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gar que fosse por despreso d«. justiça, parece á primeira vista que eu me deveria reputar tranquillo, descansando na competencia de taes auctoridades; difficil é porém descansar na competencia alheia quando a consciencia o não permitte; e desculpe-se-me ainda d'esta vez invocar a consciencia, mas não sei que outro termo deva aqui empregar; é verdade que a consciencia se avalia mais por actos do que por palavras, mas é absolutamente indispensavel explicar os actos por palavras, para que elles não sejam mal interpretados.

Sr. presidente, poderia muito bem acontecer que os srs. ministros, e os outros membros do parlamento, não pelo desprezo da justiça, mas por terem a attenção dividida por muitos negocios importantes, não dessem a esta desditosa questão o peso que eu, afastado completamente das lutas politicas, no remanso da minha vida privada, lhe tinha dado, e por isso não reputava a minha consciencia serenada sobre a questão que ella me indicava necessario resolver. Para que o animo fique tranquillo, é preciso que a consciencia o esteja.

Esta sentinella que a Providencia felizmente escolheu para nos mostrar, não só a senda que devemos trilhar, mas a responsabilidade pelo mal que fazemos ou pelo bem que deixâmos de fazer, aguilhoa-nos constantemente, e mal vae a quem uma vez sómente deixar de obedecer aos seus dictames.

É por isso que eu procurei desempenhar-me da obrigação e responsabilidade que me compete como pertencente ao parlamento.

Sr. presidente, ainda que não tenho tenção de fazer um discurso sobre esta materia, releve-me a camara um pequeno exordio, não com o fim de dispor o auditorio, porque bem sei não tenho dotes de eloquencia, mas sobeja-me a justiça da causa, e appello para as boas intenções da camara e do governo para a reparação da injustiça; estes elementos são aquelles com que conto para supprir a deficiencia do orador, mas não posso deixar de fazer um pequeno exordio para que se não dê uma má interpretação ás minhas palavras e intuitos. Quantas vezes, sr. presidente, nós não deixâmos de fazer o bem com receio de que seja interpretado em mal? E isto é tanto mais commum, quanto no systema representativo que felizmente nos rege, e que é baseado principalmente sobre o principio popular, se costumam lisonjear os povos como antigamente se lisonjeavam os reis, sacrificando assim os nossos sentimentos aos alheios; mas se a lisonja, porque offende a justiça, é impropria de quem aconselha os reis, não o é menos de quem falla aos povos.

É porém dever de cortezia dos palacianos, quando têem de contrariar a vontade do monarcha, faze-lo, não só com delicadeza de fórma, mas declarar que o fim que tem em vista não é fundado em caprichos nem em vontade propria, nem com o fim de contrariar ou censurar.

Emquanto aos povos, cumpre tambem que procedamos do mesmo modo; é por isso, sr. presidente, que eu devo declarar á camara, ao governo e ao paiz os motivos que fizeram com que levantasse esta questão. Parece á primeira vista que eu poderia, usando da iniciativa que me cabe, apresentar um projecto para a reforma da lei segundo as minhas idéas, e não procurar a opinião do governo, podendo assim parecer que lho quero levantar difficuldades. Não é essa a minha intenção; no meu animo não ha desejo algum de fazer opposição ao governo nem á sua organisação politica, com a qual me conformei; e se divirjo em um ou outro ponto, se não o apoio em todas as questões, a camara sabe que é essa a maneira habitual do meu proceder politico. Não ando nunca vinculado a ninguem. Tambem não ha da minha parte indisposição particular contra os srs. ministros, e muito menos contra aquelle a quem me dirijo, de quem sou amigo ha muitos annos e d'isso muito me prezo.

Sr. presidente, eu conheço, apesar da minha pouca ingerencia nos negocios publicos, a inefficacia da iniciativa individual em negocios d'esta ordem, e que não succede o mesmo com relação aos de iniciativa do governo. E certo que eu poderia consultar particularmente o governo, visto que as minhas relações com elle não estão interrompidas; comtudo julguei mais conveniente chamar a sua attenção por este modo, por meio de uma interpellação, sem que ella comtudo tenha um caracter politico ou hostil, a fim de apresentar as minhas idéas, e do ouvir as do governo, porque os governos consultados em particular, com qualquer obstaculo mudam de opinião, tal a força da propria conservação; porém se estas considerações não bastam, parece ser obvio que uma questão d'esta natureza não se levanta para grangear popularidade, porque, pelo contrario, parece-me que é indubitavel que arraste com a impopularidade da causa.

Portanto se levanto esta questão é porque vejo sete infelizes creanças sem pae, sem patria e sem amigos (salvo honrosissimas excepções, porque as ha em toda a parte, e n'este caso essas excepções são bem honrosas, porque n'ellas existe o grande merecimento da dedicação, desprezando honras, fortuna e patria, e permitta-se-me fazer-lhes aqui justiça, vá uma palavra de respeito aos arraiaes contrarios, a novissima virtude da lealdade o merece), offendidas em seus direitos com grave prejuizo da justiça e com vergonha para o partido liberal.

Parece-me desnecessario protestar que não pertenço ao partido absolutista, nem por tradições, nem por factos, e muito menos por idéas. V. ex.ª, sr. presidente, que tanto me tem honrado com a sua amisade, e a quem tenho exposto os meus sentimentos, assim como a quasi todos os dignos pares, fazem-me completa justiça; e n'esta parte não tomarei mais tempo á camara, porque julgo que me assistem requisitos de mais para poder tratar esta questão desafogadamente, mesmo porque nunca tive relações, nem directas nem indirectas, com o ex-infante nem com a sua familia.

Esperando desculpa por ter distrahido a camara com estas considerações, procurarei ser o mais breve que possa na exposição da minha interpellação.

Se pretendesse apresentar aqui os motivos pelos quaes foi promulgada a lei de 19 de dezembro de 1834, incorreria em grave erro, alem de levantar uma questão em que difficilmente o partido liberal poderia deixar de fazer aggressões severas ao outro partido. Os dignos pares, meus collegas,. que pela maior parte se distinguiram nas lutas da liberdade, que lhe sacrificaram o seu sangue, que ficaram privados de bens de fortuna, e que tanto fizeram para plantar esta arvore frondosa a que todos os partidos se abrigam, poderiam dizer como o grande poeta latino, quando Dido o convidava a cantar as desgraças de Tróia:

Infaudum, regina, jubes renovare dolorem

... quaeque ipse miserrime vidi

Et quorum pars magna fui

Não posso porém, sr. presidente, respeitando estas rasões de conveniencia, e partindo do principio de que é inutil lembrar a todos os dignos pares aquillo que todos bem sabem, deixar de fazer algumas considerações sobre a referida lei.

Justificou-se aquella lei, não pelas paixões politicas, porque seria uma triste justificação se attendessemos a que, ainda que proximo da luta, as paixões politicas tinham sido o unico fundamento com que os corpos politicos do paiz tinham feito uma lei ad hoc; seria injustiça ao paiz e ás idéas dos que tinham soffrido pela liberdade, e aos espiritos illustrados d'aquella dizer que se esqueceram fortunas, privilegios e riscos de vidas, para vir trazer ao paiz as idéas livres, e abrigar debaixo d'ellas gregos e troianos; seria fazer injustiça aos actos d'aquella epocha, em que os primeiros passos dados em territorio portuguez serviram para decretar as primeiras e nunca interrompidas amnistias aos que se quizessem sujeitar ao dominio da justiça e da legalidade; seria desconhecer estes principios de liberdade, que os governos já solidamente estabelecidos têem sabido manter com tanta dedicação; não foram as paixões politicas, sr. presidente, foi a imperiosa lei da necessidade, porque se tinha levantado a luta entre a antiga e a moderna sociedade, entre a anarchia e o progresso, a lei e a injustiça, a ordem e a desordem, entre a civilisação e o obscurantismo; o tinha se envolvido era tudo isto uma luta dynastica, que era mais um pretexto de que se servia o impropriamente chamado partido legitimista, e que eu chamarei, como a rainha rasão me indica, partido absolutista.

A sombra d'este direito dynastico trouxe atrás de si muitos proselytos das velhas idéas, e que se deixaram levar pelas mal definidas provas da real successão. Pareceu, terminada a luta, que se tinha hasteado a bandeira da liberdade e da justiça, que se tinham acabado os combates; a causa dos vencidos porém tinha ainda uma grande influencia politica, tinha uma grande importancia, e os liberaes não podiam esquecer estas circumstancias e á necessidade de manter a segurança do governo, que tanto sangue tinha custado ao paiz.

Sr. presidente, isto justifica a necessidade da lei a que nos referimos. Póde tambem sustentar-se que essa lei teve em vista castigar os erros, para não usar de outro termo, do principe proscripto; mas sobre este ponto, sr. presidente, cumpre-me não dizer uma só palavra. O principe proscripto acha se ao abrigo da caridade christã, o principe proscripto acha-se na sepultura, e esta circumstancia é sufficiente para que nós deixemos á historia a tarefa de apreciar os factos, quando as paixões estiverem arrefecidas, para se não faltar á justiça, e eu não estou escrevendo a historia.

Sr. presidente, a lei de 19 dezembro de 1834 tem sempre contra si: 1.°, ser uma lei de excepção; 2.°, exceder a necessidade; e 3.°, abranger a innocencia, querendo castigar o culpado. E sobre estes pontos principaes que vou apresentar algumas considerações á camara. Todos os dignos pares são assás illustrados, e por isso se torna desnecessaria a exposição sobre os inconvenientes das leis de excepção. Nos livros que todos manuseamos existe perfeitamente refutado tal systema. N'esses livros se diz que nas occasiões supremas é que se deve attender a esta fórma legal, porque póde offerecer mais garantias á sociedade. Essas leis raras vezes podem fazer-se sem que a influencia das paixões n'ellas appareça.

Sr. presidente, todos os publicistas admittem leis de excepção permanentes, e leis de excepção que não são permanentes. As leis de excepção permanentes trazem como principio proteger e não offender—-taes são as que estabelecem como tribunal o corpo legislativo para os ministros e para os seus membros, e ainda os tribunaes especiaes para os militares e para o commercio; leis de excepção não permanentes são as que tambem a carta admitte, e não direi o artigo, porque é conhecido de todos, como dando melhor garantia em certas e determinadas circumstancias — refiro-me á suspensão de garantias. Mas lei de excepção permanentes não podem servir para o caso em questão. Nenhum codigo as podia sanccionar nem as sanccionou. As leis de excepção com permanencia podem dar á sociedade uma garantia até ao ponto onde é preciso, mas leis de excepção para castigar e offender, e isto com caracter de permanencia, é que me parece que codigo algum sanccionou ou que nenhum publicista admittiu.

Sr. presidente, fez-se uma lei de excepção com caracter de sentença.

Infringiu-se por esta parte a carta constitucional, arvorando-se ali uma lei em sentença para castigar actos, que eram erros politicos contra o § 10.° do artigo 145.° Se estes actos eram crimes politicos, a formula a seguir era um processo, e esse processo julgado pelos tribunaes. Ainda

bem que isto se não fez, porque o codigo por onde seria punido era a ordenação, liv. 5.°; e nós não podiamos revogar essa sentença, nem termos hoje occasião de poder, depois de adormecidas as paixões, tirar da historia aquella nodoa.

Não entro mais n'esta parte, porque me parece que se acha completamente provada. A minha segunda proposição é exceder a necessidade.

A justiça é a virtude mais essencial de todas; e tão essencial a julgaram os moralistas, que a consideraram coma um dom da divindade. A justiça não póde absolutamente ser exercida pelos homens, porque a sua natureza caduca o não permitte. A justiça dos homens é relativa e não absoluta. A justiça funcciona sobre o podér moral. Nós não podemos attentar contra a vida do nosso similhante, mas se virmos a nossa vida em perigo vem a imperiosa necessidade, a mesma justiça nos dá o preceito de salvaguardar com preferencia a nossa existencia.

Pela natureza dos meios que temos á nossa disposição, permitte-se-nos que esqueçamos os direitos dos outros para salvarmos os nossos. A sociedade n'aquella epocha estava n'estas circumstancias, e por isso ella não offendeu a justiça quando salvaguardou os interesses da mesma sociedade. Mas era necessario que não fosse mais alem, porque desde o momento em que a necessidade não urgia que fossem affectados os direitos de outrem, a sociedade não podia de fórma alguma consentir que esses direitos affectados o fossem sem necessidade.

Sr. presidente, porque se não executou a lei que determina que os crimes d'aquella ordem sejam julgados em tribunaes? Nós sabemos que, pela convenção de Evora Monte, no artigo 7.° (leu), o ex-infante o senhor D. Miguel, e os seus partidarios, tinham reconhecido a necessidade do mesmo ex infante se sujeitar áquellas prescripções. Pelo seu manifesto incorreu o ex-infante nas penas que esta mesma convenção tinha disposto; logo cumpria faze-lo processar, o por sentença determinar-se quaes eram as penas em que tinha incorrido. Mas porque se não deu esta sentença? Seria porque a ordenação não ia tanto alem como nós fomos com esta lei? Não sei. Mas os factos auctorisam de alguma fórma a julgar-se tal cousa.

Permitta-me a camara que eu leia o artigo da ordenação, que convem para este caso. A ordenação, livro 5.°, titulo 6.°, § 14.°, diz assim, tratando dos réus que têem commettido attentados contra o rei, e por consequencia crime de lesa magestade:

«Porém os filhos de taes traidores poderão herdar de suas mães e aos outros parentes assim por linha direita, etc. E isto não sendo as taes pessoas culpadas em tal caso.»

Sr. presidente, pois nós no tempo da liberdade, tendo a carta constitucional que garante expressamente o direito de propriedade como determina no seu artigo 145.°, § 19.°, que diz assim: «Nenhuma pena passará da pessoa do delinquente.» Portanto não haverá em caso algum confiscação de bens, nem a infamia do réu se transmittíra aos parentes; podiamos de alguma fórma admittir os principios d'aquella lei? Parece-me que não, porque o artigo da lei, a que me estou referindo, diz assim:

«O mesmo ex-infante D. Miguel e teus descendentes são banidos do territorio de Portugal, para em nenhum tempo poderem entrar n'elle, nem gosar de quaesquer direitos civis ou politicos; a conservação ou acquisição de quaesquer bens fica-lhes sendo vedada, seja qual for o titulo ou a natureza dos mesmos; os patrimoniaes e particulares do ex infante D. Miguel, de qualquer especie que sejam, ficam sujeitos ás regras geraes das indemnisações.»

Esta é a lei de 19 de dezembro de 1834, no artigo especial sobre que versa a minha interpellação.

Sr. presidente, fazia-se isto quando a carta constitucional estava em vigor, e não por um decreto dictatorial, mas por uma lei; e não censuro, porque estou bem convencido de que o legislador por falta de clareza foi mais alem do que queria, porque não podia ser sua intenção transgredir a carta, porque não o podia fazer; interpretada devidamente no sentido litteral, dá esta manifesta injustiça; e logo entrarei n'esta questão da interpretação da lei, e mostrarei que ha necessidade de uma lei de interpretação authentica á mesma lei, visto que aos tribunaes pertence ao interpretar o sentido litteral das leis; mas a interpretação authentica, quando os tribunaes não acham as leis claras e explicitas, pertence ao corpo legislativo. Por consequencia, sr. presidente, eu ainda posso admittir, e admitto, que os descendentes do ex-infante D. Miguel possam ser uma causa de risco politico, emquanto elles, por um acto proprio, chegando á sua maioridade, não declarem que adherem ao nosso systema politico, e que não allegam direitos que nós não lhes concedemos, e que elles não têem, mas que suppõem ter. Mas devemos mostrar-lhes que não estâmos dispostos a sustentar uma lei que os privou do patrimonio dos seus antepassados e da fortuna de seu proprio pae, e puni-los a elles que ainda não eram então nascidos; isto apesar de, no acto addicional, acabar-se com a pena de morte para os crimes politicos.

Sr. presidente, parece á primeira vista que escapou aos legisladores do acto addicional e aos homens que se illustraram apresentando ao corpo legislativo aquella disposição da lei, estas circumstancias; façamos justiça, não escaparam, porque a mais velha d'estas creanças ainda não era nascida quando o acto addicional foi apresentado ás côrtes; e portanto façamos justiça aos homens, que tomaram a iniciativa n'uma disposição tão justa, como aquella, de acabar a pena de morte nos crimes politicos; honremo-nos agora em applicar a carta constitucional a estes desvalidos.

Sr. presidente, as paixões politicas desculpam grandes crimes, porque n'aquellas occasiões estão as nações atacadas de paixões e fóra de rasão, mas estes crimes devem ser imputados mais a quem os suscita do que a quem os pratica. É por isso que os defensores da revolução fran-