DIARIO DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO 311
erudição e do muito talento do digno par, produziram no meu espirito uma impressão inteiramente contraria á que s. exa. desejaria, pois fiquei ainda mais confundido, e as minhas duvidas multiplicaram-se. Apresentarei, pois, a camara algumas reflexões sobre o assumpto, das quaes resulta afigurar-se-me ser inconstitucional o projecto que se discute, porque ataca os principios, rasga a carta e substitue o poder executivo o judicial pelo legislativo.
Disse o sr. relator, que a antiguidade é contada de classe para classe, e que o supremo tribunal já consultou ácerca do sr. Avelino para a 2.ª classe, é não é dispensado de o fazer quando dever passar para a l.ª
Effectivamente ha a lei de 21 de julho de 1855, que regula esse ponto; que prescreve que a antiguidade para os juizes começa a contar-se em cada classe desde o acto da posse.
Esta e uma das disposições, que prohibe contar-se a antiguidade ao sr. Cardoso Avelino, e a qual se oppõe manifestamente ao projecto; e não obstante a commissão não ousou declarar que ficava revogada aquella disposição e toda a legislação em contrario!
Alem d'isto, o supremo tribunal de justiça fica privado das attribuições que lhe confere a lei, que n'este ponto é preceptiva, mandando-lhe apresentar ao governo uma proposta triplice ou quadrupla, conforme o numero dos logares vagos, proposta da qual o governo ha de forçosamente escolher o juiz que deve ser promovido, proposta que versa sobre o merito1 e antiguidade. Por consequencia, a camara, dispensando o que não póde fazer, a consulta do supremo tribunal de justiça sobre o merito, vae dar o diploma de benemerito ao sr. Cardoso Avelino, atacando as prerogativas de um tribunal serio, e invadindo as attribuições do poder judicial, independente pela constituição- do estado.
Não são só estes os inconvenientes, ápparecem ainda outros, não menos palpaveis e frisantes.
V. exa. e a camara sabem muito bem, que não se póde promover um juiz a qualquer classe, sem que haja ahi logar vago. Onde fica, portanto, collocado o sr. Avelino: na l.ª ou na 2.ª classe, quando não haja vacatura? Em que categoria ou qualidade deve s. exa. estar ali, não estando collocado em comarca alguma? Considerar-se-ha supranumerario? Qual é a lei, que creou supranumerarios para as differentes classes estabelecidas pela lei de 21 de julho de 1.855?
Nenhuma. Se assim ó, este projecto é tanto mais odioso, quanto vae collocar o sr. Cardoso Avelino acima de outros juizes, que, em virtude da lei, adquiriram antiguidade, que se lhe começou a contar, collocado na segunda classe, desde a data da posse.
Uma lei similhante, para ser executada, se o supremo tribunal quizer ser docil a ponto de a acceitar, importa um ataque violento á carta constitucional e ao codigo civil, do qual é necessario revogar dois artigos. Será uma lei elaborada por um poder incompetente, por não ter auctoridade legitima, emfim será uma lei com effeito retroactivo, prohibido pela mesma carta, por todos os publicistas e por todas as legislações da Europa, é sobre tudo pelo bom senso.
Sr. presidente, eu vou demonstrar isto á camara em poucas palavras.
V. exa. e a camara sabem que a constituição de qualquer corpo physico e o complexo de condições, que asseguram a sua existencia. Assim nos corpos politicos a constituição do estado é tambem um complexo de condições necessarias e indispensaveis para a vida de qualquer nação. Todas as constituições pois, têem disposições, a que se chamam constitucionaes, e que só podem ser alteradas por uma assembléa com poderes especiaes e disposições regulamentares, que podem ser substituidas e alteradas em côrtes ordinarias.
Na carta o artigo 144.° é o que define o que é constitucional.
Eis o artigo:
«É só constitucional o que diz respeito aos limites e attribuições respectivas dos poderes politicos e aos direitos politicos e individuaes dos cidadãos. Tudo o que são é constitucional póde se? alterado sem as formalidades referidas, pelas legislaturas ordinarias.»
É o artigo 118.°, que se refere á independencia aos poderes, diz o seguinte:
«O poder judicial é independente e será composto de juizes e jurados, os quaes terá logar assim no civel como no crime, nos casos e pelo modo, que os codigos determinarem.»
Pela simples leitura dos dois artigos, vê-se que e constitucional o artigo que trata as divisão dos poderes; bem como o artigo 145.°, que diz:
«A inviolabilidade dos direitos civis e politicos dos cidadãos portuguezes, que tem por base a liberdade, á segurança individual e a propriedade, é garantida pela constituição do reino, pela maneira seguinte:
«§ 1.° Nenhum cidadão póde ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma cousa, senão em virtude da lei.
«§ 2.° A disposição da lei não terá effeito retroactivo.»
Segundo esta doutrina, ninguem é obrigado a fazer ou deixar de fazer senão o que a lei não prohibe; isto é, só o que é permittido por lei a todos, tanto collectiva como individualmente, porque dentro da esphera dos suas atribuições cada um póde exercer a sua actividade, Como entender e muito bem quizer.
A disposição d'este primeiro paragrapho é completada pela do segundo paragrapho, que estabelece a verdadeira doutrina sobre a retroactividade. A retroactividade segundo se vê em todas as leis, e na legislação de todos os paizes, não póde nunca ser auctorisada; senão ele certos determinado modo, em casos especialissimos, quando a salvação do paiz o exige.
Não é só a carta, que sancciona o principio, õ codigo civil portuguez nos artigos 8.° e 2:173.° diz o seguinte:
«Art. 8.° A lei civil não tem effeito retroactivo. Exceptua-se a lei interpretativa, a qual é applicada retroactivamente, salvo se d'essa applicação resulta offensa de direitos adquiridos.
«Art. 2:173.° A propriedade dos direitos adquiridos manifesta-se pelo exercicio ou posse d'elles, nos termos declarados na lei.»
Esta mesma doutrina está estabelecida nó codigo civil francez no artigo 2.° e outros, e na legislação de quasi todos os paizes da Europa. O que mostra que ella tem consenso unanime da gente illustrada, porque se baseia no direito e na justiça, e é sobretudo aconselhada pelo bom senso.
Posto isto, examinemos a lei de 21 de julho de 1855. Deduz-se precisamente d'essa lei, clara e éxpressa, que aos juizes promovidos á 2.ª classe, só desde a posse, se lhe começa a contar a antiguidade.
Portanto, todos os juizes que foram collocados na 2.ª classe, antes do sr. Avelino, adquiriram a sua antiguidade, ao abrigo da lei, e não podem, nem devem perdeis por uma lei que tenha effeito retroactivo, os artigos do codigo civil portuguez, que acabo de citar e ler á camara sanccionam esta mesma doutrina e explicam a retroactividade.
Portanto, todos os juizes que tomaram posse, passando á 2.ª classe, em virtude de consulta do supremo tribunal de justiça, ipso facto adquiriram desde logo direitos, e a sua antiguidade começou a contar-se desde aquelle momento, isto é, desde a data da posse.
Mas com o sr. Cardoso Avelino não se dá isto, porque nem foi promovido á 2.ª classe, nem tornou posse, e por isso este projecto é injustissimo, porque vae espoliar dos seus direitos quem á custa de trabalho e serviços os alcançou,- e que lhe são garantidos por lei. Este projecto é odiosissimo, porque estabelece o precedente de uma lei retroactiva, condemnada pelo §, 2.° do artigo 145.° da