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CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO
SESSÃO N.° 33
EM 3 DE AGOSTO DE 1908
Presidencia do Exmo Sr. Conselheiro Antonio de Azevedo Castello Branco
Secretarios — os Dignos Pares
Luiz de Mello Bandeira Coelho
Marquez de Penafiel
SUMMARIO. — Leitura e approvação da acta. — Não houve expediente. — São introduzidos na sala, prestam juramento, e tomam assento os Exa. 108 Srs. Marquez de Tancos e Conde das Galveias.— O Sr. Presidente nomeia a commissão que tem de tomar conhecimento do officio do Digno Par Sr. Anselmo Braamcamp em que renunciou ao seu mandato de Par do Reino. — O Sr. Ministro das Obras Publicas, em resposta a perguntas feitas pelo Digno Par Sr. Conde de Arnoso, em uma das sessões anteriores, refere-se a factos occorridos na Escola Elementar do Commercio, do Porto. — O Digno Par Sr. Alexandre Cabral requer que seja consultada a Camara sobre se permitte que as commissões de fazenda e agricultura se reunam durante a sessão. Concedido. — O Digno Par Sr. Conde de Arnoso agradece as explicações dadas pelo Sr. Ministro das Obras Publicas. — O Digno Par Sr. Sebastião Baracho faz votos por que a commissão hoje nomeada pelo Sr. Presidente desempenhe com urgencia a missão que lhe está commettida. O Sr. Presidente dá explicações a este respeito. O Digno Par, continuando, envia para a mesa uma representação dos vendedores de tabaco, e requer que ella seja publicada no Diario do Governo, e em seguida adduz considerações respeitantes a assuntos com a mesma companhia. Responde ao Digno Par b Sr. Ministro da Fazenda. — O Digno Par Sr. Eduardo José Coelho manda para a mesa um requerimento pedindo documentos pelo Ministerio da Justiça, e o Digno Par Sr. Visconde de Algés, um requerimento pedindo esclarecimentos pelo Ministerio da Guerra. São expedidos.— O Digno Par Sr. Marquez de Avila envia para a mesa um parecer relativo ao projecto que trata do fornecimento de impressos para o serviço da Direcção Geral dos Correios. Foi a imprimir.
Ordem do dia.— Continuação da discussão do projecto relativo á fixação da lista civil.— Conclue o seu discurso começado em uma das sessões antecedentes o Digno Par Sr. Ressano Garcia. — O Digno Par Sr. Mattozo Santos envia para a mesa um parecer sobre a importação de milho e centeio. Foi a imprimir. —Sobre o assento em ordem do dia, discursa o Sr. Presidente do Conselho. S. Exa., que não conclue o seu discurso, pede que lhe seja permittido continuar na sessão seguinte, o que lhe é concedido. — Encerra-se a sessão e designa-se a immediata, bem como a respectiva ordem do dia.
O Sr. Presidente: — Acha-se nos corredores d'esta Camara para prestar juramento e tomar assento o Exmo. Sr. Marquez de Tancos.
Convido os Dignos Pares Srs. Marquez de Pombal e Visconde de Athouguia a introduzirem S. Exa. na sala.
Seguidamente entrou S. Exa. na sala, prestou juramento e tomou assento.
O Sr. Presidente: — Acha-se tambem nos corredores d'esta Camara para prestar juramento e tomar assento o Exmo. Sr. Conde das Galveias.
Convido os Dignos Pares Srs. Wenceslau de Lima e Conde de Figueiró a introduzirem S. Exa. na sala.
Seguidamente entrou S. Exa. na sala, prestou juramento e tomou assento.
O Sr. Presidente: — Nomeei para a commissão especial que tem de se occupar do pedido de renuncia ao pariato apresentado pelo Digno Par Sr. Anselmo Braamcamp Freire os seguintes Dignos Pares:
Francisco Antonio da Veiga Beirão.
Julio Marques de Vilhena.
Alberto Antonio de Moraes Carvalho.
Conde do Cartaxo.
José Maria de Alpoim de Cerqueira Borges Cabral.
Jacinto Candido da Silva.
Antonio Augusto Pereira de Miranda.
Luciano Affonso da Silva Monteiro.
D. João de Alarcão Velasques Sarmento Osorio.
Antonio Teixeira de Sousa.
Antonio Eduardo Villaça.
Alexandre Ferreira Cabral Paes do Amaral.
Peço aos membros d'esta commissão que façam todo o possivel para que ella se constitua com brevidade, a fim de dar parecer sobre o assunto que lhe é commettido.
O Sr. Ministro das Obras Publicas (Calvet de Magalhães) : — Tendo-me sido communicado, pelo Sr. Presidente do Conselho, que o Digno Par o Sr. Conde de Arnoso desejava ser informado acêrca de alguns factos occorridos na Escola Elementar do Commercio na cidade do Porto, factos que motivaram a apresentação de um requerimento de tres professores da mesma escola, pedindo uma syndicancia aos seus actos, venho prestar ao Digno Par, e á Camara, os devidos esclarecimentos sobre este assunto.
Deu effectivamente entrada no meu Ministerio um requerimento assinado por tres professores da escola alludida, o qual, fazendo referencia a factos lamentaveis, succedidos n’uma sessão do conselho escolar, e ás relações officiaes existentes entre os requerentes e a direcção da mesma escola, termina por pedir syndicancia aos seus actos.
Ouvido o director da escola sobre este requerimento, as informações por elle dadas contradizem, em parte, as affirmações dos mencionados professores.
Por isso, e porque, em vista de tudo quanto acabo de referir, e ainda por outras informações posteriormente havidas, se reconhece que, infelizmente, não reina n’aquella escola a devida harmonia entre a respectiva direcção e o
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pessoal docente, do que poderá resultar grave prejuizo para o ensino, ordenei que se procedesse a uma rigorosa syndicancia, não só aos Jactos de que trata o requerimento dos professores, mas ainda a todos os serviços da escola.
Logo que essa syndicancia se achar concluida, resolverei, como julgar justo, em face dos interesses do Estado e do decoro do serviço publico.
S. Exa. não reviu.
O Sr. Alexandre Cabral: — Peço a V. Exa. que se digne consultar a camara sobre se permitte que a commissão de agricultura se reuna durante a sessão, afim de tratar do projecto sobre cereaes.
Consultada a Camara, resolveu affirmativamente.
O Sr. Conde de Arnoso: — Requeiro que seja consultada a Camara sobre se permitte que, em dois minutos, agradeça as explicações do Sr. Ministro das Obras Publicas.
Consultada a Camara, resolveu affirmativamente.
O Sr. Conde de Arnoso: — Agradeço ao Sr. Ministro, e folgo de consignar que é a primeira vez que tenho a honra de dirigir perguntas ao Governo, que sejam respondidas de maneira a inteiramente me satisfazerem.
Estou certo que o Sr. Ministro das Obras Publicas se ha de inspirar nos principios de justiça, que estão em harmonia com o seu caracter e o seu primor.
S. Exa. não reviu.
O Sr. Sebastião Baracho :— No dia 4 de maio derradeiro foi lido n’esta Camara o officio de renuncia do Sr. Anselmo Braamcamp ao seu logar de Par do Reino. No dia 5 de junho, eu chamava d'esta tribuna a attenção da Camara e da commissão de verificação de poderes, para que resolvessem o assunto, nas unicas condições recommendaveis: — não acceitando a renuncia.
Dois meses depois dos meus reparos, o Sr. Presidente nomeia uma commissão especial para dar parecer acêrca do assunto. Oxalá esta commissão não seja tão tardia em desempenhar-se da sua missão, quanto o foi o Sr. Presidente em nomeá-la.
O Sr. Presidente: — Sempre estive convencido de que o caso da renuncia poderia ser resolvido pela commissão de verificação de poderes. Disseram-me, porem, que não, e estudando o assunto vi que em circunstancias identicas tinham sido nomeadas commissões especiaes para darem o seu parecer. Apressei-me por esse motivo a nomear a commissão.
O Orador: — Desde que o Sr. Presidente declara que errou, não me demorarei n’este ponto.
Perante as explicações do Sr. Presidente, eu limito-me a insistir sobre a necessidade de resolver, com a possivel brevidade, esta questão, cuja clareza é manifesta.
A Camara não enveredará, por certo, pelo caminho da intransigencia e da intolerancia. Pelo contrario, tudo lhe aconselha uma deliberação pela qual conserve a sua cadeira nesta casa o Sr. Anselmo Braamcamp, que bem o merece por todos os motivos.
Nem outra solução teria o consenso geral.
Dito isto, vou tratar propriamente da questão para que pedi a palavra, começando por mandar para a mesa uma representação dos vendedores de tabacos, cuja inserção peço ao Diario do governo.
Afigura-se-me que ella está redigida nos termos proprios para esse fim. Todavia, a mesa a examinará como lhe cumpre, e procederá na conformidade do que apurar.
Proseguindo no mesmo assunto, começarei por ponderar que, depois do contrato acêrca do conjunto de supprimentos, na importancia de 1.350:000 libras, realizado em Paris aos 18 dias de outubro de 1907, e que eu trouxe a lume na sessão de 24 de julho derradeiro, comprehendem-se facilmente, comquanto se não desculpem, as condescendencias escandalosas do Ministerio transacto, e do actual, com a Companhia dos Tabacos.
Não foi com ella que o Governo franquista tratou, acudiu pressuroso o actual titular da pasta da Fazenda:— Foi com a casa Henry Burnay & C.a
Não foi com o Floridor tabaquista, foi com Borromeu burnaysista. Já na Mademoiselle Nitouche nos tinham desopilado jocosamente, com sortes similares de passe-passe, com artimanhas e maniversias de igual quilate.
Contrariando, porem, semelhante asserção, convem recordar que no contrato assinado em Paris aos 18 de outubro de 1907, pelos Srs. Mello e Sousa e Conde de Burnay, este figura textualmente : — Como representante da firma Henry Burnay & C.ª e como presidente da Companhia dos Tabacos de Portugal e por ella devidamente autorizado. A par d'isto, a mesma Companhia certifica no seu relatorio, com a data de 13 do corrente: — Que teve a satisfação de poder cooperar para se proporcionar ao Estado um importante supprimento externo de 500:000 libras, por um anno, á taxa de 6 por cento, sem commissão e que ainda subsiste na sua, totalidade.
Estas asseverações foram confirmadas no dia 31 do mês passado, na assembleia geral da Companhia dos Tabacos, em que se deram episodios verdadeiramente pyramidaes. Por exemplo, o presidente do conselho de administração da Companhia arrendataria confessou jactanciosamente que a sua situação, d'ella, é effectivamente, de credora do Estado, e credora de polpa ; e acrescentou, segundo as melhores versões, que não tiveram contestação:
Se não fôra a Burnaysia, já o Estado teria estalado!
Á sessão assistiu o representante do Governo, o respectivo commissario regio, que não protestou contra tão deprimente e compromettedora affirmativa. A imprensa ministerial manteve-se igualmente no mesmo significativo silencio. E o que faz o Sr. Ministro da Fazenda, cujo primordial dever é pugnar pelo credito nacional?
Como correspondeu — por que já deve ter respondido — a tão altaneira e inconveniente asserção?
Fale o Sr. Ministro da Fazenda. A isso o impulsionam os mais elementares preceitos do decoro nacional.
Nada de evasivas. Não podem ellas ter cotação em casos d'estes.
E consignada mais uma vez, por esta forma, como se cultiva a seriedade no poder, recordarei que, em sessão de 27 de maio derradeiro, confirmou o Sr. Ministro da Fazenda, respondendo a perguntas que eu lhe fiz, estas duas irregularidades maiusculas, em proveito da poderosa Companhia:
1.ª A distribuição por ella realizada, de 1.217:000$000 réis, de fundos de reserva, na razão de 10 por cento para os fundadores e de 90 por cento para os accionistas, diminuindo, por modo tão palpavel, a garantia para satisfazer os seus variados compromissos, mormentes o pagamento de juros e de amortizações das obrigações dos emprestimos de 1891 e de 1896.
2.ª O não pagamento, na actualidade, por parte da Companhia, da contribuição bancaria, o que contraria em absoluto o preceituado no n.° 10 do artigo 7.° do contrato definitivo, de 8 de novembro de 1906.
Referentemente á primeira anormalidade, —permitta-se-me o suave eupheraismo — convem recordar que o artigo 1.° do contrato vigorante, de 8 de novembro de 1906, estatue:
Artigo 1.° O Governo concede á Companhia dos Tabacos de Portugal a continuação do exclusivo do fabrico do tabaco no continente do reino...........................
Para considerar é ainda que os estatutos da mesma Companhia, de 14 de abril de 1891, estabelecem:
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Artigo 55.° Quando expirar o prazo da concessão e depois de liquidadas as responsabilidades da Companhia, os fundos de reserva serão divididos na proporção de 10 por cento para os fundadores e 90 por cento para os accionistas.
Ora nem o prazo de concessão expirou, porque ella é, em virtude do mencionado artigo 1.° do contrato actual, a continuação da precedente, nem tão pouco estão liquidadas as responsabilidades da Companhia, cuja vigencia se integra com o seu viver, d'ella propria.
Que providencias adoptou, pois, o Sr. Ministro da Fazenda, com o objectivo de corrigir uma tal anomalia, essencialmente nociva aos legitimos interesses do Estado e de todas as entidades engajadas lisamente nas operações da Companhia monopolista?
Quanto á segunda irregularidade, confessada igualmente pelo Sr. Ministro, tambem não pode subsistir. Vejamos o que acêrca do assunto se passou nesta casa, em sessão de 24 de outubro de 1906, discutindo se as bases do contrato, as quaes eram da immediata responsabilidade do Digno Par o Sr. Teixeira de Sousa. Falava este Digno Par, expressando-se nestes termos:
O tribunal arbitral entendeu que. apesar das disposições do contrato de 1891, em que se estabelecia que a Companhia dos Tabacos só não estava sujeita á contribuição industrial pelo exercicio da industria do fabrico do tabaco, não estava sujeita a ella pelas operações financeiras que fazia.
(Interrupção do Sr. Baracho}.
Exactamente para que não possa haver situações imprevistas é que se fez uma modificação.
Quando se legisla, é para homens que teem a cabeça no seu logar.
Se S. Exa. puser em comparação o texto dos dois contratos, verá que, por este que está em discussão, não absolve a companhia da contribuição industrial.
O Sr. Sebastião Baracho: — Tambem ella não era absolvida pelo contrato de 1891.
O Orador: — Neste ponto, o contraio em discussão alterou a redacção do contrato de 1891, de modo a não se manter a interpretação do tribunal arbitral.
O Sr. Sebastião Baracho: — Apenas numa fragil conjunção !...
A conjunção e foi substituirá pela conjunção mas, consoante se pode observar, no n.° 10 do artigo 7.° do contrato de 8 de novembro de 1906, cotejando-o com o n.° 9 do artigo 6.° do contrato de 26 de fevereiro de 1891.
Como eu sou fundamentalmente sceptico acêrca de homens, na quadra que vae correndo, com a cabeça no seu logar, em logar de proceder á Diogenes em busca d'elles, apresentei, o que é mais pratico, uma proposta assim concebida:
10.° Por todo o periodo que durar a concessão, o concessionario fica isento do pagamento da contribuição industrial, na parte exclusivamente respeitante ao fabrico dos tabacos.
Não foi ella, porem, acceita, como o não foi igualmente nenhuma outra das suas treze companheiras, que melhoravam indubitavelmente o contrato, e que a Companhia dos Fósforos debalde perfilhou na sua totalidade, pelo seguinte officio, constante da alludida sessão de 24 de outubro :
Companhia Portuguesa dos Fosforos.— ILLmo. e Exmo Sr. Temos a honra de fazer a V. Exa. a declaração seguinte:
Tendo o Governo resolvido acceitar a proposta apresentada por esta Companhia para a adjudicação do exclusivo do fabrico de tabacos no continente do reino, no concurso publico de 7 de maio proximo passado, salvo o direito de opção pertencente á Companhia dos Tabacos de Portugal, nos termos do contrato de 26 de fevereiro de 1891, direito de que a referida Companhia usou, celebrando-se o contrato provisorio de 2 de junho ultimo; e tendo o Digno Par do Reino o Illmo. e Exmo. Sr. general Sebastião de Sousa Dantas Baracho apresentado na sessão de hontem da Camara dos Dignos Pares do Reino uma proposta de emendas ao referido contrato, todas de vantagem para o Thesouro Publico: a Companhia Portuguesa dos Fósforos, collocada na situação juridica que resulta da resolução do Governo acima referida, declara a V. Exa. que concorda com a introducção, no contraio definitivo, das emendas propostas pelo Digno Par, mantendo para todos os effeitos, e nos precisos termos da portaria de 6 de abril, a proposta que apresentou no concurso de 7 de maio e que o Governo resolveu acceitar.
Deus guarde a V. Exa. a—Lisboa, 28 de outubro del906.— ILLmo. e Exmo Sr. Conselheiro Ernesto Driesel Schrõter, dignissimo Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da Fazenda -— Companhia Portuguesa de Fosforos. = Os administradores Jorge O'Neill = J. W. H. Bleck.— M. de Castro Guimarães.
Todas as minhas preferencias, na questão sujeita, eram pela régie. Desde, porem, que a repudiaram, trabalhei, quanto me foi possivel, para o aperfeiçoamento do monopolio, como trabalho agora para que este tenha, ao menos, honesta execução.
Nesse intuito, convido o Sr. Ministro da Fazenda a fazer incidir, pelas competentes autoridades fiscaes, suas subordinadas, a contribuição industrial sobre as operações bancarias da Companhia monopolizadora, as quaes segundo o seu ultimo relatorio, produziram de lucro nem menos de 553 contos de réis.
Com semelhante medida, muito aproveitará a justiça e o Thesouro Publico, e até o Sr. Ministro patenteará, por esse seu acerto, que tem a cabeça no seu logar, consoante o expressado e expressivo criterio do Digno Par o Sr. Teixeira de Sousa.
Veremos se, a despeito de tão apetitoso estimulante, o Sr. Conselheiro Espregueira continuará fluctuando entre Floridor e Borromeu, com melodiosos garganteios sonantes da Nitouche — sonantes para a insaciavel companhia arrendataria, é claro.
De resto, a absorvente companhia não é, segundo o criterio d'ella, continuação da anterior, quando distribue 1:217 contos de réis de fundo de reserva, os quaes deviam ser intangiveis. Mas considera-se como tal, para não pagar contribuição bancaria, apoiando-se para isso numa sentença arbitral, em contradição manifesta com differentes accordãos unanimes do Supremo Tribunal Administrativo, anteriores e ulteriores á mesma sentença.
Para ponderar é ainda que esta sentença, proferida por maioria de votos, alveja uma disposição do antigo contrato, modificada pelo vigorante, em termos que o seu autor entende que a interpretação a dar-lhe é exclusivamente a que se coaduna com os interesses da Fazenda, isto é, com o pagamento da contribuição contestada.
Nada mais nitido, nem mais comprehensivel.
Mas não param por aqui as manifestações officiaes, pelas quaes a companhia entende que tudo pode exigir, que tudo lhe é devido.
Nestas condições, prepara-se para illudir o n.° 4 do artigo 7.° do contrato, o qual permitte o licenceamento de parte do pessoal operario e não operario, quando sobrevierem circunstancias especiaes, como guerra e epidemia intensa. Simultaneamente, e escorada pelos mesmos pretextos fantasistas, pro-p5e-se a obter uma diminuição na renda monopolista, e ainda um bonus, a titulo de indemnização das perdas experimentadas, invocando, a seu commodo, para tal extorsão, o artigo 24.° do contrato.
Como no appello que tem feito para as camaras municipaes, tem encontrado relutancias, aliás justas, que não lhe permittem a realização dos seus gafados planos, improvisou expedientes no ultimo relatorio que trouxe a lume, descritivos da supposta situação difficil da Companhia.
Praticou toda a especie de desacertos, começando por estipendiar perdulariamente o seu numeroso estado maior, em cujo seio se encontram os membros do Comité de Paris, cuja extincção, diga-se incidentalmente, eu propus em tempo util, sem ser attendido.
A par d'isto, aumentou d preço dos productos fabricados, cerceando alguns cumulativamente no peso.
Outros erros ainda commetteu, cuja enumeração me levaria longe; e, para os- illudir, ou simplesmente attenuar, investe contra o Governo, contra os consumidores, contra o pessoal operario manipulador, contra os revendedores, contra os accionistas, a todos procurando lesar, em contravenção affixada da lei, com o objectivo imperdoavel de continuar locupletando-se com os pingues beneficios que até hoje tem usufruido.
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Do Governo, solicita inadmissiveis favores ameudadamente e chega mesmo a impor-lhe a sua pesada e espoliadora acção, quando, por exemplo, no seu ultimo relatorio omitte a participação a que o Estado tem jus, pelo n.° 1 do artigo 6.° do contrato, isto é, á compartilha de lucros de 50 contos de réis, por cada um dos tres exercicios de 1907-1910.
Parallela e indevidamente reclama contra a execução do artigo 20.° do mesmo contrato, ao qual eu apresentei quando elle aqui foi discutido, em outubro de 1906, a seguinte emenda, que obedecia ao preceito de que, tendo o Governo partilha nos lucros, tem tanto interesse como a Companhia monopolista em que não haja contrabando:
Artigo 20.° O Governo continuará mantendo em serviço da fiscalização a força que for julgada necessaria, mas nunca excedente a quatro mil e quinhentos homens; e a abonar gratificações eficazmente remuneradoras das apprehensões de tabaco.
Se esta minha proposta não tivesse sido lançada no limbo, bem como as suas outras companheiras, a companhia arrendataria não teria sequer pretexto para fazer estendal das suas exigencias, por deficiencia de fiscalização, quando é ella, a Companhia, a unica culpada pelo acrescimo de contrabando.
A proposito vem dizer que a proposta de lei acêrca dos tabacos foi approvada, nesta casa, em sessão de 26 de outubro de 1906, por 51 votos contra 1. Esse 1 fui eu, com o que muito me honro. De resto, os factos inexoravelmente occorridos e Decorrentes teem comprovado, á evidencia, que eu não estava em erro, quando tão isoladamente me apresentei. Fique isso registado.
Posto isto, lembrarei que, para com os consumidores, ella, a Companhia, procede pela maneira que é notoria, servindo-o e mal e caro.
Concernentemente ao operariado manipulador, explora-o tanto quanto possivel, arrastando-o para contestações interminaveis, de que é typo deploravel a que se ventila ha tempos, relativamente á marca denominada Lisboetas.
Sofismando o que está estatuido, paga miseravelmente os pacotes d'essa marca privilegiada, não obstante o commissario regio respectivo lhe ter prohibido a manufactura d'esse producto, emquanto não fosse resolvido o litigio a tal respeito, affecto ás estações superiores.
Desprezou a prohibição, e prosegue impunemente na pratica dos seus expedientes disfrutadores.
Para com os revendedores, falseia o estabelecido no n.° 11 do artigo 6.° do contrato, pelo qual se garante aos antigos depositarios, vendedores por grosso, vendedores a retalho e revendedores, a que se refere o § 5.° da base 9.ª da lei de 22 de maio de 1888, um regular abastecimento e commissões de descontos não inferiores a 10 por cento; e ainda outras vantagens.
Contra os accionistas, partiu em guerra, que se desencadeia na diminuição consideravel nos dividendos, exigindo-lhes, simultaneamente, docilidade infinda, ovelhil, ao ponto de que elles se prestem a ser enforcados por persuasão.
Ao que parece, diga-se incidentemente, não estão elles dispostos a esse sacrificio.
Em presença d'este sudario, cujas cores em ponto algum carreguei, afigura-se-me chegada a opportunidade de lembrar ao Governo o cumprimento da alinea a) do artigo 9.° do contrato, procedendo-se a um exame rigoroso á escrituração commercial da Companhia, bem como á sua escrituração fabril.
Apure-se o que ha de verdade no que está occorrendo, e que escandaliza a opinião publica. Tomem-se as necessarias providencias, attinentes a regularizar a situação da Companhia arrendataria, para com o Estado e para com todas as outras entidades que, com ella, teem de ter contacto.
Nesse intento, mais uma vez chamo a attenção do Sr. Ministro da Fazenda, reclamando o correctivo legal, que se impõe a tantos desmandos, cuja subsistencia não é licito tolerar por mais tempo.
É necessario, para decoro do poder, que se ponha em evidencia que se trata de uma companhia correntiamente arrendatria, e não de uma companhia excepcionalmente parasitaria.
Resta, porem, ver — o que não me causará espanto— que o Sr. Ministro, em logar de praticar o que lhe cumpre, realize nova romaria a qualquer das principescas vivendas burnaysistas, com farta exhibição de salamaleques e genuflexões.
Facil será sabê-lo, porque o reverenciado idolo financeiro não se poupará a assoalha-lo, á semelhança do que acaba de praticar n a assembleia geral da companhia arrendataria.
Cesteiro que faz um cesto faz um cento, se lhe derem verga e tempo.
Não se pode descer mais, mesmo rotativo — acalmadoramente falando.
S. Exa. não reviu.
O Sr. Presidente: — É a hora de passar-se á ordem do dia.
Como o Sr. Ministro da Fazenda pediu a palavra, consulto a Camara sobre se permitte que S. Exa., sem prejuizo do tempo destinado á ordem do dia, responda ao Digno Par Sr. Sebastião Baracho.
A Camara resolveu affirmativamente.
O Sr. Ministro da Fazenda (Affonso de Espregueira): — Agradeço á Camara e, sem deixar de ser elucidativo, procurarei resumir as minhas respostas, de modo a não tomar muito tempo.
Com respeito á participação da Companhia dos Tabacos na divida fluctuante externa, não tenho mais do que confirmar o que já disse, e é que a Companhia dos Tabacos não figura entre os portadores da divida fluctuante externa.
A casa Henry Burnay & C.ª é que figura entre esses portadores com uma importancia de 12.500:000 francos, cujo vencimento tem logar a 25 de outubro.
Os lucros da Companhia que ainda ha a distribuir, em nada pertencem ao Estado.
Quanto aos accionistas elles resolverão como entenderem, e aquelles que tiverem interesses a liquidar com a Companhia teem os tribunaes ordinarios, que, se a elles recorrerem, farão justiça.
A Companhia está hoje sob o regime de novos estatutos.
O Sr. Sebastião Baracho: — Está, e arbitrariamente. Esse é que é o mal.
O Orador: — Constato o facto, e não sou obrigado a explicar as razões de cousas que se passaram anteriormente á minha gerencia.
Houve um tribunal arbitral, cujas resoluções o Governo antecipadamente acceitou, que resolveu que a Companhia não era obrigada a pagar contribuição industrial.
O Sr. Sebastião Baracho: — Asseguro que o contrato foi alterado depois d'isso.
O Orador: — Affirmo que o contrato actual, a esse respeito, está redigido pela mesma forma.
O Sr. Sebastião Baracho:— Não está, não senhor. Ainda ha pouco o demonstrei. O Sr. Teixeira de Sousa que o diga.
O Sr. Teixeira de Sousa: — Affirmo que a decisão do tribunal arbitral a que se referiu o Sr. Ministro da Fazenda diz respeito unicamente ao exercicio do monopolio.
O Orador: — Se a Companhia for collectada pelo escrivão de fazenda, o processo seguirá os tramites legaes, e então o Governo tomará qualquer deliberação, se por lei tiver de intervir. Actualmente não tenho que dar ao escrivão de fazenda instrucções algumas.
O Sr. João Arroyo:— O escrivão de fazenda não faz parte de poder algum do Estado independente; é um empregado do poder executivo, rela-
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tivamente ao qual o Sr. Ministro da Fazenda tem funccões de fiscalização e funcções de iniciativa.
O Orador:— Não posso dar instrucções ao escrivão de fazenda para collectar de tal ou tal forma um contribuinte.
O Sr. Sebastião Baracho:— Pode, sim senhor, e deve dá-las.
O Orador: — Eu só tenho a defender os interesses do Estado.
Li em alguns jornaes a noticia do que se passou na assembleia geral da Companhia dos Tabacos. Espero porem que o commissario regio envie o seu relatorio sobre isso, para depois ver se será necessario o Governo intervir.
Com respeito á conferencia que eu tive com o presidente do conselho de administração...
O Sr. Sebastião Baracho:— Eu disse, e mantenho, que o Sr. Ministro o procurara em sua casa.
O Orador:— Nessa conferencia, a que assistiram differentes membros da Companhia, limitei-me a ouvir as explicações a respeito de questões pendentes.
Parece-me ter respondido aos pontos mais importantes do discurso do Sr. Baracho.
O Sr. Sebastião Baracho : — Pergunto ao Sr. Ministro para quando reserva a resposta aos outros pontos de que eu tratei.
O Orador: — Para quando o Digno Par quiser.
A intervenção do Governo nesta questão tem sido sempre no sentido de defender a legalidade e os interesses do Estado.
(S. Exa. não reviu).
O Sr. Presidente:— Vae passar-se á ordem do dia; os Dignos Pares que tenham documentos a mandar para a mesa tenham a bondade de o fazer.
O Sr. Eduardo José Coelho: — Mando para a mesa o seguinte requerimento:
Requeiro que, pelo Ministerio da Justiça, e com urgencia, me seja enviada copia integral da proposta do presidente da Relação do Porto, relativa aos juizes substitutos da comarca de Mirandella, cujos nomes foram publicados n Diario do Governo de 30 de julho ultimo, e data da entrada na secretaria da alludida proposta.
Lisboa, 3 de agosto de 1908. = O Par do Reino, Eduardo J. Coelho.
Mandou se expedir.
O Sr. Visconde de Algés:— Mando para a mesa o seguinte requerimento:
Requeiro que, pelo Ministerio da Guerra, me sejam enviados com a possivel brevidade os seguintes documentos:
1.° Declarando se o Castello de S. Jorge e suas dependencias faz ou não parte do campo entrincheirado de Lisboa; no caso affirmativo:
2.° Qual a sua classificação como fortificação; e, em todo o caso,
3.° Se pelo Ministerio da Guerra o Castello de S. Jorge é ou não considerado como ponto estrategico de valor para a defesa da cidade e seu porto.
Sessão de 3 de agosto de 1908. = O Par do Reino, Visconde de Algés.
Mandou-se expedir.
O Sr. Marquez de Avila: — Envio para a mesa o parecer da commissão de obras publicas relativo ao projecto de lei que se occupa do fornecimento de impressos para o serviço da Direcção Geral dos Correios.
Foi a imprimir.
ORDEM DO DIA
Continuação da discussão do projecto de lei fixando a lista civil
O Sr. Ressano Garcia: — Sr. Presidente : Vae já tão distante a sessão em que proferi a primeira parte do meu discurso que, antes de proseguir nas minhas considerações, julgo conveniente fazer um rapido resumo da argumentação que tive a honra de apresentar á Camara para combater a inserção do artigo 5.° no projecto de lei em discussão.
Observei eu, em primeiro logar, que o nosso joven Monarcha, o Senhor D. Manuel, reune em si duas qualidades inteiramente distinctas: é Rei de Portugal e é herdeiro de seu pae.
Como Rei de Portugal, ha de receber a dotação que lhe for fixada pelas Côrtes, para o fim prescrito no artigo 80.° da Carta Constitucional.
Como herdeiro de seu pae, goza de todos os direitos, e está sujeito a todas as obrigações que lhe são assinadas no Codigo Civil, como a qualquer outro cidadão português.
Ora basta esta singela observação, para immediatamente se reconhecer a impropriedade com que o artigo 5.°, que trata da pessoa civil do Senhor D. Manuel, como herdeiro de seu pae, figura na lei da lista civil, que d'elle devia occupar-se; exclusivamente, como Rei de Portugal, enxertando-se, portanto, numa lei de direito publico constitucional uma disposição de direito civil.
Mas, depois, passando a examinar ; questão de mais perto, formulei duas hypotheses, nem mais se podem admittir.
1.ª hypothese: Os bens herdados por
D. Manuel II cobrem os encargos; o activo iguala ou excede o passivo.
Então o artigo 5.°, que deroga arbitrariamente as disposições do Codigo
civil, representaria um favor injustificado á Casa Real, porque lhe permitte
pagamento da divida ao Thesouro em vinte prestações annuaes, o que desde logo reduz gratuitamente essa divida a 62, 57 ou 53 por cento do seu nominal, conforme se admitte o juro de 5, 6 ou 7 por cento.
2.ª hypothese: Os bens herdados são inferiores aos encargos; o activo está, muito ou pouco, abaixo do passivo.
Então o pagamento da divida ao Estado tem de regular-se pelas disposições do Codigo Civil, e não pode ser objecto de uma lei de excepção, de , uma lei ad hoc, que pretende compellir a Casa Real a pagar, não pelos seus bens proprios, mas pela sua futura dotação, os encargos que vão alem das forças da herança, ao que não é obrigada pela legislação vigente.
Nesta hypothese, a deduccão imposta no artigo 5.° representa, a meu juizo, uma verdadeira espoliação. Mas aquelles que, apesar d'esta minha opinião, quiserem apprová-la, por qualquer motivo, até por excesso de jacobinismo, mais lógica e constitucionalmente procederão eliminando o artigo 5.° e reduzindo proporcionalmente a dotação proposta no artigo 1.°, porque tanto faz ao Thesouro receber uma determinada somma durante um certo numero de annos pelo artigo 5.°, como deixar de pagar pelo artigo 1.° a mesma quantia durante o mesmo numero de annos, e d'esse modo evitarão o contrasenso de aumentarem, a partir do 21.° anno do reinado, a lista civil, alem d'aquillo que nos primeiros vinte annos consideraram sufficiente.
Assim, Sr. Presidente, este enxerto do artigo 5.° no projecto é inadmissivel, por qualquer lado que se encare a questão.
As soluções mais simples são sempre as melhores.
Restrinja-se, pois, a lei exclusivamente á fixação da lista civil, reduzindo esta ao que se entender estrictamente necessario para manter, durante o actual reinado o decoro da Coroa.
Apure-se, contraditoriamente com a administração da Casa Real, a importancia da divida d'esta ao Thesouro. Proceda-se a inventario judicial ou administrativo, ou a qualquer outro meio efficaz de investigação, para se saber quanto vale o activo e o passivo da herança de D. Carlos.
Regule-se pelas disposições precisas do Codigo Civil o que a Casa Real haja de pagar ao Thesouro, a saber: todo o seu debito, se o activo da herança for igual ou superior ao passivo, ou a
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6 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO
parte proporcional d'esse debito, se, ao contrario, o activo for inferior ao passivo.
E entretanto liquide a commissão de inquerito da Camara dos Senhores Deputados a responsabilidade moral, politica e até criminal, se quiserem, de cada um dos Ministros que se succederam nos Conselhos da Coroa, durante o ultimo remado, para se proceder contra elles como for de justiça.
Tal é a verdadeira solução do problema: simples, logica é correcta, sem alçapões nem habilidades.
Mas não se caia no absurdo de dizer no artigo 1.° que uma determinada quantia é absolutamente necessaria para manter o decoro da dignidade real, estabelecendo ao mesmo tempo, no artigo 1.°, uma importante redacção d'essa quantia durante 20 annos, com a circunstancia aggravante de não se saber por emquanto o valor d'essa reducção, que pode montar a 40, 50 ou 60 contos de réis, o que sei eu?
Allega-se, é verdade, que é o proprio Rei, o Senhor D. Manuel, que pretende honrar a memoria de seu pae, pagando integralmente, pela sua futura dotação, todas as dividas que este deixou.
Mas esse nobre gesto do joven Monarcha, que ha de ficar registado na historia, como inilludivel manifestação do fino quilate do seu altivo caracter, não pode demover o Parlamento Português de cumprir escrupulosamente os preceitos da Carta Constitucional, e de se inspirar nos principios de justiça que devem presidir a todas as suas deliberações.
Tambem El-Rei D. Carlos, procedendo com a mesma generosidade, aliás tradicional na Familia Real Portuguesa, quis contribuir para aliviar as difficuldades da Fazenda Publica, por occasião da crise de 1892, e cedeu espontaneamente, assim como sua Augusta Esposa, a Rainha D. Amelia, durante um certo numero de annos, uma parte importante das dotações da lista civil.
Essas deducções tiveram de cessar depois de haverem desorganizado ainda mais a administração da Casa Real, que já antes lutava com graves embaraços, mas ainda assim montaram na totalidade a 567:900$000 réis.
Foram muito nobres os intuitos de El-Rei D. Carlos e da Rainha D. Amelia, mas reconhece-se pelos factos subsequentes que Suas Majestades se privaram então d'aquillo que infelizmente não podiam dar, e que os outros poderes do Estado deviam ter respeitosamente recusado, com igual nobreza, a fim de não aggravarem, como effectivamente aggravaram as difficuldades em que já se via a Coroa para manter o seu prestigio.
Pois é justo, é constitucional que o Thesouro arrecade pressuroso 568 contos da Casa Real, a que não tinha direito algum, e depois vá auxiliar a mesma Casa a levantar um emprestimo de 361 contos de réis no Banco de Portuga], caucionado com a apolice de um seguro de vida do Monarcha, porque nada mais havia para dar em penhor ?
Concorreu assim o Governo para a sustentação do prestigio da Coroa, a que a Carta Constitucional nos manda expressamente attender?
Pois não seria mais justo e equitativo encontrar na importancia da divida da Casa Real, que avaliei, grosso modo, em 768 contos de réis, esses 568 contos de réis, dados espontaneamente ao Thesouro pela mesma Casa, ficando assim o debito d'esta reduzido a 200 contos de réis, ou ainda menos, porque alem das correcções, por assim dizer officiaes, que eu já introduzi no seu computo, a commissão de inquerito terá ainda de deduzir outras verbas, indevidamente englobadas nas adeantamentos á Casa Real, como aqui demonstrou brilhantemente, ha dias, o Sr. Conselheiro Teixeira de Sousa?
Reduzida assim a divida ao Estado a menos de 200 contos de réis, não caberia ella mais facilmente rãs forças da herança, ficando d'esse modo respeitadas todas as opiniões?
São simples perguntas que deixo esboçadas, e sem resposta, porque eu entendo que este assunto não pode, por emquanto, ser resolvido definitivamente pelo Parlamento, dada a falta absoluta de documentos e esclarecimentos, pois que nenhuns nos foram apresentados.
E, a proposito, vem citar um facto curioso.
A Lucta, que é um dos jornaes mais bem redigidos da capital, e que, para o caso, é absolutamente insuspeito, porque milita no partido republicano extreme, publicou, em 14 de junho, um mappa, muito interessante, das cedencias de parte das suas dotações, feitas ao Thesouro Publico, espontaneamente, pelas pessoas reaes, nos ires reinados de D. Maria II, D. Pedro V e D. Luiz I, o qual pode resumir-se do modo seguinte:
Reinado de D. Maria II 1.520:080$000 Reinado de D. Pedro V,
Incluindo a regencia de D. Fernando......948:750$000
Reinado de D. Luiz I 470:300$000
Somma.....2.939:130$000
Mas esse mappa, extrahido das obras do Barão de S. Clemente, e cãs contas publicadas no Diario do Governo, apresenta algumas lacunas, porque deixou de incluir as seguintes cedencias:
Reinados
Annos
Quantias cedidas
[ver valores da tabela na imagem]
Introduzidas estas correcções, e accrescentadas as cedencias feitas no reinado de D. Carlos I? que a Lucta, não considerou, o resultado definitivo torna-se o seguinte:
Reinado de D. Maria II 1.601:080$000
Reinado de D. Pedro V 1.040:000$000
Reinado de D. Luiz I 716:000$000
Reinado de D. Carlos I 567:900$000
Somma....3.925:2800000
Se os antecessores de El-Rei D. Manuel, em vez de contribuirem generosamente para o Thesouro Publico com essa avultada somma de cerca de réis 4 000:000$000, a tivessem avaramente capitalizado, pouco a pouco, a favor da Casa Real, não se encontraria esta, certamente, nos apuros com que começou a lutar no reinado de D. Pedro V, e que se aggravaram cada vez mais nos dois reinados subsequentes de D. Luiz I e de D. Carlos I.
Porque, singular contradição é esta, que só prova que a generosidade dos nossos principes não sabe contar, D. Pedro V, cujo viver não podia ser mais simples, nem mais modesto, contribuiu para o Thesouro Publico, durante o seu remado, com 1.040:000$000 réis, e todavia, ao fallecer, deixou dividas na importancia de 416:000$000 réis ; D. Luiz I concorreu para as urgencias do Estado com 716:3000000 réis e todavia precisou que o Parlamento providenciasse em 1885 sobre o pagamento de suas dividas, na importancia de 967:0930070 réis ; D. Carlos I, que não era um dissipador, e tinha ao contrario uma existencia bem modesta, cedeu a favor do Thesouro 567:9000000 réis, e deixou dividas ao mesmo Thesouro na importancia de 768:000$000 réis.
Os antepassados de D. Manuel acudiram generosamente ao Thesouro Publico com sommas tão quantiosas como aquellas que acabo de descrever; o Parlamento deve proceder com igual generosidade para o seu descendente, o Rei actual, que se vê onerado com dividas, que não são da sua responsabilidade, porque as herdou, precisamente, dos seus maiores, e que decerto não poderá pagar integralmente sem faltar ao decoro da sua magistratura, porque excedem os recursos proprios da sua casa.
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SESSÃO N.° 33 DE 3 DE AGOSTO DE 1908 7
E assim conclui o que tinha a dizer a proposito do artigo 5.°, cuja eliminação terei a honra de propor á Camara.
Passo agora, Sr. Presidente, a apreciar o artigo 1.° do projecto de lei.
O Governo não forneceu ao Parlamento esclarecimento algum que o habilite a fixar, em bases seguras, a dotação de El-Rei.
Em vez do estudo minucioso a que devera ter mandado proceder do orçamento das receitas e despesas da Casa Real, distribuindo estas ultimas por capitulos, como acontece na livre Inglaterra (Apoiados) onde até a beneficencia regia constitue um capitulo àparte, com verba fixa, que oppõe uma barreira legal aos excessos de generosidade do Monarcha, o Governo apresenta-nos, como unica razão justificativa do artigo 1.°, o precedente das dotações anteriores, desde 1821.
Dada a profunda transformação por que o Pais tem passado, no largo periodo de 87 annos de regime constitucional, dado o estado particular do espirito publico na hora presente, é necessario reconhecer que a razão do precedente, unica apresentada pelo Governo para cohonestar a sua incuria, não tem valor algum.
As difficuldades em que se tem encontrado a administração da Casa Real, como o demonstra o proprio facto dos adeantamentos autorizados por todas as situações politicas que se teem succedido no poder, proveem da insufficiencia da dotação real, ou de erros d'essa administração?
Ninguem o sabe; nada nos diz o Governo a tal respeito, e o Parlamento tem de votar ás cegas sobre um assunto tão grave como este (Apoiados).
Sr. Presidente: privado, por culpa do Governo, dos elementos necessarios para de um modo directo, formar o meu juizo a tal respeito, procurei, por meios indirectos, supprir essa falta, e procedi a um estudo que vou ter a honra de expor á apreciação da Camara.
Considerei todas as monarchias constitucionaes da Europa, exceptuando os pequenos ducados allemães e principados de menos de 1.200:000 habitantes.
Tambem exclui a Russia, que, apesar da criação, em 1905, da Duma, ou Conselho de Estado electivo, já por duas vezes dissolvida, e modificada, continua, por emquanto, a ser uma monarchia absoluta, que reune nas mãos do Imperador todos os poderes, legislativo, executivo e judicial.
Em compensação contei com um país da Asia, o Japão, cuja civilização nada fica a dever á das nações mais adeantadas da Europa e da America.
Formei assim o mappa seguinte de 19 Estados, classificados pela ordem decrescente da população e reunidos em tres grupos, que denominei respectivamente: das grandes nações, das nações medianas, e das nações pequenas.
Nações
População /Numero de habitantes /Data a que se refere o censo
Despesa total do Estado/ Importancia/ Anno
Lista civil, incluindo a dotação de toda a familia real
Importancia/ Capitação Reis/ Relação com a despesa total Por mil
[ver valores da tabela na imagem]
(a)Metade paga pele Austria e a outra pela Hungria.
(b)Deduzindo 90:000$000 réis destinados a obras nos palacios e juntando 112:500$000 réis de pensões aos criados,pagas pelo Estado. Alem d’isso o Rei e o Principe herdeiros usufruem, respectivamente, os Ducados de Lancaster e Cornwall, que, no ultimo anno conhecido, renderam um 283:500$000 réis e o outro 361:489$500 réis.
(c) A casa reinante possui grande numero de propriedades privadas, catellos, matas, e extensos terrenos em varios pontos do país, conhecidos pela denominação de «Kronfideicommiss-und-Schatullguter», cujo rendimento serve principalmente para occorer ás despesas da Côrte e dos membros da Familia Real.
(d)A lista civil é, de facto, de 2.889:000$000 réis, mas o Rei restitui ao Estado a annuidade de 180:000$000 réis que foi votada para a Rainha por lei de 6 de dezembro de 1900.
(e)Alem do rendimento de varias terras da Coroa.
(f)A Rainha recebe mais 18:750$000 réis para a conservação dos palacios e usufrue o rendimento dos dominios da Coroa. Alem d’isso, a familia de Orange possue uma grande fortuna privada.
(g) Incluindo 54:000$000 réis pagos em partes iguaes pelos Governos da Gran-Bretanha, França e Russia.
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8 ANNAES BA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REIKO
As nações do 1.° grupo teem a população media de 37.750:388 habitantes, as do 2.° grupo a de 5.782:084 habitantes e as do 3.° grupo a de 2.582:036 habitantes.
Portugal pertence evidentemente ao 2.° grupo, visto que em dezembro de 1905 tinha a população de 5.609:833 habitantes, calculada por interpolação.
Examinemos agora o modo por que varia nos differentes países a dotação do Monarcha, incluindo a da sua familia.
O Sr. Sousa Costa Lobo: — V. Exa. considera apenas a dotação do Rei, ou a de toda a Familia Real?
O Orador: — Eu considero a dotação de toda a Familia Real.
A media, no 1.° grupo, é de 2:668 contos de réis; no 2.° grupo, de 621 contos de réis; no 3.° grupo, de 301 contos de réis.
Vê-se, pois, immediatamente, que Portugal, incluido no 2.° grupo, fica, sob o ponto de vista da dotação da Familia Real, muito abaixo da media de 621 contos de réis, relativa a esse grupo, porque, votado este projecto de lei, a nossa lista civil montará apenas a 501 contos de réis, ou mais rigorosamente, a 501:25()$000 réis, visto nos annos bisextos ser de 502 contos de réis.
Mas levemos esta approximação ainda mais longe, e em vez de tomarmos para ponto de referencia a simples media arithmetica das dotações nos países do 2.° grupo, procuremos a media das capitações, isto é, das quantias com que cada cidadão concorre, nas diversas nações, para a lista civil.
No 1.° grupo a media é de 70,68 réis por habitante, no 2.° de 107,42 réis e no 3.° de 135,97 réis.
Isto justifica a observação feita de ha muito pelo economista allemão Adolfo Wagner, de que os gastos da lista civil são relativamente maiores nos Estados pequenos do que nos grandes, porque as exigencias de uma Côrte teem aspecto muito semelhante em todos os países, e não podem manter relação exacta com o numero de habitantes.
Tomemos, pois, a quota media de réis 107,42, relativa ao 2.° grupo, e appliquemo-la á nossa população em dezembro de 1905; acharemos réis 602:608$260, isto é, ainda mais 101 contos do que a nossa dotação.
Mas pode ainda objectar-se a este calculo que nem sempre a grande população de um país prova a sua riqueza.
Pois tomemos outro criterio.
Comparemos a despesa da lista civil com a totalidade das despesas ordinarias e extraordinarias do Estado.
No 1.° grupo, a lista civil representa, em media, 6,23 por 1:000 das despesas totaes; no 2.° grupo 7,89; e no 3.° grupo 14,01, o que ainda vem confirmar a observação de Adolfo Wagner.
Appliquemos a percentagem do 2.° grupo, ou 7,89 por 1:000, á totalidade das despesas ordinarias e extraordinarias para 1908-1909, como foram calculadas pela commissão do orçamento da Camara dos Senhores Deputados, acrescentando, já se vê, a dotação de El-Rei D. Manuel e o aumento de dotação do Infante D. Affonso, e encontraremos 570:674$! 15 réis, isto é, mais 69 contos de réis do que a nossa lista civil.
A dotação proposta no artigo 1.° defende-se, portanto, com o exemplo das nações estrangeiras.
E se algum defeito tem, é e de parecer deficiente, que não excessiva.
Á mesma conclusão chegaremos se passarmos em revista o que ente nó s tem acontecido, como consta d'este outro mappa, onde reuni a maneira como variou em Portuga], de quinze em quinze annos, a população, a despesa total do Estado, a importancia da dotação da Familia Real, etc.
Anno
População
Despesa total
Dotação do Rei e da Familia Real
Quota por habitante Réis
Relação com despesa total Por mil
[ver valores da tabela na imagem]
Vê-se, pois, que a capitação hoje é pouco mais de metade da de 1851-1852, e que a percentagem da lista civil, em relação ás despesas totaes, se encontra reduzida a menos de l/8 do que foi em 1821.
Assim, em conclusão, a Camara pode votar o artigo 1.°, sem receio de peccar por excesso, antes pelo contrario. Proporei, apesar d'isso, que se converta em § 1.° o § unico d’esse artigo, acrescentando-lhe o seguinte:
§ 2.° Estas dotações serão pagas em doze prestações iguaes e mensaes, sem que taes prestações possam, sob pretexto algum, ser antecipadas eu demoradas.
Este additamento parece-me sufficienmente justificado, pelos factos que teem vindo ultimamente ao conhecimento do país, acêrca das relações entre o Thesouro e a Administração da Casa Real; e com tal disposição inscrita na lei, não serão mais de recear os adeantamentos á Casa Real; visto como o artigo 34.°, § unico, da actual lei de contabilidade publica sujeita ás penas de peculato e á responsabilidade civil o director geral da Thesouraria que ordenar alguma operação de thesouraria contra qualquer disposição legal.
Não fui eu que inventei esse § 2.°, cujo additamento proponho.
É copia textual do artigo 2.° do decreto de 26 de maio de 1791, da Asembleia Nacional Constituinte, que criou a dotação da Coroa, nos termos seguintes:
Artigo 1.° O Thesouro Publico pagará annualmente uma somma de 25 milhões de francos (isto é, 4:500 contos de réis) para as despesas do Rei e da sua casa.
Art. 2.° Esta somma será paga em doze prestações iguaes e mensaes, sem que taes prestações possam, sob pretexto algum, ser antecipadas ou demoradas.
E este artigo 2.° que eu transformei, com a mesma redacção, no § 2.° que proponho para o artigo 1.°
Mas, já agora, permitta-me V. Exa. que eu leia á Camara o artigo 3.° d'esse decreto de 26 de maio de 1791, a que venho de referir-me.
Diz elle:
Art. 3.° Em virtude do pagamento annual de 25 milhões de francos, fica declarado que em tempo algum e por causa alguma, qualquer que ella seja, poderá a nação ser obrigada a pagar qualquer divida contrahida pelo Rei em seu nome ; analogamente os Reis não respondem, em caso algum, pelas dividas e compromissos de seus antecessores.
É este exactamente o principio que eu sustentei na sessão passada, não pode elle deixar de ser bem recebido pelos republicanos portugueses, visto que dimana da Constituinte de 1791, d’essa Assembleia que votou a Constituição de 8 de setembro de 1791, a qual é, de todas as Constituições que a França tem tido desde 1789, a que mais restringiu as prerogativas da realeza, e até as do poder executivo.
Passo agora, Sr. Presidente, ao artigo 2.° do projecto, que diz assim:
Artigo 2.° Por cedencia expressa de Sua Majestade El-Rei o Senhor D. Manuel II, ficam pertencendo á Fazenda Nacional, e encorporados nos proprios d'ella, o Paço de Belem e os Paços de Caxias e Queluz, casas, quintas e mais dependencias, deixando de permanecer, como até aqui, na posse e usufruto da Coroa.
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Sr. Presidente: este Governo tem o deploravel sestro de atraiçoar os mais nobres pensamentos de El-Rei.
Assim, na concessão da amnistia, inutilizou os generosos intuitos do Soberano, por não ter a coragem e a envergadura necessarias para fazer bem e opportunamente o que só tarde, mal e incompletamente praticou, com tal inhabilidade que nem soube, por esse acto de demencia ou antes de justiça, conquistar para o Monarcha as sympathias que lhe eram pessoalmente devidas, e que lhe teriam ficado certamente asseguradas, se se houvesse procedido com melhor comprehensão da alma popular, que prontamente se enternece e enthusiasma perante qualquer acto de real magnanimidade.
Agora, estragou um rasgo de verdadeira isenção de El-Rei, submettendo-o á sancção parlamentar, em termos que não são de receber.
Effectivamente, El-Rei pode ter manifestado o desejo, muito louvavel, de que, no presente reinado, se restringisse o numero de palacios que, nos reinados anteriores, teem sido destinados, pelas Côrtes, ao recreio e decencia do Soberano; e essa declaração do nosso joven Monarcha devia constar do relatorio, para que a lei, redigida nessa conformidade, não parecesse usar de menos generosidade e cortesia para com o Senhor D. Manuel, do que as que se dispensaram aos seus antecessores.
Mas o que Sua Majestade não pode ter dito, como parece deprehender-se do artigo 2.° do projecto, é que cedia, para ficarem pertencendo á Fazenda Nacional, e encorporados nos proprios d'ella, os Paços de Caxias e Queluz, com suas dependencias, porque esses palacios já se acam encorporados de ha muito na Fazenda Nacional, e não estão presentemente na posse e usufruto da Coroa, que só por esta lei lhe podem ser dados de novo.
Assim, segundo a original maneira de dizer do Governo, a Casa Real cede antecipadamente á nação, pelo artigo 2.°, os palacios que lhe não pertencem, e que só por esta lei lhe poderão ser destinados.
É o caso da pescada, que já o era antes de o ser.
Tudo isto deve parecer um enygma aos que me escutam; mas eu vou procurar decifrá-lo com toda a clareza.
A Casa Real disfruta duas ordens de palacios:
1.ª Os palacios de que reza o artigo 80.° da Carta Constitucional:
Os palacios e terrenos reaes que teem sido até agora, possuidos pelo Rei ficarão pertencendo aos seus succesisores, e as Côrtes cuidarão nas acquisições e construcções que julgarem convenientes para a decencia e recreio do Rei.
Até agora, quer dizer, até 29 de abril de 1826, data da outorga da Carta Constitucional.
Ora quaes eram os palacios e terrenos reaes possuidos até então por El-Rei D. João VI, que morrera pouco antes, em 10 de março de 1826?
Di-lo a carta de- lei de 11 de julho de 1821, que fixou a dotação de D. João VI, no seu artigo 3.°:
Artigo 3.° Ficam designados para habitação e recreio de El-Rei os palacios da Ajuda, Alcantara, Mafra, Salvaterra, Vendas Novas e Cintra, com todas as quintas e tapadas que lhes são annexas.
Taes são, pois, os palacios que pertencem hoje a El-Rei D. Manuel, nos termos do artigo 85.° da Carta Constitucional, como successor, que é, de D. João VI.
2.ª Mas a Casa Real tem tambem disfrutado, alem d'esses, alguns palacios da Casa do Infantado.
Vejamos como, e em que condições.
A Casa do Infantado foi instituida por El-Rei D. João IV a favor do seu segundo genito e do segundo genito dos seus successores, com bens que sairam da Coroa, não por concessão particular sob qualquer titulo, mas para um fim altamente politico e de interesse publico, qual era o de melhor assegurar a successão da Coroa de Portugal na familia de Bragança, evitando se assim qualquer pretexto para a repetição do que acontecera em 1580, quando Filipe II de Castella, allegando o seu supposto direito de successão, mandou occupar Portugal por um grande exercito, sob o cominando do Duque de Alba.
A Casa do Infantado veio, pois, a pertencer a D. Miguel, na sua qualidade de segundo genito de D. João VI; mas, sobrevindo a luta entre D. Miguel e D. Pedro, este, como regente em nome da Rainha, publicou em 18 de março de 1834 dois decretos:
No primeiro destituia e exautorava o Infante D. Miguel, usurpador da Coroa da Rainha, de todas as honras, prerogativas, privilegios, isenções e regalias que na qualidade e pelo titulo de Infante lhe pertenciam, declarando que não podia mais ser tratado ou nomeado tal nestes reinos.
No segundo decreto, consequencia logica do primeiro, foi extincta a Casa do Infantado, acrescentando-se no artigo 2.°:
Artigo 2.° Os bens da extincta Casa do Infantado ficam pertencendo á Fazenda Nacional e encorporados nos proprios d'ella; porem, os palacios de Queluz, da Bem posta, do Alfeite, de Samora Correia, de Caxias e da Murteira, casas, quintas ti mais dependencias d'elles, são destinados para decencia e recreio da Rainha, como os palacios e terrenos de que trata o artigo 85.° da Carta Constitucional da Monarchia.
Assim, todos os bens da Casa do Infantado ficaram pertencendo, e ainda hoje pertencem, a despeito do que diz o actual Governo, á Fazenda Nacional; mas alguns d'elles foram destinados para decencia e recreio da Rainha, só da Rainha D. Maria II, e não dos seus successores.
Tanto assim é que, tendo fallecido esta Soberana, e succedido no Throno o Senhor D. Pedro V, foi necessario renovar, em favor do novo Monarcha, a concessão que tinha sido feita a Sua Augusta Mãe.
Effectivamente, a lei de 16 de julho de 1855 declara logo no seu artigo 1.°:
Artigo 1.° No presente reinado do Senhor D. Pedro V continuará em vigor a disposição do decreto de 18 de março de 1834, que assinou á Coroa os palacios e terrenos nacionaes nelle designados.
Como se vê a concessão foi renovada, mas só para o reinado de D. Pedro V, e extinguiu-se por morte d'este.
A lei de 11 de fevereiro de 1862, que fixou a dotação do seu successor L). Luiz I, renovou ainda a concessão, mas tambem só para o seu reinado, porque no artigo 2.° diz:
«Artigo 2.° São declaradas em vigor no presente reinado as disposições da lei de 16 de julho de 1855».
E finalmente a lei de 28 de junho de 1890, que fixou a dotação de El-Rei D. Carlos, reproduz esse mesmo artigo sob o n.° 5, a saber:
Artigo 5.° São declaradas em vigor no presente reinado as disposições da lei de 16 de julho de 1855.
Em conclusão, os palacios da extincta Casa do Infantado poderão neste momento continuar na posse da Casa Real mas essa posse é illegal desde o dia 1 de fevereiro, porque o decreto de 18 de março de 1834 a restringiu ao reinado de D. Maria II; a lei de 16 de julho de 1855, ao reinado de D. Pedro V; a lei de 11 de fevereiro de 1862, ao remado de D. Luiz I; e a lei de 28 de junho de 1900, ao reinado de D. Carlos I.
E tanto assim o entendeu o Governo, que lá inscreveu neste projecto de lei o artigo 6.°, que diz assim:
Artigo 6.° Continuam em vigor, no actual remado, as disposições da carta de lei de 16 de julho de 1855, em tudo que não for especialmente derogado pela presente lei.
Por isso, se é por este artigo da lei que os palacios do Infantado podem ser postos, no actual reinado, á disposição de El-Rei, como é que no artigo 2.° se declara que El-Rei cede os palacios de Queluz e Caxias, que nem lhe pertencem, nem estão na sua posse legal?
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10 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO
Assim eu terei a honra de propor que o artigo 2.° da lei seja completamente refundido, enumerando-se explicitamente os palacios da extincta Casa do Infantado e outros, que, alem d'aquelles a que se refere o artigo 80.° da Carta Constitucional, ficam pelas Côrtes destinados, no actual reinado, para decencia e recreio de El-Rei, incluindo se entre elles a cidadella de Cascaes, e excluindo-se os que estão applicados a diversos serviços publicos.
Pedindo que se redija claramente este artigo 2.°, eu faço desde já duas indicações, como V. Exa. vê.
A primeira é que se inclua entre os palacios destinados a El-Rei a cidadella de Cascaes, para se evitar a irregularidade, que se está dando, de figurar no tombo do Ministerio da Guerra, como forte militar, um edificio que é hoje exclusivamente applicado a residencia da Familia Real.
A segunda é que se não entreguem, por esta lei, á Casa Real palacios que ella não disfruta actualmente, e que estão, ao contrario, na posse do Estado, evitando-se o termos assim de pagar as respectivas rendas, como acontecerá fatalmente em virtude do artigo 6,°, se se conservar á lei a sua redacção actual.
Eu comprehendo perfeitamente que o usufrutuario possa arrendar o predio ao seu proprietario, porque cede a favor d'este o direito do gozo, e em troca d'esse direito recebe ajusta compensação, que é a renda.
Mas o caso presente é outro, e muito diverso.
A Casa Real não está, neste momento, na posse e usufruto dos palacios do Infantado, porque essa posse e usufruto, que se teem renovado no principio de cada reinado, e só emquanto elle durar, cessaram legalmente em 1 de fevereiro ultimo.
É agora que nós vamos renovar essa posse e usufruto, por virtude do artigo 6.° do projecto de lei. Ora eu pergunto se é logico que o proprietario, que é o Estado, simuladamente destine para decencia e recreio de El-Rei, como diz o decreto inicial de 18 de março de 1834, palacios que estão empregados em diversos serviços publicos, e que não podem materialmente ser entregues á Casa Real, só para justificar d'esta arte um aumento encapotado da lista civil, sob a forma de rendas.
Pois acabe-se com taes rendas, que se não podem defender decentemente, e haja a coragem de aumentar a dotação de El-Rei, se se julga insuficiente a quantia indicada no artigo 1.° do projecto, elevando-a, por exemplo, a 400 contos de réis, como o propunha Braamcamp, o honrado liberal português, no congresso de 1821.
Dir-se-ha que o que eu agora proponho é uma innovação sobre o que se fez j em 1855, em 1862 e em 1890, quando se votaram as listas civis de I). Pedro V, de D. Luiz I e de I). Carlos I.
Sem duvida. Mas é que então ainda a questão dos arrendamentos não tinha tomado o caracter melindroso, que só assumiu no ultimo reinado, e que a tornou muito mais grave, a meu ver, que a tão debatida questão dos adeantamentos.
Sr. Presidente: em 1879, o partido progressista depois de uma violenta campanha contra a Coroa e contra e Governo regenerador, foi chamado ao poder.
O Conimbricense publicava então um artigo, que produziu sensação, no qual se declarava que SQ o debito da Casa Real ao Thesouro, por direitos de importação, era, segundo a liquidação feita até meados de 1879, o seguinte:
D. Pedro V........... 8:209$703
D. Estephania......... 1:35$0497
D. Luiz I.............. 28:788$160
D. Maria Pia........... 13:275$285
51:6770645
A revelação era de natureza a despertar a attenção publica.
A imprensa occupou-se do caso sensacional: o Ministro da Fazenda, Barros Gomes, consultou a Procuradoria Geral da Coroa, e em 22 de novembro de 1879 publicou a seguinte portaria:
Sua Majestade El-Rei. a quem foi presente o processo relativo ás contas do Thesouro com a Casa Real, que ainda não foram liquidadas, sem embargo de ter sido por diversas vezes requisitada essa liquidação pela administração da mesma casa;
Considerando que muito convem lançar em receita do Estado a conta dos direitos em divida, provenientes dos despachos nas alfandegas de objectos destinados co uso e serviço da Casa Real, e ordenar o seu pagamento pela forma estabelecida no artigo 2.° das instrucções a que se refere aportaria de 30 de julho de l839;
Considerando que o pagamento ha de ser feito por encontro, devendo por isso ser attendidos nelle os creditos da Casa Real sobre o Thesouro Publico que para esse fim forem designados pela administração da mesma Casa Real;
Considerando que não pode realizar se o encontro nos termos expostos sem liquidação previa d'estes creditos e d'aquelles direitos;
Hei por bem nomear uma commissão composta dos Conselheiros José Antonio Ferreira Lima, Juiz do Supremo Tribunal de Justiça, Luiz de Sousa da Fonseca Junior. Director Geral de Contabilidade : e Lopo Vaz de Sampaio e Mello, Director Geral das Alfandegas e Contribuições Indirectas, servindo o primeiro de presidente e o ultimo de secretario, a qual, ouvindo o administrador da Casa Real e Fazenda, e examinando os documentos, que lhe serão enviados pelas estações competentes, procederá em conformidade com a consulta do procurador geral da Coroa e Fazenda, approvada unanimemente em conferencia, á liquidação dos direitos devidos pela mencionada casa e credites d'ella sobre o Thesouro publico, que devam ser reconhecidos e abonados.
O que se participa, pelo Ministerio dos Negocios da Fazenda e Repartição do Gabinete do Ministro, ao presidente e mais membros da mesma commissão, e ás repartições publicas dependentes do referido Ministerio, para seu conhecimento e devidos effeitos.
Paço, em 22 de novembro de 1879.= Henrique de Barros Gomes.
Esta commissão nada fez.
Entretanto, em 17 de dezembro de 1891, o administrador da Casa Real, que ainda era então o Conselheiro Duarte Nazareth, dirigiu um officio ao Ministerio da Fazenda, no qual dizia: «que se mostrava de documentos que a Casa Real era credora ao Thesouro da quantia de 93:816$545 réis» a qual representa effectivamente o saldo das antigas reclamações da Casa Real, que remontavam ao reinado de D. Maria II, na importancia de 145:994$190 réis, depois de deduzidos os direitos da alfandega, em divida, ou 52:177$645 réis.
Morreram dois dos vogaes da commissão de 1879, o terceiro aposentou-se, e o Governo nomeou em 28 de julho de 1894, para o mesmo fim, uma nova commissão composta do nosso respeitavel collega Sr. Antonio Emilio de Sá Brandão, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, e dos Directores Geraes da Contabilidade e da Thesouraria, Srs. Conselheiros Pereira Carrilho e Luiz Perestrello.
Esta segunda commissão iniciou os seus trabalhos.
Mas, entretanto, o Governo mandava proceder á avaliação contraditoria dos palacios e dependencias que, tendo estado em tempos no usufruto da Coroa, se encontravam então e se encontram ainda hoje applicados a diversos serviços publicos.
Fez-se a avaliação em 23 de agosto de 1894, sendo perito, por parte do Estado, o nosso distincto collega Sr. Avellar Machado, afastado, infelizmente; por doença, dos trabalhos parlamentares, e o Governo resolveu desde logo, e sem audiencia da commissão, mandar abonar á Casa Real, a partir do segundo semestre de 1894, inclusive, as rendas equivalentes a 5 por cento d'essas avaliações, a saber:
1) Palacio da Bemposta e suas dependencias :
Parte occupada pela Escola do Exercito.. 8:170$8000
Pelo Instituto Agricola.... 2:476$000 10:646$000
2) Construcções denominadas — Reaes Cavallariças — usufruidas pelos Ministerios da Guerra e da Fazenda...... 6:226$500
3) Antigas cavallariças do Real Palacio de Belem, na Calçada da Ajuda, onde se encontra aquartelado o regimento de cavallaria n.° 4, bem como o Pateo da Nora e o Pateo das Zebras................. 3:586$000
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4) Parte do Palacio de Mafra, occupado pela Escola Pratica de Infantaria e suas dependencias ................... 6:771$650
5) Campo chamado das Salesias ou Terras do Desembargador 423$850
Somma......... 27:654$000
A administração da Casa Real, logo que viu reconhecida pelo Governo a obrigação de pagar esta importancia, a partir do segundo semestre de 1894, como renda dos palacios occupados pelo Estado, muito logicamente apressou-se a reclamar, em 29 de outubro de 1894, que se lhe abonassem tambem as rendas atrasadas, desde a data do fallecimento dos Monarchas que tinham feito ou renovado a concessão d'esses palacios ao Estado, sem encargo algum, a saber:
1) Pelo Palacio da Bemposta e suas dependencias, que fora avaliado pelos peritos em 212:920$000 réis, quarenta e meio annos a 10:646$000 réis 431:163$000
2) Pelas construcções denominadas — Reaes Cavallariças, quatro e meio annos a réis 6:226$000................._ 28:019$250
3) Pelas antigas cavallariças do Real Palacio de Belem, quatro e meio annos a 3:586$000 réis...................... 16:137$000
4) Pela parte occupada pelo Palacio de Mafra, quatro e meio annos a 6:771$650 réis 30:472$425
5) Pelo Campo das Salesias, quatro e meio annos a réis 423$850................ 1:907$325
Somma......... 507:699$000
A commissão achou procedente esta nova reclamação da Casa Real, e no seu parecer de 18 de fevereiro de 1895 conclue por propor o pagamento integral das rendas atrasadas, na importancia, como disse, de... 507:699$000
Quanto ás antigas reclamações da Casa Real, que montavam a réis 145:994$190, reduziu-as a 120:328$826
Elevando-se assim o credito da Casa Real sobre o Thesouro a.......628:027$826
Por outra parte, o credito do Thesouro sobre a Casa Real, pelos direitos em divida ás alfandegas de Lisboa e Porto, subia a 54:047$445
Sendo, portanto, o saldo a favor da Casa Real de 573:980$381
O Governo conformou-se com o parecer da commissão e ordenou, por despacho do Ministro da Fazenda de então, que o assunto fosse submetttido á sancção parlamentar.
Tratava-se, effectivamente, de legalizar aquelle credito de 573:980$381 réis da Casa Real sobre o Estado, o qual já estava pago em parte, porque
a referida Casa, em conta corrente com o Thesouro, tinha recebido por varios supprimentos o seguinte:
Datas
Ministros da Fazenda
Quantias
[ver valores da tabela na imagem]
Pois imagina alguem que o Governo de então, onde já preponderava, sob a forma latente, a virtude que mais tarde se tornou triunfante, mercê do apoio dos progressistas; imagina alguem que o Governo de então veio, em cumprimento do seu proprio despacho, expor lealmente ás Camaras o parecer da commissão, e pedir ao Parlamento que autorizasse o pagamento d'aquelles 628 contos de réis, dos quaes 508 de rendas atrasadas, que constituiam a nova reclamação, e 120 de antigas reclamações?
Isso sim!
O Governo limitou-se a trazer ao Parlamento, ou antes ao Solar dos Barrigas a lei de receitas e despesas do Estado, de 13 de maio de 1896, cujo artigo 30.° é assim concebido:
Artigo 30.° Fica autorizado o Governo para liquidar da foram que julgar mais conveniente os direitos em divida provenientes de despachos feitos na alfandega, em harmonia com os preceitos da portaria de 22 de novembro de 1879, e mais providencias sobre o assunto.
Assim, pela simulada redacção d'este artigo da lei, parecia que se pretendia cobrar uma divida da Casa Real ao Thesouro por direitos de alfandega, quando, muito ao contrario, se tratava de pagar a essa Casa 628 contos de réis, por virtude de varias reclamações feitas principalmente depois de 1879, encontrando-se nesse pagamento os 54 contos de réis de direitos de alfandega em divida, o que reduzia o saldo a 574 coutos em numeros redondos.
Meses depois, publicou-se o decreto de 31 de dezembro de 1896, abrindo um credito especial de 324 contos, com applicação ás despesas de que traia o artigo 30.° da carta de lei de 13 de maio de 1896.
Foi o primeiro à compte.
O Sr. João Arroyo :— Esse decreto chegou a ser publicado ?
O Orador: — Foi effectivamente publicado.
Mas, Sr. Presidente, como ainda havia que pagar o resto das rendas atrasadas e faltava tambem a autorização parlamentar para as rendas futuras, veio a lei de receitas e despesas do Estado de 12 de junho de 1901, que no seu artigo 19.° diz assim:
Artigo 19.° Continuam em vigor no exercicio de 1901-1902 :
1.° A autorização concedida ao Governo pelo artigo 30.° da carta de lei de 13 de maio de 1896.
§ unico. E tambem autorizado o Governo: a) A pagar á administração da fazenda da Casa Real a importancia das rendas dos predios pertencentes á mesma Casa e que o Estado usufrue para diversos serviços publicos, podendo abrir os creditos especiaes necessarios, nos termos d'esta lei, e sendo a disposição d esta alinea declarada de execução permanente.
Observarei que só por euphemismo se póde dizer nessa lei que continuava em vigor a autorização concedida ao Governo pelo artigo 30.° da carta de lei de 13 de maio de 1896, porque tal autorização não foi incluida nas leis dos orçamentos para 1897-1898 e 1898-1899, que foram por mim apresentadas ás Côrtes, nem tão pouco nas leis analogas que o meu successor, o Sr. Conselheiro Espregueira, submetteu á sancção parlamentar.
Houve, pois, em 1901, uma verdadeira renovação da autorização concedida ao Governo pelo artigo 30.° da carta de lei de 13 de maio de 1896.
Como quer que seja, pouco depois publicou-se o decreto de 24 de maio de 1902, com fundamente no artigo 30.° da carta de lei de 13 de maio de 1896 e nas disposições do artigo 19.°, n.° 1.° e § unico alinea a) da carta de lei de 12 de junho de 1901, abrindo um outro credito especial de 307:788$165 réis.
E assim se legalizou o saldo dos 573:980$381 réis, do parecer da commissão de 18 de fevereiro de 1895, e a renda de alguns annos anteriores na razão de 28:904$000 réis por anno, porque aos 27:654$000 réis primitivos já se tinham vindo juntar mais réis
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1:250$000, como renda de parte do palacio de Queluz, occupada pelo grupo de artilharia a cavallo.
Em seguida publicaram-se varios decretos, um em cada anno, para abrir os creditos especiaes destinados ao pagamento das rendas.
Mas o mais curioso é que, devendo essas rendas montar apenas a réis 28:904$000, ou 5 por cento das avaliações dos peritos, durante 4 annos foram elevadas a 83:504$000 réis, o que equivaleu, pura e simplesmente, a um real aumento da lista civil de 54 contos de réis por anno.
Eu pergunto se se deve manter no projecto actual uma disposição que permitte a repetição d'este abuso de se elevar a dotação real, sem intervenção alguma do Parlamento, á sombra da lei de 1901, que autoriza o Governo a pagar o que quiser pelas rendas dos predios que,, sendo do Estado e por elle usufruidos, se consideram, para os effeitos da renda, na posse da Coroa?
Assim temos, conforme os creditos especiaes a que venho de referir-me:
31 de dezembro de 1896 324:000$000
24 de maio de 1902 307:788$165
2 de agosto de 1902 83:504$000
24 de dezembro de 1903 83:504$000
22 de julho de 1905 83:504$000
22 de julho de 1905 83:504$000
30 de julho de 1906 28:904$000
13 de julho de 1907 28:904$000
Acrescentando ainda os direitos de alfandega, em divida, em 1895............. 54:047$445
perfaz..............1.077:659$610
que foram pagos á Casa Real, durante o ultimo remado, sendo por virtude de antigas reclamações ......... 120:328$826
e a titulo de rendas... 957:330$784
Isto por predios que foram avaliados em 578:080$000 réis.
Aqui tem V, Exa. lealmente exposto, tudo quanto encontrei nos documentos publicos, e noutros que solicitei, com respeito a esta melindrosa questão das rendas pagas á Casa Real, questão que eu considero muito mais grave, sob o ponto de vista moral, que a tão falada questão dos adeantamentos posteriores a 1899.
Eu prefiro os adeantamentos, deixados, como estes ultimos, a descoberto, para a todo o tempo serem liquidados ou legalizados, a esses outros adeantamentos disfarçados, que se saldam sob a forma de rendas, á sombra de leis, adrede redigidas para occultarem do Parlamento o fim que se tinha em vista, levando-o, por exemplo, a suppor que autorizava a cobrança de um credito, que todos sabiam orçar por 50 contos de réis, quando de facto veio a legalizar o pagamento de 503 contos de réis, de rendas atrasadas, e de 120 contos de réis de antigas reclamações, perfazendo tudo 628 contos de réis.
Eu não censuro o Governo que assim procedeu, porque é um pouco tarde para o fazer. Noto apenas que nesse Governo já então preponderava a virtude, mais tarde triunfante, do Sr. João Franco, para quem ninguem, senão elle, era liso e honrado neste país.
De resto, á parte a hypocrisia da forma, reconheço que a lei de 16 de julho de 1855 autorizava a Casa Real a arrendar os palacios destinados a recreio e decencia do Rei, e desde que o Parlamento teve a imprudencia, em 1890 como em 1862, de simular que destinava para recreio e decencia dos Monarchas palacios que se encontravam de facto no usufruto do Estado e se achavam applicados a varies serviços publicos, o Pais teve de pagar a inadvertencia do Parlamento, saldando as rendas d'esses palacios.
Deixemos, pois, o passado, mas tiremos d'elle lição para não cairmos nos mesmos erros, para evitarmos que se pratiquem os mesmos abusos, com a circunstancia aggravante de se aumentarem as rendas arbitrariamente, consoante a necessidade der se elevar a lista civil.
Agora, que temos de designar quaes os palacios da antiga Casa do Infantado que são, no actual reinado, destinados ao recreio e á decencia do Rei, agora é que é o momento asado de excluirmos d'essa concessão todos aquelles que estão occupados por diversos serviços publicos, e não podem por isso ter aquelle destino.
Eis por que propus a completa refundição do artigo 2.° e ainda para mais segurança proponho no artigo 7.° a revogação expressa do artigo 19.° da lei de 12 de junho de 1901, porque, se de futuro a Casa Real vier a arrendar ao Estado algum dos palacios, de que trata o artigo 85.° da Carta Constitucional, ou algum da restantes palacios do Infantado que lhe são agora destinados, eu entendo que essa renda deve figurar explicitamente no orçamento, e não pode ficar ao arbitrio do Governo, para a saldar por meio de um credito especial, sem limitação legal.
Terminei assim a critica que entendi dever fazer ao projecto em discussão. Como V. Exa. ha de certamente reconhecer, este projecto não está redigido com aquella clareza e franqueza que seriam indispensaveis para que e Parlamento pudesse resolver a questão com pleno conhecimento de causa, á luz da razão, da verdade e da justiça: padece, ao contrario dos antigos subterfugios e alçapões, apesar d'estes já estarem inteiramente condemnados e gastos.
Para mim, a apresentação d'este projecto por parte do Governo foi mais uma demonstração de que a chamada concentração monarchica, em vez de iniciar o novo reinado com um novo regime de ordem, liberdade e respeito á lei, em vez de nos abrir os largos horizontes de uma politica moderna, leal e sincera, falhou inteiramente á sua missão, como demonstrei na sessão passada.
Tenho dito. (Vozes:— Muito bem).
O Sr. Presidente:— Vão ler-se as propostas mandadas para a mesa pelo Digno Par o Sr. Ressano Garcia.
Foram lidas, admittidas e ficaram em discussão, juntamente com o projecto; as propostas, que são do teor seguinte :
Proponho que no artigo 1.° se converta o § unico em § 1.°, acrescentando o seguinte:
«§ 2.° Estas dotações serão pagas em doze prestações iguaes e mensaes, sem que taes prestações possam, sob pretexto algum, ser antecipadas ou demoradas». = Frederico Ressano Garcia.
Proponho que no artigo 2.° se enumerem explicitamente todos os palacios da extincta Casa do Infantado e outros, que, alem d'aquelles a que se refere o artigo 85.° da Carta Constitucional, são pelas Côrtes destinados, no actual reinado, para decencia e recreio de El-Rei, incluindo-se entre elles a Cidadella de Cascaes e excluindo-se os que estão applicados a diversos serviços publicos. -= Frederico Ressano Garcia.
Proponho a eliminação do artigo 5.°= Frederico Ressano Garcia.
«Artigo 7.° Fica revogada a legislação em contrario e designadamente o artigo 19.° da lei de 12 de junho de 1901».= Frederico Ressano Garcia.
O Sr. Mattozo Santos: — Sr. Presidente : pedi a palavra para mandar para a mesa o parecer da commissão de agricultura sobre a importação de milho e centeio.
Foi a imprimir.
O Sr. Presidente do Conselho de Ministros e Ministro do Reino (Ferreira do Amaral): — O Digno Par a quem. vou ter a honra de responder, da primeira vez que usou da palavra, expressou-se por maneira que parecia estar em ordem do dia, não o projecto res-
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peitante á lista civil, mas o de resposta ao Discurso da Coroa.
O Digno Par tratou de demonstrar, e para isso empregou todos os recursos do seu espirito lucido e brilhante, uma cousa que, pelo que S. Exa. affirmou, parecia certamente axiomatica: a da incapacidade d'elle, orador.
O Sr. Conde de Arnoso: — Apoiado.
O Orador:— É de estranhar, porem, que S. Exa., no intuito de provar uma cousa que se lhe afigurou tão evidente, gastasse duas longas e compridissimas horas.
O Digno Par num discurso, decerto muito eloquente, como são todos os que S. Exa. pronuncia, começou por accusar o Governo de não activar os trabalhos parlamentares, e deixar que a lista civil não esteja ainda sanccionada pelo Parlamento, permittindo assim que a Casa Real, para manter a situação que lhe é propria, continue no regime de emprestimos, sempre humilhantes e desairosos.
S. Exa. deplorava que o Governo não accelerasse a marcha dos trabalhos parlamentares, e profundamente o incommodava o facto de reconhecer que ainda não estava liquidada a questão da lista civil; mas, ao mesmo tempo espraiou-se em longas considerações, que exigem por minha parte uma resposta, se não muito extensa, não tão diminuta como seria se não fora a attitude de S. Exa.
O Digno Par, subordinando-se a razões de ordem politica, que teriam cabimento em qualquer outra occasião, faz que a approvação do projecto se demore, e assim não sei eu que razão justificativa ha para abonar a arguição de S. Exa.
O Digno Par, proseguindo nas suas considerações de ordem politica, en tende que o Governo não está á altura da alta missão que lhe foi confiada, por não ter revogado, logo que assumiu o poder, todos os decretos ditatoriaes promulgados pelo Governo transacto.
O Governo fez aquillo que lhe cumpria fazer, em face e em presença dos acontecimentos que se lhe depararam.
Revogou as medidas que mais ou Plenos affectavam os direitos individuos,- porque, equivalendo ellas a suspensas de garantias, e não se permittindo que as garantias sejam suspensas sem autorização do Parlamento, trata-se de um acto do poder executivo, que não admittia demoras em immediatamente as corrigir.
Como é que S. Exa. que no seu amor á legalidade tanto condemna as ditaduras, queria que o Governo enveredasse por um caminho que a opinião publica repudiava?
O Governo procedeu consoante as circunstancias que se apresentaram, e, para conseguimento dos seus justos fins, só recorreu a meios justos.
O Digno Par manifestou-se favoravel á reunião da Camara que havia sido eleita sob a influencia do Governo transacto.
Não só ao Digno Par, mas a muita gente se afigurou que era vantajosa e conveniente a reunião d'essa Camara, em vez de se proceder a um novo acto eleitoral.
S. Exa. alludiu ao que atai respeito se passou no Conselho de Estado.
Não tenho a honra de pertencer a essa alta corporação, disponho todavia da correcção suficiente para não vir narrar á Camara o que ali occorreu, mas creio que não incorro em qualquer indiscrição dizendo que esse alto corpo politico não classificou de illegal a solução que o Governo escolheu, e isto me basta para poder justificar o procedimento do Governo no ponto de vista da consulta do Conselho de Estado.
Poderia encará-lo com ausencia de criterio governativo, mas não disse que era illegal.
Demais, como toda ra gente sabe, o Conselho de Estado é obrigatoriamente consultado, em determinadas circunstancias designadas no codigo fundamental do Estado, mas não se segue d'ahi que os Governos se vejam na necessidade de adoptar o alvitre que lhes seja pelo Conselho recommendado.
É uma estação, como tantas outras, de funcções meramente consultivas.
O Governo entendeu que não era conveniente reunir uma Camara cuja maioria se compunha de elementos favoraveis ao anterior Governo.
Como é que se podia esperar que essa Camara derogasse medidas, que a uma grande parte dos que a compunham tinham merecido pleno assentimento, pelo apoio que deram ao Sr. João Franco fora do Parlamento?
Mas ha mais. Tratando-se da iniciação de um reinado e ,de um Parlamento que tinha de julgar os actos do novo Governo, convinha que se realizasse uma eleição completamente livre, e que d'essa eleição se concluisse se a escolha d'aquelle Governo merecia ou não o apoio da maioria do país.
Tenho dito, e não me canso de affirmar que o acto eleitoral correu com a maxima regularidade.
Disse o Digno Par que se fizeram combinações de Deputados.
Houve combinações de candidatos, o que é differente.
Estas combinações ajustam-se nos paises mais liberaes do mundo, e nunca ninguem se lembrou de as fulminar.
Não ha parte alguma do mundo onde se não dêem factos congeneres.
O que seria censuravel era que o Governo, para fazer vingar qualquer candidatura, recorresse a violencias ou exercesse qualquer especie de pressão sobre os eleitores, o que ninguem se lembrou de dizer ou affirmar.
Tambem o Digno Par allegou que o facto de se darem desdobramentos em um circulo permittiu que ao Parlamento viessem mais dois Deputados republicanos, alem dos que se esperava que viessem.
Asseverou o Digno Par que esse desdobramento pôs em evidencia a inépcia d'elle, orador.
O Sr. Ressano Garcia : — Eu não disse a inepcia do Governo ou a inepcia do Sr. Presidente do Conselho. Referi-me á inepcia dos amigos do Governo.
O Orador:— Não houve inépcia, e isso é prova de que as eleições se realizaram á vontade dos eleitores, sem intervenção do Governo.
S. Exa. em seguida accusou o Governo pela maneira por que elle procedeu na concessão da amnistia.
Creio que a Camara e a opinião publica não acompanham o Digno Par no modo por que S. Exa. se expressou em relação á amnistia.
O Digno Par queria que a amnistia fosse completa, e que abrangesse tambem os militares.
Se S. Exa. quer que se conceda a uma parte da força armada amnistia, porque ella veio pugnar pelos principios liberaes; por igual ha de consentir que essa amnistia lhe seja concedida quando ella se lembre de proclamar ou defender quaesquer principios reaccionarios.
A força armada não tem que intervir nos actos politicos do país. (Apoiados}.
A sua missão é muito outra, e muito mais elevada.
Corre-lhe o dever de não amparar ou sustentar quaesquer manejos politicos, e o de interessar-se só pela honra da patria, pelo culto da bandeira e por defender o país de qualquer invasão estranha.
Os países, ainda os que se regem por instituições mais radicalmente liberaes, não permittem actos tão subversivos e contrarios á disciplina, á ordem, e á elevada missão da familia militar.
Podem em dadas occasiões recommendar-se perdões a militares; amnistias, nunca.
Tambem o Digno Par estranhou que o Governo não entregasse o Sr. João Franco á sanha popular, e que preferisse intimá-lo a que saisse de Portugal, porque a verdade é que fiz a intimação, assumindo a responsabilidade d'ella, e não me arrependo do acto pra-
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ticado, porque nunca me arrependi de ter commettido um acto de juizo.
Sendo evidente a existencia de odios irreductiveis contra o chefe da situação transacta, e não se podendo prever a que consequencias deploraveis podia levar a manifestação d'essas más vontades, o Governo entendeu que a retirada do Sr. João Franco era um elemento indispensavel para dar ao Pais quietação, socego e a acalmação a que o Digno Par se referiu, e que não é tão completa como seria para desejar, porque os terroristas se comprazem, sem razão que o explique, em espalhar boatos alarmantes, e se ha solo que reuna condições para o desenvolvimento d'essa planta damninha, é com certeza o nosso.
O Digno Par, continuando nas suas arguições ao Governo, insinua que elle se afasta dos principios liberaes e tem farto receio de offender os conservadores.
Se S. Exa. se desse ao incommodo de ler o que a imprensa periodica tem dito a respeito da politica do Governo; se lesse, principalmente, o que escreve o Diario Illustrado, veria quão diversas das de S. Exa. são as opiniões dos franquistas no que toca ao liberalismo do Governo; são as opiniões dos franquistas e as de todos aquelles que mais ou menos os apoiam.
Disse tambem o Digno Par que o Governo se contradiz todos os dias.
Pode ser que assim seja, mas nessa parte pode-se dizer que não pode censurar-me quem, como S. Exa., no seu primeiro discurso, bateu o record das contradições.
Tambem o Digno Par acha estranhavel que os trabalhos parlamentares da outra Camara não tenham seguido com a velocidade que seria para desejar.
Ninguem o lamenta mais do que eu, mas os principies liberaes que S. Exa. tão acrisoladamente preconiza estão em manifesta contradição com a censura que dirigiu ao Governo.
Pode porventura imputar-se ao Governo a responsabilidade na demora do exame que o Parlamento applica a qualquer proposta ou providencia que lhe é submettida?
É o Governo que tem culpa, da longa discussão a que foi sujeito, na Camara dos Deputados, o projecto da lista civil, em que se tratou, cumulativamente, da questão dos adeantamentos ?
Pois seria o Governo que devia pedir aos seus amigos que passassem por cima das opposições, recorrendo aos condemnados abafaretes ás inveteradas prorogações de sessões, a todo esse arsenal de avariados instrumentos, que tenham por fim abafar a, voz de quem tivesse o direito e quisesse expressar o seu pensamento?
O Governo, ao contrario, por todos os meios, directos e indirectos, pede aos seus amigos que permitiam que as discussões corram livremente, na mais absoluta serenidade e na mais larga expansão do pensamento.
Suppõe que está a dar hora.
O Sr. Presidente: — Faltam ainda dez minutos.
O Orador: — Como tenho de entrar em uma nova ordem de considerações, que não teria tempo de completar em dez minutos,. peço que me seja permittido continuar na sessão seguinte.
(S. Exa. não reviu).
O Sr. Presidente:— Fica V. Exa. com a palavra reservada para a sessão seguinte.
A seguinte sessão será amanhã, e a ordem do dia a continuação da que es; tava dada para hoje.
Está levantada a sessão.
Eram 5 horas e 25 minutos da tarde.
Dignos Pares presentes na sessão de 3 de agosto de 1908
Exmos. Srs.: Antonio de Azevedo Castello Branco; Eduardo de Serpa Pimentel; Marquezes: de Avila e de Bolama, de Penafiel, de Pombal e de Tancos ; Arcebispo de Evora; Condes: das Alcaçovas, de Arnoso, do Bomfim, de Castello de Paiva, de Figueiró, das Galveias, de Lagoaça, de Sabugosa e de Valenças; Viscondes: de Algés, de Athouguia e do Monte São; Alexandre Cabral, Pereira de Miranda, Eduardo Villaça, Costa e Silva, Sousa Costa Lobo, Teixeira de Sousa, Campos Henriques, Augusto José da Cunha, Eduardo José Coelho, Mattozo Santos, Veiga Beirão, Dias Costa, Ferreira do Amaral, Francisco José de Medeiros, Francisco Serpa Machado, Simões Margiochi, Ressano Garcia, Baptista de Andrade, D. João de Alarcão, João Arroyo, Joaquim Telles de Vasconcellos, José de Alpoim, Julio de Vilhena, Silveira Vianna, Pimentel Pinto, Bandeira Coelho, Affonso de Espregueira, Sebastião Dantas Baracho e Wenceslau de Lima.
O Redactor,
ALBERTO BRAMÃO.