576 DIARIO DA CAMARA DOS DIGINOS PARES DO REINO
como não era a espontaneidade que o impulcionava á lucta, no cumprimento de um dever civico, mas apenas uma complacencia ou um interesse individual, quantas vezes a urna se não tornou um bazar de consciencias, e o suffragio uma mercancia de torpissima corrupção!
É por isso que o paiz não se agitou diante da nova reforma, que tão profundamente vinha alterar o seu systema eleitoral. Não só não se agitou, nem com a reforma nem com o processo por que foi decretada, mas até acolheu, se não com enthusiasmos incompativeis com o seu temperamento e com o estado do seu espirito, ao menos como uma esperança que punha na tentativa que o governo emprehendia no louvavel intuito de levantar o prestigio do parlamento.
Vejâmos em rapido escorço os meios com que, pela reforma eleitoral se pretendeu alcançar aquelle fim.
As mais importantes alterações que accusa aquella reforma são: modificação na base do recenseamento eleitoral, constituição da entidade encarregada do recenseamento e processo para se effectuar, organisação da camara electiva, limitando o numero dos deputados, augmentando as incompatibilidades, acabando com a representação das minorias e a eleição por accumulação.
É a eleição a base fundamental do systema representativo. É o suffragio o unico meio do cidadão se fazer representar e de influir na administração do paiz. O direito de eleger é, portanto, o mais importante dos direitos politicos.
A quem deve ser concedido? A todos os cidadãos, porque todos têem iguaes direitos a interferir na representação nacional, e iguaes interesses na boa administração publica, ou só áquelles que tenham a necessaria capacidade para escolher com discernimento e com independencia os seus representantes?
Divergem as escolas e diversificam os systemas; um e outro têem adeptos e defensores; um e outro estão adoptados em diversos paizes.
É consequencia do primeiro systema, o suffragio universal não na sua concepção abstracta, que é irrealisavel, e que em nenhuma nação se adoptou, mas o voto na sua maior largueza, sem limites derivados das condições de fortuna, de illustração ou de independencia social.
O outro systema exige essas condições e restringe, portanto, o direito de votar aos que possuem a capacidade precisa, avaliada pelos requisitos que a lei prescreve.
Olhada a questão no campo da theoria, parece que o primeiro systema, fundado nos principios da democracia mais radical, corresponde melhor á natureza do systema representativo; é mais consentaneo com o principio da igualdade, mais harmonico com a idéa da soberania nacional.
A vossa commissão pensa diversamente.
Se todo o cidadão tivesse a illustração precisa e a independencia necessaria que lhe d'esse a nitida comprehensão dos seus elevados direitos e dos seus deveres civicos, seria para acceitar a doutrina do grande poeta de França, Victor Hugo, que dizia, depois da proclamação ali da monarchia constitucional, que a base do systema eleitoral se devia reduzir á simples formula: todo o cidadão é eleitor, todo o eleitor é elegivel.
Na apreciação dos direitos politicos, e especialmente dos direitos eleitoraes, não são os poetas os melhores guias, nem as theorias abstractas a melhor solução.
A politica, como todos as sciencias sociologicas, deve ser essencialmente positiva e experimental.
Os que querem o suffragio universal, sem attender ás condições do povo a que se pretende applical-o, consideram-n'o falsamente como um direito natural; assim o reputava J. J. Rousseau, que nas suas illusões humanitarias lançou as bases d'aquella doutrina.
«A igualdade, diz E. Regnaut; é a base fundamental do edificio social; a soberania do povo não é outra cousa.»
Pois bem, o voto universal não representa essa igualdade, porque ella deve dar-se entre os que estão nas mesmas condições; conceder iguaes direitos aos que estão em circumstancias diversas, é ferir esse principio, é estabelecer uma injustiça.
A igualdade absoluta entre todos os homens é uma theoria que só póde admittir-se nas concepções religiosas. A igualdade civil mesmo é cousa differente da igualdade politica.
Conferir igualmente a todos os cidadãos, quaesquer que sejam as condições da sua intelligencia, da sua fortuna e da sua independencia, o mesmo direito politico é estabelecer a soberania do numero, que é a soberania da força.
O suffragio deve ser sincero e independente; deve ser apanagio exclusivo da consciencia.
E como póde ser sincero e consciencioso nos que n8ò tiverem pela illustração e pela dignidade a noção clara dos direitos da patria e dos deveres de cidadãos?
Como póde ser independente, n'aquelle a quem escasseiam completamente os meios e está naturalmente mais sujeito ás influencias dos poderosos?
Que interesse póde ter na boa escolha dos representantes do paiz e na sua boa administração, quem não concorre directamente para as despezas publicas?
N'esta questão da concessão do direito de votar, questão da maxima importancia, porque é n'ella que assenta a base do systema eleitoral, é mister attender ás condições historicas e ás circumstancias especiaes do paiz. Nem alargar o suffragio de modo a abranger uma massa inconsciente, sem illustração nem independencia, nem restringil-o a ponto de que seja apenas privilegio de poucos, constituindo, por assim dizer, uma oligarchia politica.
A extensão do voto quasi nunca corresponde a uma conquista de liberdade. O suffragio universal em França tanto serviu a republica em 1848, como o imperio que lhe succedeu; tanto convinha aos realistas da extrema direita da camara de 1816, que o defenderam com o maior calor, como antes tinha merecido os applausos dos exaltados que o introduziram na constituição de 1793:
A Inglaterra depois de 1832 alargou o suffragio; veiu d'ahi um acrescimo na corrupção eleitoral, o que fez dizer a Erskine May; «quanto maior foi o numero de votos creados, maior foi o numero de votos comprados». Em 1867 ainda mais estendeu o direito de votar; novo campo se abriu á corrupção eleitoral, a que a lei de 18 de julho de 1872 quiz dar um correctivo nas precauções que tomou para salvaguardar o segredo do voto é a sinceridade da eleição.
Nos Estados Unidos da America apesar das condições excepcionaes d'aquelle grande povo, o suffragio universal dá-nos tristes exemplos da corrupção e depressão eleitoral. «Os representantes da auctoridade, escreve C. Jannet, interferem violentamente nas eleições... A mesma pressão administrativa é constantemente empregada nas eleições do estado pelos governadores e funccionarios municipaes.»
Entre nós a lei de 18 de maio de 1878, concedendo o voto aos chefes de familia e aos cidadãos que souberem ler e escrever, quasi que estabeleceu o suffragio universal.
Os resultados d'esta alteração tão importante no nosso systema eleitoral, não vieram abonar as excellencias d'aquella reforma.
Os parlamentos que se seguiram, eleitos pelo novo systema, não se elevaram no seu prestigio, nem representaram melhor as justas aspirações do paiz.
Pelo contrario, desde então a indisciplina parece que assentou os seus arraiaes no seio da chamada representação nacional, e os conflictos e o obstruccionismo parlamentar augmentaram por um modo nada lisonjeiro para o sys-