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6 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

O que o Digno Par não viu, nem os outros oradores que me precederam, e que teem com este fundamento impugnado o artigo 5.°, é que o projecto, realmente, tem effeito retroactivo, mas é no artigo 1.°, e nem podia deixar de o ter. Tem effeito retroactivo na disposição em que manda applicar os seus preceitos, isto é, em que manda pagar a dotação de Sua Majestade, desde o começo do seu reinado, ou desde o dia em que falleceu El-Rei D. Carlos.

Tem effeito retroactivo porque a Constituição lhe dá esse effeito, e se porventura não o tivesse, nessa parte não obedeceria ao determinado na Constituição.

Que diz a disposição constitucional?

Diz que o projecto para a dotação de Sua Majestade deve ser apresentado ao Parlamento no principio de cada reinado.

Para que este projecto não tivesse effeito retroactivo, seria indispensavel que elle fosse feito ainda em vida do Monarcha anterior.

Mas, se fosse feito em vida d'esse Monarcha, não se seguiria a disposição constitucional, que somente o manda apresentar quando esse reinado termine.

Rigorosamente demonstrado fica que este projecto tem effeito retroactivo, que o não pode deixar de ter segundo a Carta, e estou persuadido de que, se o Digno Par Sr. Jacinto Candido tivesse notado este effeito no ponto a que me refiro, talvez por essa circunstancia não deixasse de o votar.

Quando em 1827, na sessão de 4 de junho, se discutiu na Camara dos Deputados a questão da lista civil, impugnaram alguns a apresentação da proposta com o fundamento de que a Rainha D. Maria II, não estivesse investida no governo da nação. A abdicação, feita por D. Pedro IV em favor de sua filha, tinha sido publicada havia mais de um mês, e, todavia, entendiam elles, que não se podia fixar a dotação da Rainha, sem ella ter sido proclamada successora de seu pae.

Quer isto dizer que nas Côrtes de 1827 reconheceram que era absolutamente indispensavel que a lei que regula a dotação do Rei fosse promulgada depois da sua investidura no governo supremo da nação e, portanto, sempre com effeito retroactivo.

Muito interessante foi o debate levantado naquella occasião, e ahi foi admiravelmente sustentado o principio da applicação retroactiva da lei sobre a dotação real.

Seguiu-se na ordem dos oradores que impugnaram o projecto o Digno Par Sr. Ressano Garcia.

Que foi o discurso de S. Exa.? De primeira ordem em qualquer Parlamento do mundo. Nelle se mostrou S. Exa. o que sempre tem sido: valente, pujante e forte orador parlamentar, da geração de Mariano de Carvalho, de Saraiva de Carvalho e de tantos outros, que nobilitaram ainda em nossos dias a tribuna parlamentar. Elles realizavam, no seu systema de discutir, o preceito do mestre dos oradores, para a qual a verdadeira eloquencia parlamentar é representada por um ferreiro com um martelo na mão, tendo deante de si uma bigorna, que é o assunto de que trata. Cada argumento fora do seu objectivo, é uma pancada perdida.

Eis o caracter da verdadeira oratoria parlamentar, e ninguem melhor o traduz nos seus discursos do que o Digno Par o Sr. Ressano Garcia.

Admiravelmente se occupou S. Exa. do assunto, sob todos os pontos de vista. E eu digo isto como um sentimento de justiça, e não o para o lisonjear, porque, sem embargo de ter sido sempre um admirador de S. Exa., tenho, em alguns pontos, o desprazer de discordar da sua opinião.

Não é quando S. Exa. combate o artigo 5.° do projecto, dizendo que elle não pode estabelecer a obrigação para Sua Majestade pagar as suas dividas alem das forcas da herança, porque isso é absolutamente juridico, inteiramente moral, e está sanccionado por preceitos expressos da nossa, legislação.

O Digno Par começou por assentar o principio de que o Rei representa, por um lado, a suprema magistratura da nação, e, por outro lado, é cidadão português com os direitos e obrigações de que goza, e que impendem sobre qualquer outro cidadão, estando sobre o imperio das leis que regulam esses direitos e obrigações e consequentemente, sujeito ao Codigo Civil, que preceitua que ninguem pode ser obrigado a pagar as dividas do autor da heran-alem das forças da mesma herança.

É verdadeiro o principio, mas o que ainda se não disse, e talvez seja uma novidade para a Camara, é que ha uma, disposição clara a este respeito na lei de 16 de julho de 1855. Está nos artigos 9.° e 10.° d'essa lei.

É muito fastidioso ler documentos ou artigos de lei. Não ha nada que mais fatigue a attenção da Camara que a leitura de documentos ou de leis, mas para tratar assuntos como este, é indispensavel a leitura dos artigos, porque citar as leis de cor é tudo quanto ha de mais prejudicial para uma discussão, porque basta, ás vezes, uma palavra, uma virgula, uma pequena circunstancia de redacção que a memoria não pode reter e o orador não pode reproduzir, para que a conclusão seja redondamente falsa.

É fastidioso, certamente, mas eu durante o tempo que tenho de occupar a attenção da Camara, que com tanta benevolencia me escuta, não posso deixar, sob pena de prejudicar a demonstração documentada das minhas affirmações, de fazer a leitura de algumas leis e documentos.

Sei bem que isto offende a esthetica tribunicia, mas é necessario fazê-lo, embora a arte perca um pouco perante a crua exigencia dos negocios.

V. Exa., Sr. Presidente, que conhece perfeitamente a historia da eloquencia tribunicia, porque é muito erudito, sabe que em nenhum dos discursos dos grandes oradores da Grecia, de Demosthenes ou de Eschines, em nenhum d'elles se deixa de fazer uma larga citação de leis e documentos, porque collocava-se o rigor logico da demonstração acima de tudo; mas como era um país essencialmente artistico, como se reconhecia que isso quebrava a linha parlamentar do orador, que faziam elles?

O orador tinha ao seu lado uma pessoa de voz sonora e boa figura - sempre o culto da forma! - que fazia as leituras de maneira que, quando o orador necessitava de citar uma lei, ou um documento, entregava-os ao homem que estava ao seu lado, que desempenhava briosa e galhardamente o papel de leitor. Havia em tudo isto uma grande vantagem para as discussões. Em primeiro logar, o orador descansava; em segundo logar, como era um novo personagem que entrava em scena, chamava naturalmente as attenções da assembleia sobre si, lia pausadamente as leis ou documentos, e o orador depois continuava chamando a attenção da assembleia para determinadas passagens dos documentos ou, das leis que acabavam de ser lidos, e d'esta maneira movimentando e dramatizando o discurso, promoviam a attenção e harmonizavam a elevação do raciocinio com a aridez da leitura.

Assim, Sr. Presidente, ouvia-se a cada passo Demosthenes nos seus discursos dizer: leia o decreto de Callisthenes, leia agora a carta de Filipe.

As propria citações dos poetas que elles faziam frequentemente, porque entendiam, e muito bem, que a oratoria deve ter sempre uma feição literaria, as proprias citações dos poetas eram lidas por uma pessoa que estava ao lado do orador, e a espaços se ouviam estas palavras: leia os versos de Euripedes, leia essa passagem de Eschilo.

Desculpem-me esta ligeira digressão, mas, Sr. Presidente, ella veio a proposito por causa da leitura, aliás indispensavel, que terei de fazer durante o meu discurso, e que sei de antemão que vae fatigar a attenção da Camara.

Dizia eu que havia uma lei expressa