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320 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

ORDEM DO DIA.

Continuação da discussão do projecto de lei que regula a liberdade de imprensa

O Sr. José Dias Ferreira: - Vou hoje entrar propriamente na analyse do projecto, que examinei sob estes tres pontos de vista:

Temos necessidade de uma lei de liberdade do imprensa?

As disposições consignadas no projecto conveem ao nosso systema liberal e ás necessidades do paiz?

Se não conveem, quaes são as ideias que deverão adoptar-se em materia de liberdade de imprensa?

A verdade é que estamos, desde 1890, sem lei de liberdade de imprensa.

Precisamos, pois, de uma lei de liberdade de imprensa.

Temos leis sobre imprensa, mas não para garantir a liberdade de pensamento, e sim para a algemar.

O que as nossas leis de imprensa, e com ellas o actual projecto conteem, é uma serie de artigos, em cada um dos quaes o legislador procura levar o jornalista para a cadeia o mais breve possivel, sem lhe dar largueza nas provas nem no julgamento.

Aos assassinos e aos ladrões dá se lhes o direito de requerer vistorias e deprecadas, sem ninguem lhes perguntar se teem de ser cumpridas em Macau ou na India.

Ao jornalista nega-se redondamente esse direito.

Nem admira que assim succeda n'um paiz como o nosso, em que pode ser preso um individuo só porque inspire desconfiança de tencionar commetter um crime!

Não conheço paiz em que haja artigo de lei semelhante!

Para effectuar esta prisão sem culpa formada basta o policia agarrar no individuo e pregar com elle na esquadra.

Mesmo com crime commettido não havia antigamente, no proprio codigo de Costa Cabral, senão em quatro casos prisão sem culpa formada: no homicidio, no furto violento ou domestico, no levantamento de fazenda alheia, e na alta traição.

Agora pode effectuar-se a prisão sem culpa formada em todos os casos de crime commettido, e até sem haver crime e sem possibilidade de formar culpa; e pode ir a prisão até 8 dias, e até prolongar-se por toda a vida do encarcerado!

Á sombra de tão absurda disposição podia o Governo mandar prender o jornalista só pela suspeita de que elle ia escrever um artigo contra o Ministerio!

Entrando propriamente na analyse do projecto, observarei que o artigo 1.° é semelhante ao de todas as leis congeneres, até mesmo da lei das rolhas, de 1850, que tambem declara que «a todos é licito manifestar livremente o seu pensamento por meio da imprensa», embora nos artigos subsequentes essa doutrina seja postergada.

Em todo o caso, forçoso é confessar que nas leis das rolhas grande é a responsabilidade da imprensa pela cumplicidade do silencio.

Não quero com isto criticar tão sympathica instituição.

Mas, a verdade é que, se as cousas chegaram ao estado em que se encontram, é em grande parte culpa da propria imprensa.

A maior parte, se não todas as leis existentes em Portugal contra a imprensa, e em geral contra as liberdades, tiveram grandes defensores nos jornaes!

Taes leis não existiriam se a imprensa, á primeira offensa, tomasse o seu verdadeiro logar, assestando a sua artilharia contra o Governo que assim tocava na arca santa das liberdades populares.

Sustenta o illustre relator do projecto que ha só um caso de apprehensão, que é o consignado no S 5.° do artigo 2.°

Eu porem encontro não um caso só de apprehensão, mas quatro ou cinco, ou mais.

Senão, vejamos.

Diz o artigo 4.°:

«Nenhuma auctoridade poderá, sob qualquer pretexto ou razão, apprehender ou por outra forma embaraçar a livre circulação dos impressos que satisfaçam ás condições dos artigos antecedentes, sob pena de demissão e de 100$000 a 500$000 réis de multa, alem da indemnização das perdas e damnos a que tiver dado causa».

Logo, os impressos que não satisfaçam ás condições dos artigos anteriores poderão ser apprehendidos. Ora o artigo 2.° comporta dois casos de apprehensão: a falta das prescripções contidas no § 1.° e as offensas a Chefes de Estado estrangeiros, quando se encontrem no reino, como se estabelece no § 5.°

Insurjo-me contra a disposição exarada n'esse mesmo § 5.°, que manda prender e remetter dentro de vinte e quatro horas para juizo os vendedores, distribuidores ou affixadores dos impressos que contenham offensas aos monarchas estrangeiros!

Diz o artigo 3.°:

«É expressamente prohibido affixar ou expor nas paredes, ou em quaesquer outros logares publicos, cartazes, annuncios, avisos, e em geral quaesquer impressos que contenham algum dos factos previstos no § 1.° do artigo 5.° d'esta lei, e nos artigos 420.° e 483.° do Codigo Penal».

Quer dizer: os cartazes, annuncios ou avisos que estejam nas condições mencionadas n'este artigo são tambem apprehendidos.

Ha, pois, mais casos de apprehensão do que pela lei actual, que só a permitte em tres casos: offensas ao Rei e á Familia Real, ultrajes á moral publica e crimes contra a segurança do Estado.

Passarei agora a analysar o § 1.° do artigo 5.° do projecto:

«Os crimes de offensa, previstos nos artigos 159.°, 160.° e 169.° do Codigo Penal, consistem na publicação de materia em que haja falta de respeito devido ao Rei, aos membros da Familia Real, soberanos, chefes e representantes de nações estrangeiras, ou cujo objecto seja excitar o odio ou o desprezo das suas pessoas, ou censurar o Rei ou Regente do Reino, por actos do Governo, ou de quaesquer funccionarios».

A lei de 17 de maio de 1866 já permittia a intervenção do Ministerio Publico nas injurias ou offensas ás Pessoas Reaes Estrangeiras, e aos representantes diplomaticos, mas só quando os respectivos Governos assim o reclamassem.

Á politica internacional pode não convir avolumar essa offensa com a publicidade do julgamento de um processo ruidoso.

É singular a coincidencia de virem os crimes de offensas contra as Pessoas Reaes associados aos crimes de offensa contra a religião. Esta alliança do throno e do altar em questões de imprensa não é nova.

Salientou-se muito na lei das rolhas de 1850 a alliança do throno e do altar.

Agora volta a fazer-se a antiga alliança.

Foi sempre assim em todas as epocas de reacção.

O jury para a liberdade de imprensa é anterior ainda á Constituição de 1822, a mais liberal da Europa e do mundo.

Apesar de não ter então ainda grande importancia a imprensa, não só pelo numero muito limitado dos jornaes, mas ainda pela difficuldade das communicações, as Côrtes de 1820 quizeram dar-lhe garantias especiaes.

Alem dos delictos de imprensa serem julgados pelo jury, eleito pelo povo, havia recurso para um tribunal especial.

Porquê?

Porque as Côrtes de 1820 entendiam que a imprensa era garantia de todas as liberdades.