O texto apresentado é obtido de forma automática, não levando em conta elementos gráficos e podendo conter erros. Se encontrar algum erro, por favor informe os serviços através da página de contactos.
Página 293

CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

SESSÃO N.° 30

EM 26 DE FEVEREIRO DE 1907

Presidencia do Exmo. Sr. Conselheiro Sebastião Custodio de Sousa Telles

Secretarios - os Dignos Pares

José Vaz Correia Seabra de Lacerda
Francisco José Machado

SUMMARIO. - Leitura e approvação da acta. - Expediente. - O Digno Par Sr. Ernesto Hintze Ribeiro refere-se a acontecimentos politicos occorridos no concelho de Pombal, classificando-os de perseguições contra os seus correligionarios. Responde-lhe o Sr. Ministro da Justiça. - O Digno Par Sr. Raphael Gorjão pede a comparencia do Sr. Ministro da Marinha para assumpto urgente. - O Digno Par Sr. Jacinto Candido occupa-se de um processo judicial relativo ao passal do parocho de Santa Comba de Regilde, e pede que se adopte uma providencia que obste a repetição de casos identicos; tambem insta por que seja dado parecer sobre o projecto que apresentou com respeito á alienação de terrenos marginaes do Tejo no porto de Lisboa. Respondem-lhe o Sr. Presidente da Camara e o Sr. Ministro da Justiça.

Ordem do dia - Continuação da discussão do projecto de lei que regula a liberdade de imprensa. - Usa da palavra durante toda a sessão o Digno Par Sr. Julio de Vilhena. - O Sr. Presidente dá para ordem do dia a mesma que vinha para hoje, e levanta a sessão.

Pelas 2 horas e 35 minutos da tarde, o Sr. Presidente declarou aberta o sessão.

Feita a chamada, verificou-se a presença de 26 Dignos Pares.

Foi lida, e approvada sem reclamação, a acta da sessão anterior.

Mencionou-se o seguinte expediente:

Officio do Ministerio da Fazenda relativo a documentos requeridos pelo Digno Par Sr. Conde de Villa Real.

O Sr. Ernesto Hintze Ribeiro: - Sr. Presidente, quando hontem o Sr. Ministro da Justiça respondia ou julgava responder ao Digno Par Sr. Campos Henriques, eu fui levado a fazer uma interrupção referente ao delegado que S. Exa. transferiu para S. Pedro do Sul.

Não era a primeira vez que eu me referia a esse funccionario.

Já anteriormente o tinha feito pondo em evidencia o procedimento, no meu entender, menos regular do Governo, permittindo que esse funccionario durante largo tempo não exercesse as suas funcções na comarca para que fôra nomeado, consentindo até que, apesar de transferido, elle se conservasse em Pombal.

Eu não voltaria novamente ao assumpto, ter-me-hia abstido de toda e qualquer referencia a esse funccionario, deixando de interromper o Sr. Ministro da Justiça, se affirmações de amigos politicos me não mostrassem qual o motivo da conservação do mesmo funccionario fora das comarcas para que tem sido nomeado.

Coincidem com a sua estada em Pombal as maiores violencias e vexames contra amigos meus.

Pergunto: perante taes factos posso ficar calado?

Em Pombal o que se está fazendo excede os limites de uma acção juridica regular e a natural divergencia entre individuos que militem em partidos oppostos.

Os meus amigos politicos estão sendo ali victimas de perseguições successivas, de vexames constantes, e contra isso comprehende V. Exa. que é meu dever protestar.

Vou citar factos.

Foi demittido o medico do partido, Manoel Ferreira Machado; foi demittido o secretario e um official da administração do concelho; foi demittido um amanuense da Camara Municipal; foi preso um typographo de um jornal politico da localidade; e para nada se poupar até se tem procurado fazer uma syndicancia ao professor da terra.

São factos de todos os dias.

Contava hoje com a presença do Sr. Presidente do Conselho para me referir a todos estes assumptos.

Mas S. Exa. não compareceu, e eu recebi um telegramma que não posso deixar de tornar immediatamente conhecido da Camara.

É do teor seguinte:

(Leu).

O delegado em S. Pedro do Sul é aquelle a que acabo de me referir.

Tal é, Sr. Presidente, a liberdade de imprensa que nós estamos vendo apregoada e acatada pelo Governo!

É um bom commentario ao projecto em ordem do dia.

Ha em Pombal um jornal politico, regenerador.

Segundo informações que tenho de amigos meus, o administrador d'esse jornal é amanuense da Camara Municipal.

Este cavalheiro foi instado para deixar de defender os interesses da politica em que milita, e como não consentiu n'isso foi suspenso e logo, sem culpa formada, sem motivo conhecido, demittido do seu cargo.

Para que a demissão se pudesse effectuar, segundo as informações que tenho, foi dada ordem ao secretario da Camara para passar uma certidão incompleta, na qual apenas se dizia que esse empregado estava ausente, sem se dizer que era por motivo de doença, aliás comprovada com documento legal.

Página 294

294 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

O perseguido, Sr. Alberto Barreiros, no uso do seu direito, veio para o jornal era que escrevia narrar e commentar os factos segundo o seu criterio.

Isto, Sr. Presidente, serviu de base para outro processo.

O Sr. Barreiros foi publicamente provocado na villa pelo secretario da camara, com o intuito de dar pretexto á sua prisão; mas, como esta não pudesse effectuar-se, mandou-se cercar a casa em que elle morava.

Parece-me, Sr. Presidente, que não é assim que se respeita a liberdade de imprensa e que se respeitam as garantias individuaes.

Já vê o Sr. Ministro da Justiça quanta razão eu tinha para o interrompei com um aparte.

Peço providencias contra estes abusos que não se podem admittir, principalmente quando estamos discutindo um projecto de lei relativo á liberdade de imprensa.

Espero que o Sr., Ministro da Justiça e o Sr. Ministro do Reino tomem as providencias que estes acontecimentos reclamam urgentemente.

(O Digno Par não reviu).

O Sr. Ministro da Justiça (José Novaes): - Sr. Presidente: agradeço ao Digno Par as minuciosas indicações que me deu e que eu não conhecia.

Posso affirmar a S. Exa. que, logo que termine o prazo legal, que aquelle delegado tem para tomar posse do seu logar na comarca de S. Pedro do Sul, providenciarei para que sem demora o faça.

Eu desconhecia os acontecimentos narrados pelo Digno Par, mas, desde que os sei pela voz de S. Exa., adoptarei todas quantas providencias forem necessarias para que a lei seja mantida e respeitada plenamente.

Fique o Digno Par certo d'isso.

(S. Exa. não reviu).

O Sr. Raphael Gorjão: - Sr. Presidente: pedi a palavra para instar pela presença do Sr. Ministro da Marinha, a quem desejo dirigir algumas perguntas sobre assumpto que julgo urgente e importante.

O Sr. Presidente: - Já instei pela presença do Sr. Ministro da Marinha, mas vou instar novamente.

O Sr. Ministro da Justiça (José Novaes): - Unicamente por motivo de serviço publico tem deixado de comparecer n'esta Camara o meu collega da Marinha.

Mas tão depressa quanto lhe seja possivel, virá dar ao Digno Par Sr. Gorjão todas as explicações que S. Exa. desejar.

O Sr. Jacinto Candido: - Sr. Presidente: aproveitando a presença do Sr. Ministro da Justiça, chamarei a sua attenção para um assumpto a que já me referi ha dias.

Trata se de um pleito judicial para revindicação de um passal pertencente á freguesia de Santa Comba de Regilde.

N'essa occasião solicitei do Sr. Ministro das Obras Publicas o favor de entregar a S. Exa. o numero de um jornal em que se reclamavam da solicitude do Governo providencias efficazes acêrca da interpretação que tem sido dada pelos tribunaes em questões relativas aos passaes dos parochos.

O Sr. Ministro da Justiça certamente conhece o facto de serem usurpados pelos vizinhos alguns dos terrenos constitutivos dos passaes, e dos agentes do Ministerio Publico não promoverem, sem a assistencia dos parochos, que assim são obrigados, com grande sacrificio, a fazer face ao custeio de longas e dispendiosas demandas.

Os agentes do Ministerio Publico não dão andamento aos processos se os parochos não forem parte.

Mas ha quem entenda que o Ministerio Publico deve intervir independentemente da acção do parodio, posto que outros entendam de modo diverso.

Eu chamo a attenção de S. Exa. para este assumpto, e peco-lhe que mande expedir uma circular ordenando aos procuradores regios que dêem instrucções aos delegados para elles seguirem, junto dos tribunaes, as acções necessarias em defesa e revindicação dos bens dos passaes, e para que levem recurso até o Supremo Tribunal de Justiça, independentemente da acção dos parochos.

E se o Supremo Tribunal de Justiça julgar boa esta jurisprudencia, fica assente qual é o caminho a seguir de futuro; se, pelo contrario, o Supremo Tribunal entendesse que esta especie de pleitos importa a comparencia dos parochos, então seria occasião de recorrer aos meios legislativos.

De qualquer modo estabelecer-se-hia uma norma a seguir nos casos occorrentes.

O que me parece indispensavel é fixar doutrina certa.

Sr. Presidente: eu queria ainda pedir a V. Exa. o favor de chamar a attenção da commissão de obras publicas d'esta Camara para um projecto que tive a honra de mandar para a mesa acêrca da alienação de terrenos marginaes do Tejo.

Apresentei esse projecto por entender de conveniencia publica o não permittir mais alienações d'aquelles terrenos, porque essas alienações representam um grave prejuizo para os interesses do Estado.

Esta minha opinião foi confirmada por muitas pessoas que tambem entendem que pode ser necessaria qualquer modificação no plano das obras do porto de Lisboa, sendo que o Estado, a dar-se este caso, ver-se-hia obrigado a rehaver terrenos que eram seus e que tinha alienado.

Solicito de V. Exa. que chame a attenção da respectiva commissão para o meu projecto, a fim de que ella dê sobre elle parecer.

Na verdade ha pouca solicitude em todos os trabalhos parlamentares pelo que respeita a projectos de iniciativa particular ou individual.

Desde que venha um projecto de lei de iniciativa do Governo, as commissões reunem-se logo e dão o seu parecer, sem perda de tempo; mas tratando se de um projecto da iniciativa de qualquer membro do Parlamento, é certo que esse projecto dormirá no seio das commissões.

E preciso, portanto, que nós revindiquemos as nossas prerogativas como membros de um poder do Estado, e prezemos a dignidade dos corpos legislativos em nós mesmos, pois que d'elles fazemos parte.

Quando eu reclamo um parecer sobre o projecto de lei que tive a honra d« mandar para a mesa, faço-o em nome da soberania nacional e zelando a dignidade do poder legislativo, que é preciso fazer sair do torpor em que anda abatida.

Isto não pode ser, nem deve ser.

Chamo a attenção de V. Exa. para o assumpto, e peço á respectiva commissão que tome em consideração o projecto de que se trata, embora de parecer negativo.

Mas deixá-lo jazer no esquecimento é uma offensa ás legitimas iniciativas parlamentares.

(O Digno Par não reviu).

O Sr. Ministro da Justiça (José Novaes): - Por diversas vezes tenho recebido solicitações de parochos para attender a questão a que o Digno Par se referiu.

Como essa questão é susceptivel de interpretações differentes, acceito o alvitre da circular e mandarei ouvir a Procuradoria Geral da Corôa, a fim de se assentar n'uma doutrina definitiva.

(S. Exa. não reviu).

O Sr. Presidente: - Sou informado de que o Sr. Presidente do Conselho não pode vir hoje a esta Camara, como desejava o Digno Par Sr. Julio de Vilhena, porque na Camara dos Senhores Deputados está pendente uma discussão a que S. Exa. tem de assistir.

Página 295

SESSÃO N.° 30 DE 26 DE FEVEREIRO DE 1907 295

Vae passar-se á

ORDEM DO DIA

Continuação da discussão do projecto de lei que regula a liberdade de imprensa

O Sr. Julio de Vilhena: - Ouvi copa o respeito e a consideração que V. Exa. nos merece a declaração que acaba de fazer. Desde que S. Exa. o Sr. Presidente do Conselho por serviço ministerial aqui não póde comparecer, eu não tenho outro remedio senão acceitar essa deliberação.

Mas devo dizer que, embora eu não seja tão extenso na parte politica do meu discurso, como o seria se S. Exa. estivesse presente, não posso, comtudo, privar-me por esse facto de apresentar as considerações que julgar convenientes, em relação ao assumpto que se discute.

Está presente o Sr. Ministro da Justiça e S. Exa. naturalmente se encarregará de transmittir as minhas palavras, sobretudo na parte politica; e em qualquer occasião o Sr. Presidente do Conselho me responderá, se assim o entender, acceitando eu de bom grado hoje ou amanhã essa resposta.

Sr. Presidente: quem olhar para o projecto sujeito ao debate parlamentar, encarando-o nos seus lineamentos geraes, ha de observar que existe n'elle uma disposição que sobreleva a todas, que sobre todas se impõe, e é para assim dizer o ponto culminante do projecto. Essa disposição é aquella que manda reunir n'um dia de cada semana os agentes do Ministerio Publico dos diversos districtos criminaes de Lisboa, a fim de inquirir e investigar, examinando escrupulosamente, se qualquer publicação da imprensa periodica encerra alguma offensa a Chefes de Esdo estrangeiros, aos seus representantes diplomaticos ou ao imperante e membros da sua familia.

Este é indubitavelmente o ponto do projecto que a todos sobrepuja.

Ora, Sr. Presidente, porque é isso? Quaes são as razões d'esta modificação na lei actual?

Até agora essa inquirição era feita pelo poder executivo, era feita pelo Governo, e era elle que julgava conveniente, ou não, perseguir ou intentar qualquer acção contra os que violavam no ponto a que me refiro as leis em vigor.

D'aqui em demite uma corporação especial tem de reunir-se uma vez por semana para observar se houve alguma offensa ao Rei, á Familia Real, ao Soberanos das nações estrangeiras e aos seus representantes.

Porque se faz isto?

Sendo a politica uma sciencia experimental e não se devendo fazer leis que não sejam, reclamadas pelas exigencias do momento, é me licito perguntar se ha porventura necessidade de se estabelecer uma disposição nova em relação a este assumpto?

Haverá motivo de ordem politica ou de qualquer ordem que exija uma legislação excepcional para punir aggravos aos Chefes das nações estrangeiras?

Não o descubro por mais que o procure.

Os soberanos estrangeiros são sempre acolhidos entre nós com o respeito que se deve a hospedes illustres, e palavras de justo elogio e merecida deferencia tem sempre para elles a imprensa do país.

Será necessario fazer uma nova lei para castigar aggravos aos agentes diplomaticos acreditados em Portugal?

Tambem não, porque a imprensa somente se occupa d'elles para lhes elogiar as qualidades ou para lhes celebrar as festas elegantes.

Não é, pois, este o fim da lei que e propõe.

Deve ser e é realmente outro. Nós remos atacada todos os dias a pessoa do Rei. Censuras acres por vezes, phrases menos respeitosas lhe dirijem alguns orgãos da imprensa jornalistica.

Esse é o facto que ninguem pode contestar, porque é evidente aos olhos de todos. É mais do que um symptoma, porque é um mal social, inteira mente caracterizado.

Mas será o remedio que o Governo nos apresenta na sua therapeutica legislativa sufficiente para curar esta doença?

Não será o proprio Governo o principal responsavel pelo estado de desordem em que nos encontramos? E terá, quem promoveu a anarchia, auctoridade bastante para manter a ordem?

Ora, Sr. Presidente, quaes são as origens d'estes factos realmente censuraveis, e que não se compadecem com o bom e regular funccionamento do systema constitucional?

O primeiro responsavel é sem duvida o Governo. Antes de se organizar o actual Gabinete, o Sr. Presidente do Conselho proclamava em assembleias politicas, e a sua imprensa o repetia, que o Rei era a pessoa mais discutida do país. E effectivamente assim era. O Rei era antes da ascensão d'este Ministerio ao poder, discutido em toda a parte, porque um ou outro politico se suppunha aggravado por actos do poder moderador, como dissoluções, adeantamentos, encerramentos inconstitucionaes das Camaras, e nem sempre poupava aos rigores da critica o poder soberano d'onde taes actos dimanavam.

Mas sobe o actual Ministerio ao poder, acariciado pela sympathia publica que certamente o bafejou á nascença - para que negá-lo? - e parece que desde que o Sr. João Franco tomava as redeas do poder, o Rei devia desapparecer da discussão.

Devia suppor-se que o Governo empregaria todos os meios necessarios tara evitar a continuação de uma discussão que, attentando contra a inviolabilidade do Chefe do Estado, feria gravemente as instituições monarchicas.

Foi esse o procedimento do Governo? Não. Longe de afastar da discussão a pessoa do Rei, era elle quem a arrastava ao terreno apaixonado dos debates.

Desejava-se um Ministerio novo, a todos sorria a esperança de um Governo austero, lealmente liberal, como era preconizado nos seus comicios pelo Sr. Presidente do Conselho e ao mesmo tempo mantenedor dos legitimos interesses da monarchia e dos melhores preceitos constitucionaes. Queria-se liberal, mas não queria ver-se desrespeitado o principio monarchico.

Qual foi porem o primeiro acto do Governo?

V. Exa. e a Camara sabem perfeitamente como principiou a carreira administrativa do Governo.

Devia o Principe Real ir a Hespanha representar a Nação Portugueza n'uma festa solemnissima da Côrte, orno era exigido pela amisade tradicional entre os dois paizes.

Foi convidado immediatamente a reunir o Conselho de Estado para arbitrar um credito especial para as despesas d'essa viagem.

Era legal o procedimento do Governo? Certamente o era.

Mas era opportuno o acto do Governo?

Positivamente não era.

Porque esse acto levantava no espirito publico a suspeição de que até ahi se faziam extraordinarias despesas para pagamento de viagens regias; e assim, se por um lado se elogiava o Governo, por outro se aumentava a lenda de que as viagens do Rei ou de membros de sua familia absorviam uma larga parte das despesas publicas.

O Sr. Presidente do Conselho conquistava de certo alguma popularidade, mas era á custa do Chefe do Estado, que continuava a ser discutido mais fortemente do que até então.

Eu poderia enumerar muitos outros factos que são do conhecimento de todos nós, porque são do conhecimento do paiz inteiro, que não seriam objecto da discussão na imprensa se não tivessem sido praticados, ou se o Governo lhes não tivesse dado relevo, sempre orientado em adquirir por via d'elles as sympathias do publico.

Não os repito porque dizem respeito

Página 296

296 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

a personalidades tão altas que nem mesmo devem ser referidas, embora eu não discutisse os actos d'ellas, mas os do Governo cuja discussão é não só direito, mas dever de todos nós.

Pergunto simplesmente á consciencia d'aquelles que me ouvem:

Não era o Governo que sacrificava a pessoa do Rei á sua propria popularidade? Não era elle que alimentava a discussão trazendo para ella todos os dias novos factos? Não era elle quem em materia tão melindrosa provocava a critica mais ou menos apaixonada da imprensa?

Eu não quero invocar mais factos, mas invoco declarações publicas.

V. Exa. sabe como o Sr. Presidente do Conselho exaltava por todos os comicios e assembleias os preceitos do seu programma. Os Reis pertencem aos povos - dizia S. Exa. como apostolo inspirado.

Principio acceitavel, verdadeiramente constitucional. Mas, pergunto eu era proprio da alta investidura do Sr. Presidente do Conselho andar a proclamai esta doutrina pelos comicios, quando a sua obrigação era não fazer discursos de doutrina, embora eloquentes, mas praticar actos de Governo? O chefe do poder executivo fala ao paiz da sua secretaria por meio de decretos, e não proclama principios, mesmo quando sejam verdadeiros, que n'um dado momento possam ser inopportunos ou contraproducentes ao fim que se deseja. Ouvindo isto o povo diz e diz muito bem: pois se o Rei me pertence, como affirma o Sr. Presidente do Conselho, quero discutí-lo á minha vontade, nos seus actos, na sua vida, na sua pessoa, porque é propriedade minha.

E assim pelas palavras do Sr. Presidente do Conselho que, por serem eloquentes e suggestivas, ainda se tornavam mais perniciosas o Rei continuava em discussão mais vehemente ainda do que no periodo anterior á constituição do actual Ministerio.

No seu arrebatamento tribunicio continuava S. Exa. a affirmar, para definir principios, que só o povo é que dá o poder com honra.

Pois isto não pode significar para gente pouco illustrada, como é a maioria da nação, que o poder que vem das mãos do Chefe do Estado não vem com honra?

Quando da bocca do Sr. Presidente do Conselho sae uma asserção d'esta ordem e que, diga-se de passagem, constitue um verdadeiro delicto segundo a lei de imprensa, porque representa pelo menos uma falta de respeito, que autoridade tem S. Exa. a para punir um jornal que amanhã repita esta phrase? Se um jornal republicano disser a um Ministro: esse poder que tu tens não é honroso, porque o obtiveste das mãos do Rei e só o povo dá o poder com honra, que força terá a lei para o punir, quando tal doutrina foi proclamada como orthodoxa pelo Chefe do Governo?

Só o povo dá o poder com honra?

Parecia que o Sr. Presidente do Conselho tinha sido levado áquellas cadeiras em virtude de uma revolução popular, de uma revolta de classes, ou tinha sido sagrado por um plebiscito nacional.

Nada d'isto foi. O Sr. Presidente do Conselhe foi ao poder, como todos os seus antecessores, chamado pelo Chefe do Estado, no uso liberrimo das sua attribuições constitucionaes; pois, apesar d'isso, proclamava em toda a parte - só o povo dá o poder com honra, como se S. Exa. não tivesse recebido o poder com a honra devida.

Estas palavras, partindo de tão alto, não podiam deixar de produzir os seus effeitos.

Mas ainda ha mais: o Sr. Presidente do Conselho aqui mesmo dentro d'esta casa punha na bocca do Chefe do Estado a affirmação de que todos nós, e inclusivamente o Rei, somos mandatarios da nação.

Não me repugna reconhecer o principio nem a sua legitimidade, mas é preciso reconhecer tambem que a cadeira ministerial não é cathedra de ensino de direito publico, ou então acceitar as legitimas consequencias, porque quando pela bocca do Chefe do Governo se diz que o Rei é um mandatario da nação, não ha direito a castigar ninguem por apreciar como entender o modo como o mandatario cumpre as obrigações impostas pelo seu mandante. Da doutrina do Sr. Presidente do Conselho deriva a consequencia de que a imprensa, como orgão da opinião, pode ajuizar livremente do modo como o Rei cumpre o seu mandato. Isso é que se chama a discussão dos seus actos.

Mas não é só isto. V. Exa. recorda-se bem d'essa sessão solemne em que o Sr. Presidente do Conselho veio aqui collocar o Rei inteiramente a descoberto; recorda-se de que o Sr. Presidente do Conselho se levantou d'aquelle logar para dizer que o Rei o tinha incumbido de auctorizar o Digno Par Sr. Hintze Ribeiro a publica: as cartas que nesta Camara haviam sido pedidas por outro Digno Par, e lembrado estará tambem de que eu, interrompendo S. Exa., lhe perguntei se fôra elle que aconselhara a Sua Majestade a publicação d'aquelles documentos. Respondeu-me o Sr. Presidente do Conselho que o Governo assumia a responsabilidade pelo facto.

Poucos, creio eu, comprehenderam o meu pensamento. Eu não perguntava a S. Exa. quem tomava a responsabilidade. O que eu lhe preguntava era quem tinha tido a iniciativa do acto, e isto com o fim de conseguir que tal iniciativa fosse reclamada pelo Governo, porque eu queria encontrar entre a tribuna parlamentar e a pessoa do Rei, que eu via totalmente a descoberto, um anteparo contra os embates da discussão.

E S. Exa., dizendo simplesmente que o Governo tomava a responsabilidade, continuava a deixar exposta ao exame e apreciação da tribuna parlamentar a entidade politica suprema que não pode ser objecto das nossas discussões.

Sabe V. Exa. Sr. Presidente, o que succedeu. Sessões verdadeiramente memoraveis e historicas n'esta casa do Parlamento em que o illustre Presidente d'esta assembleia se viu coagido a praticar um verdadeiro golpe de Estado, arrancando á discussão parlamentar aquillo que espontaneamente e de animo leve o Sr. Presidente do Conselho lhe tinha entregado.

S. Exa. viu que fomos nós, unicamente nós, que respeitando o dogma constitucional da irresponsabilidade do Rei, cumprimos as boas praxes, embora nos queixassemos do modo violento e sem duvida inconstitucional como a questão foi posta pelo, aliás respeitavel, presidente d'esta assembleia.

Não fomos nós que lançámos o Rei á discussão. Verdadeiramente a descoberto o tinha posto o chefe do Governo.

Ainda ultimamente, V. Exa. ha de recordar-se de que, levantando-se a questão se o Rei era ou não mandatario do paiz, o Sr. Presidente do Conselho declarava em plena Camara que El-Rei, tendo lido o Discurso da Corôa, não fizera reparos n'aquella expressão.

Então temos nós o direito de perguntar: em que expressões do Discurso da Corôa faz El-Rei reparo?

Mas é justo fazer esta pergunta? Não é.

Assim como não podemos perguntar o que elle faz, tambem não é licito ao Governo vir declarar espontaneamente o que particularmente se passa entre o Rei e os seus Ministros. Isso é que é provocar a discussão.

E que direi das declarações feitas em toda a parte pelo Sr. Presidente do Conselho e especialmente das provocações que S. Exa. tem dirigido ao partido mais avançado?

É S. Exa. quem tem excitado o partido republicano pelas accusações que lhe tem feito e pela maneira como tem procedido para com elle.

Pois não ouvi eu o Sr. Presidente do Conselho appellar para a hombridade dos homens do partido republicano a fim de publicarem quaesquer cartas que tivessem em seu poder?

Página 297

SESSÃO N.° 30 DE 26 DE FEVEREIRO DE 1907 297

Pois isto não é uma provocação? Podiam elles deixar de obedecer a essa provocação publicando esses documentos? Decerto que não podiam.

D'esta maneira, Sr. Presidente, pergunto eu: o Governo tem auctoridade para afastar da discussão jornalistica essa entidade superior que dirige o paiz, quando elle proprio pelos seus actos a tem chamado á discussão?

Quem levantou a questão dos adeantamentos? Não foi a declaração feita pelo nobre Presidente do Conselho, na outra casa do Parlamento, quando lhe perguntavam se eram applicaveis á regularização das contas com a Casa Real as disposições da lei da contabilidade publica?

A declaração do Sr. Presidente do Conselho, de que havia adeantamentos, mas que elles não tinham sido feitos por S. Exa., veio mais uma vez confirmar os seus processos de Governo. Sempre a mesma ideia, sempre o mesmo pensamento fixo: affirmar a sua austeridade á custa das administrações passadas, embora n'isso seja arrastada a Casa Real!

Sacrifique se tudo, mas salve-se a pretendida austeridade do Governo!

Como podia a imprensa deixar de discutir os adeantamentos, quando elles foram trazidos á discussão por uma declaração do Sr. Presidente do Conselho, que aliás ninguem lhe pedia?

Estes são realmente os factos.

V. Exa. comprehende que, se o Sr. Presidente do Conselho tivesse dito que havia uma liquidação pendente entre o Governo e a Casa Real, mas que esta liquidação não estava ainda rigorosamente apurada, por se não saber quem era o devedor nem o credor, decerto não se teria verificado a discussão que tem havido, nem se teria avolumado a lenda de descredito provocada pelo chefe do Governo contra a Casa Real.

E é assim que um homem de Estado deve proceder?

Não, Sr. Presidente. O primeiro dever de um Chefe de Governo, de um estadista, á altura da elevada responsabilidade que lhe cabe e que resulta naturalmente da natureza das funcções em que se acha investido, é defender a pessoa do Rei, é afastá-lo de todas as discussões, de todos os debates, e impedir que seja trazido á arena onde se digladiam ferozmente as paixões politicas, é erguer-se como um antemuro inexpugnavel entre essa entidade inviolavel e sagrada e os que a intentam ferir.

É esta a doutrina seguida em toda a parte, onde existe o verdadeiro regimen constitucional; é este o procedimento adoptado pelos homens que mais teem enobrecido a governação do Estado.

V. Exa. sabe muito bem, porque é muito illustrado, que quando em Inglaterra foi processado o Ministro Dalny por causa de uma carta, na qual se baseava o processo, appareceu no documento uma nota do proprio punho do Rei, auctorizando a publicação.

Era a pessoa do Rei a cobrir a responsabilidade do Ministro.

Era elle quem o pretendia escudar com a sua auctoridade soberana.

Pois o que fez o bom senso dos julgadores?

Considerou como não escripta tal auctorização e affirmou o principio de que o Rei não sabe escrever.

Pois não é á primeira vista absolutamente infundado e até repugnante á verdade dos factos o principio proclamado?

Pois não estava demonstrada a sua falsidade até pela simples inspecção do proprio documento?

E, comtudo, que principio haverá na boa doutrina constitucional mais defensavel do que este?

Authenticado estava o absurdo, porque ali estava a condemná-lo a letra do Monarcha.

E, todavia, os julgadores ingleses com o seu bom senso e com a sua grande educação politica fecharam os olhos á clareza dos factos e disseram, convencidos de que proclamavam uma verdade para o bem da monarchia, que o Rei não sabia escrever.

Todos conhecem a celebre maxima com que em Inglaterra se pretende encobrir ou justificar a inocolubilidade real: The King can do no wrhong.

«O Rei não pode fazer mal».

E não será perante a razão indefensavel semelhante principio?

Pois existe por acaso ser algum que não possa fazer mal?

E comtudo é com esta formula, incompativel com a propria natureza das cousas, que a Inglaterra tem conseguido manter o seu tradicional regimen monarchico e ver o seu soberano respeitado no meio da lucta muitas vezes acirrada dos partidos.

E a formula de Tiers, apresentada em 1830, de que o Rei reina, mas não governa?

O Rei não governa!

Ha principio mais erróneo do que este?

Pois não governa o Soberano mais cio que todos os outros poderes do Estado?

Quantas vezes, basta uma só palavra, ou um só gesto d'elle para determinar a acção dos seus Ministros em determinado sentido!

Pois, não obstante, a formula foi acceita e reconhecida, e de muito serviu para proteger a monarchia de Carlos X e de Luiz Filippe.

É d'este modo, Sr. Presidente, que pensam os verdadeiros homens de Estado, aquelles que, como o grande Thiers, representam o primado intellectual e conhecem quão melindrosa é a questão da irresponsabilidade real. Elles bem sabem no seu intimo que em face da razão todos estes lemas e dogmas não teem fundamentos seguros, mas pensam que são indispensaveis para manter a funcção vitalicia dos Reis, a irresponsabilidade, a inviolabilidade e a immunidade de uma pessoa cujo poder não deve, como qualquer outro, estar sujeito ás fluctuações rapidas da opinião publica. A discussão politica ou de qualquer ordem quebra-lhe a auctoridade, diminue lhe o prestigio, ataca na base a funcção hereditaria e nem o proprio septennado das republicas lhe pode resistir!

O homem de Estado que não conhecer esta doutrina não é digno de exercer a suprema magistratura da nação.

Quer a Camara ver como pensavam os homens que fundaram entre nós o systema constitucional?

Eu lhe mostro.

Na sessão de 26 de setembro de 1834, quando ainda estava quente o cadaver de D. Pedro IV, funccionava esta Camara, discutindo a maioridade da Rainha D. Maria II.

Era solemne a sessão pela natureza do assunto, solemne tambem pelo lucto que envolvia o paiz.

Pronunciou-se então pela primeira vez a palavra «Camarilha», durante a discussão. Foi o Conde da Taipa, cujas tradições parlamentares são bem conhecidas, quem lhe deu foros de tribuna.

Levantou-se logo, como era natural, um funccionario do Paço, não só para combater a expressão empregada, mas para provar que D. Maria II tinha todas as condições intellectuaes, e o bom senso precisos para a gerencia superior do reino. Foi esse Digno Par Mello Breyner que se expressou assim:

«Quando pedi a palavra foi para dizer que tinha a honra de servir a Rainha ha perto de um anno e estou ao alcance do seu desenvolvimento. Conheço em Sua Majestade um desenvolvimento extraordinario que nos deve dar as maiores esperanças...»

Mas logo interveio o Presidente da Camara, que proferiu estas palavras que são um tratado completo de direito constitucional:

«Não é muito parlamentar falar aqui nas pessoas reaes e suas qualidades.»

Note a Camara que estas palavras foram pronunciadas no inicio do nosso systema sobre os seus actos ou sobre a sua pessoa.

Página 298

298 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

Nem mesmo elogios permittia que se fizessem! E com toda a razão, porque o proprio elogio aqui proferido fica sujeito á discussão, sob pena de se restringir a liberdade da palavra. A pessoa do Soberano está fora, porque está acima do elogio e do vituperio. É assim que a Constituição a considera: absolutamente indiscutivel.

E era algum demagogo ou algum jacobino o homem que presidia a esta, em todos os tempos, respeitavel assembleia?

Não, Sr. Presidente, era o Duque de Palmella.

Era o homem que com a sua finissima diplomacia tinha ajudado a fundar o Governo Constitucional, como Saldanha e Terceira o tinham conquistado com a lamina fulgurante das suas espadas.

O seu busto está ali! (Apontando para elle). E se o marmore fosse susceptivel de impressões, quantas vezes se teria arripiado ao ouvir e presencear as discussões nesta casa do Parlamento, provocadas sempre pelo Governo, arrastando para ellas a sagrada e inviolavel pessoa do Chefe do Estado!

Supponho ter exposto a boa doutrina e creio que se o Governo a tivesse seguido, e se o Sr. Presidente do Conselho, em vez de andar pelos comicios fazendo programmas e inventando theorias, por mais brilhantes que fossem, falasse á sociedade portugueza do alto da sua magistratura, não por meio de discursos, mas por meio de providencias convenientes; não por palavras, mas por acções; se S. Exa., sobre ser um orador eloquente, fosse um estadista sempre energico, veriamos, com legitima gloria para S. Exa., que esta anarchia, que infelizmente presenceamos, teria desapparecido, e não seria necessario fazer, como agora se faz, uma lei para reprimir aquillo que elle mesmo provocou; para cohibir aquillo de que na verdade foi elle o principal agente.

Poderia alongar-me muito mais ainda na parte puramente politica, mas creio ter demonstrado sufficientemente á camara que foi a postergação dos verdadeiros principios constitucionaes que originou os factos que se pretendem regular agora por meio de novas leis.

Está o Rei em discussão sem duvida alguma. É um facto inegavel. Mas pode o Governo por meio d'estes processos vexatorios, evitar essa discussão? Não pode.

Em primeiro logar, o Governo não tem autoridade politica para o fazer, e em segundo logar o remedio que apresenta para curar tão grave mal, longe de o attenuar, só serve para o recrudescer, porque a reacção será tão violenta que, se o Rei até agora tem sido muito discutido, d'aqui para o futuro mais o será ainda.

Sr. Presidente: vou agora examinar o elixir, ver quaes as propriedades d'este remedio, que se suppõe infallivel, indagando se elle pode curar o doente e satisfazer ás necessidades a que é urgente attender.

Vou por consequencia entrar na segunda parte do meu discurso, que é o exame technico, juridico, o exame a que não posso faltar, porque de contrario dir-se-hia que eu não só tinha abandonado o projecto, mas que não cumpria as minhas obrigações profissionaes.

Este projecto synthetiza-se no seguinte: o que havia de mau na actual lei de imprensa ficou; o que havia de bom e toleravel foi modificado para peor no sentido anti-liberal.

Eu tenho pena de que não esteja presente o Digno Par Sr. Beirão, o auctor da lei de 1898.

Vejamos quaes os pontos da lei em vigor que deviam, no meu entender, ter sido modificados.

Começo pela apprehensão.

Até agora, segundo a lei de 1898, havia a apprehensão dos jornaes em certos e determinados casos.

Ora, Sr. Presidente, eu nunca reconheci, não reconheço, nem hei de reconhecer, a legitimade, em caso nenhum, das apprehensões.

Ou a apprehensão se faz antes do jornal ter sido distribuido pelo publico, ou ella se realiza antes da publicação. A apprehensão envolve sempre a censura. E uma de duas: ou a apprehensão se faz antes da distribuição e ao sair o jornal da officina e temos a censura previa, ou se faz depois de ter começado a distribuição, e temos igualmente a censura. A censura não deixa de ser previa por se fazer depois da impressão; é sempre previa quando for anterior ou preliminar ao acto da publicação.

A censura é mais prejudicial ainda quando se exerce depois da impressão, porque, alem dos vexames que tinha a censura antiga, é tambem aggravada pela perda das despesas de impressão.

Se a censura se faz depois da distribuição do jornal, a censura é absurda e não evita o delicto, porque este não é maior ou menor conforme a tiragem do jornal, nem conforme o numero dos exemplares que tiverem sido vendidos, aliás o delicto ficaria sujeito a uma escala penal tão larga e a penas tão diversas quanto o fosse o numero dos exemplares expostos ao publico.

Em caso nenhum é applicavel a censura, já porque é contra as disposições da Carta Constitucional, quando fôr previa, já porque depois da publicação do jornal é inconveniente e contraproducente. É inconveniente, porque não consegue o fim que pretende attingir, pois que o delicto já está praticado, e contraproducente, porque excita no publico o desejo de ler a publicação apprehendida.

O que deve fazer o Governo é abolir de vez a apprehensão.

Mas o Governo não procede assim. O projecto admitte a apprehensão para as publicações estrangeiras e para as folhas periodicas que contiverem offensas aos Chefes de Estado estrangeiros, quando se encontrem no reino. Mas o que é realmente curioso, para não empregar outro termo, é o modo como é regulada nestes casos a apprehensão.

O jornal que insere uma offensa ao Chefe de Estado estrangeiro, de passagem em Portugal, é apprehendido e os vendedores ou distribuidores são enviados para o juiz, que tambem recebe um dos exemplares offensivos.

Para que é enviado o jornal ao juiz?

Dir-me-hão, naturalmente: para o juiz julgar da validade ou nullidade da apprehensão.

Mas qual é a disposição do projecta que diz isso? Nenhuma. E nem se pode applicar subsidiariamente a disposição da lei antiga, porque, convertido o projecto em lei, é ella que regula exclusivamente toda a materia de liberdade de imprensa.

A verdade é esta: admittiram apprehensões, mas esqueceram-se de acrescentar as disposições regulamentares respectivas, que existem na lei actualmente em vigor.

É apprehendido o jornal que traga offensas aos Chefes de Estado; é remettido para o poder judicial. Está isso no pensamento do Governo. Mas o que faz o juiz?

No systema actual apreciava o facto da legalidade ou illegalidade da apprehensão, porque a lei lhe dava essa faculdade, e lhe marcava essa competencia; concedia ou negava perdas e damnos ao responsavel pela publicação, facultava-lhe os competentes recursos, mas no projecto em discussão tudo isto foi omittido, porque os auctores do projecto não se lembraram de lhe introduzir os preceitos complementares da apprehensão.

D'esta maneira o redactor do jornal apprehendido fica sem as garantias que lhe concedia a lei de 1898.

É um proposito ou foi um equivoco na redacção do projecto? Responda o Sr. Ministro da Justiça ou o Sr. relator da commissão.

O que é manifesto é que os jornaes continuam a ser apprehendidos em determinados casos, tendo sido expungidas as garantias, embora restrictas,que a lei actual concedia aos donos de jornaes apprehendidos.

Página 299

SESSÃO N° 30 DE 26 DE FEVEREIRO DE 1907 299

O que ha a fazer é eliminar a apprehensão. (Apoiado do Sr. José Maria de Alpoim).

Mas admittida ella, é inconcebivel que se lhe não concedam as mesmas garantias que presentemente usufrue.

Vamos ás publicações estrangeiras.

A lei actual, como V. Exa. sabe, dispõe a respeito dos impressos estrangeiros que a sua introducção no reino e a sua circulação podem ser prohibidas por deliberação do Conselho de Ministros. É tambem a disposição do projecto.

É claro que; segundo esta disposição o poder executivo fica autorizado não só a obstar á entrada no paiz de qualquer livro estrangeiro, mas ainda a impedir, quando entender, a circulação de qualquer impresso.

O que quer isto dizer?

Que o Governo fica investido na tutela sobre todos os productos do pensamento humano por qualquer modo de publicação que se manifestem. É a doutrina do velho absolutismo redigida por mão de Pina Manique, que emittia ordens de policia, impedindo a livre entrada no reino de quaesquer obras que traduzissem, ainda, de longe, os principios revolucionarios de 89.

Semelhante facto, considero eu um attentado contra a civilização.

Porque é tambem evidente que, se o Governo tem esta, faculdade deve ter igualmente o direito de a tornar exequivel, e assim deve ter uma policia fiscal especial encarregada de examinar os livros estrangeiros e de lhe apreciar as doutrinas, ou pelo menos terá de proceder como &e procedia nos antigos tempos do absolutismo, exigindo dos importadores o catalogo dos livros antes do seu despacho nas alfandegas.

É isto o que eu reputo um attentado não só contra a liberdade, mas tambem contra a civilização, porque prohibir a communicação das ideias é levantar uma barreira entre a nação portugueza e as nações civilizadas, quando o pensamento humano não tem patria e quando é certo que pela communhão do pensamento é que se realiza o progresso de cada povo, considerado como um organismo especial, funccionando dentro do organismo geral da humanidade.

Não ha na linguagem phrases bastante expressivas para condemnar semelhante attentado.

O que deveria fazer-se era apagar da nossa legislação estas disposições anachronicas do antigo absolutismo, e collocar as publicações estrangeiras no mesmo regimen das nacionaes.

Não pode exigir-se a responsabilidade legal ao auctor, nem ao editor por serem estrangeiros? Mas pode exigir se, nos termos da lei da imprensa, essa responsabilidade ao que expõe á venda obras estrangeiras, quando contenham factos puniveis pela lei penal.

Passemos a um outro ponto, que é aquelle que regula a responsabilidade civil do agente do delicto para com o offendido, no caso de ter havido condemnação.

V. Exa. sabe o que dispõe, a lei actual e com ella o projecto que se discute.

O individuo offendido tem direito a uma reparação, e a lei não pode deixar de lhe dar uma garantia para tornar effectiva essa reparação. Mas qual é a garantia?

O privilegio mobiliario especial que preferirá a outro da mesma especie sobre o material do estabelecimento onde a publicação houver sido composta e impressa, se o dono for o mesmo, e hypotheca legal sobre os immoveis.

Este privilegio é classificado pela lei civil acima de todos os privilegios mobiliarios geraes.

Pois, não obstante serem pela sua natureza sagrados taes privilegios, a lei de imprensa dá aos offendidos um credito mobiliario superior a todos esses. Assim, por exemplo, se um pobre homem tem uma pequena typographia - e ha muitos casos d'estes em Lisboa, que todos nós conhecemos - e se o material de impressão constitue a sua unica propriedade, que lhe dá os parcos recursos da sua vida e da sua familia, imprimindo ahi um jornal, bilhetes, cartazes, annuncios, exercendo emfim a sua legitima industria, pode de um momento para o outro estar sujeito a uma execução promovida pelo que se julgou offendido por qualquer referencia publicada no jornal que é o seu unico sustento.

Assim se paga a offensa que se faça a qualquer pessoa, por se lhe dirigir talvez uma expressão menos respeitosa.

Em frente da pequena typographia enxameiam os credores. Lá está o offendido, sobresaindo a todos, com o seu privilegio graduado em primeiro logar; a elle compete a primeira preferencia. E comtudo ao seu lado apparecem em situação inferior o que empresta dinheiro para o funeral do executado, para o luto da sua viuva, para os remedios da doença, para o sustento do devedor e das pessoas da sua familia a quem tinha o dever de alimentar e até o que constituiu o seu credito, educando, e instruindo os filhos do dono da typographia!

E entre direitos tão sagrados como realmente são os que pertencem a estes credores, ergue-se dominando todos o do offendido que em muitos casos pode ter se considerado atacado por uma ligeira expressão, escripta sem intenção, e julgada delictuosa por um tribunal injusto!

Collocar o credito civil por offensas da imprensa acima do credito pelas despesas da sepultura do agente do delicto repugna até aos sentimentos do coração.

Se a intelligencia é um elemento poderoso, os sentimentos de humanidade não são menos necessarios para a boa redacção de qualquer diploma legislativo.

O que é preciso fazer então?

Porque, como V. Exa. vê, eu não me limito unica e simplesmente a combater o projecto em discussão, mas ao mesmo tempo affirmo ideias e apresento principios.

Será conveniente tirar ao offendido as garantias effectivas para a exigencia da responsabilidade civil em que incorreu o offensor? De modo nenhum. Mas concedam-lhe as que realmente lhe pertencem, sem offensa dos direitos sagrados dos outros credores.

E agora, Sr. Presidente, passo á apreciação das disposições da lei criminal applicada á imprensa em virtude do projecto que se discute.

Observa-se á simples leitura do projecto que elle acceitou integralmente as disposições do actual Codigo Penal.

A primeira d'essas disposições é a do artigo 137.°, que pune as offensas á religião do Estado com a pena de prisão correccional desde um até dois annos, e multa, conforme a renda, de tres mezes até tres annos. Comprehende-se no delicto qualquer tentativa de propaganda de doutrinas contrarias aos dogmas catholicos definidos pela igreja, o proselytismo, ou conversões para religião differente ou seita reprovada pela igreja.

A actual lei de imprensa, e com ella o projecto, consagram esta disposição do Codigo Penal, e eu penso que a primeira cousa a fazer deveria ser modificar convenientemente este artigo. Reparou V. Exa., decerto, que o maximo da pena para os delictos de imprensa, contra a religião, são dois annos de prisão, emquanto que o maximo da pena para os outros delictos de imprensa são simplesmente seis meses.

Como se explica isto?

Eu supponho que esqueceu alterar na reforma penal de 1884 este artigo que respeita aos delictos de imprensa, pondo-o em igualdade com os outros delictos similares, porque não se comprehende de modo nenhum que a este crime continue a ser applicavel a pena de dois annos de prisão, como já estava no Codigo de 1852, ao passo que a reforma de 1884 reduziu todas as penas estabelecidas para os delictos de imprensa ao maximo de seis mezes de prisão.

Necessario se torna, portanto, antes de tudo harmonizar a disposição penal d'este artigo com as outras que são

Página 300

300 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

correlativas, reduzindo esta pena de dois annos de prisão ao limite maximo geral.

E não basta isto.

A apreciação dos dogmas da igreja feita por qualquer meio de publicação constitue um delicto á face do nosso Codigo Penal, e eu entendo que tal disposição deve ser eliminada, porque pode ser em muitos casos attentatoria dos direitos do Estado e da liberdade dos cidadãos.

Ha dogmas da igreja catholica que nunca foram, não são nem hão de ser reconhecidos pelo Estado.

O dogma da infalibilidade do Papa nunca foi reconhecido entre nós. Não quero discutir n'este momento se o Estado devia ou não conceder-lhe o beneplacito, mas o que é certo, porque é um facto, é que não foi ainda reconhecido pela Nação Portugueza.

Como V. Exa. sabe, este dogma foi muito discutido, não só por escriptores profanos, mas por prelados os mais eminentes da igreja. Muitos o consideraram como um acto de centralização pontificia, contraria ás prerogativas dos concilios. Outros lhe contestavam as qualidades de dogma, por lhe faltarem para, isso as condições theologicas. Mas, seja como for, o que é fora de toda a duvida é que o Estado Portuguez, no uso das suas regalias temporaes, não recebeu como lei canonica a definição da inerrancia do Papa em materia de fé e de costumes.

É-me licito perguntar então se nós apreciando este dogma, ou outros nas mesmas circumstancias, incorremos no delicto da lei, quando o proprio Estado nos deu o exemplo examinando-o, discutindo o e não o reconhecendo?

Se é crime não acceitar o dogma, criminoso foi em primeiro logar o Estado que o repudiou.

Mas La mais alguma cousa dentro d'este artigo, que se oppõe aos bons principios da lei criminal. Elle comprehende as formulas do culto e pode abranger as mais elevadas concepções do espirito humano nos estudos puramente historicos. As religiões comparadas nos seus preceitos e na sua liturgia, sem excepção da religião catholica, estão sujeitas á critica scientifica, e perturbar de qualquer modo essa critica é que é um verdadeiro delicto.

Se alguem, disser que Domingos de Gusmão foi o fundador de uma instituição que tantos males causou á sociedade, lá está o Codigo Penal para o castigar, embora o diga o maior historiador portuguez, ou outro qualquer que escreva conscienciosamente sobre as origens e actos da Inquisição.

Se alguem disser que Ignacio de Loyola fundou uma sociedade que sob pretextos religiosos se impunha ao poder temporal dos réis, lá está o Codigo Penal para o corrigir com dois annos de prisão, porque Gusmão e Loyola são objecto do culto catholico visto que a igreja os collocou no seu agiologio e os sagrou, expondo-os á adoração dos fieis.

Quantos escritores notaveis, quantos estadistas superiores, destacando-se entre elles o grande reformador Marquez de Pombal, não teem apparecido entre nós, que seriam perante a lei julgados criminosos!

Amoldemos a lei ás condições da sociedade actual, e não revalidemos uma disposição legal que nos envergonha perante a civilização!

Mas isto não é nada. Atropelam-se os contrasensos, pullulam a cada passo as disposições ominosas. Estamos chegados neste percurso á um dos pontos capitães do projecto. Refiro-me á definição da offensa.

O § 1.° do artigo 5.º do projecto considera como offensa punivel pela lei de imprensa a publicação de materia em que haja falta de respeito devido ao Rei, ou cujo objecto seja excitar o odio, ou o desprezo da sua pessoa, ou censurá-lo por actos do Governo ou de quaesquer funccionarios.

Poderá admittir-se esta definição?

Se qualquer palavra que se supponha envolver falta de respeito ao Rei pode constituir um delicto, pergunto aos homens publicos do meu paiz, áquelles que teem trabalhado na imprensa, ou áquelles que teem erguido a sua voz na tribuna parlamentar, se a consciencia lhes não diz que algumas vezes empregaram palavras, que uma exegese demasiada e rigorosa podia converter numa falta de respeito ao Rei, quando na realidade não houve n'ellas a mais leve intenção de offensa?

Vou citar alguns factos d'esta ordem; e desde já declaro que as pessoas a quem vou referir-me são para mim da maior respeitabilidade e merecem as minha maior consideração.

Depois citarei tambem phrases minhas.

Na discussão d'este projecto não quero de modo nenhum lançar a macula de referencias pessoaes, por ligeiras que sejam.

Refiro-me simplesmente a factos, e como argumentos os invoco, e tanto mais força terão quanto maior for a auctoridade das pessoas.

A Camara sabe perfeitamente que o illustre relator d'este projecto, para não ir mais longe, proferiu em uma assembleia do seu partido as expressões, depois reproduzidas pela imprensa, que o sceptro poder-se-hia converter num rolo de tabaco.

Esta phrase parece á primeira vista uma falta de respeito ao Rei, e todavia, nas circumstancias e nos proprios termos em que foi pronunciada, não podia de maneira nenhuma ter essa intenção; era apenas o desejo legitimo de que não fosse envolvido o Rei na discussão que então calorosamente se ventilava.

O Sr. Luciano Monteiro: - Nessa occasião discutia se se o poder moderador concedera ou não ao Ministerio que estava no poder excepcionaes faculdades; discutia-se, como V. Exa. sabe, o negocio dos tabacos, vehementemente, violentamente, e eu disse que não acreditava que o Chefe do Estado concedesse semelhantes faculdades ao Ministerio, porque a concessão, nas condições em que se encontrava o paiz, converteria o sceptro, de vara da justiça politica, em rolo de tabaco.

O Orador: - E V. Exa. empregou essa phrase no intuito de lhe dar um pensamento bem differente de uma falta de respeito.

Assim foi com effeito e assim o reconheço.

Não attribuo a V. Exa. a ideia de querer com essa phrase faltar ao respeito a quem quer que fosse, não era essa a minha intenção; o que quiz dizer e digo é que umas phrases pronunciadas por nós em certas occasiões não são faltas de respeito ao Rei, mas perante um determinado tribunal exigente e severo podem ser assim consideradas. (Apoiado do Sr. José de Alpoim).

O Digno Par e meu amigo sabe perfeitamente a profunda consideração que tenho pela sua pessoa, a quem considero como um dos nossos primeiros oradores e um talento de primeira ordem; e foi considerando-o assim que invoquei esta sua phrase como um argumento simplesmente.

V. Exa. comprehende que as declarações que partem de V. Exa., pela sua auctoridade especial de relator e defensor do projecto e como representante de um partido, dão muito mais força á minha argumentação.

V. Exa. aqui mesmo n'esta casa pronunciou uma vez algumas palavras, com relação ao herdeiro presumptivo do throno, que n'um tribunal composto de juizes que só olham á expressão rigorosa da lei poderiam ser consideradas como falta de respeito a esta pessoa da Familia Real, tambem claramente comprehendida na disposição que se discute, quando em taes palavras, como V. Exa. immediatamente mostrou, não havia nenhuma falta de respeito, mas simplesmente uma expressão de carinho, perfeitamente explicavel.

Não disse tambem o Sr. Presidente do Conselho na outra casa do Parlamento que uma discutida carta do Rei devia ser atirada a um certo sitio, que

Página 301

SESSÃO N.° 30 DE 26 DE FEVEREIRO DE 1907 301

não me atrevo a pronunciar do alto d'esta tribuna? (Riso).

E não seria irracional encontrar aqui uma falta de respeito ao Rei?

Podia comprehender-se por acaso que um homem que tinha recebido a maior prova de confiança do soberano, que com elle partilhava na administra cão do Estado, empregasse uma expressão que pudesse reputar-se offensiva?

Não. Ninguem bem intencionado pode ter duvidas a esse respeito. É que muitas vezes no calor da palavra, nos arrebatamentos da eloquencia, que é tanto mais convincente quanto mais espontanea, saem termos que, pelo exagero do combate, excedem o pensamento de quem os emprega.

Eu proprio, Sr. Presidente, quantas palavras não terei proferido, e agora mesmo durante esta discussão, que possam ser mal interpretadas como faltas de respeito para quaesquer pessoa e até para o proprio Chefe do Estado! De um acto meu me recordo perfeitamente que constitue pelo projecto um verdadeiro delicto de imprensa.

Trabalhei na imprensa durante alguns annos e lembro-me de que, tratando-se de uma dissolução das Côrtes, feita sendo Ministro do Reino o Sr. João Franco, sob a presidencia do Sr. Hintze Ribeiro, ataquei o Chefe do Estado, sustentando que elle praticava um erro, satisfazendo a vontade do seu Governo.

Isto é realmente um delicto, porque delicto é censurar o Rei pelos actos dos seus Ministros.

E toda a gente sabe que eu, em quaesquer circumstancias da minha vida, seria incapaz de faltar ao respeito que devo ao Rei, já pela alta situação constitucional em que se acha collocado, já pelo decoro que devo ás funcções sociaes de que elle, como chefe do poder executivo, me tem investido.

Dir-me-hão, que esta disposição não é nova e que já existia na lei actual. É certo. Mas que differença profunda no seu modo de applicação!

O processo seguido actualmente para a perseguição dos delictos da imprensa, disiancia-se largamente d'aquelle que vae ser adoptado.

Estava nas mãos do Governo a direcção da acção criminal contra os jornalistas; agora fica sob a vigilancia de um tribunal especial.

Eu não tenho medo da disposição da lei nas mãos do Governo, porque elle, antes de mandar perseguir um jornalista, ponderava todas as circumstancias de conveniencia publica, attendia até á situação especial das pessoas, apurava das suas intenções e do alcance das suas palavras e muitas vezes reconhecia que a applicação da lei.

de imprensa podia occasionar mais prejuizos do que a tolerancia em deixar circular livremente o jornal.

Se o tribunal vigilante encontra uma expressão qualquer que possa representar falta de respeito, ainda que não tenha havido intenção, o jornalista tem sempre deante de si ou o vexame das explicações em audiencia de julgamento, ou a pena de seis mezes de cadeia!

Aqui tem V. Exa. como as mesmas disposições na lei de 1898 não produzem os mesmos resultados que hão de produzir no actual projecto, porque varia completamente o systema da perseguição dos delictos de imprensa, e se até agora podia haver tolerancia, d'aqui em deante só pode haver severidade.

Mas vamos á questão do jury.

Eu quero o jury para a imprensa. A liberdade de imprensa nasceu com o jury.

No dia em que supprimirem o jury acabou a liberdade de imprensa. (Apoiados).

Como é que liberdade de imprensa nasceu em Portugal com o jury?

Aqui está a sua certidão de nascimento:

O registo é a Constituição de 1822.

Seja aberto esse codigo sagrado e seja lido o assento no meio da veneração de nós todos:

«A livre communicação dos pensamentos é um dos mais preciosos direitos do homem.

Todo o portuguez pode conseguintemente, sem dependencia de censura previa, manifestar suas opiniões em qualquer materia, comtanto que haja de responder por abusos d'esta liberdade nos casos e pela forma que a lei determinar.

As Côrtes nomearão um tribunal especial para proteger a liberdade de imprensa.

Haverá juizes de facto, assim nas causas eiveis como nas crimes, nos casos e pelo modo que os codigos determinarem.

Os adidos de abuso de liberdade de imprensa pertencerão desde já ao conhecimento d'estes juizes».

Aqui está a certidão do registo civil ou, antes, do registo constitucional do nascimento da liberdade de imprensa. Nasceu com o jury. São irmãos gemeos.

Alem do jury, aqui está um tribunal special, não para perseguir os que praticavam abusos de liberdade de imprensa, mas para os proteger quando eram dignos de protecção.

Agora a obra da revolução de setembro, a criação de Manoel Passos.

Fala a Constituição de 1838:

«Nos processos de liberdade de imprensa o conhecimento do facto e a qualificação do crime pertencerão exclusivamente aos jurados».

Até a qualificação do crime!

Agora pergunto eu: será um pensamento revolucionario dizer que se torna indispensavel o julgamento pelo jury dos delictos de imprensa? Pois não foram essas as ideias com que nasceu o systema liberal entre nós?

A lei de 1834, que foi a primeira do nosso regimen constitucional sobre liberdade de imprensa, estabelece o jury e o jury vigorou nos delictos de imprensa até 1884.

Durante 50 annos o jury acompanhou sempre a liberdade de imprensa.

Quantos periodos calamitosos da nossa historia atravessou a liberdade de imprensa sempre ao lado do jury! O periodo revolucionario de 1830, o periodo conservador de Costa Cabral desde 1842, em que foi restaurada a Carta, até 1851, o periodo nem sempre socegado da regeneração.

Pois no meio de todas as luctas intestinas que occorreram n'este paiz, no meio das maiores aggressões da imprensa, no meio dos debates mais vehementes, em que se aggrediam mutuamente homens e partidos, e em que a propria pessoa do reinante não era poupada, o jury conservou-se sempre como uma regalia inquebrantavel.

Nenhum dos nossos homens de Estado, por mais conservador e reaccionario que fosse o seu systema de governo, teve coragem para o supprimir.

Já V. Exa. vê que defender o jury não é difficil; o que é difficil é combatê-lo. Bastam estes exemplos historicos de 50 annos para se poder affirmar que a monarchia pode viver muito bem com a liberdade de imprensa, reprimida nos seus desmandos, quando os tiver, por essa instituição tradicional que se chama o jury.

Mas como e porque motivos foi supprimido o jury em 1884?

Agora entro eu em scena, podendo repetir o que disse o poeta clássico: quoeque ipse vidi et quorum pars magna fui.

Eu entrei para o Ministerio da Justiça em 1881. Tinha havido pouco tempo antes a chamada conferencia de Caceres. O rei D. Luiz tivera ali uma entrevista com Affonso XII. E eu posso asseverar a V. Exa., assim como o pode fazer o Digno Par Sr. Hintze Ribeiro, Ministro dos Negocios Estrangeiros n'essa occasião, que n'essa conferencia não se trocou uma unica palavra acêrca de relações entre Portugal e Hespanha, nada houve que pudesse directa ou indirectamente ligar-se com a politica internacional. Foi uma entrevista puramente cerimoniosa, em que

Página 302

302 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

os monarchas dos dois paizes celebravam a inauguração d'uma linha ferrea que mais os aproximava nas suas relações commerciaes, assegurando a manutenção de uma amizade que desde muito tempo existia.

Os jornaes que então combatiam o Ministerio, destacando-se entre elles um que era redigido por uma das mais completas organizações de combatentes que tem apparecido entre nós, censuravam asperamente os factos que elles suppunham ter sido objecto da conferencia de Caceres.

Chegaram a affirmar que se trataria ali de assumptos perigosos para a autonomia da nação portuguesa, subordinados ao supposto projecto de casamento entre o então principe real com uma princesa hespanhola, o que era inteiramente inexacto.

Estes ataques violentos, mas infundados e injustos, deviam impressionar quem tanto se distinguiu pela formosura do seu caracter e pela bondosissima sensibilidade do seu coração.

Mas não impressionaram só essa entidade inviolavel, impressionaram tambem os Ministros d'essa epoca.

Por mais de uma vez em Conselho de Governo se discutiu a ideia de reformar a lei de imprensa, de maneira a evitar todos os factos delictuosos, e outros ainda, motivados por diversas causas.

Eu declarei sempre que não tinha duvida em executar a lei existente, que era a de 1866, e n'este estado continuaram as cousas até 1883.

Para se ver qual era o respeito que eu tinha pelo jury, vou citar um documento que tem a data de 10 de setembro, de 1883.

É uma portaria que eu expedi a todos os presidentes dos tribunaes e agentes do Ministerio Publico não permittindo a continuação do abuso, que então começava, de se julgarem correccionalmente os crimes a que competiam penas superiores ás marcadas na lei de 18 de agosto de 1853.

Já então sob varios pretextos se pretendia furtar ao julgamento do jury delictos que eram exclusivamente da sua competencia legal.

Aqui está, Sr. Presidente, o meu respeito pelo jury.

Não é de hoje.

O meu respeito pelo jury está consignado na portaria a que acabo de ré ferir-me e tem a data de 10 de setembro de 1883.

Um mez depois eu saia do Ministerio.

Como é que desappareceu o jury?

O jury desappareceu pela seguinte forma:

As penas que eram applicadas aos delictos da imprensa pelo Codigo Penal de 1852, que estava em vigor, excediam quasi todos os limites marcados para os julgamentos correccionaes.

E assim foram reduzidas aos seis mezes de prisão, desapparecendo coseguintemente a competencia do jury para o julgamento.

Estabeleceu-se alguma disposição, dizendo claramente que era abolido o jury?

Não, Sr. Presidente.

Reduziu-se a penalidade dos crimes de offensa contra o Rei, e muitos outros, e ficou tudo na policia correccional.

Foi esta a maneira por que desappareceu o jury: não foi directamente supprimido, foi enforcado num cordão de seda.

Os proprios jornalistas não podiam lastimar-se, porque, em vez de terem o maximo de dois annos de prisão, passavam a ter o maximo de seis mezes.

Temos deante de nós para o emprego da nossa critica um periodo já largo, que é aquelle que decorreu de 1884 até hoje, um periodo de 23 annos, em que não houve jury.

Examinando o que se tem passado n'este periodo, digam-me imparcialmente os que atacam o jury se os factos occorridos durante elle justificam de qualquer modo a sua abolição nos delictos de imprensa.

Contribuiu ella porventura para collocar acima das injurias os homens e as instituições?

Não procedeu a imprensa da mesma forma e não se excedeu ainda nas suas accusações?

Em que é que a suppressão do jury melhorou a situação dos aggredidos?

Desappareceram ou foram mais castigados os suppostos abusos?

Extinguiu-se uma instituição liberal, mas ficou tudo no mesmo estado ou peor ainda.

O que lucraram então em abolir a legislação anterior?

Temos um periodo de cincoenta annos com a existencia de jury e um periodo de vinte e tres annos sem jury.

Estudem-se os factos passados nos dois periodos e digam-me depois se a suppressão do jury não foi mais prejudicial ás instituições, do que o foi a sua existencia durante as epocas mais attribuladas da monarchia.

Então a monarchia não pede viver com o jury no julgamento dos delictos da imprensa?

Se fosse assim, seriamos levados á conclusão de que a monarchia teve mais força até 1884, do que tem presentemente. Ora, Sr. Presidente, essa confissão seria uma fraqueza e uma falsidade.

A monarchia é bastante forte para arrostar com todos os ataques que a imprensa avançada lhe dirige e não precisa de empregar processos que a razão e a nossa propria historia condemnam.

Sob o aspecto dos principios, eu direi que se ha delictos para cujo julga mento seja reclamado o jury elles são certamente os de liberdade de imprensa. (Apoiados).

O que é o jury?

O jury é a representação directa da soberania nacional na funcção do julgamento.

O jury é tão representante da opinião publica como a imprensa.

Quando a imprensa faz uma affirmação, ella suppõe interpretar o sentimento popular. Apresenta-se como seu orgão, repetindo a sua voz.

E sendo assim, quem é por consequencia competente para julgar da legitimidade ou illegitimidade d'essa affirmação, senão a propria soberania popular, representada pelo jury?

Apparecem perante o jury duas entidades que ambas se arrogam o direito de representar a verdadeira opinião do paiz: uma é a imprensa, a outra é o Governo por intermedio do Ministerio Publico.

Qual é o tribunal competente para decidir o pleito? A propria opinião que ambos dizem representar.

Aqui tem V. Exa. a razão por que se não pode nem deve tirar ao jury, segundo todos os principios, a apreciação e o julgamento dos delictos de imprensa.

Demonstra a pratica de todos es dias que o jury absolve quando deve condemnar?

Verifica-se pelos factos que deixa muitas vezes impunes ladrões e assassinos?

Pois se assim é, dizem os adversarios do jury, mais facilmente serão absolvidos os jornalistas, porque os seus delictos attraem naturalmente mais a benevolencia dos julgadores.

É este o argumento principal que se apresenta contra o julgamento pelo jury. Mas tal argumento não está direito. É um argumento do posição invertida.

O argumento é este: se o jury é benévolo para os ladrões e assassinos não pode por isso negar-se aos jornalistas cujos delictos não teem comparação com aquelles.

Tirar o jury á imprensa e concedê-lo aos grandes criminosos é collocar a imprensa acima de todos com relação a gravidade dos delictos.

Mais ainda, Sr. Presidente.

Podem dizer: mas é prejudicial para o lesado levar a sua accusação ou offensa ao julgamento de um tribunal que pode absolver o reu.

Mas isso realiza-se em todos os casos, por mais odioso que seja o delicto, e nem por isso se exige a extincção completa da instituição do jury. Nos

Página 303

SESSÃO N.° 30 DE 26 DE FEVEREIRO DE 1907 303

delictos de imprensa contra o Chefe do Estado, ou contra as instituições vale mais para a monarchia, ou para qualquer forma de Governo, uma condemnação pelo jury, do que dez condemnações sem elle.

A condemnação pelo jury tem uma força moral irresistivel, emquanto que a condemnação por um juiz singular, por mais respeitado que seja, não tem a mesma força, porque não representa genuinamente a soberania nacional.

É absolvido um reu? Que importa. São absolvidos mais? Que o sejam. Um dia virá em que a consciencia do jury, em face de uma offensa provada, dê ao agente do delicto o castigo devido e essa condemnação terá mais força moral para as instituições do que todas aquellas que porventura pudessem ser feitas por um ou tres magistrados judiciaes.

Qual de nós, querendo obter uma reparação, não preferirá apresentar perante o jury a offensa recebida? Se procuramos readquirir a consideração social que o delicto nos roubou, não é o jury como orgão da sociedade que melhor do que o juiz singular, nos pode collocar no estado anterior á lesão soffrida?

Falei no outro dia na lei de 1866 e V. Exa. muito bem comprehende que não pedi a simples restauração d'ella.

A lei de 1866 applicada no actual systema penal não pode dar os resultados que se desejam, porque ella era applicavel ao regimen penal de 1852.

O jury pode restabelecer-se de duas maneiras: ou pela applicação do direito commum, ou por uma disposição de direito especial.

Restabelece se por direito commum pondo em vigor a lei de 18 de agosto de 1853 quanto á forma do julgamento dos delictos e modificando ligeiramente as penas actuaes de modo a serem excluidas do julgamento correccional. Mas para se obter o jury não é preciso tanto; basta que uma disposição especial declare que com a assistencia d'elle serão julgados os delictos de imprensa.

Tão imperfeito é este projecto que eu estou convencido de que, se elle for convertido em lei, terá de ser dentro em pouco revogada ou alterada qualquer que seja o partido que succeda no poder.

Ella é tão oppressora, tão esmagadora, tão contraria ao sentimento liberal que nem o partido conservador a poderá acceitar. (Apoiados).

Sobre a forma do processo a seguir na perseguição dos delictos, não posso dizer mais nem melhor do que hontem foi dito pelo nosso illustre collega n'esta Camara, o Sr. Campos Henriques.

Da parte do Governo, porem, nada se respondeu áquelle Digno Par.

O Sr. Campos Henriques demonstrou á saciedade que o projecto, sob o ponto de vista das formulas do processo, é indefensavel.

O que respondeu o Governo no tocante á falta de corpo de delicto? Nada.

Acerca da forma original de fazer as citações, da negação de deprecadas, dos recursos, da prescripção das penas, o silencio da parte do Governo mostra bem que o projecto não é susceptivel de defesa.

Eu não posso estar a repetir a analyse minuciosa dos pequenos incidentes do processo.

Não tenho adversario para combater, porque até agora nenhuma voz se ergueu em defesa d'esta obra.

Todos os argumentos com que o Digno Par impugnou o projecto ficam de pé.

Do lado do Governo não apparece replica, que eu possa contrariar.

Por isso, deixando por agora a parte technica do projecto, passo a tratar da questão da liberdade de imprensa, sob o aspecto dos principios, e faço-o com viva satisfação, porque n'este campo desprendo me absolutamente da discussão apertada de artigos mal redigidos e sinto-me, á vontade por ser bastante largo o assumpto.

O que é o delicto de imprensa?

É na sua mais simples expressão uma lesão feita á dignidade intellectual ou moral do homem.

Essa lesão consiste na diminuição da consideração social a que todo o homem tem direito e resulta de se lhe attribuir, um facto que, affectando-o na sua dignidade, o torna mal visto pelos seus concidadãos.

Esta é a ideia fundamental do delicto. Não faço definições para a escola nem para ensino de ninguem.

Sendo assim, e se o delicto de imprensa pode consistir n'uma lesão á dignidade intellectual do homem, ou n'uma lesão á dignidade moral, é licito indagar o que sejam estas duas especies de dignidade e até onde podem e devem chegar.

O que é a dignidade intellectual?

É muitas vezes a extrema vaidade.

Ninguem presta á intelligencia humana culto mais fervoroso do que eu. Ella é, no meu parecer, a faculdade primacial. Inquire, indaga, prescuta e caminha sempre, educando, instruindo, illuminando.

É o maior poder dominador que existe, porque se infiltra no animo alheio, submettendo-o e avassalando-o.

Assenhoreia-se da vontade dos outros sem o querer, e de tal modo os subjuga ;que os escraviza aos seus dictames. É a faculdade dos homens superiores ao contrario da vontade, que é a faculdade dos mediocres.

Esta, a vontade, tambem é um poder, tambem é grande e tambem vence e domina, mas não tem o encanto nem a suavidade da outra. É turbulenta, irrequieta, agitada, penetra, derruba, destroe, e quando desfallece n'um dos seus habituaes collapsos, ganha de um salto o espaço que perdeu. Chega á culminancia que pretende conquistar, mas olhando de lá o caminho percorrido descobre muitas vezes, quasi sempre, odios, invejas, malquerenças e não raro ouvirá as imprecações das victimas que fez.

Não assim a intelligencia que é naturalmente tolerante; não é impetuosa, nem demolidora, domina porque tem de dominar, governa porque tem de governar.

E poderemos com razão deixar de a considerar a faculdade primaria do homem?

Pode a vontade adquirir gloriosamente o poder, mas a gloria na sciencia, na literatura e na arte só a intelligencia a pode conquistar.

Pode a vontade auxiliá-la na conquista, mas o seu serviço será sempre secundario, nunca lhe pertencerá a acção principal.

Mas, se a intelligencia é uma faculdade de tal sorte proeminente, terá direito á manutenção e ao respeito da sua dignidade?

Não ha nada superior á dignidade intellectual?

Não ha intelligencia perfeita, e por isso não ha intelligencia inatacavel, nem invulneravel. Todo o cerebro, por melhor organizado que seja, tem dentro em si um stock de contrasensos. Uns originarios do proprio cerebro; chamar-lhes-hei contrasensos autoctones ou aborigenes; outros adquiridos por accessão.

Estes vêem pelo contacto diario com os nossos semelhantes, menos intelligentes do que nós, pela leitura, pela conversação, por todos os meios de communicação emfim. Anda o disparate no ar como os microbios; e tambem nasce e enrosca-se nos lobulos do cerebro humano como uma graminea que aperta as raizes do mais exuberante arbusto.

Ha algum cerebro, por mais poderoso que seja, que possa dizer: eu sou irresponsavel, eu posso subtrahir-me soberanamente á critica dos outros? Nenhum.

Se estudarmos as diversas manifestações da intelligencia, no campo das sciencias especulativas, ha de ver-se que desde os Dialogos até as Palavras de Zarathrustra, desde Platão até Nietzsche, não ha nenhum espirito isento de defeitos.

Quantas vezes lendo nós as grandes obras d'esses entes reputados sobre humanos, quantas vezes não encon-

Página 304

304 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

tramos n'ellas pensamentos incomprehensiveis, phrases obscuras, ideias contradictorias, e quantas vezes tambem não somos nós que, aclarando esses pensamentos incomprehensiveis, dando-lhes uma interpretação que elles não lhes deram, illuminando as phrases obscuras, suavizando ideias repugnantes, attribuimos aos auctores pensamentos originaes ou elevados que elles não tiveram, e applaudimos como obra sua o que não é senão obra do nosso proprio pensamento!

Se olharmos n'um relance para ás grandes criações literarias desde Daphnis e Chloe até o Amor de Perdição, desde Longus até Camillo, veremos que muitas vezes são imperfeitos os traços que afiguram as personagens e que somos nós, que os conhecemos, que lhes completamos os retratos, dando-lhes côr, relevo e movimento e festejando nos auctores o que não é mais do que o resultado da nossa propria collaboração.

Em arte succede a mesma cousa: não ha obra perfeita. Tem defeitos o Hercules Farnesio; e no Apollo de Belvedere encontram os criticos os pés irregulares, grande o torso e parece que nem as linhas da sua fronte obedecem ás regras da anatomia artistica.

E na tribuna?

Qual é o orador por mais que se considere, que poderá dizer á imprensa: cala-te, não tens que me censurar? Nenhum.

Desde Eschines e Demonsthenes até ao maior orador do nosso tempo quantas intercadencias de palavra! Quantos desfallecimentos de raciocinio! Quantas desobediencias aos preceitos da grande arte de falar!

De Cicero se conta que reconstruia os seus discursos de tal maneira que aquelles que publicava mal se pareciam com os que havia proferido. Refere-se até que enviando a Milão, que fôra, condemnado a desterro para Marselha, um exemplar da defesa que fizera, este lhe respondera:

«Se tu tivesses proferido esse discurso, eu não estaria aqui comendo peixes barbados».

Tinha-lhe mandado outro!

Se isto é assim, quem tem o direito de impedir que os outros exerçam livremente a sua critica sobre os actos da nossa intelligencia?

Ninguem.

Pode, é certo, ser exagerada para mal a apreciação que façam de nós, mas se o merito é real e a intelligencia é provada, uma demasia de palavra em nada os prejudica.

Estou a ouvir dizer aos que me escutam: quanto á dignidade intellectual é possivel que estejamos de accordo, mas quanto á dignidade moral, isso é outro caso.

Ha nada superior á dignidade moral?

Pois eu atrevo-me a dizer que assim como não ha intelligencia completa, não ha honestidade perfeita.

Qual é na historia da humanidade o homem que representa a mais completa organização moral?

Aquelle cuja vida tem passado através das gerações como um prototypo; encarnando a maxima honestidade foi Catão. Pois Catão, que dava dinheiro a juros, como qualquer agiota, praticava actos censuraveis como qualquer homem.

Catão foi principalmente uma convenção dos inimigos do cesarismo. Exageraram-lho as virtudes, engrandeceram-lhe a figura, e atiraram com ella, como uma clava, contra as immoralidades do Imperio.

Quer isto dizer que não haja honestidade? Não, mil vezes não.

Quer simplesmente dizer que não existe caracter moral de especie alguma que possa julgar-se inatacavel. Ha de ter os naturaes defeitos humanos e não deve, penso eu, eximir-se a entregar esses defeitos á critica dos outros.

Disse hontem aqui o Sr. Campos Henriques que alguns comparavam a imprensa a um microscópio. E com effeito essa a phrase de Girardin. E na verdade, assim como nas mãos do naturalista o microscopio não descobre seres que não existam, assim não pode encontrar em ninguem faltas ou defeitos que sejam simples productos da calumnia.

D'entre os nossos homens publicos haverá algum a quem não deva tremer a mão quando assigne uma lei oppressora da liberdade de imprensa?

Dirige-se a imprensa ás vezes, por maneira cruel, aos homens de Estado?

Talvez seja assim; mas não devem elles esquecer que é a imprensa que leva a sua voz aos logares mais distantes no paiz, que é ella que propaga as suas opiniões, que é ella que as lança na consciencia publica e que dos applausos d'essa consciencia provem a sua maior gloria.

Não teem os chefes de partido os seus jornaes que os engrandecem, cobrindo-os dos mais elogiosos adjectivos? Não teem as grandes. recepções nas gares? Não são celebrados nas mais levantadas apotheoses? Que lhes importa, pois, que nos seus triumphos se erga uma voz destoante que grite como nos triumphos de Cesar: Gallias Cesar subegit, Nicomedes Cesarem? Ennodoou de qualquer modo essa phrase sangrenta a gloria do triumphador?

Eu, Sr. Presidente, que não tenho partido politico, nem tenho jornaes, eu que na imprensa tenho vivido sempre por meio da subscripção dos meus amigos, estou muito longe de me lastimar, e acho que, feito o competente balanço, existe um saldo de elogios em meu favor que excede em muito o meu merito real.

Os delictos de imprensa revestem um caracter e teem uma indole especial differente da das outras especies de delictos.

Pratica-se por exemplo um crime de homicidio. Será possivel restituir por qualquer modo a vida ao assassinado? Não é.

Mutila-se um membro do corpo humano. Será possivel restituir á forma primitiva a parte deformada? Tambem não.

Trata-se, porem, de um delicto de imprensa que affecta a consideração social devida a qualquer pessoa. Será este como os outros um mal para que não haja remedio? Não é, Sr. Presidente. Vem quasi sempre uma subscripção de elogios; inscrevem-se em favor do offendido os seus partidarios, os seus amigos, os proprios indifferentes, quando a aggressão é injusta, e no fim de tudo cobrem-no com um manto de louvores e de maneira tal que ainda fica elevado no apreço dos seus concidadãos.

Ah! mas a suprema honra, esse sentimento nobilissimo da alma humana, não terá o direito de reclamar em seu auxilio a suprema justiça, a maior concepção do direito absoluto?

Mas a suprema honra e a suprema justiça são simples criações abstractas ou especulativas, ou meras figuras de rhetorica. A suprema justiça na ordem social é a suprema expressão da selvajaria.

Pratica-se o mais hediondo de todos os crimes. Mata-se um homem nas condições mais horrorosas e mais execrandas, arripia o coração e estremece de horror a parte mais intima do nosso ser. O que faz então a suprema justiça? Tres agentes a representam na sua obra: um juiz que condemna, um algoz que executa a sentença, e a terra que consome o homicida, recebendo o no seu seio e convertendo-o no humus de onde primitivamente saiu.

Se for possivel reunir as tres entidades numa só, teremos então photographada a suprema justiça na mais pura representação.

Aqui está ella: o selvagem condem-na, mata, executando a sua sentença, e elle proprio devora a sua victima.

Eis a razão por que a suprema justiça é a suprema selvajaria!

É esta a justiça social? Não, não pode ser. Sobre tal justiça entornou a civilização a sua uma de bondade. Foi ella que aboliu a pena de morte, que extinguiu as penas perpetuas, e que hoje suaviza a situação do criminoso, definindo-lhe a responsabilidade, e so-

Página 305

SESSÃO N.° 30 DE 26 DE FEVEREIRO DE 1907 305

pesando as condições do seu temperamento, as suas taras hereditarias, todos os elementos biologicos, emfim, que podem ter determinado a acção condemnavel.

Noli esse multum justum, dizia o Ecclesiastico: - Não queiras ser demasia damente justo. É este o lemma da justiça civilizada.

Sejamos justos, sim, mas associemos á infinita justiça a infinita bondade.

E a suprema honra?

A suprema honra não é muitas vezes mais do que a suprema vaidade e o supremo orgulho.

Sejamos em tudo razoaveis para não parecermos ridiculos. Contentemo-no em ser honestos e não nos julguemos isentos das faltas que os homens se perdoam uns aos outros.

Para quê, pois, tanto rigor com a critica dos nossos actos?

E depois, Sr. Presidente, serão efficazes, no sentido desejado pelo legisla dor, as leis oppressoras do pensamento humano?

Evitarão essas leis a livre expressão do pensamento?

Quem affirmar isso não conhece historia.

O pensamento vence tudo.

Não ha regimen por mais forte, vontade por mais energica, forca por mais resistente que possa dominar o pensamento.

Consulte V. Exa. a historia.

Até sob o imperio de Nero achava Lucano maneira de verberar o despota.

Quem ler as grandes obras da literatura latina fica pasmado ao ver as audaciosas accusações feitas ao cesarismo, sob o dominio da legislação mais cruel. Arrancavam a vida aos escriptores, ou suggeriam-lhes o suicidio, mas havia uma cousa que ninguem conseguia tirar-lhes: era a liberdade do seu pensamento.

A mim faz-me uma impressão tão grande a ideia de que alguem pode opprimir o meu pensamento, que me parece sentir no cerebro o peso de uma massa de chumbo ou a pressão de um traumatismo doloroso!

Na minha mocidade combati o celibato clerical, defendi a perfilhação dos filhos sacrilegos, e tive o prazer de ver essa doutrina sanccionada pelos nossos tribunaes.

Fui condemnado pelos clericaes e creio que posto no Index; essa condemnação nunca obstou, nem obstará a que eu manifeste o meu pensamento em qualquer assumpto religioso, como e quando eu julgar conveniente.

Hoje, com esta lei, e com o Ministerio Publico ás ordens dos reaccionarios, tinha com certeza seis meses de prisão. (Riso).

Os dois grandes inimigos do pensamento humano foram sempre a Igreja e o Estado. Porque ambos são tradicionalistas e conservadores. Não que rem ser perturbados na sua acção.

O que faz o Estado?

Espreita o pensamento, e quando o pensamento se exterioriza castiga-o, porque é demasiadamente atrevido.

O que faz a Igreja?

Essa, toda espiritual, colloca dentro do proprio cerebro a lei divina e apenas o pensamento desponta, já se apossa d'elle para o considerar como um peccado.

De sorte que, apenas gerado e ainda por sair á luz, já está sob a acção de um policia. Quando vem cá para fora o Estado ou a Igreja, ou ambos juntos, apertam-no de tal modo que seria esmagado, se não fosse invencivel o seu poder de resistencia.

E tão invencivel é o pensamento humano que até resistiu á propria censura previa.

Basta que V. Exa. veja a historia portuguesa narrada pelos nossos chronistas.

Podia referir um grande numero de passagens, todas destinadas a provar que, não obstante as diversas especie de censura, elles sempre diziam o que queriam dizer.

O nosso velho Fernão Lopes, por exemplo, narrando os acontecimentos do reinado de D. Fernando, quando chega á morte do Conde de Andeiro, caido proximo da Rainha D. Leonor, attribue a esta a seguinte phrase que cito de memoria: «Ámanhã irei S. Domingos pôr as mãos no fogo», e accrescenta maliciosamente: «O que ella tinha pouca vontade de fazer».

Se vigorasse então a lei de imprensa, á estaria o bom chronista incriminado em falta de respeito e condemnado por accusação do Ministerio Publico.

Toda a Camara conhece as apostrophes vigorosas de Vieira contra os ladroes que elle dizia existirem em Portugal, nas ilhas adjacentes e no ultramar. É a celebre conjugação do verbo rapio. Pois com esta lei o grande orador, não se livrava de seis mezes de cadeia, embora tivesse escapado á censura.

Tenho aqui uma passagem que eu não posso deixar de ler á Camara; em primeiro logar porque o auctor d'este livro é talvez no primeiro escriptor portuguez. Um dos maiores, com certeza.

É um classico, um d'aquelles auctores que todos os que usam da palavra pela penna ou na tribuna deviam ter a cabeceira. Ninguem escreve, como elle, esta formosa lingua portugueza, que soluça, geme e chora para exprimir as grandes dores, ou troveja tam lura como as armas que em nosso prol terçavam nas pelejas.

V. Exa. vae ver; este livro foi impresso e publicado em 1728 perante a face beatifica e majestatica do Rei D. João V.

Tem licença da congregação, do Santo Officio, do ordinario e do Paço.

Antes de citar a passagem, devo fazer uma declaração: é que eu não concordo com a doutrina aqui expressa, nem tem applicação alguma á actualidade; viria n'este sentido fora de proposito e abrangeria amigos meus dedicados, a quem devo a maxima lealdade e estima. Ninguem deve ver, por consequencia, a mais ligeira referencia n'esta passagem que vou ler, leio-a unicamente para mostrar a liberdade com que se escrevia.

O auctor é o Padre Manuel Bernardes e descreve a camarilha. Enuncia primeiro as palavras de certo imperador e depois tira duas illações. «Uma, diz elle, que nos paços dos nossos reis costuma haver muita hypocrisia; outra que os mais dos homens (uns mais, outros menos) teem alguma cousa de hypocritas».

Adeante:

«Quanto á primeira não é facil crer, como as aulas dos principes e grandes do mundo são terreno fertil, esphera propria das lisonjas, affectações, supposições, embustes, dolos, contraminas, dissimulações, cautelas, trêtas, verrinas, mascaras, tramoias, estratagemas, emboscadas, armadilhas, solapamentos, nós gordianos e labyrinthos».

Tudo isto nos palacios dos principes e grandes do mundo!

E depois, com aquella fina elegancia no dizer, accrescenta:

«Multipliquei as vozes a ver se podiam adequar o significado».

Ora, Sr. Presidente, se o frade dissesse isto hoje, onde estaria em face da nova lei?

A mim não me admira que a congregação desse licença para se imprimir a obra. Ella não feria os interesses da Ordem e não atacava os confrades; não me admira tambem que o Santo Officio deixasse publicar o livro, isto não tinha nada com a religião; não me admira ainda que alcançasse licença do ordinario; o auctor não combatia os decretos episcopaes nem as constituições do bispado. O que realmente me causa admiração é o representante do Paçô applaudir e elogiar o livro, dizendo que não contem cousa alguma contra as regalias d'estes reinos e que augmenta o credito de que o auctor goza entre os maiores homens de todas nações.

É que a liberdade do pensamento escapa ás prohibições, ás censuras previas, a tudo.

Página 306

506 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

Para que serve, pois, estabelecê-las?

Todas essas restricções são inuteis e inefficazes.

Mas, Sr. Presidente, poderão as leis repressivas da imprensa contribuir para consolidar uma forma de governo, monarchia ou republica? Não.

Isso não passa de uma utopia desmentida pelos factos.

Vejamos os factos, porque a historia contemporanea está cheia d'elles.

Em Hespanha, no reinado de Isabel, é perseguida a colligação liberal, emigram os seus homens mais importantes, a imprensa é sujeita a um regime severo. Impediu isso a queda da Rainha?

Napoleão, que detestava os jornalistas, nos primeiros annos do seu governo fez a lei de 1810, que até admittia a censura para os livros e obrigava ao juramento de nada se imprimir contra o imperante ou contra os interesses da Estado. Impediu isso a abdicação de Napoleão I?

Volta o Imperador da ilha de Elba, e então faz precisamente o contrario: é supprimida a censura e entrega-se ao jury o julgamento dos delictos.

Durou pouco tempo tempo o seu governo, pois em Santa Helena dizia aquelle grande pensador que tinha dado a liberdade á imprensa, e não se arrependia, porque não fôra ella que contribuirá para a sua queda.

Aqui tem V. Exa. uma declaração de grande valor.

Sigamos a historia de Franca.

Em 1828 era condemnado Béranger o grande poeta popular, a nove mezes de prisão; dois annos depois publicavam-se as celebres ordenanças do Ministerio Polignac e dentro de quatro dias surge e cresce a revolução que nem sequer deu tempo a que Carlos X constituisse um novo Governo e salvasse a Corôa na cabeça do neto.

Evitaram as Ordenanças a queda?

E, não será licito perguntar, em vista dos acontecimentos, se não foram ellas que a apressaram?

As perseguições impediram a queda de Luiz Filippe em 48?

Mas a demonstração mais frisante da inutilidade das medidas repressivas da imprensa está no que succedeu no segundo Imperio.

Estamos em 29 de outubro de 1868. O jornal Le Réveil, dirigido por Delescluze, publica o seguinte:

«Um jornal annuncia que a 2 de novembro, dia dos mortos, serão fechados os cemiterios de Paris. Esse jornal está evidentemente mal informado. Não pode impedir-se um povo de se honrar a si proprio, honrando a memoria d'aquelles que lhe legaram grandes exemplos, d'aquelles que como Godofroy Cavaignac, gastaram a sua vida nas lutas da liberdade, d'aquelles que, como Baudin, cairam martyres defendendo a lei».

Fez-se a manifestação em Montmartre, sem embargo da prohibição; são cobertos de coroas os tumulos dos dois defensores da liberdade, e abre-se uma ubscripção para se erigir um monumento á memoria do heroico representante do povo.

Franqueiam as suas columnas aos subscriptores o Réveil, o Avenir Nationale e a Tribune.

Instaura-se o processo por crime de liberdade de imprensa, e nos debates que começam em 13 de novembro perante o tribunal correccional do Sena appareceram como defensores dos accusados, entre outros, Cremieux, Manoel Arago, Gambetta, tres das vozes mais eloquentes do foro e da tribuna parlamentar.

São condemnados os directores dos jornaes, uns a prisão e outros, a multa. Fica satisfeita a justiça, mas não fica com esta condemnação mais robustecido o Imperio.

Decorre um anno, estamos em novembro de 69; dois militares assistem a uma reunião publica e são sujeitos a rigorosas penas disciplinares. O filho de Victor Hugo propõe, num artigo do Rappel, que se abra uma subscripção para os remir do serviço do exercito. Os tres maiores genios da França, Michelet, Hugo e Edgar Quinet, adherem ao pensamento do jornal; a subscripção attinge uma cifra elevada. Olivier, Ministro da Justiça havia dois dias, tinha mandado a 4 de janeiro perseguir o Rappel. Carlos Hugo, Pyat e Barbieux são condemnados ás penas da lei.

Fica com esta condemnação consolidado o Imperio?

Chegamos a 11 de janeiro de 70; Rochefort na Marseillaise chama assassino a Pedro Bonaparte, depois do caso Victor Noir; a Camara auctoriza o processo contra o auctor do artigo, que é condemnado a seis mezes de prisão e a 3:000 francos de multa.

O Imperio, já vacillante, fica mais firme depois d'esta condemnação?

Não, Sr. Presidente, nenhuma força adquiriu com isto o Imperio de Napoleão; elle proprio o reconheceu, vendo-se obrigado a entregar a sua sorte e a da sua dynastia ás aventuras da guerra, que tantas desgraças fez cair sobre a França, e que entregou o Imperio moribundo á assembleia de 4 de setembro.

Mais longe poderia ir, muito mais longe, mas a minha palavra já não tem força: é uma palavra sexagenaria; já não tem a maleabilidade com que se amoldava á variedade dos assumptos, já se entibia, já fraqueja, já de todo fallece.

Pois bem. Quero fazer uma affirmação solemne perante a Camara. Tendo cumprido rigorosamente todas as obrigações que contrahi por virtude dos meus actos livres e conscientes, quero que o resto dos meus dias, muitos ou poucos, sejam consagrados somente á defesa dos principios de verdadeira liberdade, porque está n'isso, no meu entender, o interesse da monarchia e da nação a que pertenço.

Deixe-me V. Exa. falar de mim pela ultima vez.

Entrei na vida publica em 1874. Quiz o acaso que eu convivesse logo ao inicio da minha carreira com os homens mais liberaes do meu tempo.

Conheci de perto Joaquim Antonio de Aguiar, já impossibilitado para o o Governo da sua nação, mas ainda ao impossibilitado para aconselhar os novos, que se acercavam d'elle, a manter e conservar os principios de liberdade.

Ouvi-lhe muitas vezes contar as circumstancias em que tinha sido publicada a lei que supprimiu as ordens religiosas e o sigilo que se guardou, soando a publicação em todo o paiz com extraordinaria surpresa.

Ouvi-lhe a narração commovida da morte de Agostinho José Freire e como pela sua previdencia escapara de ser tambem assassinado.

«Nós fomos rio abaixo em direcção a Belem, dizia Aguiar; elle mais ousado temerario, foi pelas Janellas Verdes e ali foi atravessado pelas bayonetas dos soldados revoltados».

E com a narração dos factos da primeira epoca constitucional vinha sempre a affirmação das doutrinas liberaes do Governo.

Convivi com Sampaio, que fui Presidente do Conselho na primeira situação politica de que fiz parte, e collaborei com elle, como relator, na sua reforma de 1878, que estabeleceu a verdadeira descentralização administrativa.

É uma lei que honra um homem, um partido e a nação que tambem a comprehendeu, e que com tanto fervor a reclama ainda hoje. (Apoiados).

Auxiliei o na feitura das suas leis sobre instrucção primaria, e dei-lhe o apoio da minha palavra na Camara e nas commissões em todas as suas medidas, sempre pautadas pelas tradições liberaes d'aquelle grande espirito.

Propuz em 1883 a abolição das penas perpetuas, que não pude converter em lei por ter saido do Ministerio, mas que vi com prazer adoptada na reforma penal de 1884.

Página 307

SESSÃO N.° 30 DE 26 DE FEVEREIRO DE 1907 307

Apresentei um projecto de revisão criminal, como não ha igual em nenhuma nação da Europa.

Ao Sr. Antonio de Ázevedo Castello Branco pertence a gloria eminente de a ter nos seus principaes fundamentos convertido em lei.

Esse projecto admittia sem especificação de casos - e n'isso está a sua superioridade sobre as leis de todas as outras nações - a revisão criminal.

Ideia inteiramente nova, porque todos os jurisconsultos se arreceavam de alargar de tal modo o direito dos condemnados.

Lá está isso exposto e justificado no relatorio com que precedi o projecto.

Se em França existisse uma lei igual, não surgiriam as difficuldades que appareceram na revisão do processo Dreyfus.

Dentro da nossa lei, ao contrario da lei franceza, cabem todas as revisões, quaesquer que sejam os motivos que as possam determinar.

Tenho a certeza de que se alguma nação, por mais civilizada que seja, quizer fazer uma lei sobre a materia, não encontrará melhor, modelo em parte alguma.

Não quero falar do ultramar, porque não estou justificando os meus actos em resposta a adversarios que os ataquem, mas consintam-me que eu declare que no Codigo Administrativo de 1881 deixei consignado o preceito de que deve ser chamado a fazer parte dos Conselhos do Governo o elemento indigena, qualquer que seja a sua côr, a sua raça ou a sua religião. (Apoiados).

É o complemento natural da abolição da escravatura.

Somos uma nação pequena, é certo, mas os povos pequenos, que não podem impor-se pela força das armas, devem impor-se pela grandeza das ideias.

Refiro estes factos da minha vida politica, simplesmente para mostrar que nenhum sacrificio faço defendendo a liberdade de imprensa.

Ella está, sem empregar, o minimo esforço, na minha ordem de pensamentos.

Quando, Sr. Presidente, volvo os olhos para o passado, é com profunda dor e com viva saudade que me lembro de todos aquelles que commigo entraram na vida publica, que foram meus companheiros na lucta, e que cairam a meu lado fulminados pela morte.

Lembro-me de Lopo Vaz, o orador erudito e eloquente, o estadista habilissimo, que tinha melhor do que ninguem o segredo de tratar com os homens; de Manoel de Assumpção, essa palavra correcta e brilhante, que tanto levantava a tribuna; de Marçal Pacheco, o espirito subtil que tinha para tudo um argumento engenhoso; de Pinheiro Chagas, cujo verbo echoava radiante como um clarim de guerra; de Emygdio Navarro, eloquencia pujante, que caiu como desaba um roble cortado.

Lembro-me de Frederico Laranjo, ainda vivo felizmente, mas afastado pela doença das luctas onde tanto se affirmou pelo seu talento e pelo seu bondoso coração. De todos me recordo com profunda commoção.

E quando me encontro com saude bastante para poder occupar sem fadiga a attenção da Camara durante tanto tempo, parece que uma voz estranha me aconselha a pôr de lado ambições de qualquer especie, dedicando o resto dos meus dias unicamente á defesa dos bons principios: comecei defendendo a liberdade, quero morrer defendendo-a tambem.

Não tenho ambições do mando. Não pleiteio o poder a ninguem. Quero para mim a liberdade da tribuna, a independencia do meu espirito, que é aquillo que mais adoro na vida. Seja quem quizer Ministro ou Presidente do Conselho; governem o paiz como quizerem e entenderem; não sou rival e nunca impedi o caminho a ninguem. Muitas vezes me tenho afastado para deixar passar os outros.

Vou terminar.

Comecei defendendo a liberdade. Pois, Sr. Presidente, quero realizar e cumprir o desejo, manifestado no verso do nosso adorado poeta:

Quero fechar o circulo da vida
No glorioso ponto da partida.

(O orador foi cumprimentado por toda a Camara e pelo Sr. Ministro da Justiça).

O Sr. Presidente: - A seguinte sessão é amanhã com a mesma ordem do dia.

Está levantada a sessão.

Eram 5 horas e 25 minutos da tarde.

Dignos Pares presentes na sessão de 26 de fevereiro de 1907

Exmos. Srs.: Sebastião Custodio de Sousa Telles; Marquez-Barão de Alvito; Marquezes: de Avila e de Bolama, de Gouveia, de Penafiel, de Pombal, de Sousa Holstein; Condes: de Arnoso, de Bertiandos, do Bomfim, do Cartaxo, de Castello de Paiva, de Lagoaça, de Paraty, de Sabugosa, de Tarouca, de Valenças, de Villa Real, de Villar Secco; Viscondes: de Monte-São, de Tinalhas, de Athouguia; Moraes Carvalho, Alexandre Cabral, Braamcamp Freire, Pereira de Miranda, Antonio de Azevedo, Costa e Silva, Santos Viegas, Teixeira de Sousa, Telles de Vasconcellos, Campos Henriques, Arthur Hintze Ribeiro, Carlos Palmeirim, Carlos Maria Eugenio de Almeida, Eduardo José Coelho, Eduardo Villaça, Serpa Pimentel, Ernesto Hintze Ribeiro, Mattozo Santos, Coelho de Campos, Ferreira do Amaral, Francisco Machado, Francisco de Medeiros, Francisco Maria da Cunha, Almeida Garrett, Baptista de Andrade, Gama Barros, Jacinto Candido, Teixeira de Vasconcellos, Avellar Machado, José Dias Ferreira, José Lobo do Amaral, José Luiz Freire, José de Alpoim, José Maria dos Santos, José Vaz de Lacerda, Julio de Vilhena, Luciano Monteiro, Rebello da Silva, Pimentel Pinto, Pessoa de Amorim, Poças Falcão, Affonso de Espregueira, Raphael Gorjão e Pedro de Araujo.

O Redactor,

ALBERTO PIMENTEL.

Página 308

Descarregar páginas

Página Inicial Inválida
Página Final Inválida

×