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APPENDICE Á SESSÃO N.° 40 DE 13 DE MARÇO DE 1907 391-A

Extracto do discurso proferido pelo Digno Par Conde de Bertiandos, revisto por S. Exa. e restituido já depois de publicada a mesma sessão

O Sr. Conde de Bertiandos: - Ouviu com toda a attenção o discurso do Digno Par Sr. Teixeira de Vasconcellos.

Tem a maxima consideração por S. Exa., como tem a maxima consideração pelo Sr. Presidente do Conselho; d'ahi a convicção sincera em que está de que o Governo não apresentaria ao Parlamento um projecto d'esta ordem, se a isso não fosse levado por um motivo imperioso.

Todos estes dias tem levado a pensar sobre qual será esse motivo.

O Sr. Presidente do Conselho começou por dizer, ao ascender aos conselhos da Coroa, que havia de governar á ingleza.

Sendo assim, S. Exa. não devia confundir os membros do Parlamento Portuguez com um projecto de lei que ninguem reclamava.

Elle, orador, conhece a Inglaterra, e sabe que as leis são ali feitas placidamente, e só quando são precisas.

Não lhe parece, portanto, que seja governar á ingleza o apresentar uma proposta de lei que ninguem pediu, e que só o Governo quer.

Qual é, portanto, a causa do apparecimento de semelhante projecto?

Algum motivo forte, com certeza, o Governo teve para assim proceder.

E esse motivo, aliás muito respeitavel, não pode deixar de ter sido de ordem politica partidaria.

Dizia-se que a concentração liberal estava algum tanto fraca.

Então o Governo, para tirar a prova, lembrou se de seguir um exemplo das Sagradas Escripturas.

Lembrou-se aquelle caso de Abrahão, que sacrificava o filho Isaac só como prova da sua lealdade para com Deus.

Isaac, segundo a? Biblia, estava condemnado a morrer rapidamente pelo fogo; mas agora o Isaac, representado pelo projecto, não morre devorado pelas chammas : morre lentamente, ás facadas, tentando ainda accudir-lhe um Digno Par, verdadeiro anjo salvador d'esta scena biblica.

Entende que o Governo devia considerar este projecto como uma questão aberta, o que não lhe seria difficil, porquanto tem considerado abertas questões que eram fechadas, e fechadas questões que eram abertas.

De passagem observará que se diz fora das Camaras, que o Governo não cae porque não pode cair; e que, se caisse, haveria grande cataclismo.

O Sr. José de Azevedo: - Talvez o Governo seja o cometa que ha pouco se disse tocar na Terra. (Risos).

O Orador: - Não crê que o Governo seja esse cometa, e não deseja sequer incommodar o Gabinete actual.

Uma voz: - Mas deseja vêl-o pelas costas.

O Orador: - Tambem não deseja isso: o que deseja é apresentar algumas considerações sobre o projecto em discussão.

Mais uma vez se confirma, a proposito d'esta lei de imprensa, que dentro de cada um de nós ha um Torquemada pequenino ou um Robespierre diminuto.

Se a imprensa incommoda, grita-se: dê-se cabo da imprensa, amordace-se ; a imprensa.

Os lavradores querem dar cabo do phylloxera e do mildiu; os medicos dos microbios. Todos querem anniquilar aquillo que os importuna.

A propria imprensa tambem já começou a matar, já matou mesmo muita gente. (Riso).

Ella quer a liberdade e a tolerancia; mas quem não estiver a seu lado morre.

E, então, como não pode deixar de falar nas pessoas, refere-se a ellas por meio de charadas.

O Sr. Teixeira de Vasconcellos, por exemplo, acaba de morrer. Sente muito, mas S. Exa. já se foi embora. (Riso).

Passando á analyse do projecto, dirá que necessario era fazer que elle voltasse á respectiva commissão, que por lá se demorasse muito tempo e ficasse ao menos, com os cabellinhos chamuscados. (Riso).

Tem-se dito que o projecto é radical.

Elle, orador, gosta muito pouco de processos radicaes, que ás vezes são contraproducentes.

Conheceu uma pessoa muito piedosa, mas que era radical.

Essa pessoa não gostava de certas estampas expostas nos mostruarios das livrarias; e, para obstar a uma tal exhibição, desatara a comprar todas quantas estampas encontrava n'essas condições.

Qual o resultado da medida?

De cada vez as livrarias appareciam mais recheadas de estampas semelhantes,

No projecto em discusão ha uma cousa, feia, negra; ha um empecilho, um trambolho, um apoquentador, uma cousa a que se chama gabinete negro.

Entende que tal gabinete negro não era preciso, attentos os nossos costumes, bem moderados e benevolentes, o que se prova com as constantes visitas das Rainhas aos bairros mais pobres, na augusta missão de distribuirem esmolas, sem que ninguem as incommode ou lhes falte ao respeito.

Diz se que pela lei em discussão os delictos de imprensa ficam todos sob a alçada do poder judicial e o Governo nada terá com o que disser a imprensa.

Ora tal affirmação não é verdadeira.

Os delegados do Ministerio Publico não teem absolutamente nada com o poder judicial.

O delegado do Ministerio Publico é um agente do Governo; e, desde que aos delegados é que cumpre querelar, a imprensa não fica sujeita ao Poder Judicial mas sim ao Executivo. (Apoiados) .

Para que serve isto?

Serve para, quando o Governo for atacado nas Camaras pelas querelas á imprensa, dizer que nada tem com isso, que a questão é com o Poder Judicial.

O Governo querela; mas quem leva as censuras é o Poder Judicial.

E, embora o Governo diga que as querelas ficam dependentes dos delegados, ha de forçosamente ter responsabilidades, porquanto é o Governo quem indicará quando se deve alargar ou apertar a corda.

Em Lisboa e no Porto, quando os delegados do Ministerio Publico entenderem que não devem incommodar-se com a imprensa, resolvem, por maioria, que se não querele de qualquer artigo; mas nos restantes pontos do paiz já não succederá a mesma cousa.

Nas terras pequenas, o delegado, não tendo com quem possa conferenciar, não se lhe deparando quem o tire de quaesquer duvidas, querelará sempre, com receio das multas.

Não tendo pessoa que participe das responsabilidades, irá querelando, unica maneira de esquivar-se das multas, da

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suspensão e, finalmente, da demissão.

Os delegados de Lisboa e Porto en contraiu se n'uma razoavel situação, pois concertam entre si o modo de proceder em determinada conjuntura; mas o pobre delegado da provincia ha de querelar pela cousa mais insignificante, e pode querelar muito injustamente, porque é difficil saber onde acaba a critica, e° onde começa o que podre ser tido na conta de injurias.

É uma circumstancia curiosa esta de um agente do Ministerio Publico se considerar suspenso ipso facto; como curiosas sito outras disposições do projecto.

Uma d'ellas, por exemplo, está no § 4.° do artigo 17.°

Preceitua este artigo que, se o crime tiver sido denunciado em juizo pela parte offendida, ou por qualquer auctoridade administrativa, e o Ministerio Publico não promover o processo nos prazos marcados, poderá o participante requerer ao juiz que o admitta a promover cumulativamente com o Ministerio Publico, e com todas as regalias legaes que a este competem.

Imaginemos que um homem é alcunhado por um jornal de tolo, de ladrão ou de petulante, e que merece todos esses epithetos, e ainda mais; porque, emfim, teremos de concordar em que os jornaes nem sempre dizem o contrario d'aquillo que é, e que acertam muitas vezes.

Elle, orador, pelo menos, tem ouvido dizer que ha muito ladrão, muito tolo e muito petulante, e quer crer que lhe teem affirmado uma verdade incontraditavel. (Riso).

Admittida a disposição do projecto, esse tolo ou esse ladrão entra pelos tribunaes, dá ordens aos escrivães, e procede como pessoa com auctoridade.

Urge ponderar os inconvenientes a que pode conduzir uma disposição d'esta ordem.

Dispõe-se igualmente n'um dos artigos do projecto que um individuo que pratique qualquer abuso de liberdade de imprensa pode, em certos casos, ser condemnado a pagar uma multa de 50$000 réis.

Deve concordar-se em que não é de uma enorme carestia o prazer que se pode experimentar em dirigir um insulto a qualquer pessoa que não merece a nossa sympathia.

Voltando a referir-se á conferencia dos delegados, dirá que o que se preceitua no artigo 16.° não dá prestigio .á Familia Real.

Afigura-se-lhe, por muitas circumstancias, que a situação dos Reis diverge d'aquella em que se encontram os Presidentes das Republicas. Os Monarchas teem por si a tradição, e incumbe-lhes uma missão paternal.

Devemos ter presente os versos de Sá de Miranda, na carta a D. João III:

Com duas cannas deante
His amado e his temido.

Pois comprehende-se ou admitte-se que um chefe de familia ande a espionar os ditos dos proprios filhos?

Agradará aos filhos verem que os auctores dos seus dias se afadigam em prescrutar os seus actos, no intento ou desejo de encontrarem materia incriminavel ?

Não se comprehendem estes exageros.

É uma disposição, a seu ver, repugnantissima e contraproducente.

Elle, orador, não quer nem admitte o gabinete negro; mas não comprehende que lhe sejam entregues certos abusos da imprensa, e não outros.

A conferencia não tolerará que em qualquer impresso se contenha um desacato á Familia Real; mas nenhum reparo lhe merecerá qualquer ataque á religião do Estado.

A seu juizo, as referencias desagradaveis a qualquer membro da Familia Real teem importancia inferior á que dimana de uma blasphemia.

Não sabe se esta sua maneira de pensar desagrada a alguem; mas entende que o respeito á Divindade é muito superior áquelle que se deve a quasquer pessoa da Familia Real.

Não quer, como já disse, o gabinete negro, nem quer desacatos aos membros da Familia Real, nem aos Chefes das nações estrangeiras, nem a ninguem; mas, se o Governo tentar levar por deante a sua ideia, então exige que á conferencia de delegados seja commettido o exame dos crimes contra a Divindade.

É necessario que tenhamos a coragem das nossas opiniões, e que se não faça ver ao povo que ha qualquer entidade que sobrepuja o poder d'aquelle que está acima de todos.

Tem-se discutido muito os inconvenientes dos crimes contra a religião.

É este um ponto grave, mas é necessario precisar bem o que sejam esses crimes.

Quando se estabelecer uma controversia, digna e respeitavel, sobre principios religiosos, não ha motivo para que se incriminem ou condemnem, os que interferem n'este debate.

Conta-se que Leão XIII, quando lhe noticiaram a morte de Renan, exclamou: "Tenho pena". Depois, ficara alguns momentos suspenso, e por fim, accrescentou: "Tenho muita pena, porque Renan fez um grande bem á Igreja".

Os cardeaes mostraram se admirados da exclamação do Pontifice.

Elle então explicou: "Bom fora que tivesse vindo a publico A Vida de Jesus, porque assim á igreja se proporcionara um meio do triumphar do erro".

Não garante a veracidade do facto, mas pensa que Leão XIII era homem para se expressar assim em relação á obra de Renan.

Elle, orador, entende que as controversias, quando são dignas e respeitaveis, não podem ser condemnadas; mas d'ahi á blasphemia vae uma distancia enorme.

O que nos falta é o conhecimento da religião catholica.

Nas aulas dos lyceus ensina-se a mythologia; mas não se ensina a religião catholica!

Pois bom seria que nas aulas se ensinasse a religi o porque seria esse um meio de desfazer duvidas e hesitações, e de esmagar um certo beaterio de pessoas ignorantes, que só prejudicam a causa que desejam ou dizem defender. (Apoiadas).

Quanto mais larga for a porta da igreja, mais estreita ha de ser a da sacristia.

Allegam os defensores do projecto que este acaba com a apprehensão.

Podiam dispensar-se de taes louvores, e de arvorarem esse facto á maneira de pendão glorioso; só para isso podiam até dispensar-se de apresentar o projecto. Bastaria que o Governo se limitasse a não mandar apprehender jornaes. (Riso).

É possivel que muitas das disposições do projecto que se discute desappareçam quando vier uma nova situação ministerial, porque já estamos acostumados a ver cada Governo trazer uma lei de imprensa e um Codigo Administrativo para seu uso.

O projecto já está ha muito tempo na tela do debate e ainda bem que assim é.

Já começam a apparecer emendas. Esta Camara ainda tem o poder de impedir muita cousa má ou inconveniente.

Tambem se allega, na defesa do projecto, que elle promove a celeridade dos processos.

O corpo de delicto desapparece, para que o processo caminhe vertiginosamente.

Mas, se hoje se dispensa o corpo de delicto, é possivel que amanhã se ponha de parte a defesa. Mau é que venha o precedente de se julgar prescindivel o corpo de delicto, porque mais tarde podem por igual dispensar-se outras partes componentes do processo.

Isto faz-lhe lembrar a historia dos frades e do arroz. Um bello dias os frades, chegando ao refeitorio, reconheceram que ao arroz faltava o raminho de salsa com que usavam enfeitá-lo. Os frades velhos indignaram-se e não quizeram comer. Riram-se do caso os frades novos, fazendo notar aos seus velhos companheiros que a salsa não se comia; logo, não viam a razão da abs-

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tinencia a que se condemnavam. Porque procediam assim? Porque, responderam os frades velhos, se hoje nos tirarem a salsa, amanhã nos podem tirar o arroz. (Risos).

É pois indispensavel proceder, com toda a cautela n'esta questão de precedentes.

Não deseja por mais tempo demorar a attenção da Camara. Pediu a palavra para explicar aos seus illustres collegas a razão por que entende que não pode dar o seu voto ao projecto.

Podia ainda alongar-se nas suas considerações; mas isso importaria a reproducção dos argumentos que tão lucidamente foram expostos por alguns Dignos Pares.

Faz votos por que o projecto volte á commissão, que se demore por lá muito tempo, e que, ao reapparecer, venha completamente melhorado.

Vozes: - Muito bem.

(O Orador foi muito cumprimentado).

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