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CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

SESSÃO N.° 28

EM 23 DE FEVEREIRO DE 1907

Presidencia do Exmo. Sr. Conselheiro Sebastião Custodio de Sousa Telles

Secretarios - os Dignos Pares

José Vaz Correia Seabra de Lacerda
Francisco José Machado

SUMMARIO - Leitura e approvação da acta. Não houve expediente. - O Digno Par Avellar Machado envia para a mesa requerimentos de officiaes da armada, pedindo que lhes seja extensiva, a carta de lei de 19 de dezembro de 1899, para os effeitos da reforma por equiparação. - O Digno Par Francisco José Machado renova um requerimento pedindo esclarecimentos pelo Ministerio do Reino. - O Digno Par Jacinto Candido deseja saber qual o destino que teve uma representação, ou um projecto de lei, apresentado em tempo pelo fallecido Digno Par Theotonio de Ornellas Bruges, e que tratava da isenção de contribuição de registo para uma compra feita por uma associação de beneficencia. Em seguida occupa-se da desigualdade de vencimentos entre os officiaes da metropole e do ultramar, e apresenta a este respeito um memorial, que é mandado publicar no Summario por deliberação da Camara. - O Digno Par Ernesto Hintze Ribeiro insta pelo comparecimento do Sr. Presidente do Conselho, e o Sr. Presidente assegura que o chefe do Governo accederá aos desejos do Digno Par, logo que lhe seja possivel.

Ordem do dia continuação da discussão do parecer acêrca das emendas apresentadas á lei que reforma a contabilidade publica). - O Digno Par Luciano Monteiro requer que a sessão seja prorogada até se votar o parecer. Este requerimento é approvado. - Usam da palavra os Dignos Pares Jacinto Candido, Telles de Vasconcellos, Mello e Sousa, Moraes Carvalho, novamente Mello e Sousa, Ernesto Hintze Ribeiro, Luciano Monteiro e João Arrojo. - Rejeitado o adiamento proposto pelo Digno Par Hintze Ribeiro, é approvado o parecer. - O Sr. Presidente informa o Digno Par Jacinto Candido de que na Secretaria não existem os documentos a que S. Exa. alludiu no começo da sessão. - Encerra-se a sessão, e designa-se a immediata, bem como a respectiva ordem do dia.

Pelas 2 horas 35 minutos da tarde, verificando-se a presença de 24 Dignos Pares, o Sr. Presidente declara aberta a sessão.

Foi lida e seguidamente approvada a acta da sessão anterior.

Não houve expediente.

O Sr. Avellar Machado: - Envio para a mesa os requerimentos dos officiaes da armada Srs. Emygdio Balbino, Pedro da Silva Reis, José Maria da Conceição, Adelino da Fonseca Severino, Francisco Alves Ribeiro, Joaquim Soares, Francisco Maria Negrão e Manoel do Espirito Santo Lopes pedindo que a carta de lei de 19 de dezembro de 1899 lhes seja extensiva, de modo que se mandem contar as respectivas percentagens sobre os serviços de campanha e no ultramar, para os effeitos da reforma por equiparação.

O Sr. Francisco José Machado: - Mando para a mesa o seguinte requerimento:

Renovo a iniciativa dos requerimentos que mandei para a mesa nos dias 1 e 6 de janeiro corrente, pedindo esclarecimentos pelo Hospital das Caldas da Rainha, e que até hoje não foram satisfeitos, com grande surpresa minha, pois os documentos por mim pedidos em poucos minutos podem ser satisfeitos, por deverem estar escripturados e serem de facil copia.

23 de fevereiro de 1907. = F. J. Machado.

O Sr. Jacinto Candido: - Rogo a V. Exa., Sr. Presidente, o favor de mandar saber na secretaria d'esta camara qual o destino que teve uma representação ou um projecto de lei apresentado aqui em tempo pelo Digno Par Sr. Ornellas de Bruges, já fallecido, e que se destinava a isentar da contribuição de registo uma compra feita por uma associação de beneficencia do districto de Angra.

Desejo que me seja facultado esse documento para, sendo projecto, renovar a sua iniciativa, sendo representação, elaborar eu um projecto atinente ao assumpto.

Para outra questão desejo eu chamar a attenção da Camara e do Governo; isto é, para a situação precaria em que se encontram os nossos officiaes do exercito em serviço no ultramar.

Como não está presente o Sr. Ministro da Marinha, abstenho-me por agora de fazer as considerações que este assumpta me suggere, mas desde já direi á Camara que me foi entregue um extenso memorial, em que são postas em relevo as deploraveis condições em que se encontra o exercito do ultramar.

Para que a Camara possa ajuizar d'essas condições, bastará citar que um coronel do exercito do ultramar, em serviço na provincia de S. Thomé, vence mensalmente 112$500 réis, ao passo que um capitão da metropole, servindo sob as suas ordens, vence 135$000 réis. Isto é manifestamente uma desigualdade, uma iniquidade e, mais do que isso, um perigo para a disciplina.

A tabella annexa ao memorial que tenho presente é muito curiosa, e mostra bem que tal situação não pode continuar, pelo que urge prover-lhe de remedio quanto antes.

Julgo conveniente a publicação d'este memorial no Summario das nossas sessões, para que a Camara tenha conhecimento do assumpto quando eu me

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dirigir ao Sr. Ministro da Marinha e chamar muito especialmente a attenção de S. Exa. para este ramo de serviço publico.

É indispensavel evitar desharmonias e conflictos entre os elementos que compõem a força publica, para que ella possa desempenhar cabalmente a alta funcção que lhe está commettida.

Peço a V. Exa. que consulte a Camara sobre se permitte que no Summario das sessões seja publicado este documento, que mando para a mesa.

(O orador não reviu).

O Sr. Presidente: - Já dei ordem para que se procurem na secretaria os documentos a que o Digno Par se referiu.

Quanto ao Memorial que o Digno Par mandou para a mesa, vou consultar a Camara.

Os Dignos Pares que permittem, que elle seja publicado no Summario das sessões, tenham a bondade de se levantar1.

(Pausa).

Está approvado.

Estão inscriptos ainda alguns Dignos Pares, mas como não estão presentes os Srs. Ministros a que S. Exas. desejam referir-se, vou passar á ordem do dia.

O Sr. Ernesto Hintze Ribeiro: V. Exa. preveniu o Sr. Presidente do Conselho de que eu desejava tratar de alguns assumptos, que correm pela pasta do Reino?

O Sr. Presidente: - O Sr. Presidente do Conselho disse-me que, logo que lhe seja possivel, compareceria aqui para responder ao Digno Par.

ORDEM DO DIA

Continuação da discussão do parecer acêrca das emendas ao projecto de lei, que introduz algumas alterações na legislação relativa á contabilidade publica.

O Sr. Luciano Monteiro: - Requeiro que seja consultada a Camara sobre se permitte que a sessão seja prorogada até se votar o projecto em discussão.

O Sr. Presidente: - Os Dignos Pares que approvam este requerimento tenham a bondade de se levantar.

(Pausa, e depois de verificar a votação).

Está approvado.

O Sr. Jacinto Candido: - Sou forçado, até certo ponto, a usar da pala-

1 Este documento vae publicado no final sessão.

vra n'este debate porque, tendo tomado parte na discussão do projecto, cujas emendas estão em ordem do dia, e tendo me referido com certa largueza á forma como era feito o visto do Tribunal de Contas sobre as ordens de pagamento, vi depois no Summario da sessão de 23 de janeiro, a que não pude assistir por motivo de doença de pessoa de familia, que a esse discurso, e ás minhas reflexões, o Digno Par relator e meu particular amigo, Sr. Mello e Sousa, tinha feito referencias que, segundo esse Summario foram as seguintes:

"O Digno Par Sr. Jacinto Candido é que declarou que, apesar de não ter havido taes referencias, queria mostrar á Camara como no Tribunal de Contas era feito o serviço do visto.

S. Exa. disse então que era membro do Tribunal de Contas, embora pouco activo no serviço do visto, mas, como o assumpto se estava discutindo na Camara, tinha lá ido, dizendo: "Eu quero saber o que é isto do visto".

Foi então que S. Exa. soube o que era o visto e como elle se fazia".

Corre-me, pois, o dever do fazer algumas rectificações, porque houve erro, proveniente talvez da forma por que eu expressei as minhas ideias, ou da forma como as interpretou o Digno Par.

No Summario da sessão em que veio o meu discurso, não se encontra uma palavra que possa fundamentar a interpretação dada pelo Digno Par Sr. Mello e Sousa ás minhas palavras.

Lembro-me de ter dito que, de facto, não era, como membro do Tribunal de Contas, dos mais assiduos no serviço do visto.

O serviço do visto do Tribunal de Contas constitue, no fim do anno, uma estatistica organizada pelo secretario d'aquelle tribunal, a qual é enviada ao Governo.

D'essa estatistica se mostra quem é mais assiduo n'este serviço, que não é distribuido igualmente por todos os membros do tribunal.

A estatistica que foi fechada o anno passado deu logar a uma portaria de louvor.

Foi, portanto, reconhecido pelo actual Governo e pelo Sr. Ministro da Fazenda o zelo, a solicitude e o extremo cuidado, em especial do director geral da secretaria do Tribunal de Contas, e em geral de todos os funccionarios que trabalham no serviço da fiscalização dos pagamentos n'aquelle tribunal.

Segundo essa estatistica, vê-se effectivamente que eu não sou dos mais assiduos no serviço do visto, mas tambem não sou dos mais remissos.

O Sr. director geral da secretaria do Tribunal de Contas, a quem já prestei aqui a homenagem da minha alta consideração, sendo vivamente apoiado pela Camara, é responsavel por aquelle serviço; capricha e prima em o não demorar, e por isso recorre ao primeiro membro do tribunal que lhe pode visar as ordens de pagamento.

Disse ainda o Sr. Mello e Sousa:

"Não se permittiria censurar nunca o Digno Par Jacinto Candido, tanto mais na sua ausencia.

Pareceu-lhe que S. Exa., pelas palavras que pronunciou, só ha pouco tinha tido conhecimento do que era o visto e até ficara surprehendido pela forma brilhante como eram feitos os mappas e livros respectivos.

O que é verdade é que as ordens de pagamento são referendadas por um vogal do Tribunal de Contas, depois de examinadas por uma repartição".

Eu não podia estar encarregado de executar um serviço sem saber que serviço era esse. O que não tinha ainda realizado, e depois fiz, foi examinar os livros e ver a forma como o serviço era escripturado. Não fiquei surprehendido ao examinar os livros; mas sim agradavelmente impressionado por ver a escripturação relativa ao assumpto exemplarmente organizada.

Fica assim definido o meu pensamento e feitas as rectificações que constituiam a principal razão por que tinha necessidade de usar da palavra n'este debate.

Com respeito ao visto, tive já occasião de invocar uma auctoridade, a opinião do Sr. Mello e Sousa.

S. Exa., com grande proficiencia, e até com espirito que muitas vezes põe nas suas considerações, affirmou a inefficacia e phantasmagorica importancia que tinha esse serviço, porque nunca pode haver uma fiscalização perfeita por meio do visto.

Eu tive tambem já occasião de dizer que a unica maneira de fazer uma boa fiscalização era descentralizar a applicação das despesas pelas diversas secretarias de Estado. Os Ministros receberiam em cada mez o duodecimo da despesa orçamental e applicavam-no sob sua responsabilidade e prestando contas d'essa applicação.

Desappareceria então essa monstruosidade que se chama as contas geraes do Thesouro e tornar-se-hia mais facil o exame da forma como se applicavam os dinheiros publicos.

Actualmente as ordens de pagamento são verificadas pelo director geral da secretaria do Tribunal de Contas, que é quem tem a responsabilidade pessoal e directa da verificação. Se ha duvidas, é aos membros do tribunal que compete resolvê-las, e se elles não quizerem tomar a responsabilidade de

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as resolver, provocam uma reunião plena do tribunal para obter a resolução da questão.

Os inconvenientes que o Digno Par Sr. Teixeira de Sousa indicou na fiscalização exercida pelo Tribunal de Contas não são remediados pelo projecto.

O Sr. Telles de Vasconcellos (interrompendo): - V. Exa. dá me licença? O visto foi importado do tribunal belga, e o nosso tribunal tem uma organização differente.

O Sr. Casal Ribeiro, organizou o nosso Tribunal de Contas, tomando como base o tribunal francez, que é organizado por, um modo differente do que são os outros tribunaes que conheço. O tribunal francez, como o nosso, tem que dar a sua declaração de conformidade e tem que conhecer da legalidade do visto, esteja elle onde estiver, ou seja no director da contabilidade, ou na Junta do Credito Publico, ou em qualquer repartição do Estado; onde elle não pode estar é no tribunal, porque este, pela sua organização, tem que, conhecer da legalidade do visto, e dar a sua declaração á commissão de fazenda da Camara dos Senhores Deputados, para o encerramento do exercicio. O que acontece com o nosso tribunal foi este nunca mais dar declaração, nem curar das contas dos Ministerios; dedicou seis contadores para o serviço do visto e julgou contas dos correios e dos exactores. Nem fiscalizou cousa alguma, nem se aproveitou com o seu serviço, porque mesmo na collocação do visto no tribunal não se lhe enviaram todas as ordens de pagamentos, as da thesouraria não eram remettidas ao visto, fizeram-se meias cousas, que é o peor que tudo, e assim veio o descredito para o tribunal, convencendo-se o publico que este visava ordens de pagamento illegaes, o que é completamente falso, não só porque os contadores, a começar pelo Sr. Secretario, são de uma grande seriedade, mas dos primeiros em questões de contabilidade. Quando em 1875 fui nomeado secretario do Tribunal de Contas mandei vir os diplomas e relatorios dos differentes tribunaes, e o que me pare céu mais completo, foi o francez, mas não se tinha comprehendido que o fim dos tribunaes de contas, é verificar se se recebeu bem, e se se pagou bem, saber quanto se recebeu e quanto se pagou, e eram decorridos 18 ou 20 annos, sem que o tribunal desse a sua declaração de conformidade, e se encerrasse isso n'um unico exercicio. Fui eu que criei a secção dos Ministerios, collocando como chefe da secção o Sr. Ferreira Lobo, que era um terceiro contador, mas um contador distincto, e em 1879 o tribunal enviou ao Parlamento o seu relatorio e a sua declaração de conformidade e foi encerrado o exercicio. Deixei o tribunal de 1880 para 1881 e ficou comparado o serviço para a segunda declaração, e seguir o serviço nos annos posteriores; enxertaram no tribunal o visto e com este ficou entretido todo o tribunal, e ha 13 ou 14 annos que nem ha contas, nem declaração de conformidade do tribunal!

Eu tenho aqui a lei franceza, e o seu regulamento, por onde se pode ver que o nosso tribunal foi moldado no que se encontra n'aquelle paiz. Se não tem dado os mesmos resultados, não é pela falta de contadores distinctos, que os não ha melhores, nem por falta de zelo do pessoal pelo serviço. V. Exa. pega no relatorio do tribunal francez do tempo da revolução e encontra discriminadas todas as quantias levantadas pelos revolucionarios nos differentes cofres do paiz. Porque é que o nosso tribunal não exerce a mesma fiscalização? É porque não só não auctorizam o tribunal a exercê-la, mas não lhe dão os meios necessarios. São roubados os cofres, por esse paiz fora, é o Tribunal de Contas não sabe cousa alguma. Que culpa tem então o tribunal? Nenhuma. A culpa é dos Governos, que lhe não dão os meios necessarios, e o não habilitam a fiscalizar os cofres e a mandar aos districtos examinar e organizar os processos dos exactores, porque eu creio que ainda hoje se processam as contas de differente maneira nos differentes districtos, principalmente as contas das camaras municipaes, e isto tendo o nosso tribunal quarenta e tantos annos de existencia!

Eu conheço o tribunal e conheço os seus distinctos contadores. Com elles trabalhei e ainda hoje, no cumprimento da lei de 1899 que criou a Commissão Revisora de Contas, estou trabalhando com os Srs. Paulo Chaves, Palermo e Ramiro Trindade, que são contadores do Tribunal de Contas. O pessoal é magnifico, mas não o ajudam os Governos.

O Orador (proseguindo): - Fica satisfeito por ser tirado o visto ao Tribunal de Contas porque é um encargo e uma responsabilidade a menos.

Effectivamente o Tribunal de Coutas não tem meios coercitivos de poder tornar effectivas as suas deliberações e, por isso, limita-se muitas vezes a esperar com paciencia que lhe sejam enviados os documentos de que precisa, visto não ter meios directos de inspecção.

Vou agora referir-me a outro ponto, isto é, á proposta que tive a honra de apresentar e que foi rejeitada, não podendo, entretanto, deixar de lisonjear-me por ver que o Digno Par Sr. Hintze Ribeiro formulou outra proposta, cujo objectivo é igual ao da minha.

Propuz que o projecto voltasse á commissão de fazenda, e ali fosse devidamente remodelado a fim de ficar, não como obra apenas de um grupo politico, mas como uma lei de contabilidade publica, que attendesse aos supremos interesses do paiz, para a boa solução dos quaes eram necessarios os esforços e a boa vontade, de todos.

O Sr. Conselheiro Hintze Ribeiro propoz que se sobreesteja na approvação do projecto, a fim de conseguir uma lei de contabilidade completa, a qual, devida e systematicamente organizada, viesse então á apreciação parlamentar.

O meu ponto de vista era o mesmo que o do Digno Par Sr. Hintze Ribeiro; e registo com desvanecimento que assim houvesse succedido na discussão de uma lei que tão magna importancia exerce na administração superior do Estado.

Ditas estas ultimas palavras, que muito desejo fiquem registadas, termino as minhas considerações sobre as emendas, visto não desejar cansar por mais tempo a attenção da Camara.

Vozes: - Muito bem.

(S. Exa. não reviu).

O Sr. Mello e Sousa (relator): - Disse o Digno Par Sr. Jacinto Candido, e disse muito bem, que as relações de amizade entre mim e S. Exa. não permittiam que eu o censurasse ou aggravasse.

S. Exa. disse muito bem, porque não podia eu censurar qualquer collega n'esta Camara por funcções exercidas fora da mesma Camara, e em qualquer logar.

Não teria para isso nem auctoridade nem razão.

Todas as observações de S. Exa. desapparecem, pois, por completo, perante as referidas relações de amizade inalteravelmente mantidas e com as quaes muito me honro.

Devo dizer agora aqui o que já disse muitas vezes na outra Camara. Nunca li extractos ou summarios dos meus discursos, como nunca li nem extractos ou summarios dos discursos dos outros oradores; não revi, nem reverei nunca notas de discursos meus.

Não digo isto com o proposito de maguar seja quem for; mas é que a minha condição, ou o meu feitio, não me permittem proceder por forma diversa.

Vejo agora, pela leitura a que procedeu o Digno Par Sr. Jacinto Candido, que o Summario está muito bem feito, e que, se alguma emenda houvesse

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a fazer-se, seria de simples palavra, sem alteração de sentido.

Não houve, portanto, da minha parte a menor incorrecção, nem a poderia haver.

Poderia ficar por aqui se S. Exa. não fizesse hoje outras considerações em relação á forma como é praticado o visto no Tribunal de Contas.

A passagem do visto previo para o director geral da contabilidade publica em nada tira autoridade e competencia ao Tribunal de Contas.

O director geral da contabilidade publica fica com o direito de fiscalizar o que o Tribunal de Contas não fiscalizava. É isto o que as proprias considerações do Digno Par Sr. Jacinto Candido acabam de demonstrar, o que vem provar a vantagem de passar-se o visto para o funccionario referido.

Era isto o que desejava dizer.

(S. Exa. não reviu).

O Sr. Moraes Carvalho: - Serei muito breve nas considerações que tenho a apresentar á Camara, e mesmo não teria pedido a palavra se no parecer em discussão não houvesse uma referencia a uma emenda apresentada por mim e que o citado parecer averbou de inconstitucional.

Quando pela primeira vez falei sobre este assumpto, declarei á Camara, e declarei o francamente, que punha completamente de parte qualquer intuito partidario.

As emendas enviadas para a mesa por parte da opposição regeneradora só tinham por fim aperfeiçoar o projecto, contribuindo portanto para que do Parlamento saisse uma lei pratica e de apreciaveis resultados. (Apoiados).

Esperava que a commissão de fazenda, comprehendendo este mesmo pensamento, tratasse de aproveitar das propostas da opposição aquillo que julgasse mais util á boa administração do Estado, de forma que o Parlamento pudesse votar uma lei pratica, tendente a remover todas as difficuldades que existem na contabilidade publica.

Esperava que a commissão de fazenda - se não conseguisse a perfeição sobre o assumpto, o que é difficil obter - organizasse ao menos uma lei que pudesse ser posta a par das reformas de contabilidade em execução nos paizes mais cultos.

Mas vejo que, infelizmente, vae sair do Parlamento uma lei de existencia ephemera, pelo que me parece completamente inutil qualquer discussão sobre a materia.

Um dos principaes defeitos da lei será a ampla faculdade dada ao Governo para abrir creditos extraordinarios sob pretexto de despesas imprevistas.

Desejei eu restringir a significação da expressão - despesas imprevistas - considerando somente n'esta categoria as despesas que não podiam ser previstas á data da organização do orçamento.

A commissão de fazenda não acceitou tal emenda, pelo que o Governo pode, de futuro, abrir creditos extraordinarios para todas as despesas que não foram previstas no orçamento; porque a significação usual da palavra imprevista é - não prevista.

Pedia ainda que a abertura de creditos extraordinarios para despesas imprevistas só pudesse ser feita mediante voto affirmativo do Conselho de Estado.

A commissão de fazenda, porém, diz que tal proposta é inconstitucional.

Inconstitucional é dar ao poder executivo attribuições que só competem ás Côrtes, visto que só a estas é que cabe fixar as despesas publicas. (Apoiados).

Inconstitucional é ficar o Governo, por virtude d'este projecto, com a liberdade de fazer as despesas que quizer por meio de creditos extraordinarios ao seu simples arbitrio e alvedrio, desde que o voto do Conselho de Estado seja meramente consultivo.

Inconstitucional é rasgar abertamente o codigo fundamental do Estado, tirando ao Parlamento direitos que competiam unicamente ao poder legislativo, direitos que são a base do regimen parlamentar moderno. (Apoiados).

Na Inglaterra succede que, começando o anno economico a 1 de abril, só em agosto se vota o orçamento; e isto para que não haja a possibilidade do Governo governar sem o concurso do Parlamento.

Supponho que essas foram as intenções do Governo, mas a verdade é que esta lei poderia denominar-se uma lei de golpe de Estado. Se uma tal disposição existisse na Allemanha não precisaria Bismark, antes da batalha de Sadowa, dissolver Parlamentos sobre Parlamentos para fazer approvar os projectos de despesas militares. Se uma tal disposição existisse na França durante a presidencia de Mac-Mahon, o Governo reaccionario de 16 de maio teria imposto a sua vontade á vontade do povo francez.

Com esta lei de contabilidade qualquer Governo pode ter o Parlamento fechado durante dez ou mais annos.

E por outro lado de que valem restricções ou cautelas para impedir que os Governos excedam as autorizações, se elles ficam com os direitos de se autorizarem a si proprios a gastar todas as despesas que não estiverem previstas no orçamento? Do que vale mesmo a discussão d'este?

Tudo perfeita inutilidade.

Direi ainda que por virtude da alteração referente á commissão parlamentar de contas, esta commissão fica constituida somente por membros da outra casa do Parlamento, o que dará logar a que dissolvidas as Côrtes, tal commissão não fique composta por Deputados, mas sim por individuos que foram Deputados, ficando a essas pessoas que já não são representantes da nação o direito de accusarem Ministros de Estado.

Terminando, direi mais uma vez que esta lei será apenas uma obra de duração ephemera.

Vozes: - Muito bem, muito bem.

(S. Exa. não reviu).

O Sr. Mello e Sousa (relator): - Pedi a palavra para dizer simplesmente ao Digno Par Sr. Moraes Carvalho que a sua emenda foi julgada inconstitucional, porque o Conselho de Estado tem funcções simplesmente consultivas.

O Sr. Moraes Carvalho: - O vota do Conselho de Estado pode ser deliberativo em todos os casos não marcados na Carta Constitucional.

O Orador: - Agradeço a explicação. Não sou, como S. Exa. sabe, um jurisconsulto.

O Sr. Moraes Carvalho: - Cito, como exemplo, que a lei de 1 de agosto de 1844 trata de attribuições dos juizes de direito sob o voto deliberativo do Conselho de Estado.

O Orador: - Agradeço as explicações, mas parece-me que a disposição da lei por S. Exa. citada tem por fim manter integra a independencia do poder judicial.

Folgo que a discussão do projecto referente á contabilidade desse logar a tanta defesa da Carta, a qual tem sido muitas vezes posta de parte com muitas desculpas arranjadas por aquelles que a defendem agora.

Este debate teve para mim a vantagem de ficar conhecendo melhor a Carta Constitucional.

Vejo que até hoje nunca se abriram creditos extraordinarios e que todas as leis teem sido cumpridas a rigor: mas ainda não ha muito o Digno Par Sr. Jacinto Candido citou um discurso brilhante do Sr. Teixeira de Sousa, no qual este distincto parlamentar mostrou o que tem sido a administração do Estado no que respeita a credi-

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tos extraordinarios e a administração das finanças em Portugal.

Creio que o projecto actual é uma boa medida e que muito deve contribuir para uma sensata e pratica orientação do regimen das finanças publicas.

Vozes: - Muito bem, muito bem.

O Sr. Ernesto Hintze Ribeiro: - Vejo que o Digno Par Sr. Mello e Sousa se referiu á Carta Constitucional, como que estranhando que ella haja sido por vezes invocada no presente debate.

Ora eu recordo-me de nem sempre ter havido enthusiasmo na defesa do codigo fundamentar do Estado; e até creio que o Digno Par Sr. Mello e Sousa iniciou a sua carreira parlamentar acompanhando um Governo que por vezes deixou de cumprir os preceitos da Carta.

Já disse e repito que é minha opinião que a lei em debate não trará beneficios para o paiz; nem exemplos de moralidade, nem correcção a quaesquer abusos, mais ou menos inveterados na administração do Estado. (Apoiados).

Não vou discutir a Constituição ingleza. A esse respeito já o Digno Par e meu amigo Sr. Teixeira de Sousa, em resposta ao Sr. Costa Lobo, esclareceu por completo a Camara. É á nossa Constituição que tenho de me referir.

E assim vou provar que o projecto que se discute é a negação de todo o systema parlamentar.

Effectivamente, este projecto de contabilidade publica contraría inteiramente os preceitos mais substanciaes da nossa Carta Constitucional, porquanto, sendo o orçamento o computo e fixação de receitas e despesas, ficam os Pares e Deputados inhibidos de, na discussão do orçamento, apresentarem quaesquer propostas desde que envolvam augmento de despesa ou diminuição de receita. Como pode, assim, o Parlamento discutir e corrigir o orçamento se as receitas forem exaggeradas, e as despesas insufficientes?

Se, pela Carta, são os Pares e Deputados que fazem as leis, como se pode impedir o Parlamento de modificar, para mais ou para menos, consoante a verdade dos factos, o que o Governo consignar na sua proposta de lei do orçamento?

Não só a Carta, mas o Acto Addicional de 1852 determinam e precisam as funcções do Governo e as das Côrtes. Ás Côrtes compete fixar as despesas e estatuir sobre os rendimentos do Estado; ao Governo cumpre executar o que assim se resolver. Mas esta nova lei de contabilidade impede o Parlamento de exercer, como deve, as suas funcções constitucionais. (Apoiados).

Quando um Governo apresentar um orçamento que não expresse a verdade dos factos, ficam os membros do poder legislativo, com esta lei, impedidos de o alterar!

Classifico este proceder de verdadeiramente extraordinario. Muita ha de ser a desordem e os embaraços resultantes das disposições da lei, as quaes obstam a que possam ser emendadas verbas erradamente calculadas.

O Governo calcula exageradamente, a commissão de fazenda reconhece que o calculo foi exagerado, mas como não pode apresentar propostas que importem augmento de despesa, ou diminuição de receita, a verdade não se restabelece.

Isto reflecte-se depois na Camara, porque esta fica igualmente inhibida de corrigir os erros e de estabelecer a exactidão das verbas.

Por esta forma, a lei que se vae votar tira ao Parlamento a sua fiscalização, aliás absolutamente conveniente e imprescindivel. (Apoiados).

Esta lei representa, pois, um rude golpe na acção parlamentar.

É vedado aos representantes do paiz o que ha de mais importante e necessario - o exame e a contraprova da verdade no orçamento geral do Estado.

D'aqui por deante, pode o Governo elaborar os orçamentos como entender; o Parlamento não poderá corrigir os erros do calculo, nem restabelecer a verdade dos factos.

Vozes: - Muito bem, muito bem. (S. Exa. não reviu).

O Sr. Luciano Monteiro: - Tendo requerido para que se prorogasse a sessão até se concluir o debate, em que a Camara está empenhada, mal andaria se usasse demasiadamente da palavra.

Estando pois no proposito de condensar o que se me offerece dizer, no menor numero de palavras, não me preoccuparei com o que a Constituição ingleza preceitua, e muito menos tratarei de apurar o que a respeito de assumptos economicos disseram Sturm, Besson e Leroy Beaulieu.

Não possuo nenhuma especie de relações com estes illustres economistas.

O Digno Par Hintze Ribeiro pretendeu demonstrar que o artigo 13.° do projecto é anti-constitucional, porque extingue o exercicio e a acção do Parlamento.

Diz S. Exa. que o Governo, vendo uma longa estiagem, e prevendo por isso um mau anno cerealifero, calcula a receita dos cereaes n'uma certa quantia. Vem depois a chuva: e a perspectiva de uma colheita escassa converte-se na certeza de uma producção abundante. Dadas as disposições do projecto, diz o Digno Par, o Parlamento não tem meio de corrigir o calculo.

A este argumento tenho a dizer que no projecto não ha artigo nenhum que impeça essa fiscalização.

O projecto não altera, não restringe o direito que ao Parlamento cabe de applicar aos orçamentos as correcções que forem indispensaveis.

O projecto, ao contrario, o que dispõe é que por occasião da discussão do orçamento se não proponham novas despesas e diminuição de receitas.

O orçamento é uma relacionação de despesas e de receitas, auctorizadas por leis anteriores, e determinadas por circumstancias que nas proprias leis estão fixadas.

É isto o orçamento, e o que sempre tem sido.

Apresentado esse rol ou essa relacionação ao Parlamento, este não fica por forma nenhuma inhibido de ratificar quaesquer erros de calculo.

É um direito indiscutivel que ao poder legislativo compete, e que o projecto mantem sem a mais pequena alteração.

O Sr. Ernesto Hintze Ribeiro: - Mas é isso o que não está no projecto. Dispõe-se n'elle que se não podem apresentar propostas que importem augmento de despesa ou diminuição de receita e portanto não ha meio de corrigir os calculos feitos.

O Orador: - O Digno Par e meu illustre amigo - amizade nunca desmentida e provada com factos - com a sua muita intelligencia, com o seu espirito luminoso, e com a sua indiscutivel seriedade, deve comprehender muito bem que o facto de corrigir calculos é uma cousa diametralmente opposta á apresentação de propostas que augmentem a despesa ou diminuam a receita.

Aqui tem a Camara a razão por que eu sustento que o artigo 13.° do projecto não pode apresentar uma restricção ás faculdades parlamentares.

As regalias, os privilegios e os direitos parlamentares não soffrem com o projecto a mais pequena alteração.

Não deixo de concordar em que essa disposição podia deixar de ser incluida na lei, se todos tivessem justa comprehensão dos seus deveres politicos.

Nós estamos a viver n'um regimen a que falta a sua base fundamental.

O que falta é um bom corpo eleitoral que dê ao paiz uma representação genuina e que colloque o poder legislativo n'uma absoluta independencia.

Vozes: - Muito bem.

(S. Exa. não reviu).

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O Sr. João Arroyo: - Sr. Presidente, já tinha perdido a esperança de poder usar da palavra na discussão d'este projecto de lei.

Quando elle veio á discussão estava eu doente, não pude por isso tomar parte n'ella, e agora affazeres estranhos á Camara, mas de natureza urgente, impediram-me de seguir dia a dia as discussões, mas pela attenção demorada que a Camara entendeu dever dar a este parecer de emendas, depara-se-me felizmente o ensejo de usar da palavra, e escusado será dizer que foi com muito prazer e satisfação que ouvi os discursos dos Srs. Hintze Ribeiro e Luciano Monteiro.

Antes de apresentar as considerações que me levaram a inscrever-me não posso, não só pela estima e muita consideração que tributo ao Digno Par que me antecedeu no uso da palavra, mas porque as suas palavras são sempre de alto conceito e de um grande relevo, não posso, repito, deixar de me referir, ao ponto mais saillant do discurso do Digno Par.

Disse o Digno Par Sr. Luciano Monteiro que não possue nenhuma especie de relações com Bessou, Sturm e Leroy Beaulieu e, acêrca d'este ultimo pronunciou se por forma a tornar imminente um desaguisado.

(Interrupção do Sr. Luciano Monteiro, que não foi ouvida).

Em todo o caso, a resolução que o Sr. Luciano Monteiro nos annuncia de se não querer approximar d'estes illustres economistas e financeiros, sobretudo a muito particular resolução de se não querer approximar de Leroy Beaulieu, tendo este projecto na mão, parece-me, por varios motivos, muito ajuizada, porque são tantas as heresias e barbaridades de caracter economico e financeiro que este papel contém, que, se porventura o Digno Par Sr. Luciano Monteiro sahindo da sua reserva se aproximasse de qualquer economista francez, fatalmente teriamos desgraça. A forma como Beaulieu receberia o Digno Par não poderia deixar de ser a do maior desagrado.

Felicito-me, e felicito S. Exa., pela prudencia que tem de se não aproximar do sabio francez nem do allemão.

Fique S. Exa. n'essa situação pacata e serena, que tem até agora seguido, e creia que não teremos desastre a lamentar.

Mas o Digno Par, procurando responder ao discurso do Sr. Hintze Ribeiro, procurou salvar o projecto do argumento, mais do que fundado, absolutamente irrespondivel que aquelle Digno Par tinha apresentado quanto a ficarem os membros do Parlamento impedidos de apresentar qualquer proposta que envolva augmento de despesa ou diminuição de receita.

O systema de defesa do Sr. Luciano Monteiro foi o seguinte:

S. Exa. sustentou que uma cousa era diminuição de receita, outra cousa era a correcção de qualquer erro que o projecto de orçamento trouxesse á Camara.

A primeira cousa que entra pelos olhos dentro é a absoluta impossibilidade que ha de saber onde acaba o alcance da palavra correcção, e onde começa propriamente o alcance da palavra iniciativa.

Pergunto eu, por exemplo:

Correcção é só a emenda de um erro arithmetico?

Ou correcção é porventura imprimir á despesa o seu verdadeiro aspecto, isto é, reconhecer que uma despesa era insuficientemente dotada e dotá-la sufficientemente?

Correcção é só a questão propriamente arithmetica de emendar um erro de somma, de diminuição, de multiplicação ou divisão?

Ou é ir a uma receita que um Digno Par ou Deputado supponha que está exaggeradamente calculada e diminui-la, reduzindo-a ás suas verdadeiras proporções?

Onde acaba a correcção? Onde acaba a emenda? Onde começa a iniciativa?

Se uma despesa não é apresentada sob a égide da correcção, fica rejeitada?

A que estado vemos reduzida uma garantia: a iniciativa parlamentar entregue a esta confusão, a esta incerteza, a esta obscuridade!

Como é possivel que o direito mais sagrado dos Parlamentos, qual é o de fiscalizar as receitas e despesas, fique entregue a esta situação absolutamente vaga e indecisa, e que cada qual pode interpretar ao sabor dos seus interesses politicos?

A mesa ha de intervir n'um facto d'estes como quem resolve uma disposição regimental.

Como ha de a mesa receber essa proposta?

É muito difficil innovar n'esta materia, e é excessivamente perigoso entregar essas innovações a uma politica jacobina, a uma politica que se arroga uma austera moralidade, e que se proclama absolutamente incomparavel a qualquer outra no que respeite a assumptos economicos e financeiros.

O Governo, quanto á falacia nos centros e á exposição de generalidades sobre direito publico, lá vae caminhando, mas quando se dispõe a entrar em um terreno pratico, apresenta providencias como aquella que faz objecto da apreciação da Camara.

Não quero abandonar o discurso do Sr. Luciano Monteiro, sem fazer uma referencia á ultima parte das considerações por S. Exa. apresentadas.

O Digno Par, depois de fazer o encomio do projecto em discussão, termina por fazer ama affirmação que é completamente verdadeira.

Disse S. Exa. que as garantias que se estabelecem de nada valem, porque acima de tudo está um eleitorado que fornece á outra Camara um conjunto de individuos na dependencia ou na sujeição do poder executivo.

Se no fundo das palavras do Digno Par ha uma grande verdade - e no que digo não vae o minimo desprimor para com os cavalheiros que constituem a outra assembleia legislativa - pergunto:

Se os pobres Deputados são unicamente a chancella do poder executivo por que é que se imagina evitar um perigo, tirando-lhes a iniciativa de propostas que augmentem despesas?

A que vem, e para que servem as disposições do projecto se os Deputados votam o que os Governos querem?

Como é que se julga conquistar qualquer garantia seria, coarctando a iniciativa aos Deputados, se elles não são mais do que uma phantasmagoria, se não passam de executores servis das ordens do poder executivo?

Eu já disse e repito que as minhas palavras não incluem o minimo desprimor para com aquella Camara, em geral, e, em especial, para qualquer dos seus illustres membros.

Se o estado do eleitorado portuguez é aquelle que nos descreveu o Digno Par, a que vem e para que serve essa commissão fiscalizadora de contas?

Que valor pode attribuir-se ás deliberações d'essa commissão, cujos membros não passam de uns simples serventuarios do poder executivo?

Como é que um homem, ornamento do partido regenerador liberal, defende com grande energia a criação de uma commissão tirada da Cornara dos Senhores Deputados, quando ao mesmo tempo affirma que esses Deputados obedecem apenas ás indicações ou ordens do Governo?

Cumprida assim a obrigação e satisfeito o prazer de me referir á palavra sempre mascula do Digno Par Luciano Monteiro, passo a referir-me a um ou a outro ponto do projecto; mas, estando o assumpto, por assim dizer, esgotado, e tendo-se prorogado a sessão, tratarei de me haver por forma a não merecer o epitheto de maçador.

O Sr. Presidente do Conselho, ha dias, indignou-se com umas phrases proferidas pelo Digno Par Julio de Vilhena, phrases que eu aliás tenho proferido varias vezes.

O Digno Par Julio de Vilhena disse

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que um determinado acto representava a fallencia politica do Governo.

A que vem a indignação do Sr. Conselheiro João Franco contra uma phrase que com inteira justiça pode ser applicada a toda a obra do Governo?

A concentração liberal inscreveu no seu programma duas propostas, que considerou como base fundamental de toda a sua orientação governativa - a da responsabilidade ministerial e a da contabilidade publica.

Eram estas duas propostas aquillo que o Sr. João Franco chamava: um todo.

O projecto que se discute é, portanto a metade d'esse todo.

O Governo não considera esta proposta como um expediente de mo mento.

Considera-a como a base fundamental de um systema destinado a introduzir normas e processos novos na administração publica portugueza.

É um dos seus titulos de gloria esta proposta, e com ella espera o Governo conseguir o desapparecimento de todos os erros, de todos os males de que enferma a governação publica em Portugal.

Se o Governo quizesse fazer alguma cousa de realmente util, confeccionava dois orçamentos; mas n'este sentido um igual ao do anno passado, e ao lado um relatorio, como os que são apresentados ás sociedades anonymas inglesas isto é, meia duzia de paginas, com as alterações para mais e para menos.

O que se torna indispensavel é saber o que tem de se cobrar, e o que tem de se dispender em um determinado anno.

Quando o Parlamento quizer fazei alguma cousa vantajosa, vá ao Ministerio das Obras Publicas, e não auctorize despesa para a construcção de nenhuma estrada nova sem estarem completamente reparadas e concertadas as estradas existentes.

Voltando ao projecto, direi que elle representa um ataque ao Tribunal de Contas.

Referindo-me ao Tribunal de Contas, sinto-me completamente á vontade, porquanto, embora tenha a honra de a elle pertencer, sou um dos seus membros mais humildes e, com certeza, no que vou dizer, estabelecerei apenas um confronto entre o estado actual das cousas e o novo regimen que o projecto do Governo pretende estabelecer.

O Tribunal de Contas é, das poucas estações officiaes portuguezas, uma das que podem considerar-se absolutamente modelares. (Apoiados).

Tem á sua frente um dos nossos mais distinctos funccionarios, o Sr. Ferreira Lobo. (Apoiados). Os serviços são feitos com tal perfeição, que é absolutamente impossivel encontrar-se um erro.

Tem-se dito que o tribunal não exerce a sua fiscalização. É uma asserção inexacta.

O facto de não se dar publicidade a alguns actos evidencia uma grande dose de bom senso.

A proposito, vem a seguinte historia:

Um dia, um funccionario entregou ao fallecido Conselheiro Carrilho uma ordem que vinha do Tribunal de Contas, ponderando-lhe que não estava nos devidos termos.

Carrilho, com o seu olhar penetrante e vivo, olhou para o documento que lhe era apresentado, e limitou-se a dizer: está bem.

Mas, observou-lhe de novo o empregado, falta-lhe o visto.

Carrilho reolhou o documento e retorquiu: «Se não lhe puzeram o visto, é porque não era preciso».

Vamos, porem, ao fundo da questão.

Que é o visto do Tribunal de Contas?

Na reforma de 1898 foi á ultima hora introduzida uma disposição em virtude da qual o Ministro podia, quando o julgasse conveniente, sujeitar as operações ao visto, não antes, mas depois.

Ao Tribunal de Contas só vae o que é simplesmente corrente, ou o que não envolve flagrante illegalidade, mas vae depois. O que envolve illegalidade flagrante não vae.

E quando a administração do Estado se apresenta deante do Parlamento e lhe ousa dizer que faltou ao respeito á lei, já não tem auctoridade nem moralidade para que lhe seja confiada a funcção do visto fiscalizador.

Então um Ministro apresenta-se perante o Parlamento, confessa que a lei de 1898 não foi revogada e não foi cumprida, tendo-se, portanto, atraiçoado a missão do poder legislativo, e quer que lhe confiem a missão fiscalizadora?!

Se é assim que se faz politica nova, se tal conducta é que representa a introducção de principios de extraordinaria moralidade, eu prefiro os Governos passados, porque esses, ao menos, não desacreditavam os seus antecessores. (Apoiados).

Mas, continuando ainda no que diz respeito ao visto, occorre-me perguntar como é que se justificou em 1898 a tão estranha jurisprudencia de que a Direcção Geral da Thesouraria poderia ver-se obrigada a não entregar ao visto previo da estação fiscalizadora determinadas ordens de pagamentos?! Como é que, em 1898, o Parlamento foi illudido e enganado até o ponto de suppor indispensavel o alçapão do visto posthumo? Se o Parlamento não foi enganado, como se deixou sophismar tendo deante de si um principio fundamental?!

A Camara encontra a pag. 110, 112 e 113 do Diario das Sessões da Camara electiva a explicação de tão estranho facto. Dá-a o relator do projecto de lei de 1898, a que me refiro.

Segundo o que disse o relator da lei de 1898, apresentado o principio radidal do visto previo, sobrevieram razões dos technicos internos da Direcção Geral da Thesouraria, os quaes sustentaram como impossivel a applicação completa do visto previo.

Diga-se quaes foram as razões apresentadas, porquanto essas razões foram conhecidas então.

Dizia se que havia operações de credito que necessitavam de solução rapida; que havia de momento determinados supprimentos, os quaes exigiam respostas rapidas; que havia casos em que a Direcção Geral da Thesouraria se via obrigada a realizar uma determinada cobrança financeira sem ter possibilidade sequer de consulta; porque este banqueiro, para aqui; porque assim e porque assado.

Mas sabe a Camara qual era o sophisma infantil em que taes allegações se baseavam? É que no Tribunal de Contas nunca foi, até hoje, documento algum criador de receita, nem criador da divida consolidada, nem criador da divida fluctuante. O que vae ao Tribunal de Contas, aquillo que a legislação portugueza exige que lá vá, não são os documentos de criação de receita, são os documentos de criação de despesa. Não houve emprestimo algum que fosse sujeito ao visto do Tribunal de Contas.

O tribunal tem de pôr o visto em qualquer ordem de pagamento emanada da Direcção Geral da Thesouraria com applicação a uma determinada despesa.

O tribunal não tem que saber se a despesa sae da operação a ou do emprestimo b, se sae do contrato feito no dia 1 ou no dia 2; tem unicamente de saber se a despesa de que se trata está auctorizada por lei.

Repito: o Tribunal de Contas nada tem com a criação de receitas. No exercicio da sua acção fiscalizadora apenas deve conhecer se a despesa que auctoriza é legal.

Tudo o mais, é pura, singela poeira deitada aos olhos dos parlamentares.

A Direcção Geral da Thesouraria, prestada a devida homenagem ao seu chefe, prestada a devida homenagem aos seus funccionarios, que eu admiro pelo seu caracter e intelligencia, está hoje captiva de uma accusação pudica.

A Direcção Geral da Thesouraria

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do Ministerio da Fazenda, repito, postas de parte as qualidades pessoaes do seu director e demais funccionarios, não pode permanecer para sempre no estado em que se encontra perante a opinião, sob a suspeita de acobertar todas as illegalidades sem nome que entenderem dever confiar á sua situação privilegiada e irresponsavel.

O que fez o Governo?

Pegou no visto, tirou-o do Tribunal de Contas e entregou-o a um director geral que é o director geral da Thesouraria; illudiu o Parlamento com pretendidos principios de responsabilidade pessoal, e depois d'isso poz-lhe ao lado o director geral da contabilidade, exercendo umas funcções que, ou o collocam acima do Ministro da Fazenda ou o deixam na sua respectiva situação de funccionario subalterno do mesmo Ministro.

Esta é a primeira grande conquista do projecto em discussão.

Agora, como eu quiz fazer só um discursozinho breve, rapido, agradavel, nada extenso, do qual por isso V. Exas. levem uma boa impressão para o seu jantar, vou passar a outra maravilha do projecto; porem, essa, Sr. Presidente, confesso que me ha de merecer um rapido exame, porque supponho um perigo intellectual entrar em tal discussão.

Refiro me á criação da commissão parlamentar de contas publicas.

Confesso, Sr. Presidente, que não abordo semelhante assumpto sem os mais extraordinarios receios pela quietude da minha pobre cabeça.

Ha cousas que estão acima da minha concepção; mas, emfim, com geito, com arte, com socego, com um bocadinho de trabalho, lá vou andando e comprehendendo; mas d'este assumpto não me approximo sem medo, porque o julgo causa deprimente de uma perfeita sanidade mental.

Emfim, vamos a ver se eu poderei dizer meia duzia de palavras sobre elle.

O Governo trouxe á Camara uma proposta, graças á qual se criava uma commissão de contas publicas, metade da qual sae da Camara dos Senhores Deputados e outra metade sae d'esta Camara.

Agora apparece a emenda que o Sr. Mello e Sousa se dignou collocar sobre a sua égide protectora.

A Camara dos Pares foi eliminada por completo; vigora só a Camara dos Srs. Deputados.

Ha uma commissão de contas composta de seis membros, quatro da minoria e dois da maioria.

Sr. Presidente: já aqui começa a minha pobre razão a luctar com bastantes difficuldades.

Essa commissão elabora um parecer.

Esse parecer é trazido á Camara, é discutido, e depois a Camara toma uma resolução que não terá duvida em approvar, seja ella qual for, porque conheço de ha muito as praxes do Parlamento Portuguez.

Ha uma cousa que é fundamental em todos os Parlamentos que se regem pelo systema representativo, e é que as maiorias é que governam.

Vem um parecer manipulado por uma commissão composta de quatro membros da minoria e dois da maioria; mas a minoria da commissão é a maioria da Camara e a maioria da commissão pertence á minoria da Camara.

Eu estava crente n'estes costumes ancestraes de quem governava nas Camaras eram as maiorias.

Estava habituado, como leader parlamentar, a respeitar os direitos da opposição; mas sabia bem e sei quaes são os poderes das maiorias.

Sei perfeitamente que a minoria era destinada a falar, a estudar e a votar contra.

Conheço perfeitamente as razões politicas que convertem as maiorias de hoje, nas minorias de amanhã: são uma especie de alcatruzes politicos.

Vamos continuando no meu raciocinio, e eu farei toda a diligencia para não perder o pé.

Vamos ver.

Temos, portanto, um excesso de contas.

Temos uma conta publica que é presente ao Parlamento.

Essas contas são submettidas á Camara dos Senhores Deputados.

Até aqui vae muito bem.

Depois essas contas vão a uma commissão que é composta de quatro membros da minoria da Camara e de dois da maioria da mesma Camara.

Essa commissão começa a funccionar.

Dois membros da maioria com quatro da minoria fazem seis, e mais um que é o Presidente são sete.

Muito bem.

A maioria da commissão, que é a minoria da Camara, resolve num; certo sentido; mas a minoria d'essa commissão, que pertence á maioria da Camara, vem depois na mesma Camara confirmar as suas opiniões ali exaradas e fazer que a maioria da Camara seja contraria ao voto da maioria da commissão.

Eu, Sr. Presidente, vou fazendo estas considerações com muita reserva e com muita cautela, porque realmente estou com receio de perder o juizo. (Riso}.

Continuemos.

Temos, portanto, uma commissão cuja minoria pertence á maioria da Camara e cuja maioria pertence á minoria da mesma Camara.

Supponha V. Exa., que d'esta commissão, que está funccionando no intervallo das sessões, morre um dos quatro membros.

Ficam tres da maioria, e tres da minoria, mas como o presidente tem voto de desempate, aqui tem V. Exa. como a maioria passa a ser minoria, e a minoria, maioria.

Mas ha mais. Supponha V. Exa. que um dos membros da maioria se lembra de mudar de opinião, porque, emfim, a versatilidade não é um attributo exclusivo do Sr. João Franco. (Riso).

Se um Deputado se lembra de apresentar hoje uma opinião contraria á que professava hontem, se, mudando de opinião, muda de voto, lá temos que, a minoria se transforma em maioria e a maioria em minoria.

Supponha ainda V. Exa. que ha mudança de Governo.

N'este caso as maiorias do Governo transacto são opposição ao novo Governo.

Como é então que se procede?

Sae a commissão da maioria que não ha de mais tarde converter-se em minoria, ou sae da minoria que depois se transforma em maioria?

Ah, Sr. Presidente, chegando a esta altura já não sei o que é nem maioria, nem minoria.

Chegado a está altura eu só tenho vontade de pedir uma cousa a V. Exa., Sr. Presidente, e é que me mande agarrar, ou prender, porque, fallando mais dez minutos, posso ir para a Rilhafolles. (Riso).

(O Digno Par foi cumprimentado por muitos Dignos Pares).

(S. Exa. não reviu).

O Sr. Presidente: - Vae ler-se a proposta de adiamento mandada para a mesa pelo Sr. Hintze Ribeiro.

(Leu-se na mesa).

Os Dignos Pares, que approvam a emenda, que acaba de ser lida, tenham a bondade de se levantar.

Pausa, e depois de verificar a votação:

Está rejeitada.

Em seguida foi lido na mesa e approvado o parecer.

O Sr. Presidente: - Tenho a dizer ao Digno Par o Sr. Jacinto Candido, que os documentos a que V. Exa. se referiu no começo da sessão não se encontram na secretaria nem em forma de projecto nem em representação.

A proximo sessão é 2.ª na feira, e a ordem do dia a que estava dada para hoje.

Está levantada a sessão.

Eram 5 horas e 55 minutos da tarde.

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Dignos Pares presentes na sessão de 23 de fevereiro de 1907

Exmos. Srs.: Sebastião Custodio de Sousa Telles; Marquezes: de Avila e de Bolama, de Pombal; Condes: de Arnoso, do Bomfim, do Cartaxo, de Castello de Paiva, de Paraty, de Villa Real, de Villar Secco; Viscondes: de Athouguia, de Monte São, de Tinalhas; Moraes Carvalho, Alexandre Cabral, Antonio de Azevedo, Eduardo Villaça, Costa e Silva, Santos Viegas, Teixeira de Sousa, Telles de Vasconcellos, Campos Henriques, Carlos Maria Eugênio de Almeida, Eduardo José Coelho, Ernesto Hintze Ribeiro, Mattoso Santos, Veiga Beirão, Coelho de Campos, Dias Costa, Francisco Machado, Gama Barros, Jacintho Candido, João Arrovo, Teixeira de Vasconcellos, Mello e Sousa, Avellar Machado, José Dias Ferreira, José Lobo do Amaral, José Vaz de Lacerda, Julio de Vilhena, Luciano Monteiro, Pimentel Pinto, Pessoa de Amorim, Poças Falcão, Affonso de Espregueira, Raphael Gorjão, José de Azevedo e Wenceslau de Lima.

O Redactor,

FELIX ALVES PEREIRA.

Memorial a que se refere o discurso do Digno Par Jacinto Candido

Illmo. e Exmo. Sr. - Estando provado o alto interesse que V. Exa. dedica aos assumptos do paiz e em especial aos das colonias, tenho a honra de submetter á sua apreciação alguns casos dos muitos que se passam ali com as forças ultramarinas e expor as tristissimas condições em que se encontra o exercito colonial depois da lei de 14 de novembro de 1901, e rogar a V. Exa. que, com as altas qualidades de que é dotado e rectidão que caracteriza todos os seus actos, advogue a sua causa, que é a de centenas de desprotegidos, inqualificavel e systematicamente votados a um desprezo que não tem razão de ser, e antes, a exemplo do que se dá em todos os paizes coloniaes, deveriam ser olhados com bons olhos e cheios de todos os beneficios e honras, de que são ou devem ser dignos todos os cidadãos que, voluntaria e livremente, se dedicaram tanto á sua patria, que não tiveram duvida em ir para as suas colonias de alemmar, em alguns pontos bem inhospitas e mortiferas, passar todo o tempo valido da sua vida e que se vêem hoje tratados pela lei citada, não como filhos dilectos mas como filhos espurios ou mesmo como deportados por graves delictos, em que o principal foi certamente o terem-se offerecido para servir naquelle exercito, isto, está entendido, em face das regalias e proventos que o mesmo decreto confere aos officiaes do exercito da metropole que ali vão servir com posto de accesso e por periodos de dois ou quatro annos, no maximo!

Isto porque a mesma lei os não deixa aqui ficar sem preterição ou porque são tão pequenas as responsabilidades para os que desistem que vale a pena tentar a excursão a taes paizes pelos proventos e garantias que lhes adveem.

Assim, vou fazer um rapido esboço da lei, na parte que diz respeito aos officiaes unicamente, pois para os officiaes inferiores foi boa garantia de futuro, e depois de V. Exa. veias desigualdades frisantes e humilhantes que existem entre os que para ali foram, obrigando-se a estar no ultramar vinte e cinco annos, pelo menos, da sua vida e os que cheios de garantias teem apenas obrigação de estar dois ou quatro annos, estou convencido que V. Exa. muito mais se interessará por aquelles officiaes, que tão mal vistos são e tantos e tão relevantes serviços teem praticado em longinquas paragens e que tiveram a infelicidade de servir um paiz em que parece ser desprezo o ser-se official das colonias, apesar de serem ellas que fizeram D. Francisco de Almeida, Affonso de Albuquerque, Mousinho e muitos outros, e que como elles tiveram a veleidade de ir sustentar o nome portuguez em tão remotos paizes, perpetuando aquelles nomes.

Não tem em vista esta exposição melindrar pessoas, e unicamente frisar as resultantes desigualdades que a lei de 14 de novembro de 1901 traz para uns e outros, camaradas que militam e combatem juntos, e ao mesmo tempo dizer que a referida lei em nada melhorou as condições do Thesouro, como diz no seu relatorio, e antes as aggravou, e quanto a disciplina foi sensivelmente desprestigiá-la, collocando officiaes desempenhando serviços analogos com taes desigualdades de vencimento que os subordinados ganham mais do que o seu commandante, e portanto poderem esses subordinados sustentar, pelas condições economicas, muito melhor o decoro devido ás suas fardas do que o seu commandante, a quem vexam, por ganhar mesquinhamente, e que vive manifestamente acabrunhado, debaixo da oppressão natural da falta de recursos pecuniarios e á mercê de pequenos favores do commercio e dos senhorios! É triste, mas são infelizmente communs estes factos.

Diz a lei referida num extenso relatorio e com justificada razão que o exercito ultramarino não satisfazia ás necessidades para que tinha sido criado, por estar mal organizado, e n'este ponto concorda o autor d'esta exposição; mas, se é certo que elle como estava não era bom, tambem é certo que a sua passagem a companhias independentes peorou notavelmente, pela dispersão do que restava de tão prestimoso exercito, por isso que nos batalhões ainda podia satisfazer-se a todas as necessidades da instrucção e manter-se a disciplina, dando em resultado saber o soldado os seus deveres e os officiaes a tactica; hoje com as companhias isoladas, como teem que guarnecer grandes extensões de territorio, postos militares e destacamentos, tudo desappareceu, o soldado, tirado o tempo quasi sempre escasso para aprender a recruta, nunca mais tem occasião de fazer um exercicio, esquecendo a breve trecho o que aprendeu! Os officiaes e officiaes inferiores naturalmente teem por unico serviço o serviço interno da companhia e alguma guarda de honra, que para constituir é necessario recolher as guardas da guarnição, e posso affirmar a V. Exa. que, a não ser uma ou outra companhia nas capitães e as que andam em campanha, nenhuma desde a sua organização actual teve um unico exercicio! Não é porque os officiaes que as commandam os não queiram dar ou lhes falte a iniciativa, mas porque não teem nunca as praças necessarias para constituir um pelotão!

Mas o meu fim não é tratar da sua constituição, o que tornaria esta exposição muito extensa, e unicamente frisar as desigualdades com que são tratados os officiaes da metropole que vão servir nas colonias em relação aos que compõem o exercito colonial, e assim temos o artigo 6.° que obriga por offerta os officiaes a ir da metropole por dois ou quatro annos servir nas colonias, mas dá-lhes o posto de accesso e portanto aos primeiros sargentos e sargentos ajudantes dá-lhes o posto de alferes, o que se deu com muitos dos actuaes officiaes que passaram ao serviço no ultramar n'essas condições. Mas no § 2.° do mesmo artigo vem: que o tempo de serviço nas colonias é para aquelles contado desde a data do seu embarque, o que já não succede aos officiaes do exercito colonial, em que o tempo é só contado desde a sua apresentação no quartel general da provincia!

Mas diz a lei citada, no artigo 16.°, que os officiaes que forem desempenhar commissões ordinarias de serviço militar no ultramar terão, alem dos soldos e das gratificações da sua patente e arma ou serviço, a subvenção mensal designada na tabella seguinte:

Coronel 100$000

Tenente-coronel 80$000

Major 80$000

Capitão 60$000

Tenente 45$000

Alferes 36$000

E no § 1.° :

«Estas subvenções terão o augmento de 50 por cento quando os officiaes servirem na provincia de S. Thomé e Principe e no districto de Lourenço Marques, e o de 30 por cento quando servirem na provincia da Guiné e nos districtos do Congo, Lunda, Zambezia e Timor», quando é certo que para os officiaes das colonias dá apenas os vencimentos estabelecidos no artigo 23.°, que diz:

«Terão direito a mais 50 por cento sobre o soldo quando servirem em S. Thomé e Principe ou Lourenço Marques; a mais 30 por cento quando servirem na Guiné, Lunda, Congo, Zambezia ou Timor 5 e a mais 25 por cento quando servirem nos restantes districtos de Angola e Moçambique».

Dando os seguintes vencimentos, que comparo apenas entre as provincias de Angola, S. Thomé e Congo, a fim de V. Exa. poder bem avaliar as desproporções que existem no pagamento entre uns e outros officiaes, quando a final vão desempenhar juntos serviços identicos; e em regra é ao official colonial que collocam nos pontos mais insalubres e onde existem maiores difficuldades em se manter e onde se passam sempre as maiores privações pela carestia dos generos do primeira necessidade, factos que não podem ser contestados, e alguns poderia apontar a V. Exa.

Eis pois a tabella comparativa dos vencimentos dos officiaes do exercito da metropole, que vão servir por 2 ou 4 annos as colonias, com posto de accesso e ajudas de custo de ida e regresso, e o dos officiaes das colonias, que ali passam toda a sua vida, não mencionando a uns e outros os vencimentos de gratificações e subsidios que são identicos:

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[ver valores da tabela na imagem]

Pela tabella finda vê V. Exa. que um coronel vindo da metropole recebe em S. Thomé o dobro do seu camarada colonial! e que o mesmo succede com o capitão, e no posto de major, recebe o do exercito do reino mais ao do dobro ! pois o excede em 12$000 réis! Será isto razoavel e justo? E não obstante são na generalidade europeus ou pela lei assim considerados! Que razão ha para pagar a officiaes no mesmo posto e de igual procedencia, tendo unicamente como differença uns servirem toda a vida as colonias e outros virem por um pequeno periodo de annos, pagar áquelles, que mais depauperados estão por essa permanencia, menos do que a estes que por tão pouco tempo servem nas colonias?

Mas as desigualdades de vencimento são muito mais frisantes quando se dê o facto de, acabado o primeiro periodo da commissão, o official desejar continuar ao serviço das colonias, ou por ter sido promovido na Europa, pois o artigo 9° estabelece mais 20 por cento sobre o soldo e gratificações da patente, o que lhes traz um augmento extraordinario nos vencimentos, a todos áquelles que tenham a sorte de gozar saude e lhes acceitem que continuem em commissão no ultramar, isto sem que a organização dê o minimo augmento ao official colonial, mesmo no fim de 25 annos de serviço nos sertões de alem-mar ou em pessimos climas!

Mas ainda não para aqui! Pois a lei no artigo 14.° dá para os officiaes que vão servir temporariamente ás colonias, alem das garantias do decreto de 22 de agosto de 1887, mais 5 por cento, por cada periodo de 3 annos de serviço nas colonias, sobre o soldo no acto da reforma, o que dá excellenles reformas a todo aquelle que tiver boa construcção e robustez para poder ali servir muitos annos, e apresento o seguinte exemplo: um official vae para as colonias em subalterno e está lá 4 annos, em capitão está 2, em major e tenente-coronel, 4 e ainda 2 em coronel ou sejam 12 annos; aborrece-se e já tendo o tempo, reforma-se em general de brigada, e como teve aquelle tempo nas colonias tem, em vista do artigo referido, mais 20 por cento sobre o soldo de general, ou seja 18$000 réis, que junto ao soldo dá 108$000 réis!

Que succede parallelamente a um coronel do exercito colonial no fim de 25 annos de serviço consecutivo ou ainda mais tempo depois de estar completamente depauperado pelos climas pessimos e privações passadas? Recebe o soldo unicamente! O soldo de réis 90$000, menos os descontos naturaes, augmentados com as perpetuas medidas de salvação publica e ainda algum desconto por adeantamentos que forçadamente contrahiu por falta de meios; não poupando áquelles descontos mesmo os officiaes que se inutilisaram pela Patria em tão longinquos paizes, como se 25 annos de colonias não fosse já bastante tributo.

Mas é ainda mais frisante a differença, visto que para es primeiros ha ainda a faculdade de continuarem no serviço e só se reformarem com 35 annos, e quando em generaes de divisão, é ainda com o augmento de 10, 15 ou 20 por cento sobre o soldo no acto

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SESSÃO N.° 28 DE 23 DE FEVEREIRO DE 1907 279

da reforma! Pois o mesmo artigo não dá limite, n'este ponto, emquanto que, para os officiaes coloniaes, já não succede o mesmo, pois teem forçadamente de se reformar em coroneis no posto de general de brigada, muito embora fosse de necessidade que o exercito colonial se augmentasse, constituindo divisões e estas sob o commando natural de generaes.

Ainda o artigo 19.° dá aos officiaes que vão servir nas colonias direito a deixar uma pensão a suas familias, e que lhes é integralmente paga pelo Ministerio da Marinha, o que é muito bem legislado, pois que a transferencia de dinheiros nem sempre é facil ou possivel e é sempre dispendiosa. Mas, se um official do ultramar quiser deixar aos seus alguma pensão, tem de recorrer ao Banco Nacional Ultramarino, que lhe leva de l/2 a 2 por cento pela transferencia, ou a vales de correio em que paga 4 por cento, embora a lei mande pagar 2, ou a cartas de valor declarado, em que, alem do premio que paga ao correio, tem ainda em Lisboa o desconto de 2 por cento, pois as notas do Banco Ultramarino e de qualquer provincia não são acceites pelo Banco emissor sem desconto!

Pois a lei de 1901 entende que os officiaes coloniaes não necessitam de enviar dinheiros a suas familias, o que é afinal bem deduzido e logicamente razoavel, que as familias de officiaes miseravelmente pagos vivam aqui na Europa na miseria, pois as pensões mesquinhas que mandam, pelo pouco que podem enviar, são oneradas ainda com os premios de transferencia, quando não acontece haver ainda extravio e estarem as familias d'estes officiaes mezes e mezes, e um caso sei de um anno, sem nada receberem, e as reclamações nem sempre são attendidas ou são-no sempre depois de muitas privações e desgostos se terem passado.

Por outro lado, a mesma lei estabelece no artigo 27.° os subsidios de marcha e residencia para officiaes, o que é lei antiga, mas no § 3.° frisa que esse subsidio não pode exceder a 4 mezes em cada anno!

D'esta sorte, um official que destaque para os confins de Benguella, e que leve 2 mezes de ida, tem a infelicidade de adoecer e é obrigado a regressar, consumindo só n'estes dois trajectos o tempo de subsidio estabelecido na lei!

Depois de restabelecido é nomeado para destacar, ou vae para campanha, e como já consumiu os 4 mezes e dentro de um anno não tem direito a mais, pode soffrer privações á vontade e até morrer de fome!

Pergunta-se:

Tem aquelle official culpa de ser tão pouco feliz, que o destacassem para ponto tão distante e tão pessimo clima, e consumisse mais tempo n'essa travessia do que o necessario para ir de Lisboa a Macau?

E para, depois de ter saido a salvo de tão arriscada travessia, ficar privado de, no periodo de um anno, receber subsidio de marcha ou residencia, que lhe attenue as despesas de viagem, sempre superiores aos subsidios que o Governo confere?

Não, não é justo, e assim tambem o não é para aquelles que destacam para o interior ou vão guarnecer postos militares, pois a carestia da vida toca, as raias do inverosimil, havendo artigos de primeira necessidade que quadruplicam de preço e o sal chega a custar vinte vezes o seu valor no littoral!

Outra desigualdade commette a lei no § unico do artigo 29.°, vedando aos officiaes naturaes das colonias e filhos de pães não europeus o virem gozar as licenças graciosas á Europa, como suceedia anteriormente, privando assim alguns (pois são poucos) de virem a Portugal, ao paiz que servem, e consequentemente de se instruirem, como é natural, visitando paizes cultos, não trazendo essa medida senão uma mesquinha economia comparada com a justa recompensa que dava aos seus servidores de alem mar; quando é certo que a lei, que priva estes, faz gastar em ajudas de custo a officiaes, premios de alistamento a praças de pret e passagens a uns e outros para as colonias e regresso á metropole deu vezes mais do que se gastava antes d'esta organização; sendo menos certo o que no relatorio diz sobre o acabamento de expedições, pois até n'isso foi prodiga, lendo se constantemente nos jornaes que partiu ou vae partir mais uma expedição de officiaes e praças para substituir as que nas colonias acabavam o tempo, ou chegou n'este ou n'aquelle paquete um contingente de tantos officiaes, sargentos e cabos e soldados que regressam d'esta ou d'aquella provincia! Um nunca acabar!

E aquelle facto deve ser pernicioso, sendo a antithese do que se pratica nos paizes coloniaes cultos, principalmente a Inglaterra e a Hollanda, que por todos os modos procuram arraigar o sentimento da sua nacionalidade no espirito dos seus filhos das colonias, proporcionando lhes, por todas as formas, maneira de conhecerem o seu paiz e de os tornar briosos, chamando-os a si; Portugal praticando o contrario leva-os a concluir facilmente que não é paiz que lhes sirva, enfraquecendo naturalmente o seu amor patrio; desnacionalizando-os, tira-lhes assim todo o incentivo de se tornarem prestaveis e de o virem a servir com vantagem, quando são tão pouco considerados.

Determina o artigo 143.° que os officiaes do deposito de praças do ultramar sejam de infantaria com o curso da respectiva arma, e o artigo 196 ° que igualmente tenham este curso os que fazem parte da 4.ª Repartição do Ministerio da Marinha e Ultramar, isto é, veda por completo a entrada aos officiaes do ultramar, que ficam assim privados de, por falta de saude, virem estar temporariamente em serviço na Europa, onde se restabeleceriam e se reconstituiriam, não perdendo os vencimentos, o que já não succede com uma licença da junta de saude; é pouco justo, porque bastantes officiaes do exercito de Portugal em serviço nas colonias com posto de accesso não teem curso da arma e entre os alferes que d'aqui vão (sargentos promovidos) apontam se os que o tenham, se algum ha que o tem

Parece, pois, justo que fossem modificados aquelles artigos na nova organização, pois ha no ultramar officiaes com longa folha de serviços, alguns relevantes, e tão prestimosos como no exercito no reino, e que estariam no caso de poder fazer serviço de fileira no deposito de praças do ultramar, o que não tem nada de transcendente, ou na 4.° Repartição do Ministerio do Ultramar, em que o curso da arma para cousa alguma é necessario, e como prova do que cito ha o facto de virem os capitães fazer o seu tirocinio para major a Mafra e terem até hoje, apesar das provas exigentes a que os sujeita a lei para officiaes sem curso, dado prova cabal dos seus conhecimentos tacticos e militares, por tal forma que os seus camaradas da metropole os teem até agora classificado aptos para serem promovidos aos postos immediatos.

Ainda no § unico do artigo 143.° já referido vem determinado que os officiaes subalternos ao serviço no deposito de praças do ultramar, quando commandem divisão, teem direito á gratificação meneai de l0$000 réis de exercicio, quando nas colonias o subalterno que eventualmente commande companhia recebe apenas 5$000 réis ! Será por ser o serviço em Lisboa mais espinhoso que o das colonias?

No artigo 173.° obriga os officiaes a permanecerem um certo numero de annos em cada posto para poderem ser promovidos.

Não se concebe qual o fim de uma semelhante disposição, porquanto é ella um incentivo á relaxação e desgosto, quando é certo que todo o official tem obrigação de se tornar apto no menor prazo a ascender ao posto immediato, e não ha senão vantagens em promover o gosto e natural desejo de ascender os postos superiores, juntando-se que é uma grave injustiça manter para com os officiaes coloniaes uma lei de excepção e vexatoria a todos os respeitos. E, se attendermos a razão do accesso mais rapido nas colonias, esta injustiça toma elevadas proporções, quanto é elle devido ao numero extraordinario de obitos e inevitavel depauperamento que obriga á reforma muitos officiaes que na metropole se conservariam em bom estado, o que equipara o serviço das colonias ao serviço permanente de campanha.

Parecendo que nesta exposição V. Exa. poderá avaliar o que se passa com as forças ultramarinas, vou terminar pedindo a V. Exa. que considere esta exposição como a expressão rude da verdade e sem a menor intenção de melindrar quaesquer individualidades. Tenho a honra de me confessar com a mais alta consideração e respeito. - Illmo. e Exmo. Sr. Conselheiro Jacinto Candido da Silva. = Um Colonial.

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