer aquelle que a executa.

Eis-aqui explicado o procedimento dos antigos ministros; eis-aqui o motivo por que trataram sempre de trazer este? negocios a ponto de não produzir conflictos. Foi seguramente n'este sentido que argumentou o sr. cardeal patriarcha, sentido em que a sua argumentação não fosse comprehendida, ou fosse invertida para melhor se poder destruir.

O sr. Moraes Carvalho pretendeu achar nos argumentos de s. em.ª motivo para o arguir de não ter increpado o governo, emquanto tem prescindido da nomeação dos empregados ecclesiasticos a que me referi; não teve o digno par latão. S. em.ª argumentou com o absurdo, que necessariamente se seguiria, entendido o decreto como alguns pretendera.

Sejamos francos, repito ainda, o decreto de 5 de agosto carece de ser reconsiderado, a fim de evitar-se que appareçam novos conflictos; e creio que n'esta parte todos estamos de accordo (apoiados).

Já disse quanto me parece bastante para provar que não; cabe na nossa attribuição discutir se são ou não canónicas as causas e os motivos porque o sr. bispo da Coimbra pediu auctorisação ao governo, afim de impetrar do Santo Padre a confirmação da sua renuncia. Não posso comtudo deixar de observar ao sr. Moraes Carvalho, que a phrase empregada pelo sr. bispo conde, sobre as vexações da igreja, não foi surprehender o Papa, nem por certo o levou a exclamar que estava degenerado esse povo de heroes, que em longiquas terras fazia arvorar a cruz e o estandarte da re ligiào do Crucificado. Se o digno par compulsar muitos documentos emanados da cúria, achará ahi essas phrases muitas vezes repetidas. O motivo de censura nãorespe.tatantoo sr. bispo conde como ao proprio sr. ministro, e muito pouco avisado andou n'eata parte o digno par, emquanto largamente se occupou de provar, que não podem ser consideradas canónicas as causas em que o ex.mo bispo fundou o seu pedido ao governo, para impetrar a sua renuncia. Se assim é, o digno par devia censurar fortemente o sr. ministro por haver auctorisado esse pedido, e mais ainda por ter levado á presença de Sua Santidade a carta do sr. bispo conde. Pois não são canónicas as causas dadas pelo digno prelado, e o governo toma essas causas na mais seria consideração, não só para auctorisar o pedido, mas commette a grande imprudencia de levar esse mesmo pedido, fundado em causas que não são canónicas, á presença do Papa? Parece impossivel uma tal precipitação, uma tão grande irreflexão (muitos apoiados). Não devia o sr. ministro contar com o cheque certo e seguro? Se a cúria é difficil nas resoluções reclamadas pelo poder temporal, quando acha qualquer pretexto para opposição, que podia o sr. ministro esperar, quando se lhe apresenta um pedido contra direito expresso? (Apoiados). A defeza póde ser engenhosa, mas é por certo contraproducente. Ainda ninguem collocou o sr. ministro em tão má posição?

Sendo porém certo, segundo as proprias declarações do sr. ministro, que o pedido do sr. bispo conde foi auctorisado pelo governo e levado pelo mesmo governo á presença de Sua Santidade, pergunto a s. ex.ª, e espero resposta categorica e precisa. Fez s. ex.ª acompanhar esse pedido do respectivo memorandum para o nosso embaixador poder informar a Sua Santidade da sem rasão com que tão injustamente se apresentavam vexações contra a igreja? O sr. ministro não póde ter esquecido este memorandum, visto que tão escandalisado se mostra contra as phrases do ex.mo bispo conde. O sr. ministro guarda silencio, o que me leva a crer que tal memorandum não existe, o que prova ainda a precipitação, a irreflexão e imprudencia com que foi conduzido este melindroso negocio. O negocio, sim, era muito simples no seu principio, mas digam que continua a ser simples, depois de tudo o seguiu, e que veiu trazer um conflicto do qual o sr. ministro não poderá saír airosamente (apoiados).

Sr. presidente, não é assim, não é por este modo que se gerem os negocios publicos (muitos apoiados). Quando se trata de questões que se podem tornar internacionaes, cumpre marchar com mais cautela, porque os governos estrangeiros têem pouco ou nada com as questões partidarias entre nós. Sigam o exemplo do sr. conde d'Avila, o qual, sendo ministro dos negocios estrangeiros, pelo seu trabalho o fino tacto póde habilitar o representante de Portugal no Rio de Janeiro a fazer mudar completamente a opinião do governo de outro emispherio em uma questão que lançava desde muito sobre Portugal a nódoa da fabricação da moeda falsa.

O sr. Conde d'Avila: — Apoiado.

O Orador: — Honra seja ao digno par. E por tal fórma, que se conduzem os negocios, e não com precipitação provada a respeito do pedido do sr. bispo de Coimbra. Se não estava feito em fórma canonica para que foi auctorisado, e o que é maia, para que foi levado ao conhecimento de Sua Santidade? Precipitações e imprudências de tal ordem não são permittidos aos que tem a seu cargo dirigir os negocios de estados (muitos apoiados).

Reconheço que a causa de uma tal precipitação foi não só obter que viesse a occupar o escrivão da camara ecclesiastica o logar que tão conveniente havia de ser nas proximas eleições, mas obter tambem a vacatura do bispado para se nomear perlado que obras no mesmo sentido!... Deixo á camara avaliar nesta parte o procedimento do sr. ministro.

Desejo não cansar muito a camara, mas não posso dispensar me de pedir ao sr. ministro que lhe dê conhecimento do despacho do nosso embaixador em Roma, sobre este importante objecto. Este despacho deve existir, e muito deve servir para esclarecer esta questão. Pouco interessa saber se já chegou resposta por escripto sobre a negativa do Papa ao pedido da renuncia, basta para o nosso intento a declaração feita pelo sr. ministro, de que o representante do Pana assim o declarou verbalmente, mas officialmente ao sr. ministro dos negocios estrangeiros.

Estou cansado e não posso continuar, mas tomando como exemplo o excellente relatorio da nossa commissão de inquerito sobre os acontecimentos de Villa Real, julgo que não devemos perder a occasião de provar qual é o parecer da camara em negocio tão importante. Mando portanto pata a mesa a seguinte proposta, que a camara tomará na consideração que merecer (muitos apoiados).

A moção do digno par o sr. conde de Thomar foi a seguinte, e teve na mesa a competente leitura:

«A camara dos pares, tendo ouvido as explicações do governo ácerca das occorrencias que tiveram logar por occasião da nomeação por elle feita para o logar de escrivão da camara ecclesiastica do bispado de Coimbra, manifesta os seus sentimentos de respeito pelos direitos do estado em similhante materia, lamenta que o governo, no exercicio d’elles, se esquecesse das boas praxes que a consideração devida á igreja e o bem do serviço publico lhe recommendavam seguir, e passa á ordem do dia.

«Camara doa pares, em 19 de março de 1864. = Conde de Thomar. s

O sr. Presidente: — A ordem do dia para segunda feira proxima, 21 do corrente, é, na primeira parte, a discussão do parecer n.º 336, sobre o projecto de lei n.º 340; e na segunda parte é a continuação da discussão sobre o assumpto da interpellação do digno par o sr. marquez de Vallada.

Está levantada a presente sessão. Eram cinco horas e dez minutos.

Relação dos dignos pares que estiveram presentes na sessão do dia 19 de março de 1864

Ex.mos srs.: Conde de Castro; Cardeal Patriarcha; Duque de Palmella (Antonio); Marquezes, de Alvito, de Niza, do Pombal, de Sabugosa; Condes, das Alcaçovas, de Alva, de Avilez, d'Avila, de Azinhaga, de Fonte Nova, da Louzã, de Mello, de Peniche, da Ponte, da Ponto de Santa Maria, de Rezende, de Rio Maior, do Sobral, da Taipa, de Thomar; Bispo de Vizeu; Viscondes, de Santo Antonio, de Benagazil, de Condeixa, de Fonte Arcada, de Fornos de Algodres, de Ovar, da Vargem da Ordem; Barões de S. Pedro, de Foscoa; Mello e Carvalho, Moraes Carvalho, Mello e Saldanha, Pereira Coutinho, Teixeira de Queiroz, Custodio Rebello de Carvalho, Sequeira Pinto, Ferrão, Faustino da Gama, Margiochi, Aguiar, Soure, Pestana, Braamcamp, Pinto Basto, Silva Cabral, Reis e Vasconcellos, Izidoro Guedes, Baldy, Eugenio de Almeida, Matoso, Silva Sanches, Rebello da Silva, Luiz de Castro Guimarães, Vellez Caldeira, Miguel Osorio, Miguel do Canto, Menezes Pita e Sebastião José de Carvalho.

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