18 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO
minosos e condemnação dos discolos, conforme lhes chamou o Sr. Presidente do Conselho.
Oh! Sr. Presidente, como os tempos vão mudados! Como temos retrogradado!
Em 1877, ha trinta e um annos, deu-se um grande conflicto entre as forças policiaes e o povo de Lisboa.
A Camara Municipal fizera a adjudicação a um certo individuo do Passeio Publico, ainda então fechado por grades, que eu tive o prazer de deitar abaixo mais tarde; depois retirou-lhe a concessão. O concessionario protestou. Um juiz deu-lhe razão, mantendo-lhe a posse. Outro juiz deu razão á Camara. O concessionario annunciou uma funcção para a noite de 17 de agosto, affixando cartazes que a autoridade visou.
A camara, que dispunha da illuminação mandou apagar as luzes e determinou que o povo saisse, mas parte do publico deixou-se ficar.
Foi chamada então a policia e a guarda municipal a pé e a cavallo, para fazerem evacuar o passeio.
Á saida, do lado sul, os soldados com a maior brutalidade e estupidez começaram a acutilar o povo, resultando d'ahi ficarem feridas umas trinta pessoas, na maior parte gente inoffensiva que passava.
Foi geral a indignação publica.
Pois bem, quatro dias depois o Governo dava ao povo da capital a satisfação que lhe era devida, dissolvendo a camara municipal, demittindo o governador civil, suspendendo o commissario de policia que interviera na questão e mandando admoestar a guarda municipal, em virtude de um inquerito que havia sido ordenado immediatamente.
Mas isto fazia-se no tempo em que os Governos eram presididos por estadistas da envergadura do Marquez, depois Duque, de Avila e Bolama, esse homem notavel que durante muitos annos occupou o logar que V. Exa. agora tão dignamente exerce.
Mas agora, com os estadistas da concentração monarchica, só passados quatro meses é que apparece no Diario do Governo um relatorio de syndicancia, com pretensões a peça literaria, onde se faz a apotheose dos criminosos e a condemnação das victimas.
Aqui tem V. Exa., Sr. Presidente exposta num rapido relance, á luz amor tecida da minha palavra chã e simples, a serie de actos que tem illustrado este Gabinete desde o seu advento até a reunião do Parlamento e que definem a sua politica tortuosa e inconsistente, sem ideaes, nem principios, sem um plano definido, sem uma orientação segura.
Citei apenas os principaes, deixando de parte os secundarios, como, por exemplo, aquelle pittoresco caso do Governo, depois de ter dissolvido uma Camara já dissolvida, consultar ainda a Procuradoria Geral da Coroa, para saber se era perante ella que El-Rei devia ratificar o seu juramento.
Et j'ne passe et des meilleurs.
Era isto o que havia a esperar d'este Governo, que, apesar da sua defeituosa organização, foi recebido sob os melhores auspicios por todos os partidos politicos e pelo País trabalhador, carecido de paz e socego para se occupar da sua faina de todos os dias?
Não. A tentativa de restabelecer a normalidade da nossa vida constitucional e administrativa e de iniciar o novo reinado com um novo regime de ordem, liberdade e respeito á lei, falhou inteiramente.
A lei continua a ser postergada, como acontece em relação ás camaras municipaes e mais corporações administrativas.
A ignobil porcaria, por todos condemnada, ainda está de pé.
A reforma constitucional, considerada absolutamente necessaria e annunciada até no Discurso da Coroa, ninguem do Governo se occupa d'ella.
A imprensa continua a ser regida por uma lei que todos repudiam, mesmo aquelles que a votaram a titulo de experiencia.
As leis de excepção continuam tambem ainda a macular a legislação portuguesa, avultando entre ellas a lei de 13 de fevereiro, que, apesar de attenuada nalgumas das suas disposições por iniciativa do Sr. Conselheiro Alpoim, é ainda tão cruel que todos os partidos a teem repellido quando na opposição.
De pé está ainda tambem o monstruoso decreto de 11 de julho de 1907, que supprimiu a hierarchia judicial e converteu o Supremo Tribunal de Justiça num instrumento cego do poder executivo.
A lei de responsabilidade ministerial, que era uma das bases fundamentaes da concentração liberal, não se fala mais nella.
A annunciada reforma da policia, de modo que em vez de constituir o terror da capital, se converta, a D contrario, num corpo de segurança publica para proteger a vida e propriedade dos cidadãos, tambem não apparece.
O orçamento do Estado só principia a discutir-se já depois de começado o anno economico a que se refere e já depois de terminado o periodo constitucional da sessão legislativa, e assim é que neste momento vigora ainda o orçamento de 1904.
A questão do Douro, aggravada de dia para dia, toma um aspecto temeroso, e o Governo desinteressa-se d'ella.
Em compensação recomeçaram as querelas dos jornaes, as perseguições policiaes, as prisões mysteriosas, a espionagem dos bufos, os surdos boatos de intentonas; numa palavra, caimos em pleno regime da vida velha.
Tudo como d'antes.
Restabeleceu-se, é verdade, a ordem na rua, mais apparente que real; mas a desordem nos espiritos aumenta de dia para dia e ninguem sabe onde ella nos poderá levar se não for entravada pela acção energica e ponderada de um Governo uno e forte, com a envergadura necessaria para pôr por obra um plano completo de providencias que dêem plena satisfação ás aspirações democraticas de País e que offereçam insofismaveis garantias aos partidos avançados, que ninguem pode ter a loucura de pretender exterminar e que é mester considerar de futuro como uma força politica nacional. (Apoiados).
A famosa concentração liberal, que a principio dizia caçar no mesmo terreno dos republicanos, descambou, depois de abandonada pelo partido progressista, no mais feroz despotismo, que, com as suas prepotencias e arbitrariedades, provocou a horrorosa tragedia de 1 de fevereiro.
A actual concentração monarchica, que, em vez de iniciar uma politica inteiramente nova de uma nobre e alevantada orientação, inspirada no principio da mais ampla moralidade politica, voltou aos erros do passado e resuscitou as condemnadas habilidades que vamos encontrar no projecto em discussão, a concentração monarchica, que se vê sem rumo, nem norte, qual navio sem governo no mar agitado pelo temporal, onde é que nos levará?
Deixo a resposta á consciencia dos que me escutam e entro agora propriamente na discussão do projecto dado para ordem do dia.
Sr. Presidente: se este projecto se limitasse a fixar a lista civil, já de ha muito estaria votado, talvez até sem discussão, pelo menos nesta Camara.
Foi em 1821, isto é, logo depois da revolução liberal que, estabelecido entre nós o regime constitucional, se votou pela primeira vez a dotação do Rei e da Familia Real, porque antes, como V. Exa. sabe, pois é muito lido, havia perfeita confusão entre os dois erarios.
Pois bem, em sessão de 30 de junho, o grande liberal português Ferreira de Moura, Presidente das Côrtes Constituintes, ao pôr em discussão o respectivo parecer da commissão de fazenda, pronunciava estas solemnes palavras:
«Proponho ao Congresso para a discussão d'este dia, a dotação de El-Rei: negocio que é tão urgente que se não deve levantar a sessão sem se decidir».