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CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

SESSÃO N.º 44

EM 19 DE AGOSTO DE 1908

Presidencia do Exmo. Sr. Conselheiro Antonio de Azevedo Castello Branco

Secretarios - os Dignos Pares

Luiz de Mello Bandeira Coelho
Marquez de Sousa Holstein

Leitura e approvação da acta. - Expediente. - Tem segunda leitura, e foi enviado á commissão respectiva, o projecto de lei apresentado na sessão antecedente pelo Digno Par Sr. Joaquim Telles de Vasconcellos. - O Digno Par Dias Costa requer que entre em discussão o parecer n.° 26, que se destina a conceder uma pensão á familia do fallecido general Galhardo. Approvado este requerimento, é em seguida approvado o parecer, sem discussão. - O Digno Par Teixeira de Sousa, insta pela remessa de uns documentos que pediu pelos Ministerios da Fazenda e das Obras Publicas Chama a attenção do Governo para um aumento de tributação applicado aos nossos vinhos que entrarem em Moçambique, e pede-lhe que, a tal respeito, adopte as providencias, que o caso reclama, responde a S. Exa. o Sr. Ministro da Guerra.

Ordem do dia: Continuação da discussão do projecto relativo á lista civil. - Usa da palavra o Digno Par Julio de Vilhena. S. exa. não podendo concluir o seu discurso, pede que lhe seja permittido continuar na sessão seguinte. - Encerra-se a sessão, e designa-se a immediata, bem como a respectiva ordem do dia.

Pelas 2 horas e 20 minutos da tarde o Sr. Presidente declara aberta a sessão.

Feita a chamada, verifica-se a presença de 20 Dignos Pares.

Lida a acta da sessão antecedente, foi approvada sem reclamação.

Menciona-se o seguinte expediente:

Mensagens da Camara dos Senhores Deputados, enviando os projectos de lei que teem por fim:

1.° Permittir exames em outubro nos lyceus centraes do continente e ilhas;

2.° Approvar as convenções sobre arbitragem internacional;

3.° Tributar as aguas medicinaes mineraes estrangeiras nas provincias ultramarinas e no districto autonomo de Timor;

4.° Conceder 1:556 metros quadrados de terreno á Sociedade A Voz do Qperario.

Officio da presidencia da commissão do Centenario da Guerra Peninsular, enviando 6 bilhetes de convite para a solemnidade nacional da inauguração do padrão commemorativo da batalha do Vimeiro, para sei em distribuidos pelo Exmo. Sr. Presidente e Dignos Pares da sua escolha.

Teve segunda leitura e foi enviado á commissão respectiva o projecto de lei apresentado na sessão anterior pelo Digno Par Sr. Telles de Vasconcellos, e que é do teor seguinte:

Senhores. - Tornando se necessario que com a maior urgencia se proceda á revisão dos programmas do curso dos lyceus, coordenando-os e reduzindo os ao estrictamente indispensavel, o bem assim que sem prejuizo do espirito a que presidiu a actual organização do ensino secundario se removam sem demora as causas que o tornam defeituoso, se apresenta o seguinte projecto de lei n.° 43.

Artigo 1.° É o Governo autorizado a nomear uma commissão composta dos tres reitores dos lyceus de Lisboa para formular concreta e positivamente as alterações mais instantes a introduzir no actual, regime de ensino.

§ unico. A esta commissão poderão, por proposta collectiva dos mesmos reitores, ser aggregados os professores e quaesquer individuos cujo concurso lhes pareça conveniente utilizar para os fins que se tem em vista.

Art. 2.° O Governo porá em vigor as modificações indicadas pela dita commissão de forma a poderem ser postas em pratica no futuro e proximo anno lectivo e dará conta ás Côrtes do uso que fizer da autorização concedida.

Art. 3.° Fica revogada a legislação em contrario. - F. J. Machado = Joaquim da Cunha Telles de Vasconcellos.

O Sr. Dias Costa: - Por parte da commissão de fazenda, requeiro que seja consultada a Camara sobre se permitte que entre em discussão o parecer n.° 26, que tem por fim conceder uma pensão á familia do fallecido general Galhardo.

Lembro á Camara que este projecto, quando approvado por esta Camara, tem de ser enviado á Camara dos Senhores Deputados.

O Sr. Presidente: - Este projecto é um dos que estão dados para ordem do dia ha muito tempo; todavia vou pôr á votação o requerimento do Digno Par.

Approvado o requerimento, é em seguida approvado sem discussão o projecto, que é do teor seguinte:

PARECER N.° 26

Senhores. - Á vossa commissão de fazenda foi presente o projecto de lei n.° 2 de iniciativa do Digno Par F. F. Dias Costa, concedendo uma pensão á viuva e á filha do fallecido general de brigada Conselheiro Eduardo Augusto Rodrigues Galhardo.

Prestou este distincto official tão relevantes serviços á patria que justo é providenciar para que sua familia não fique em precarias condições de vida.

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A pensão proposta não importará grave sacrificio para o Thesouro, porque representa apenas um acrescimo annual de despesa de 400$000 réis, visto que o fallecido general usufruia, como recompensa nacional, a pensão vitalicia de 800$000 réis.

Nestes termos a vossa commissão é de parecer, de acordo com o Governo, que o referido projecto merece a vossa approvação para ser convertido em lei.

Sala das sessões da commissão de fazenda, era 10 de julho de 1908. = Moraes Carvalho = A. Eduardo Villaça = J. de Alarcão = A. Teixeira de Sousa = F. F. Dias Costa = Frederico Ressono Garcia = Alexandre Cabral = Pereira de Miranda = Luciano Monteiro = F. Beirão (relator).

N.º 2

Senhores. - Alguns annos vão passados que nesta casa do Parlamento, em uma sessão memoravel, vibrante de patriotismo e enthusiasmo, se enalteceram os feitos brilhantes praticados pelas forças de terra e mar, subjugando e dominando os vatuas, cuja rebellião armada, sob a acção do famigerado Gungunhana, pusera em risco o nosso dominio na Africa Oriental.

As importantes victorias obtidas, ás quaes se deve em grande parte a prosperidade e o desenvolvimento actual da provincia de Moçambique, ecoaram bem alto, levantando o prestigio do nome português e chamando a attenção da Europa e de todo o mundo culto para este pequeno povo, diminuto em numero, mas grande pelas suas qualidades moraes, conservadas inalteraveis através dos seculos.

Nessa epopeia, officiaes houve que se salientaram entre os mais distinctos, os quaes o país rememora como seus heroes mais queridos, occupando primacial logar entre estes o então coronel Eduardo Augusto Rodrigues Galhardo, o vencedor de Coollela, que ha pouco a morte arrebatou, quando o exercito e o país ainda muito tinham a esperar da sua vasta competencia e dedicação pelo serviço.

Não obstante os valiosos serviços prestados, pouco mais legou o general Galhardo á sua familia, do que a distincção do seu nome, illustre não só pelos feitos praticados no campo da batalha, mas ainda pelos não menos relevantes serviços, prestados na administração dos governos de Macau e India, onde deixou marcado, em traços inde leveis, a sua personalidade.

Pobre viveu e pobre morreu, e, cabendo ao Estado o indeclinavel dever de honrar a sua memoria, parece-nos que o mais sympathico preito que se poderá prestar-lhe será o da protecção á sua tão querida familia.

Por este motivo temos a honra de submetter á vossa consideração e exame o seguinte projecto de lei:

Artigo 1.° É concedida a D. Carlota Candida Waddington de Brito Galhardo e a D. Eduarda Carlota de Brito Galhardo, viuva e filha do general de brigada Eduardo Augusto Rodrigues Galhardo, a pensão annual de 1:200$000 réis, que lhes deverá ser paga, sem deducção alguma, desde o dia do fallecimento do referido official.

§ unico. Á viuva pertencerá, metade da pensão e a outra metade á filha.

Art. 2.° A pensão é vitalicia e durará, para a viuva e filha, emquanto aquella se conservar no estado actual, e esta for solteira.

Art. 3.° A parte da pensão correspondente á viuva ou á filha cessará por effeito do seu fallecimento.

Art. 4.° Fica revogada a legislação em contrario.

Sala das sessões da Camara dos Dignos Pares do Reino, em 19 de maio de 1908. = Francisco Maria da Cunha = Julio de Vilhena = Manuel Raphael Gorjão = Antonio Eduardo Villaça = Antonio Teixeira de Sousa = Luciano Monteiro = Antonio Candido = Frederico Ressano Garcia = Luiz Augusto Pimentel Pinto = José Estevam de Moraes Sarmento = Francisco Felisberto Dias Costa.

O Sr. Teixeira de Sousa: - Peço ao Sr. Presidente a fineza de instar com os Srs. Ministros da Fazenda e das Obras Publicas para que façam remetter a esta Camara os documentos que pedi por aquelles Ministerios, pois que apenas alguns, poucos, e os de menor importancia, me foram enviados pelo Ministerio da Fazenda.

Passo a referir-me a um assunto sobre que ha dias recaiu a attenção do Digno Par Sr. Francisco José Machado.

A lei de 7 de maio de 1902 prohibiu o uso das bebidas alcoolicas na provincia de Moçambique, ao sul do rio Save, com o fim de evitar o depauperamento da raça negra, e preparar um mercado para os nossos vinhos.

Se não foi uma medida de largo alcance, foi, em todo ocaso, salutar, pois que, se nos doze meses que precederam, a execução da lei, foi de 300 contos de réis o valor do vinho que entrou em Lourenço Marques, nos doze meses seguintes a entrada foi de 1:000 contos de réis, apesar da má vontade que ali houve contra a execução da lei.

Nessa lei fixa-se o imposto a e 3 réis por cada litro, até a graduação de 15° e, portanto, cada pipa de 400 litros pagaria 3$200 réis de direitos.

Manifesta e claramente contra as disposições da lei, as autoridades de Moçambique fizeram que os direitos passassem a 5$225 réis e, ultimamente, o governador geral da provincia, o Parlamento de Moçambique ou como lhe queiram chamar, no uso das largas attribuições que lhe confere § a lei que estabeleceu a descentralização d'aquella provincia, publicou um decreto criando uma contribuição commercial; de sorte que cada pipa de vinho de 4CO litros passa a pagar de direitos 8$800 réis.

Como pode comprehender-se que seja um movimento patriotico o influir perante os poderes publicos ingleses no sentido de ser modificada a escala alcoolica para facilitar a entrada dos nossos vinhos em Inglaterra, quando somos os primeiros a deitar fora os mercados das nossas colonias?

Não tenho má vontade ao governador geral de Moçambique, que apenas conheço de vista, e até supponho ser um funcionario intelligente e zeloso, mas isto não pode ser.

Aqui, na metropole, ninguem hesita em que o Thesouro faca sacrificios para modificar as condições em que se encontram as povoações ruraes, onde as necessidades economicas se fazem sentir duramente.

Se aqui se procede por esta maneiro, que razão ha para que o governador de Moçambique proceda por maneira diversa.

Sr. Presidente: vou terminar, confiando em que o Governo se compenetre de que este assunto é grave e difficil, e que deve fazer ver ao governador de Moçambique que procede erradamente.

Apontei ha poucos dias á Camara qual foi a declaração do Sr. governador de Moçambique ao abrir as sessões do Conselho do Governo, declaração que reproduzi textualmente.

Dizia elle: "Em materia de relações financeiras, nós nada pedimos á metropole; mas nada lhe daremos".

Mas, Sr. Presidente, isto não é exacto.

No que diz respeito ás mercadorias provenientes da metropole, ha uma lei que garante um differencial de 50 por cento sobre 6:000 toneladas de açucar provenientes de Lourenço Marques, o que faz com que o Thesouro perca cêrca de 360 contos de réis.

Á outra casa do Parlamento está submettida uma proposta que tende a elevar a 12:000 toneladas o beneficio d'esse differencial.

Veja a Camara. Não são já 360 contos de réis, mas 720 contos de réis de que a metropole se desapossa a favor da provincia de Moçambique, e, todavia, o Sr. governador diz que nada se concede á metropole, mas tambem que nenhum favor d'ella recebe.

O aumento de uma tributação, incidindo sobre um producto do nosso solo, que actualmente luta com as maiores

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difficuldades, é cousa que não pode admittir-se.

Espero que o Governo mão descure o assunto, e adopte as providencias que elle reclama.

(S. Exa. não reviu).

O Sr. Ministro da Guerra (Sebastião Telles): - Pedi a palavra para dizer ao Digno Par Teixeira da Sousa que communicarei aos meus collegas da Fazenda e Obras Publicas, que não estão presentes, as queixas de S. Exa. quanto á falta de documentos que requisitou por esses Ministerios.

Quanto ao acrescimo de tributação applicado aos nossos vinhos que entrarem em Moçambique, transmittirei ao Sr. Ministro da Marinha as considerações do Digno Par, e estou certo de que S. Exa. as tomará na devida consideração, porque se referem a um assunto realmente grave e importante.

Realmente não se comprehende que numa das nossas possessões se aumentem os direitos sobre os vinhos exportados da metropole, quando as duas casas do Parlamento se estão occupando com todo o interesse, da resolução da crise vinicola.

Aos meus collegas, pois, farei sciente das considerações do Digno Par.

(S. Exa. não reviu).

O Sr. Presidente: - Ficam inscritos para antes da ordem do dia os Dignos Pares Baracho e Francisco José Machado.

O Sr. Sebastião Baracho: - Peço a V. Exa. o favor de riscar o meu nome da lista da inscrição. Se desejar a palavra, novamente a pedirei.

ORDEM DO DIA

Continuação da discussão do projecto que fixa a lista civil

O Sr. Julio de Vilhena: - Como tenho de referir-me a considerações de ordem politica feitas pelo Sr. Presidente do Conselho, estimaria muito que S. Exa. assistisse á primeira parte do meu discurso.

(Entra na sala o Sr. Presidente do Conselho).

Chego tarde ao terreno do debate; não porque o assunto esteja esgotado, como tem sido affirmado por alguns Dignos Pares que me precederam, mas simplesmente porque a discussão se tem prolongado durante muitas sessões.

Não está esgotado o assunto, porque elle é de tal maneira vasto, são tantos os aspectos sob os quaes pode considerar-se, tão amplos os horizontes do debate, que por mais eloquentes que tenham sido as vozes que o teem discutido, e por mais profundos que hajam sido os estudos feitos sobre elle, pode dizer-se, sem receio de ser desmentido que ainda não está inteiramente exhaurido.

Ha ainda novos factos a acrescentar. Ha novos argumentos a adduzir.

É vasto o assunto, porque é muito complexo.

Comprehende, em primeiro logar, uma questão constitucional, porque abrange a interpretação das disposições da lei fundamental do país, não só acêrca da fixação da dotação de Sua Majestade El-Rei, mas ainda no tocante aos direitos que pertencem á Coroa sobre os palacios que por concessão da Carta possue em gozo e usufruto.

É um assunto de ordem civil, porque comprehende e envolve em si a apreciação das disposições da legislação civil, que regula presentemente a transmissão das heranças, e os direitos e obrigações inherentes aos contratos de arrendamento.

Reveste tambem o assunto o caracter financeiro, porque a lista civil não se pode fixar em absoluto, mas teem de attender-se e ponderar-se as circunstancias do Thesouro, pois que representa uma verba importante no orçamento do Estado.

É ainda um assunto historico porque a apreciação da dotação de Sua Majestade El-Rei envolve a exposição das relações entre a Casa Real e o Estado desde 1821 até agora, isto é, durante os oitenta e sete annos que formam todo o largo periodo da nossa historia constitucional.

E não deixa, emfim, de ser materia politica, porque não pode tratar-se sem que se faça a analyse do modo como o Governo cumpriu a sua missão num dos pontos fundamentaes do seu programma.

No decurso da minha oração analysarei em primeiro logar os argumentos principaes que contra o projecto teem sido apresentados pelos oradores que me precederam neste debate. Depois apreciarei a questão da lista civil em investigando pelos meios ao meu alcance, se será ou não sufficiente para manter o prestigio, o decoro e a dignidade de El Rei. Em seguida apreciarei a questão da legalidade das rendas dos predios unidos á Coroa, tanto em relação ao passado como em relação ao futuro.

Direi depois do artigo 5.° e, finalmente, apreciarei a questão da responsabilidade em que incorreram os homens publicos, que fizeram os adeantamentos, a qual não posso omittir, depois do que aqui disse o Digno Par e meu amigo o Sr. Medeiros, fortemente apoiado pelo Sr. Baracho, affirmando que uma lei de responsabilidade ministerial assustava os chefes e os partidos, e que nós a não queriamos para não nos sujeitarmos a ser julgados no tribunal competente.

Julgo do meu impreterivel dever affirmar bem claramente, perante a Camara e perante o país, que nenhum dos homens que militam nas fileiras do partido regenerador, e que se teem sentado naquellas cadeiras (apontando as cadeiras dos ministros) se exime, nem se eximirá jamais, ás responsabilidades inherentes ao seu logar, acobertando-se com a falta de uma lei de responsabilidade ministerial.

Nenhum invocará em seu favor uma impunidade resultante de uma omissão legal. Hoje e em todo o tempo eu, por mim falo e por todos posso falar, não invoco nem invocarei a falta d'essa lei para fugir á responsabilidade, qualquer que seja a sua natureza, que resulte dos actos que haja praticado, ou houver de praticar, como membro do Governo.

Repudio semelhante defesa, porque representaria uma fuga ás responsabilidades do poder. (Apoiados).

Mas antes d'isso, eu tenho que dirigir-me ao nobre Presidente do Conselho.

Em uma das ultimas sessões, em resposta a uma interrupação que fez o Digno Par o Sr. Dias Costa, S. Exa. declarou que deixaria as cadeiras do poder no dia em que os dois chefes dos partidos, conjuntamente, ou um só d'elles, lhe declarassem que a sua missão estava cumprida.

Eu avalio em toda a sua extensão a lealdade e nobreza da declaração do Sr. Presidente do Conselho, mas, com a mesma isenção com que S. Exa. proferiu estas palavras eu respondo que, se o Sr. Presidente do Conselho espera da minha parte a mais pequena indicação para sair do poder, pode ter a certeza de que ficará eternamente nelle.

Se eu reconhecer que a situação actual não pode continuar, que a representação do partido regenerador na actual organização politica é prejudicial aos interesses do partido e do país, não é ao Sr. Presidente do Conselho que me dirigirei, mas sim aos dois illustres membros do partido regenera? dor que fazem parte do Governo. A S. Exas. direi as razões que tiver, e deixarei ao seu elevado e sempre justo criterio o continuarem naquellas cadeias ou abandoná las, voltando para as lutas politicas ao lado dos seus amigos. A S. Exas. só me dirigirei, mas longe de mim a ideia de que alguem possa suppor que eu desejo coartar a liberdade do Sr. Presidente do Conselho, ou intervir na sua acção pessoal, tirando-lhe ou limitando-lhe a faculdade de avaliar pelo seu exclusivo raciocinio os interesses do país, decidindo por si se

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deve ou não conservar-se nas cadeiras do poder.

A S. Exa. fica inteira e completa liberdade de proceder se se verificar a hypothese, que neste momento está longe dê se realizar, por que todos nós damos apoio ao Governo, emquanto elle não terminar a missão que lhe foi confiada. (Apoiados).

Tenho ainda de me referir a outra declaração do Sr. Presidente do Conselho feita nessa luta singular que houve entre S. Exa. e o Digno Par, o Sr. Pimentel Pinto.

O Sr. Presidente do Conselho, disse que actualmente as circunstancias do país são melhores do que eram em 2 de fevereiro, e a prova estava em que, actualmente, muitos homens publicos pleiteavam o poder, havendo mais pretendentes ao logar, emquanto que em 2 de fevereiro ninguem queria ser Governo.

A frase do Sr. Presidente do Conselho teve um exito completo, é forçoso confessá-lo, tanto no Parlamento como lá fora.

Era uma ironia? Seria.

Era um gracejo? Seria. Mas é necessario reconhecer que embotado o gume da ironia, ou despida a frase do ouropel levemente brilhante do gracejo, o que está fundamentalmente dentro da declaração do Sr. Presidente do Conselho, é, não direi um aggravo, embora não intencional, mas uma censura aos homens publicos d'este país.

Dizendo o Sr. Presidente do Conselho que os homens publicos d'este Pais disputavam o poder quando não havia difficuldades, e que em 2 de fevereiro ninguem o queria, S. Exa. passa um attestado de mau comportamento a todos os estadistas da nossa terra.

Em 2 de fevereiro d'este anno não havia difficuldades de governo. (Apoiados do Digno Par Pimentel Pinto).

Se fosse rigorosa a expressão do Sr. Presidente do Conselho, em que situação ficariam os dois chefes dos partidos em 2 de fevereiro? Ficariam numa situação infeliz, por terem recusado o poder, porque, ou eram de tal maneira egoistas, que fugiam a desempenhar aquella funcção no momento do perigo, ou não tinham a força necessaria para cumprir aquillo que os verdadeiros interesses da nação reclamavam naquelle momento.

A Camara sabe perfeitamente em que circunstancias se organizou o Ministerio actual.

Numa sessão do Conselho de Estado, os membros d'essa alta corporação aconselharam a Sua Majestade El-Rei que se constituisse um Governo que pudesse reunir os elementos mais valiosos dos partidos combatentes, principalmente das duas fracções, partido progressista e partido regenerador,

Entendeu-se que com essa alliança, com a cooperação dos dois partidos tradicionaes nessa occasião, se fortalecia o reinado que então principiava.

Mas, Sr. Presidente, não deixarei de notar que este facto se deve reputar extraordinario, e eu nunca o reconhecerei como precedente ou como praxe a seguir no futuro, porque o Conselho de Estado não tem faculdades para aconselhar, como corporação, a nomeação, nem a demissão dos Ministros. O acto que se praticou foi absolutamente inconstitucional, e só se justifica pelas circunstancias excepcionaes em que se realizou.

O Rei deve ser, segundo a Carta Constitucional, absolutamente independente, tanto na nomeação como na demissão de Ministros; o Rei pode aconselhar-se com quem quiser, é certo, mas o Conselho de Estado, funccionando como determina a Constituição, nunca pode ser ouvido sobre tal assunto.

Portanto, se este facto se repetir mais alguma vez, o que não é natural, eu desde já declaro que nunca, como chefe de partido, reconhecerei a sua legalidade. Quero para mim a liberdade de proceder como entender conveniente.

O Conselho de Estado para os chefes dos partidos são es homens principaes das suas agremiações: são elles os unicos que podem apreciar a situação, e decidirem se convem ou não acceitar ou fazer parte do Governo.

Mas foi este realmente o voto do Conselho de Estado; este voto, pela minha parte, foi seguido, não obedecendo a um preceito legal; mas porque elle era naquella occasião a aspiração do sentimento que predominava em todo o Paço, e que assenhoreava tambem o coração de todos os que haviam assistido ao espectaculo doloroso d'aquella sessão verdadeiramente historica.

Estavam porventura os chefes dos partidos inhibidos de acceitar o Governo?

Não podia qualquer d'elles presidir a elle?

Pois não havia identidade de ideias e de principios?

Nos seus programmas que tinham sido proclamados nas suas assembleias, celebradas em 8 de dezembro, não queriam os dois partidos, tanto o regenerador, como o progressista, que se revogassem as leis de excepção, que se annullassem os decretos ditatoriaes, que se reformasse a Carta Constitucional, estabelecendo principios que obstassem de futuro á continuação das ditaduras?

Que differença havia nos programmas dos dois partidos?

Absolutamente nenhuma; portanto os chefes, sob a presidencia de qualquer d'elles podiam fazer um Ministerio de concentração e cumprir a missão determinada pelo programma commum sem conflictos de qualquer especie.

O Sr. Pimentel Pinto: - Mas no Conselho de Estado não se falou de nomes: no que se falou, foi na conveniencia que havia, de todos os monarchicos se reunirem em volta do Rei. Não foi do Conselho de Estado que saiu o Sr. Amaral.

O Orador: - O que saiu do Conselho de Estado, foi a ideia da união dos dois partidos. E porque é que os chefes dos dois partidos aconselharam o Sr. Amaral?

Foi porque não podiam organizar uma situação sob a presidencia de qualquer d'elles?

Não; porque as difficuldades d'essa situação não existiam.

Tinha por acaso o Governo uma missão espinhosa a cumprir, que fosse superior ás suas forças?

Não, decerto.

Essa missão era pelo contrario inteiramente sympathica á opinião publica. A concessão da amnistia, a revogação das medidas de excepção, como eram as repressivas, da imprensa, do direito de reunião e dos outros direitos individuaes a anullação dos decretos da ditadura, era de prover que fossem bem recebidas e festejadas pelo país, que reclamara ardentemente contra os actos do Governo anterior.

Que embaraços poderia encontrar no seu caminho qualquer dos chefes dos dois partidos, se elles tinham batalhado juntamente contra a ditadura, e se taes medidas se achavam nos seus programmas de governo?

Havia a questão pendente da liquidação dos adeantamentos, mas o proprio Sr. Presidente do Conselho reconheceu que isso não era impedimento, porque convidava o Sr. Espregueira a fazer parte do Ministerio. E quando por acaso isso fosse um impedimento, não o era de certo para mim, porque, por uma serie de circunstancias que todos conhecem, era absolutamente estranho a essa questão.

Porque foi o Sr. Presidente do Conselho chamado ao poder?

Foi á falta de homens, que não quisessem assumir a responsabilidade de uma situação difficil? Foi porque os outros, por um egoismo indesculpavel, ou por uma fraqueza condemnavel, tremessem de pavor deante das circunstancias graves do momento?

Não, Sr. Presidente. Foi porque o Sr. Ferreira do Amaral reunia em si todas as condições para que a sua pessoa primasse entre todas, recommendando-se ao poder moderador que faz os Ministros pelo seu elevado talento, pelo seu respeitavel caracter, pela sua brilhante folha de serviços publicos.

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Foi por isso que S. Exa. foi chamado ao poder; não foi porque outros, desconhecendo as altas responsabilidades que em momentos difficeis lhes impõe a sua larga vida publica, o recusassem fugindo. Isso não.

Abnegação pode ter havido, fraqueza não houve decerto. (Apoiados).

Comprehendia-se que outros chefes de Governo, chamados a organizar situações de concentração ou extra-partidarias, tivessem dito, que o foram porque nenhum dos dois grandes partidos historicos podia governar, e porque eram grandes as difficuldades que então assoberbavam o país.

Em 1890, por exemplo, foi chamado João Chrysostomo, porque então não podiam tomar as redeas do Governo, nem o partido regenerador nem o partido progressista. Nessa occasião o partido progressista não podia constituir Governo, porque tinha sido fulminado pelo ultimatum de 31 de janeiro.

O partido regenerador, tambem não, porque o contrato de 14 de agosto, violentamente impugnado por todo o país, fora condemnado na sessão de l5 de setembro.

O velho e honrado estadista que foi incumbido de organizar Gabinete é que poderia dizer então que fôra chamado ao poder para resolver difficuldades, que os outros estavam politicamente impossibilitados de dirimir. E com effeito, esse e o Ministerio seguinte, de que eu fiz parte, ainda sob a sua presidencia, lá foi procedendo como pode, arrastando uma vida ingloriosa, sempre ligado na sua curta existencia ás difficuldades do tratado, atravessando um periodo de luta e de impopularidade.

Em identicas circunstancias se organizou o Gabinete sob a presidencia de Dias Ferreira. Os partidos tambem então não podiam governar. Tinham a grande responsabilidade da crise financeira que os esmagava. Dias Ferreira foi investido na Presidencia do Conselho, e embora elle adorasse o favor popular, mostrou-se um grande homem de Estado, porque sacrificou pelo bem do país a principal aspiração do seu espirito, e não teve duvida em publicar a lei odiosa da salvação publica, nem em propor o aumento do imposto do consumo.

Esses dois Ministerios sim, esses foram constituidos para resolver difficuldades, com as quaes não podia arrostar nenhum dos dois grandes partidos historicos.

Mas o Governo do Sr. Amaral entrou favorecido pela sympathia publica, assim tem continuado na sua carreira triumphal e, gloriosamente, hade sair do poder.

Justo me parece ter sido o meu sentimento por ter ouvido dizer a S. Exa.
que fôra chamado á falta de homens, e em occasião tão difficil que todos rejeitavam o poder.

Pretendentes ao poder não os conheço, mas, se existem, não é certamente porque queiram aproveitar-se das vantagens actuaes, laboriosamente adquiridas pelo Sr. Presidente do Conselho.

Conserve se S. Exa. no poder o tempo que quiser. Tem, por emquanto o apoio dos dois partidos, mas não precisa seguramente S. Exa., para que todos prestem a homenagem devida aos seus serviços, empregar, embora pelas necessidades da defesa, qualquer palavra que deixe mal collocados aquelles que são o seu principal apoio.

Desculpe-me o nobre Presidente do Conselho estas palavras, que não deixam de ser amigaveis, mas eu não podia deixar de dizer isto, sob pena de faltar ao que supponho, bem ou mal, una dever para com o meu partido. O primeiro acto de importancia politica que eu pratiquei como chefe, foi em 2 de fevereiro. Suppus ter sido um acto de abnegação em favor do Throno, e custa-me realmente que alguem supponha que foi, pelo contrario, um acto de egoismo ou de timidez.

Se eu fosse susceptivel de me assustar em face das difficuldades do Governo, não teria acceitado a direcção de um partido.

Na luta travada entre o Digno Par o Sr. Pimentel Pinto e S. Exa.? que bem parecia uma luta entre as tropas de mar e terra, despediu S. Exa. uma granada, cujos estilhaços feriram alguns dos que eram simples espectadores do combate.

O Sr. Pimentel Pinto: - A mim não me feriu. Não era para mim, que eu não ambiciono esses logares. Podia ser para V. Exa.

O Orador: - Não feriu a V. Exa., mas a mim tocou me, e bem o entendeu o Sr. Teixeira de Sousa em não deixar sem resposta as palavras do Sr. Presidente do Conselho.

E, Sr. Presidente, do politica o menos possivel. O que acabo de dizer não altera em nada o absoluto e completo apoio que continuo a dar ao Sr. Presidente do Conselho e ao seu Governo, emquanto, como até aqui, desempenharem nobremente a sua missão.

Sei, e já o declarou, com inteira verdade, o Sr. Presidente do Conselho, que tem experimentado algumas difficuldades em manter a harmonia necessaria, sobretudo nas provincias, entre as duas familias politicas que por largo tempo se conservaram se paradas e em lutas Constantes e renhidas. É certo, mas reconheço que neste ponto tenho encontrado sempre a melhor boa vontade da parte de S. Exa.

Presto lhe esta homenagem e faço votos para que S. Exa. continue a empregar todos os seus esforços para manter essa harmonia, que se porventura tem sido ligeiramente alterada, não é certamente por culpa do Sr. Presidente do Conselho.

E agora, pondo de parte a politica, vamos á discussão do projecto.

Encetou o debate, embora tivesse falado antes da ordem do dia, o Digno Par Sr. Jacinto Candido, e, comquanto S. Exa. não esteja presente, as suas palavras, o seu modo de considerar o assunto que se discute, ficaram sujeitos á nossa apreciação.

Dá-se, Sr. Presidente, em materia parlamentar, o mesmo caso que se realizava algumas vezes na jurisprudencia romana. Tem aqui applicação o direito de postliminio, pelo qual se afigurava que uma pessoa, posto que ausente, se conservava atrás da porta.

Esta ficção da velha jurisprudencia classica tem plena acceitação nas nossas lutas parlamentares. A pessoa parlamentar do orador é representada pelas suas opiniões, e essas estão presentes, desde que uma vez appareceram, para a defesa ou para a impugnação. Exige-se apenas a fidelidade da reproducção, e essa é um preceito rudimentar para quem lealmente discute.

O Digno Par começou o seu discurso atacando este projecto por inconstitucional, com o, principal argumento de que tem effeito retroactivo o que se manifestava principalmente no artigo 5.°, que pretende regular a questão dos adeantamentos, que é uma questão passada; que esse effeito é evidente, porque as suas disposições se referem a factos já consuminados, e inteiramente resolvidos.

Não me parece exacto, salvo a consideração que devo ao Digno Par.

O projecto não vem regular a maneira do se fazerem adeantamentos; regula uma questão que ainda não está resolvida. O projecto regula o modo de fazer a liquidação que ainda não está feita e, se e uma questão futura, a disposição do projecto não fere em nada o principio constitucional da não retroactividade da lei.

Se o projecto tivesse por fim estabelecer a maneira de se fazerem adeantamentos. modificando o modo ou a forma por que se fizeram os adeantamentos de que se occupa, e mandando regular por elle os adeantamentos já consummados, o projecto teria nesse caso effeito retroactivo; não é esse o seu objecto, mas sim o regular uma questão futura, para a qual não existe na nossa legislação preceito sufficiente, e por isso é absoluta e inteiramente constitucional.

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6 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

O que o Digno Par não viu, nem os outros oradores que me precederam, e que teem com este fundamento impugnado o artigo 5.°, é que o projecto, realmente, tem effeito retroactivo, mas é no artigo 1.°, e nem podia deixar de o ter. Tem effeito retroactivo na disposição em que manda applicar os seus preceitos, isto é, em que manda pagar a dotação de Sua Majestade, desde o começo do seu reinado, ou desde o dia em que falleceu El-Rei D. Carlos.

Tem effeito retroactivo porque a Constituição lhe dá esse effeito, e se porventura não o tivesse, nessa parte não obedeceria ao determinado na Constituição.

Que diz a disposição constitucional?

Diz que o projecto para a dotação de Sua Majestade deve ser apresentado ao Parlamento no principio de cada reinado.

Para que este projecto não tivesse effeito retroactivo, seria indispensavel que elle fosse feito ainda em vida do Monarcha anterior.

Mas, se fosse feito em vida d'esse Monarcha, não se seguiria a disposição constitucional, que somente o manda apresentar quando esse reinado termine.

Rigorosamente demonstrado fica que este projecto tem effeito retroactivo, que o não pode deixar de ter segundo a Carta, e estou persuadido de que, se o Digno Par Sr. Jacinto Candido tivesse notado este effeito no ponto a que me refiro, talvez por essa circunstancia não deixasse de o votar.

Quando em 1827, na sessão de 4 de junho, se discutiu na Camara dos Deputados a questão da lista civil, impugnaram alguns a apresentação da proposta com o fundamento de que a Rainha D. Maria II, não estivesse investida no governo da nação. A abdicação, feita por D. Pedro IV em favor de sua filha, tinha sido publicada havia mais de um mês, e, todavia, entendiam elles, que não se podia fixar a dotação da Rainha, sem ella ter sido proclamada successora de seu pae.

Quer isto dizer que nas Côrtes de 1827 reconheceram que era absolutamente indispensavel que a lei que regula a dotação do Rei fosse promulgada depois da sua investidura no governo supremo da nação e, portanto, sempre com effeito retroactivo.

Muito interessante foi o debate levantado naquella occasião, e ahi foi admiravelmente sustentado o principio da applicação retroactiva da lei sobre a dotação real.

Seguiu-se na ordem dos oradores que impugnaram o projecto o Digno Par Sr. Ressano Garcia.

Que foi o discurso de S. Exa.? De primeira ordem em qualquer Parlamento do mundo. Nelle se mostrou S. Exa. o que sempre tem sido: valente, pujante e forte orador parlamentar, da geração de Mariano de Carvalho, de Saraiva de Carvalho e de tantos outros, que nobilitaram ainda em nossos dias a tribuna parlamentar. Elles realizavam, no seu systema de discutir, o preceito do mestre dos oradores, para a qual a verdadeira eloquencia parlamentar é representada por um ferreiro com um martelo na mão, tendo deante de si uma bigorna, que é o assunto de que trata. Cada argumento fora do seu objectivo, é uma pancada perdida.

Eis o caracter da verdadeira oratoria parlamentar, e ninguem melhor o traduz nos seus discursos do que o Digno Par o Sr. Ressano Garcia.

Admiravelmente se occupou S. Exa. do assunto, sob todos os pontos de vista. E eu digo isto como um sentimento de justiça, e não o para o lisonjear, porque, sem embargo de ter sido sempre um admirador de S. Exa., tenho, em alguns pontos, o desprazer de discordar da sua opinião.

Não é quando S. Exa. combate o artigo 5.° do projecto, dizendo que elle não pode estabelecer a obrigação para Sua Majestade pagar as suas dividas alem das forcas da herança, porque isso é absolutamente juridico, inteiramente moral, e está sanccionado por preceitos expressos da nossa, legislação.

O Digno Par começou por assentar o principio de que o Rei representa, por um lado, a suprema magistratura da nação, e, por outro lado, é cidadão português com os direitos e obrigações de que goza, e que impendem sobre qualquer outro cidadão, estando sobre o imperio das leis que regulam esses direitos e obrigações e consequentemente, sujeito ao Codigo Civil, que preceitua que ninguem pode ser obrigado a pagar as dividas do autor da heran-alem das forças da mesma herança.

É verdadeiro o principio, mas o que ainda se não disse, e talvez seja uma novidade para a Camara, é que ha uma, disposição clara a este respeito na lei de 16 de julho de 1855. Está nos artigos 9.° e 10.° d'essa lei.

É muito fastidioso ler documentos ou artigos de lei. Não ha nada que mais fatigue a attenção da Camara que a leitura de documentos ou de leis, mas para tratar assuntos como este, é indispensavel a leitura dos artigos, porque citar as leis de cor é tudo quanto ha de mais prejudicial para uma discussão, porque basta, ás vezes, uma palavra, uma virgula, uma pequena circunstancia de redacção que a memoria não pode reter e o orador não pode reproduzir, para que a conclusão seja redondamente falsa.

É fastidioso, certamente, mas eu durante o tempo que tenho de occupar a attenção da Camara, que com tanta benevolencia me escuta, não posso deixar, sob pena de prejudicar a demonstração documentada das minhas affirmações, de fazer a leitura de algumas leis e documentos.

Sei bem que isto offende a esthetica tribunicia, mas é necessario fazê-lo, embora a arte perca um pouco perante a crua exigencia dos negocios.

V. Exa., Sr. Presidente, que conhece perfeitamente a historia da eloquencia tribunicia, porque é muito erudito, sabe que em nenhum dos discursos dos grandes oradores da Grecia, de Demosthenes ou de Eschines, em nenhum d'elles se deixa de fazer uma larga citação de leis e documentos, porque collocava-se o rigor logico da demonstração acima de tudo; mas como era um país essencialmente artistico, como se reconhecia que isso quebrava a linha parlamentar do orador, que faziam elles?

O orador tinha ao seu lado uma pessoa de voz sonora e boa figura - sempre o culto da forma! - que fazia as leituras de maneira que, quando o orador necessitava de citar uma lei, ou um documento, entregava-os ao homem que estava ao seu lado, que desempenhava briosa e galhardamente o papel de leitor. Havia em tudo isto uma grande vantagem para as discussões. Em primeiro logar, o orador descansava; em segundo logar, como era um novo personagem que entrava em scena, chamava naturalmente as attenções da assembleia sobre si, lia pausadamente as leis ou documentos, e o orador depois continuava chamando a attenção da assembleia para determinadas passagens dos documentos ou, das leis que acabavam de ser lidos, e d'esta maneira movimentando e dramatizando o discurso, promoviam a attenção e harmonizavam a elevação do raciocinio com a aridez da leitura.

Assim, Sr. Presidente, ouvia-se a cada passo Demosthenes nos seus discursos dizer: leia o decreto de Callisthenes, leia agora a carta de Filipe.

As propria citações dos poetas que elles faziam frequentemente, porque entendiam, e muito bem, que a oratoria deve ter sempre uma feição literaria, as proprias citações dos poetas eram lidas por uma pessoa que estava ao lado do orador, e a espaços se ouviam estas palavras: leia os versos de Euripedes, leia essa passagem de Eschilo.

Desculpem-me esta ligeira digressão, mas, Sr. Presidente, ella veio a proposito por causa da leitura, aliás indispensavel, que terei de fazer durante o meu discurso, e que sei de antemão que vae fatigar a attenção da Camara.

Dizia eu que havia uma lei expressa

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SESSÃO N.º 44 DE 19 DE AGOSTO DE 1908

e clara a este respeito. É a lei de 16 de julho de 1855, no seu artigo 9.°, que dispõe:

Os bens particulares que o Rei possue e de que pode dispor, ou que adquirir, por qualquer titulo, regulam se pelo direito commum do reino, com as seguintes declarações.

As declarações referem-se ás doações que não precisam de insinuação, e aos arrestos e penhoras nos bens que pertencem ao Rei. Aqui tem V. Exa. neste artigo os bens particulares do Rei regulamentados quanto á sua disposição, pelos preceitos da lei commum. A disposição testamentaria, a disposição por via de contratos, todas as disposições, qualquer que seja a maneira por que se realizem, das propriedades particulares do Rei, se regem na conformidade das determinações da lei commum, isto é, da lei civil.

Mas ainda ha preceito mais expresso. É o artigo 10.°:

Os rendimentos dos bens da Coroa mencionados nesta lei, que tiverem vencimento durante o reinado, e bem assim todas as quantias e creditos da dotação real pecuniarios, emquanto á livre disposição e á successão regulam-se pelas mesmas leis que regem quaesquer bens particulares.

Emquanto á successão. Aqui tem V. Exa. reconhecido no artigo 10.° da lei de 16 de julho de 1855, que são applicaveis aos bens particulares do Rei as disposições da lei commum relativas á successão.

Aqui está clara e terminantemente estabelecido que, qualquer que seja a origem dos bens particulares possuidos por Sua Majestade El-Rei, quer provenham dos rendimentos da Casa de Bragança, quer provenham da dotação estabelecida pelas leis respectivas, quer sejam os creditos que tenha sobre essa dotação, tudo isso constitue o patrimonio de Sua Majestade, e é regulado, quanto á successão, pelos principios da lei civil.

Ora, a lei civil diz que a successão transmitte-se com todos os direitos e obrigações que não sejam meramente pessoaes, mas que os herdeiros não podem responder pelos encargos, que lhes forem transmittidos, alem das forços da herança.

Portanto é a lei de 16 de julho de 1855 no artigo 10.° que manda applicar a disposição do Codigo Civil; e o que faz neste ponto o projecto que se discute?

Revoga a lei de 16 de julho de 1855, e estabelece uma disposição excepcional a respeito de Sua Majestade El-Rei; de sorte que, ao passo que manda no artigo final observar a lei de 16 de julho de 1855, ao mesmo tempo revoga a lei que manda observar! (Apoiados)

Por fallecimento de El-Rei D. Carlos, os direitos e obrigações do herdeiro adquiriram-se pela abertura da herança, que se verificou em o momento da morte do seu autor.

São factos consummados. Uma lei que venha alterar a situação juridica criada por esses factos, é uma violencia de effeito retroactivo.

Pois quê! Recebe um herdeiro uma herança com todos os direitos e obrigações que lhe são inherentes, em virtude da lei existente a esse tempo, e depois o Parlamento determina, que a propriedade adquirida, legitima e legalmente, seja modificada nos effeitos da sua transmissão hereditaria!

Isto é uma verdadeira monstruosidade!

De onde vem para as Camaras a faculdade de alterar tão gravemente os direitos adquiridos em materia civil? Seria o cumulo do poder absoluto! (Vozes: - Ouçam. Apoiados).

Quer isto dizer que Sua Majestade não pague, se quiser, as dividas de seu Pae?

Não, não quer dizer isso. (Apoiados).

Pague-as se assim o entender, no cumprimento de um dever moral, mas não em obediencia á execução de uma lei violenta e injusta.

O Parlamento não pode impor-lhe essa obrigação, porque não tem poderes para tanto.

Como dever moral de Sua Majestade El-Rei o pagamento d'essas dividas é uma cousa respeitavel e sagrada. Mas os deveres moraes são illegislaveis. Essa lei desnatura e adultera os sentimentos nobres e elevados de Sua Majestade El-Rei. Esta lei entra na consciencia de Sua Majestade, espreitando-lhe as concepções generosas, e encontrando ahi um pensamento magnanimo, tira lhe a belleza da expontaneidade, e converte-o numa obrigação de execução coerciva com todas as violencias inherentes a uma disposição legal. (Apoiados).

Quer Sua Majestade pagar as dividas de seu augusto pae, pague-as; mas como manifestação de generosidade, não porque a isso esteja obrigado pelas leis portuguesas, que tanto se fizeram para elle, como para qualquer outro cidadão. (Apoiados).

Tem-se discutido, certamente, este projecto, com pouca generosidade, como se se tratasse de merceeiros que ao balcão exigissem o pagamento dos seus generos, ou de patrões que disputassem o salario dos seus serviçaes.

O Sr. Sebastião Baracho: - Se o Sr. Julio de Vilhena se considera merceeiro, em sentido deprimente, eu não. Estou aqui na minha missão de representante do país. Discuti o projecto e fi-lo como entendi, zelando os interesses nacionaes.

O Orador: - E eu tambem assim o discuto, reservando-me o mesmo direito que tem o Digno Par de expor livremente a minha opinião.

O Sr. Sebastião Baracho: - Pois quando a expuser, faça-o por forma a não parecer que offende os brios alheios.

O Orador: - Não é minha intenção offender os brios de S. Exa. ou de quem quer que seja.

O Sr. Sebastião Baracho: - Tambem se me offendesse saberia corresponponder devidamente,

O Orador: - E eu responderia no mesmo tem.

O Sr. Sebastião Baracho: - Está bem.

O Orador: - Parecia-me, Sr. Presidente, e revelo a minha, opinião, reclamando para ella a mais ampla liberdade, que os netos dos homens de 1821, que, não obstante as suas ideias sinceramente democraticas, discutiram com a maior elevação e generosidade a lista civil de D. João VI, os homens que representam neste mento as tradições dos grandes descobridores da India; estes homens que representam uma nação nobilissima como é a nação portuguesa, não deviam discutir nos estreitos limites de um negocio financeiro a lista civil de Sua Majestade El-Rei. Respeito, como sempre respeitei, as opiniões contrarias. Mas nem um só momento, e por circunstancia nenhuma deixarei de referir a minha, inviolavel como a de qualquer outro representante da nação.

Tendo Luis XVI declarado, em carta de 9 de junho, dirigida á assembleia nacional, que bastaria para as despesas da sua casa a quantia de 25 milhões de francos, acrescentando o rendimento dos parques, dominios e florestas das casas de recreio que até então eram possuidos pela Coroa, os homens da revolução mandaram escrever nas suas actas:

A assembleia nacional depois de ter ouvido a carta e a mensagem do Rei relativa á lista civil, votou por acclamação e decretou por unanimidade todas as reclamações e pedidos feitos na dita mensagem, fixou em 4 milhões o apanagio da Rainha; e ordena que o seu presidente vá immediatamente por ante Suas Majestades dar-lhes nota da deliberação que acaba de tomar.

Ah! Sr. Presidente, é com o conhecimento d'estes factos que nós podemos comprehender que uma assembleia d'esta ordem fizesse uma revolução glo-

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riosa como a de 1789. Só uma assembleia, que á tão generosa para com o seu Rei, é que poderia ter autoridade para o julgar e condemnar por traidor á patria; mas um povo que discute tão mesquinhamente a dotação do seu Rei, poderá fazer um tumulto, uma assuada, uma revolta, mas nunca uma revolução, defendendo os direitos sagrados do homem e da humanidade!

(Pausa).

Mas, se eu estou de acordo com o Digno Par a quem estou respondendo, no tocante ao principio de que El Rei só pode responder pelas dividas nos limites de herança, não o posso estar na conclusão que d'ahi deriva o Digno Par. Entende S. Exa. que por isso se deve eliminar o artigo 5.°

Ora, eu penso que a conclusão a tirar não é essa, mas a de que bastaria declarar que o debito apurado afinal na liquidação não poderá ser exigivel alem do valor da herança. A disposição do artigo 5.° pode e deve ficar, porque a liquidação tem de fazer-se. Direi mais: são precisas duas liquidações, uma para apurar o debito, e essa poderia ser incumbida á commissão a que se refere o artigo 5.°; outra para apurar a importancia da herança, e essa poderia ser feita, ou em inventario judicial, ou pela mesma commissão.

Referiu-se depois o Digno Par á cedencia dos bens que pertenceram á Casa do Infantado.

O projecto diz nesta parte que, por cedencia de El-Rei, os Paços de Que luz e de Caxias ficam encorporados na Fazenda Nacional.

O Digno Par, Sr. Ressano Garcia, entende que a expressão - cedendo, de El-Rei- é uma expressão impropria, porque é uma expressão illegal.

Nesta parte divirjo completamente da opinião do Digno Par., e vou dar a razão da minha divergencia.

Em primeiro logar, o decreto de 18 março de 1834 não é tão expresso, no sentido das ideias de S. Exa., como lhe parece.

Se, realmente, não é de uma clareza absoluta, tem todavia o necessario para se poder concluir que os bens que pertenciam á Casa do Infantado ficaram encorporados na Coroa e, estão nas mesmas circuntancias que os bens a que se refere o artigo 85.° da Carta Constitucional.

Diz o artigo 2.° do decreto:

Os bens da extincta Casa do Infantado ficam pertencendo á Fazenda Nacional, e encorporados nos proprios d!el!a; porem os Palacios de Queluz, da Bemposta, do Alfeito, de Samora Correia, de Caxias e da Murteira, casaes, quintas e mais dependencias d'elles, são destinados para a decencia e recreio da Rainha, "como os palacios e terrenos de que trata o artigo 85 ° da Carta Constitucional da Monarchia.

Ficam, pois, na posse da Coroa nas § mesmas condições em que se achavam aquelles palacios de que trata o artigo 85.° da Carta, que estão unidos á Coroa em quanto ella existir, será dependencia de confirmação especial no principio de cada reinado.

É esta a primeira razão.

A segunda razão é que, quando pela vedo na da Casa Real, se expediram os diplomas relativos á cedencia do Palacio da Bemposta, a Rainha D. Maria II resalvou os direitos da Coroa, declarando que d'aquella doação nunca se poderia inferir que esse paço ficasse encorporado nos proprios nacionaes.

Allega-se que esse alvará da Casa Real não tem a sancção ou a referenda do poder executivo: mas é preciso considerar que se trata á e um contrato bilateral, em que ha, de um lado, a proposta da Casa Real e do outro lado a acceitação por parte do Governo, que representa o país. (Apoiados}.

O país acceitou o contrato, como pactuante, e acceitou-o nos termos da proposta, da Casa Real, com a reserva feita por Sua Majestade a Rainha. Esse contrato ficou obrigando ambas as partes que nelle figuram. Ha, pois, da parte da nação o reconhecimento expresso das clausulas com que foi feita a cedencia.

Ha ainda uma terceira razão, e é a que provém da segunda lei de 19 de dezembro de 1834. Ella determina que entre os bens unidos á Coroa pertencentes á antiga Casa do Infantado fica designado um dos palacios para residencia de uma pessoa real.

Em execução d'esta lei foi publicado o decreto de 19 de setembro de 1835, que dizia o seguinte:

Hei por bem, na conformidade da citada carta, de lei destinar para residencia de Sua Majestade Imperial o Palacio da Bempsta com a sua respectiva quinta e oficinas, ordenando que desde logo se proceda ás obras necessarias para tornar a habitação de Sua Majestade commoda e decente.

Era um dos unidos, não á pessoa da Rainha, mas á Coroa, como afirmava a segunda lei de 19 de dezembro de 1834.

Mas ha ainda uma outra razão que resolve inteiramente a questão:; e essa razão deriva da disposição do artigo 3.° da lei de 16 de junho de 1855.

Esse artigo diz:

Os bens da Coroa declarados nos artigos antecedentes poderão sei- arrendados mas o prazo dos arrendamentos não poderá exceder a 20 annos, nem ser renovado antes dos ultimos 3 annos, excepto no esse que uma lei o autorize. Os arrendamentos feitos na forma sobredita "serão mantidos pelos sucessores até a expiração do prazo conveniente, não havendo offensa de seus direitos em algumas das outras clausulas.

Quaes são esses bens? São os declarados nos artigos 1.° e 2.º que dispõem:

Artigo 1.° No presente reinado de D. Pedro V "continuará em vigor a disposição do decreto de 18 de março de 1831", que assinou á Coroa os palacios e terrenos nacionaes nelle designados, com a limitação expressa da lei segunda de 19 de dezembro do mesmo anno.

Art. 2.º Os bens mencionados no artigo 85.° da Carta Constitucional são inalienaveis e imprescritiveis; não poderão ser gravados como hypotheca, ou qualquer encargo e somente poderão ser permutados em virtude de uma lei.

§ unico. A disposição d'este artigo é applicavel aos bens assinados á Coroa nos termos declarados no artigo 1.° d'esta lei.

D'aqui infere-se que os bens a que se refere o artigo 1.°, que são os da antiga Casa do Infantado, nos quaes estão os palacios de Queluz e de Caxias, podiam ser arrendados por 20 annos, devendo os successores monter em regra os contratos feitos. Logo, é porque os successores ficavam sobre os bens arrendados com os direitos dos senhorios. De contrario, esses contratos de arrendamento haviam de terminar com a vida do Monarcha que os tivesse celebrado. Assim terminam, segundo os preceitos da lei civil, os contratos de arrendamento feitos pelos usufrutuarios vitalicios.

É uma disposição expressa do codigo em vigor.

Se o usufruto fosse vitalicio e durasse simplesmente somente o tempo do reinado, não poderia com toda a certeza estender-se o effeito dos contratos ao successor do Rei fallecido. Se El-Rei D. Carlos tivesse, por exemplo, arrendado uma parte do Alfeite por vinte annos, e esse prazo ainda não tivesse decorrido, El-Rei D. Manuel teria de manter o contrato, recebendo as rendas e exercendo todos os direitos, cumprindo todas as obrigações dos senhorios, sem embargo de uma nova lei, que lhe concedesse o predio a que me refiro.

Mas ha mais:

Se os bens da extincta Casa do Infantado não pertencem actualmente a Sua Majestade El-Rei, independentemente da approvação do projecto, a quem pertencem então? Não pertencem a ninguem.

Não pertencem a Sua Majestade, porque, segundo a opinião do Digno Par, para que os bens passem para a posse de El-Rei, é necessario que haja uma nova lei que lh'os conceda, e tal lei não existe neste momento.

Pertencerão á casa do Infantado? Tambem não, porque esta foi extincta em 18 de março de 1834.

Pertencem aos bens nacionaes? Tambem não, porque nunca foram encorporados nelles. Basta meditar no que

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diz o decreto no artigo citado, nas palavras "porem, os palacios (que refere) são destinados para decencia e recreio da Rainha". Não estiveram um só momento na posse da Fazenda Nacional; passaram desde logo para a posse da Coroa.

A ella pertencem, pois, por direito sem necessidade de nova lei.

Segundo a doutrina exposta pelo Digno Par, os Palacios de Queluz, de Caxias, da Bemposta, e Alfeite, as terras de Samora Correia e da Murteira, que faziam parte da extincta Casa do Infantado, estão neste momento sem proprietario e, por consequencia, qualquer pessoa se pode assenhorear d'elles.

Não pertencem ao Rei, porque ainda não ha lei que assim o determine; não pertencem á Casa do Infantado, porque esta foi extincta; não pertencem aos bens do Estado, porque nunca foram encorporados nelles. Tal seria a conclusão final a tirar da doutrina, aliás admiravelmente exposta pelo Digno Par.

E neste ponto termino as referencias aos pontos do discurso de S. Exa., com que sinto não concordar.

Continuo, Sr. Presidente, analysando os argumentos dos Dignos Pares que tomaram parte na discussão, seguindo-se o Sr. Augusto José da Cunha, sentindo que S. Exa. não esteja presente, pois que tenho neste momento de me referir a palavras proferidas por este Digno Par.

S. Exmos. mostrou-se arrependido por ter feito adeantamentos. Declarou-se um grande culpado, e penitenciou-se deante da Camara.

Esta parte do seu discurso é puramente pessoal, está fora da discussão e merece o nosso respeito. Eu não digo uma palavra sequer acêrca do arrependimento de S. Exa., porque presto a minha homenagem a todas as convicções sinceras.

Acrescentou, porem, o Digno Par que, se porventura fizera adeantamentos, obedecera ás condições do meio em que vivera, como membro de varias situações politicas.

Eu não acceito para os meus actos, nem para os actos dos meus amigos politicos, a defesa fundada na exigencias do meio era que se vive.

Existe, é certo, um phenomeno zoologico, que se chama mimetismo, pelo qual os animaes tomam as cores dos mineraes ou dos vegetaes em que vivem. Mas por minha parte nunca converterei esse phenomeno, em lei de ordem politica.

Eu nunca me defenderei com as exigencias do meio, nem me desculparei com a exigencia despotica de condições externas, porque acima de tudo tenho a minha liberdade individual, e só obedeço aos juizos da minha consciencia.

Admittida esta theoria, todos poderiamos ser irresponsaveis, porque os nossos actos seriam o resultado, não de uma acção livre, mas de um determinismo fatal, oppressivo, operando despoticamente, convertendo as nossas acções em simples manifestações automaticas. Qualquer de nós poderia dizer: eu não sou o responsavel, foi o meio que me perdeu. Como systema de defesa, eu por mim nunca invocarei este principio.

Disse tambem o Digno Par que havia casos em que se podiam fazer adeantamentos. Neste ponto estou de acordo com S. Exa.

Eu já indiquei o caso em que não teria duvida em fazer adeantamentos a Sua Majestade, e era quando o seu nome fosse arrastado nos tribunaes estrangeiros, produzindo um escandalo, quando não tivesse recursos e quando as circunstancias fossem urgentes, vindo immediatamente dar conta ao Parlamento. Era neste caso restricto, reunido este complexo as circunstancias, verdadeiro caso de salvação da dignidade nacional.

E quem, em boa fé, ha ahi que não procedesse do mesmo modo?

Estou convencido de que, se eu não fizer outros adeantamentos senão nestas circunstancias, nunca os farei; em primeiro logar, porque Sua Majestade não deixará que a administração da Casa Real chegue ao ponto de ser o seu nome arrastado nos tribunaes nacionaes ou estrangeiros, por credores exigentes, e, em segundo logar, porque a dotação que votamos dá-lhe os recursos necessarios para satisfazer os seus encargos. Não serão os meus adeantamentos promettidos ou futuros, como por ahi dizem, que hão de causar mal ao país. Fazendo-os somente nestas circunstancias, creio bem que nunca terei de convocar o Parlamento para me julgar por elles.

Se nos adeantamentos que se fizeram ha alguma cousa de irregular, essa irregularidade consiste principalmente em não se ter vindo immediatamente participar o facto aos representantes da nação, para tornarem effectiva a responsabilidade dos Ministros, condemnando os ou absolvendo-os.

Disse tambem o Digno Par que não quisera comprar os favores do Rei por meio de adeantamentos. Eu acceito esta declaração de S. Exa., que, sendo de todo o ponto verdadeira, é applicavel a todos os seus collegas nas mesmas circunstancias, e ao mesmo tempo responde ás accusações que se teem feito aqui e lá fora, affirmando se que esse era o processo de alcançar a boa vontade do Monarcha para que os Governos se conservassem mais tempo no poder. O Digno Par citou, a proposito, o que se passou na Inglaterra com Lord Chatam, pois que homens havia que ajoelhavam quando falavam ao Rei. Lord Chatam não falava de joelhos ao Rei, e comprehende-se bem que o não fizesse, aliás estaria constantemente a ajoelhar-se e a levantar-se. (Riso).

O que o historiador disse, com aquelle realismo um pouco shakspeareano que usam habitualmente os historiadores ingleses, foi que lord Chatham quando despachava com Jorge III, se collocava de joelhos, e por tal maneira que o nariz lhe desapparecia no meio dos joelhos do Monarcha.

Esta posição comica e aviltante que tomava o Ministro inglês, creio bem que nem o Digno Par a tomaria, nem nenhum dos outros Ministros que fizeram adeantamentos.

Nem esta, nem nenhuma outra que, á mais afastada distancia, se pudesse reputar de menos independencia e dignidade. Nem os Ministros passados nem nenhum dos Ministros futuros em face do Rei seria capaz, para obter o favor do poder, de manifestar a menor submissão reprehensivel.

No Paço, penso eu, nenhum homem publico entra de chapeu na cabeça, porque isso só fazem os que não teem educação, nem de rastos, porque isso só é proprio dos que não teem a consciencia da sua dignidade pessoal e politica. (Apoiados).

E se me refiro a estas declarações do Digno Par, é porque as acceito em meu abono e dos meus amigos politicos.

Passarei a referir-me ligo rã ao Digno Par e meu amigo, o Sr. Baracho, que eu muito considero e com cuja amizade me honro ha largo tempo.

Claro está que em tudo quanto possa dizer contrariando o seu modo de pensar, não pode haver no meu pensamento a menor ideia de o melindrar; mas estamos aqui para discutir e é simplesmente nesse, intuito que eu me dirijo a S. Exa.

O Digno Par fez algumas considerações com relação á organização do Governo, e sentiu que o Sr. Presidente do Conselho, quando organizou o Ministerio, não chamasse para seu lado, em primeiro logar os republicanos, e depois os elementos monarchicos mais avançados.

O Sr. Sebastião Baracho: - V. Exa. dá-me licença? Eu não disse os republicanos em primeiro logar, disse que deviam ser convidados, cumulativamente, os partidos avançados.

O Orador: - Eu quero dizer, simplesmente uma cousa: se o Sr. Presi-

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dente do Conselho não fez isso, a culpa não foi minha.

Cá temos outra vez um pouco de politica. O que eu vejo é que, se o Sr. Presidente do Conselho quisesse realizar o ideal a que aspirava o Digno Par, se veria em graves embaraços.

Como é que o Sr. Presidente do Conselho havia de chamar para o Governo os elementos republicanos e os monarchicos mais avançados, se os principaes elementos d'esses partidos estavam inhibidos de fazerem parte do Gabinete por estarem processados e alguns expatriados, em virtude dos acontecimentos de junho e de 28 de janeiro?

O Sr. Sebastião Baracho: - Era decretando antes a amnistia.

O Orador: - A amnistia, como?

O Sr. Presidente do Conselho não podia praticar acto algum antes de ser investido na direcção do Governo; só ficando com as pastas todas é que poderia decretar uma amnistia, para poder libertar do impedimento legal e constitucional aquelles que deviam fazer parte do Governo.

Se o Sr. Presidente do Conselho assumisse a gerencia de todas as pastas para decretar essas providencias, S. Exa. praticaria o acto mais extraordinario e mais censuravel da nossa historia constitucional.

Afastada esta hypothese por absurda, vem outra do mesmo valor. O Sr. Presidente do Conselho teria de organizar uma situação provisoria, com o fim unico de amnistiar os culpados e em seguida, exonerados os seus collegas, chamaria á nova situação os elementos a que se referiu o Digno Par. Não vejo outra maneira de realizar os desejos do Digno Par naqnella occasião.

Já vê o Digno Par que, embora a satisfação do seu pensamento pudesse corresponder, por acaso, a uma necessidade nacional, o que é evidente é que o Sr. Presidente do Conselho lutava com serias difficuldades para organizar um Ministerio como o Digno Par, Sr. Baracho, indicou e propôs.

Mas, Sr. Presidente, se isso não se fez, então porque não se faz hoje?

O Sr. Sebastião Baracho: Não ha opportunidade.

O Orador: - O juiz da opportunidade é o Sr. Presidente do Conselho.

Se o Sr. Ferreira do Amaral entende que tem força bastante para isso, se concorda com o parecer autorizado do Digno Par, visto que é um serviço que presta ao país, eu acceito tudo quanto o Sr. Ferreira do Amaral quiser, já se vê, com a liberdade do proceder depois conforme julgar conveniente. (Riso).

Tratou tambem o Digno Par do inventario dos bens da Coroa.

Nesse ponto estou de acordo com S. Exa., e se alguma vez for Governo irei mais longe.

O inventario dos bens da Coroa deve comprehender, não só todas as propriedades existentes no dominio da Coroa, mas todas as joias e valores que a Coroa tem, sendo preciso, resolver de uma vez por todas a questão, chamada impropriamente das joias de D. Miguel.

A situação em que se encontram aquelles valores é que, positivamente, não pode continuar, porque não está ainda officialmente definido qual seja o seu legitimo proprietario. São da Coroa? São da nação? Pertencem a quaesquer herdeiros de D. João V, ou de D. Carlota Joaquina?

Em 1836 foram depositadas no Banco de Portugal duas caixas contendo valores. Em 1849 tiraram se joias de dentro de uma d'essas caixas. Em 1859, por uma portaria do Ministro da Fazenda, que eu tenho presente, e que se acha referendada por Casal Ribeiro, foram retiradas d'essas caixas as joias pertencentes a D. Carlota Joaquina. Tenho aqui a relação das joias tiradas, que é muito interessante, mas que não leio por não ser necessario, como elemento substancial da discussão.

Mais tarde foram, como é sabido, sendo Ministro da Fazenda o Sr. Mattozo Santos, depois do conferidas com o inventario antigo, entregues á Casa Real e, por fim, no ultimo Governo voltaram ao deposito, tendo sido igualmente conferidas, e verificando-se a absoluta conformidade com o inventario.

Se essas joias pertencem á Coroa sejam arroladas nesse inventario que está pendente no tribunal judicial; se não são da Coroa e são da nação, convertam-se em valores e sejam applicados ás necessidades do Estado. Liquide-se, emfim, esta quentão que já dura ha 70 annos.

Faça-se o inventario dos bens da Coroa conforme ordena a lei de 16 de julho de 1855, e apure-se quem tem direito aos valores em deposito no Banco, se a Coroa, se o Estado, se os herdeiros de qualquer pessoa da Familia Real.

Já vê o Digno Par que, nesse ponto, estou de acordo com S. Exa., e voa muito mais longe.

O Digno Par achou que a lista civil era exagerada, tendo em vista a miseria publica, e invocou em abono da sua opinião o facto de ser a lista civil do Rei da Noruega cerca de metade d'aquella que se propõe.

Era primeiro logar, o Digne Par sabe que uma cousa é fixar a lista civil no começo de uma monarchia, outra cousa é fixar a lista civil para uma monarchia antiga. Alem, ha a criação de um serviço novo, aqui, um serviço já criado que se não pode modificar sem que se firam direitos adquiridos, porque ha pensões que não podem retirar-se, serviços que se não podem supprimir, despesas que não podem reduzir se ou eliminar-se.

No regime da Casa Real ha muitas circunstancias a que se tem de obedecer. Estou mesmo convencido de que, se nós fizéssemos pela primeira vez a lista civil, não votariamos tanto. Mas isso que nessas circunstancias seria justificavel, não o é agora, porque não se podem tirar rapidamente os subsidios a quem desde largo tempo os recebe, sem affectar as condições das familias, geralmente pobres que os aproveitam, nem passar esponja por cima de muitas verbas destinadas á satisfação das necessidades legitimas da Casa Real. O que nestas circunstancias se não pode fazer, poder-se hia realizar, se se fixasse pela primeira vez a lista civil do Monarcha. E, pois, muito diversa a situação da Noruega e não pode invocar-se como exemplo a seguir.

O Digno Par referiu-se á verba destinada aos palacios reaes, e declarou que preferia uma verba fixa de 10 contos de réis a inscrever annualmente no orçamento.

O Digno Par sabe muito bem que esta questão tem sido tratada no Parlamento por diversas veses, e especialmente nas Côrtes de 1820.

Quem ahi impugnou a fixação de uma verba determinada para despesas de conservação e restauração dos palacios reaes foi um dos homens mais liberaes que faziam parte da assembleia constituinte de 1820. Foi Borges Carneiro que na sessão de 30 de junho proferiu estas palavras:

Não senhor. Nada de quantia certa porque pode gastar-se noutra cousa e dizer-se que se gastou nisso. Alem de que em alguns annos essa quantia seria nulla e em outros annos poderia ser exorbitante.

O systema do projecto é este mesmo. É, a meu ver, preferivel, porque, embora a verba que se fixa seja superior a 10 centos de rei?, tem, comtudo, de determinar-se com a annuencia parlamentar, e com toda a fiscalização que se pode exercer neste caso reclamando-se os documentos de que se precisar para a apreciação clara e justa do assunto.

Na divergencia de opiniões, prefiro acceitar a do eminente orador de 1820, que é tambem a do Governo.

Na ordem da discussão seguiu-se o Digno Par o Sr. Arroyo, que proferiu nesta assembleia uma oração brilhan-

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tissima, como brilhantes são todas as que profere, revelando os maximos dotes de eloquencia, de saber e de distincção tribunicia, mas que foi sobretudo um discurso de caracter politico.

O Digno Par começou, censurando os partidos rotativos, chamemos-lhe assim visto que assim o querem, porque elles eram os culpados de o Governo não ter fornecido á Camara todos os documentos indispensaveis para que se pudesse apreciar a justeza da verba fixada no projecto para a dotação de Sua Majestade.

Os partidos rotativos é que tinham a culpa, disse S. Exa.

O Sr. Sebastião Baracho: - Apoiado.

O Orador: - Apoiado diz o Digno Par, mas lembre-se S. Exa. de uma cousa: é que ha muitas especies de rotativos, ha rotativos effectivos e rotativos honorarios, e outros ainda que pretendem tornar a ser rotativos e muitos que, não tendo sido honorarios nem effectivos, querem ser rotativos pela primeira vez.

Os rotativos honorarios, são muitos, são todos aquelles que sairam do rotativismo, mas que conservam as honras e que não podem mesmo repudiá-las, porque ellas recordam os melhores actos da sua vida publica.

O Sr. Sebastião Baracho: - Isso é o que V. Exa. diz.

O Orador: - O que eu digo ao Digno Par, é que quando eu fiz parte de um Ministerio rotativo ahi por 1881, já lá vae ha tanto tempo, tive o prazer de encontrar o auxilio de S. Exa., o que recordo com viva satisfação.

O Sr. Sebastião Baracho: - Nesse tempo ainda não havia rotativismo. O rotativismo começou em 1901.

O Orador: - Então não me cabe a mim o nome de rotativo.

Eu conheço muito bem o que se passa no animo d'aquelles que se desligam dos partidos.

Imaginam que os partidos desapparecem e se desfazem quando lhes falta a sua collaboração.

Acontece com esses o mesmo que aconteceu com aquelle cidadão espanhol, que saindo indignado de Madrid, depois de passar o Manzanares, se voltou para a cidade, dizendo com supremo desdem: - Adios Madrid que te despueblas!

Imaginam que os partidos ficam sem gente! Mas, não obstante, muitos querem ser rotativos.

O Sr. Sebastião Baracho; - O que? Pois ha quem pretenda voltar a ser isso? (Riso).

O Sr. José de Alpoim: - O Sr. Julio de Vilhena, por exemplo, saiu do partido regenerador e regressou a elle para ser chefe.

O Orador: - Sai, mas não foi para dizer mal do meu antigo partido.

O Sr. Sebastião Baracho: - Pois eu não sai para outra cousa (Riso); se não tivesse que dizer mal, deixava-me ficar.

O Orador (para o Sr. Alpoim): - Desejo que V. Exa. prove que eu ataquei o partido regenerador.

O Sr. José de Alpoim: - Vá lá, vá lá... Por varias vezes V. Exa. se manifestou contrario a actos d'esse partido. Não quis acatar a chefia de Hintze Ribeiro e, por isso saiu d'elle.

E a propria carta que V. Exa. a esse respeito escreveu, o prova.

O Orador: - Ha muitas maneiras de atacar. Bem o sabe o Digno Par. Nunca pertenci ao numero d'aquelles que suppõem que os partidos se extinguem quando elles os abandonam.

O Sr. Sebastião Baracho: - Pela minha parte, nunca pensei tal.

O Orador: - Não me referia a V. Exa.

O Sr. Sebastião Baracho: - Mas emquanto disser cousas que me possam visar, hei de responder.

O Orador: - Mas eu já disse que não estou respondendo a V. Exa.

O Sr. Sebastião Baracho: Pois sim, mas quando me julgo alvejado, replico.

O Sr. João Arroyo: - O mais curioso é que sendo tudo commigo, sou eu que estou mais calado. (Riso).

O Orador: - Pois é a V. Exa. que eu estou respondendo. Attribuir aos partidos a falta de remessa dos documentos a esta Casa do Parlamento, é inacceitavel.

Que culpa tenho eu do Sr. Ministro da Fazenda não ter enviado ao Digno Par os documentos que S. Exa. requisitou?

Realmente a situação que me attribuem é insustentavel.

Se eu estivesse no Governo, comprehende-se que se tornasse effectiva a responsabilidade do chefe por esse facto, mas não estando, e quando eu tambem não fui attendido no meu pedido de documentos, porque não me mandaram todos os que requeri, associando-me, portanto, ao Digno Par na sua queixa, mal comprehendo a accusação, que me é dirigida.

O Digno Par descreveu a seguir a situação do partido regenerador, dizendo que os seus membros mais illustres andavam foragidos por montes e valles.

Pobres almas penadas que expiram no desespero e no exilio, as faltas que commetteram na questão dos adeantamentos. Vão morrendo lentamente sob o influxo dos seus graves delictos politicos. Como foi injusto o Digno Par!

Pois S. Exa. não viu o denodo com que se defendeu o Digno Par Sr. Teixeira de Sousa?

Não presenceou o ataque valoroso, dirigido ao Sr. Presidente do Conselho pelo Digno Par Sr. Pimentel Pinto?

Não se defendeu briosamente na outra Camara o Sr. Pequito?

Não está já inscrito para explicações o Digno Par Sr. Mattozo Santos?

E ainda o Digno Par diz que os membros do partido regenerador andam succumbidos ao peso das suas grandes responsabilidades.

Por fim, o Digno Par, erguendo-se sobre as ruinas imaginarias de um grande partido extincto, apresentou um programma de Governo, proclamando, que era indispensavel vida nova, um Governo que tenha um programma que resolva a grande questão nacional.

Estou neste ponto absolutamente de acordo com S. Exa., porque é essa vida nova que sempre tenho proclamado.

Pois não tenho eu sustentado nesta camara a necessidade de uma nova Constituição?

Não tenho observado que não comprehendo como possa continuar a vigorar a Constituição actual, que em muitos dos seus artigos é um verdadeiro anachronismo?

Pois estas doutrinas não serão sufficientes para satisfazer os mais exigentes em materia de reformas?

Eu tenho sido sempre um dos primeiros a reconhecer que a nossa Constituição necessita de radical revisão, desde o primeiro até o ultimo capitulo.

Pois pode admittir se, hoje, a divisão territorial dos nossos dominios, estabelecida por essa Constituição, que é um ataque contra todos os principios, até contra a propria geographia?

Pode, porventura, contrariar-se a reforma da Constituição, quando ella a respeito da nacionalidade dos cidadãos estabelece principios obsoletos, alguns até já revogados pelo Codigo Civil?

Poder-se-ha continuar com uma Constituição que não tem um unico principio reconhecido como constitucional, para servir de alicerce ao nosso systema de governação colonial?

Ora, Sr. Presidente, um país cuja autonomia se explica e justifica geogra-

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phica e politicamente pela existencia do nosso imperio ultramarino, deverá continuar a governar-se por uma Constituição que não encerre os principios fundamentaes de um regime para os nossos vastos dominios, formando as bases da nossa administração futura?

Poderá tambem continuar, sem alteração, a disposição da Carta acêrca das administrações locaes, quando ainda no ultimo Governo vimos que o muoicipalismo foi derrubado de um só golpe pela mão audaciosa dos ditadores?

Não será pois necessario estabelecer principios que garantam, ao abrigo de todos os ataques, um regime de administração, cimentando as franquias locaes, que sempre acompanharam a verdadeira liberdade individual?

Se eu tenho sustentado aqui no Parlamento, em toda a parte, estas ideias, por quê razão me atacam tão rudemente, como se eu que ainda não fui Governo, tivesse já praticado actos que revellassem de qualquer forma um procedimento retrogrado e reaccionario?

Como se explica isto?

Pois o Digno Par Sr. Baracho não applaudiu, ha poucos dias um apoiado que lhe dei quando S. Exa. disse que era preciso que tomássemos como ponto de partida, nas reformas a effectuar, a epoca de 1885?

Eu acceitei a direcção do partido regenerador, não para continuar o systema do engrandecimento do poder real, que foi a origem de todos os nossos desastres, mas para manter e levantar bem alta a velha bandeira do partido, aquella que foi sempre defendida por Fontes, Sampaio, Barjona, Corvo e tantos outros homens illustres que o ennobreceram e cuja memoria o partido celebra na sua historia gloriosa.

As minhas affirmações teem sido sempre bastante claras e positivas, e por isso não comprehendo, porque pretendem embrulhar me nesse manto de absolutismo em que muitos se teem envolvido, e em que nenhum conseguiu ainda ser util para ai e para a patria.

Sempre que tenho tido occasião de expor ao país o que penso, tenho de que quero uma vida nova, e que essa vida nova com todo o justo exercicio das liberdades que constitue, sob à minha presidencia, o programma do partido regenerador.

Comprehendo que ataquem os meus actos como homem de governo, quando o for, mas agora não, porque ainda os não pratiquei.

Quando eu for chefe do Governo, se tal honra me pertencer, então é que acceito aqui, todo o ataque, porque só então é licito que m'o dirijam, visto que só então é que poderei traduzir em factos as minhas ideias. Então se verá o que penso.

Bem alto digo que não deixei o meu socego, não abandonei os meus interesses no ultimo periodo da minha vida, mas ainda com bastante vigor para lutar seja com quem for, senão para cumprir uma missão elevada a bem do meu país, para o desempenho da qual, digo-o sem modestia, é certo, mas tambem sem orgulho, me encontro inteiramente habilitado com elementos de estudo, de trabalho e de conhecimento das cousas, adquiridos na pratica de largos annos, no trato dos negocios, e na indagação das verdadeira necessidades nacionaes.

Folgarei de presidir á revisão da nossa lei constitucional, acompanhando-a das suas leis complementares de imprensa, de reunião, de associação, e tantas outras que são indispensaveis para lhe por em execução o pensamento fundamental.

Feita esta affirmação categorica, clara e precisa, continuo na minha exposição.

Falta referir-me ao Digno Par Sr. Alpoim.

O Digno Par proferiu, como é seu costume, um explendido discurso. Os discursos do Digno Par são verdadeiras placas de diamantes ou collares de perolas, de onde custa arrancar uma joia para não prejudicar o effeito esthetico da obra do artista.

Mas a verdade é que nem te das ellas teem o mesmo quilate que apparentam.

Está neste caso aquella afirmação de S. Exa., quando avalia o systema politico das nações pela importancia da lista civil.

A lista civil é exagerada, logo o systema politico é retrogrado.

Citou, por exemplo, a França, e quis mostrar que a lista civil fixada pela Assembleia Nacional para Luis XVI, aumentava ou diminuia conforme o systema reaccionario dos governos.

Este principio, generalizado e convertido em these, não é verdadeiro.

Se isto fosse assim, da nossa lista civil fixada permanentemente em 1 conto de réis, desde D. João VI até agora, concluir-se-hia que não tem havido oscillação nem fluctuações no systema politico dos governos desde essa epoca até hoje, e, todavia o systema de Governo tem divergido tanto durante este largo periodo offerecendo tantas variações, umas vezes mais liberal, outras despotico e centralizador, que condem-na abertamente a asserção do Digno Par.

Se fosse verdadeira a doutrina de S. Exa., não havia nada mais facil para estabelecer a liberdade em Portugal. Bastaria reduzir a 50 por cento a lista civil. Teria logo adquirido mais 50 por cento em materia de liberdades.

Mas os factos, e ainda bem recentes, demonstram quanto é errada a affirmação do Digno Par.

Quando subiu ao throno Eduardo VII, a lista civil aumentou, e não consta que em correspondente percentagem tivesse subido o despotismo na Inglaterra. Não ha, como se afigurou ao Digno Par, correlação entre os dois factos.

Encontrou alem d'isso S. Exa. defeitos no presente projecto: tambem eu os encontro.

Eu não assisti á feitura d'este projecto. Se o Sr. Ministro da Fazenda ou o Sr. Presidente do Conselho teem tido a bondade de me consultar em tempo competente, de modo que eu pudesse, sem inconvenientes para a sua apresentação ao Parlamento, fazer um largo estudo sobre elle, é possivel que eu tivesse feito algumas indicações.

Por exemplo, o projecto não resolve a questão occorrente acêrca de quaes são os predios que ficam em usufruto á Coroa e de que pode dispor para fazer contratos e arrendamentos.

A lei de 16 de julho de 1855 estabeleceu o principio de que alguns predios podiam ser arrendados, mas não fazia especificada e taxativamente a separação entre aquelles que podiam ser arrendados, e aquelles que estavam destinados exclusivamente ao recreio de El-Rei.

Quem tivesse conhecimento de taes imperfeições decerto que diria ao Sr. Ministro da Fazenda que preenchesse esta lacuna, e que no projecto hoje em discussão declarasse precisamente quaes eram os predios que ficavam em uso e habitação, isto é, na expressão juridica de que El-Rei é morador usuario, e aquelles de que é usufrutuario.

Assim, como o projecto está, continuam para o futuro as duvidas occorrentes sobre este ponto.

Eu determinaria tambem pelo projecto qual a situação legal da Cidadella de Cascaes e do Palacio do Outão. Ficaria a cidadella de Cascaes para recreio de El-Rei, mas por uma disposição legislativa, e não por uso, simplesmente. Eu procederia assim porque este ponto é fundamental em relação aos encargos da parte do Governo.

Entre tudo que se tem passado não é a questão dos arrendamentos aquella que escandaliza a opinião publica; pelo menos a mim não é isso que me preoccupa porque, como logo demonstrarei á evidencia, não ha nada mais legal; mas é necessario fazer uma separação definida entre as duas classes de predios, porque da diversidade de regime provem a diversidade de encargos a inscrever no orçamento.

A Casa Real tem direito de arrendar os predios em usufruto, mas tem correlativamente a obrigação de fazer as despesas com as unicas restricções da lei commum, e conforme as obrigações dos usufrutuarios.

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O Sr. Presidente do Conselho de Ministros e Ministro do Reino (Ferreira do Amaral): - Então a V. Exa. não foi entregue o projecto antes de vir á Camara?

O Orador: - Foi-me entregue pelo Sr. Ministro da Justiça, aqui, na Camara, depois de ter sido approvado em Conselho de Ministros...

O Sr. Ministro da Justiça (Campos Henriques): - Contra minha vontade, tenho de intervir no assunto. A proposta não podia ser-lhe apresentada antes de ser approvada em Conselho de Ministros, porque antes d'isso não era proposta ministerial; por outro lado V. Exa. deve estar lembrado de que fui eu quem lh'a levou ahi a esse logar, e não lhe marquei prazo para se pronunciar sobre ella. Pouco depois V. Exa. veio entregar-m'a, dizendo que a votava.

O Orador: - Mas uma cousa é collaborar num assunto desde o seu inicio, e outra é examinar um trabalho já feito e approvado em Conselho de Ministros. Alem d'isso, a minha propria correcção me determinava a proceder d'aquella maneira. Entendi que o procedimento de S. Exa. obedecia simplesmente a um dever de cortesia, era uma simples attenção a que tinha de corresponder com igual cortesia. Depois, eu já tinha a experiencia de que as minhas consultas eram inuteis.

Quando se tratou da dissolução das Côrtes eu fui consultado e indiquei ao Sr. Presidente do Conselho todas as razões que me levavam a votar contra esse acto. De nada serviu o conselho que me pediram. E, pois, muito natural que eu não quisesse sujeitar-me a novo desastre. Nada d'isto, porem, quer dizer que eu rejeite o projecto em discussão. Approvo-o por uma necessidade constitucional.

Sr. Presidente: tem sido tão cortada de incidentes esta primeira parte do meu discurso, estava tão longe de o imaginar que, se tal pensasse, tê-la-hia certamente supprimido, não porque me não agradem os incidentes, pois são elles sempre manifestações de vida parlamentar e politica, e estou muito habituado a elles, mas porque pode parecer a muitos que eu pretendo irritar um debate, que por sua natureza deve correr em socego. Mais uma vez o affirmo: não pretendo criar difficuldades ao Governo.

V. Exa. reconhece, como reconhecem todos os homens publicos do país, a necessidade que ha de fixar a dotação de Sua Majestade, e por não concordarmos com um ou outro ponto do projecto devemos demorar a approvação, que tão necessaria se torna sob o alto ponto de vista do interesse publico? Não, decerto. (Apoiados).

É de toda a conveniencia que a dotação seja fixada quanto antes, mas isso não nos pode impedir de dizer que as disposições do projecto são nalguns pontos muito imperfeitas.

Ainda hoje se não sabe, porque ainda não foi dito pelo Governo, por que titulo está unido á Coroa o palacio das Necessidades. Do palacio de Belem temos apenas as breves informações dadas pelo Sr. Ministro da Justiça. Supponho que este' palacio foi comprado em 1726 por El-Rei D. João V, á casa de Aveiras, servindo até então de hospicio aos frades arrabidos.

Parece que em pleito judicial foi reconhecido mais tarde, não como propriedade particular de Rei, mas como propriedade da Coroa.

Termino aqui, Sr. Presidente, a primeira parte da minha oração. Agora vou occupar-me da apreciação da lista civil.

Vou agora indagar se a lista civil é ou não sufficiente para a sustentação de Sua Majestade El-Rei.

O Digno Par Sr. Alpoim e outros Dignos Pares que teem tomado parte no debate queixaram-se da falta de documentos para a apreciação rigorosa d'este facto. Essa mesma falta eu sinto.

Não posso por meio de documentos ver se as despesas da Casa Real podem ser rigorosamente satisfeitas com a verba de 1 conto de réis diario.

Mas, Sr. Presidente, embora não tenha elementos resultantes de um exame directo sobre as despesas da Casa Real, tenho, todavia, os elementos indispensaveis para poder affirmar á Camara que a lista civil de 1 conto de réis chega, dada a administração economica que vae adoptar-se, para as necessidades da Casa Real.

Poderemos dizer hoje o que dizia Mousinho da Silveira na Camara dos Deputados em 1827, quando se approvou pela primeira vez a lista civil da Rainha Senhora D. Maria II.

Expressava-se assim o grande estadista na sessão de 4 de janeiro:

A commissão só teve em vista conciliar a maior economia com o respeito e decencia da Familia e da Casa Real, que decerto não julga excessiva; mas á vista da mesquinhez em que se acha a nação, não pode a commissão alargar-se reais nestas dotações, e só lhe resta o sentimento de as não propor maiores e correspondentes aos seus desejos e ao esplendor das altas personagens a quem são destinadas.

O que Mousinho da Silveira dizia então, é precisamente o que eu digo hoje.

As circunstancias do país não permittem que se fixe uma verba superior á de 1 conto de réis. Concordo absolutamente com os Dignos Pares que não acceitam o aumento da lista civil.

A situação financeira actual do país ainda é mais grave do que o era em 1827.

Em 1827 o orçamento para esse anno dava como despesas: 10.177:411$000 réis, e como receita 6.602:000$000 réis.

Havia, pois, um deficit de réis 3.575:411$OOO.

Veja S. Exa. e veja a Camara como a nossa situação financeira tem peorado desde então até hoje; e se Mousinho da Silveira dizia em 1827, na presença do deficit de 3:500 contos de réis que se não podia aumentar a lista civil por mais justo que isso fosse, o que deveremos dizer hoje, que o nosso deficit não é menor, e antes se conserva, ainda no futuro anno, muito superior?

Pelas mesmas razoes por que Mousinho da Silveira votava 1 conto de réis diario para a Rainha, podemos votar hoje 1 conto de réis diario para a dotação de Sua Majestade.

A situação financeira não melhorou, antes se acha aggravada e assim seria altamente impolitico e prejudicial para a Coroa o aumentar-se a lista civil.

Entendo tambem que essa lista civil deve ser fixada com permanencia. Não deve ficar sujeita nem a aumentos nem a diminuições.

A doutrina que torna variavel num reinado a lista civil, sendo perigosa em qualquer occasião, sê-lo-hia sobretudo hoje, no estado em que se encontra a sociedade portuguesa, e em que sob todos os pretextos se pretende envolver nos debates politicos a autoridade real.

Porque?

Porque num dia os elementos conservadores reclamariam o aumento da dotação de Sua Majestade; noutro dia os elementos radicaes pediriam a sua reducção.

A lista civil tornar-se-hia d'este modo um fermento constante de discordia entre os partidos, e El-Rei não teria segura a sua sustentação. (Apoiados).

Veja V. Exa. que lutas parlamentares apaixonadas e irritantes não tem havido durante a discussão d'este projecto, e por ellas pode calcular-se que difficuldades não haveria se ella fosse sujeita a variações.

A inserção do artigo 5.° não é a principal causa originaria da demora da discussão, nem dos debates apaixonados que se teem levantado nesta, e principalmente na outra casa do Parlamento.

Se o artigo 5.° não fizesse parte do projecto, a discussão da lista civil seria por igual demorada e calorosa. (Apoiados).

Calcule-se que extremos attingiria a discussão se se tratasse do aumento da lista civil!

Posta no debate todos os annos, o partido republicano converteria esse facto em arma para todas as lutas e no estado ainda irritavel em que se encon-

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14 ANNAES DA CAMAKA DOS DIGNOS PARES DO REINO

tra a opinião publica, disposta em certas classes a deixar-se facilmente impressionar, daria logar a que se abrisse em cada anno um novo periodo de discussões, em tudo igual áquelle que felizmente vamos encerrar com a votação do projecto.

É por isso muito inconveniente o principio da variabilidade da lista civil, e é por isso que ella precisa permanecer na sua primitiva fixação durante todo o reinado.

Sr. Presidente: a lista civil foi fixada pela primeira vez em 1821, na lei de 11 de julho. Essa lista, porem, comquanto pareça igual a esta, é todavia muito differente, porque alem de 1 conto de réis diario, a Casa Real tinha a administração da Casa do Infantado e ainda outros rendimentos.

Nessa occasião a lista civil foi fixada provisoriamente, porque havia a intenção de a aumentar quando os bens da Casa do Infantado e da Casa das Rainhas fossem encorporados na Fazenda Nacional.

A commissão da Constituição propunha, ainda assim, 800 contos de réis, e houve até uma proposta apresentada pelo Deputado Braamcamp, para que a lista civil fosse fixada em 400 contos de réis; mas a commissão de fazenda indicou os 365 contos de réis, ficando D. João VI com os rendimentos da Casa do Infantado, com a obrigação, todavia, de dar as mesadas que julgasse conveniente ao Infante D. Miguel.

Para D. Carlota Joaquina ficava o usufruto da Casa das Rainhas e as prestações que lhe eram consignadas pelo Thesouro a titulo de juros e tenças.

Eu pedi que me fosse remettido o inventario com a respectiva avaliação de todos os bens que pertenceram á Casa do Infantado, para fazer um estudo ponderado do assunto.

Não consegui que esse inventario me fosse remettido, talvez porque não existe, nem no Ministerio da Fazenda, nem no Ministerio das Obras Publicas.

Mas o que sei pelos documentos publicados, é que a Casa do Infantado possuia muitos e valiosos bens.

Isso mesmo se infere do relatorio que precede o decreto que a extinguiu. Ahi diz o Governo de então, em que figuravam, entre outros, Aguiar e Agostinho José Freire:

A existencia da Casa do Infantado é incompativel com as circunstancias do reino, "nem os muitos bens de que ella se compõe" são necessarios para se fazerem allianças de familia, porquanto, dado este caso, pertence ás Côrtes estabelecer as dotações que se julgarem proprias: de modo que a dignidade da Familia Real, tão identificada com a dignidade da nação, seja mantida em todas as transacções de semelhante natureza.

Sabe-se que foi constituida pelas propriedades confiscadas ao Duque de Caminha e Marquez de Villa Real; que lhe foi adjudicada a cidade de Beja e de Pinhel; que fôra acrescentada com os bens do Priorado do Grato e com os do Padroado da Coroa no districto de Villa Real.

Pode por estes elementos avaliar-se quanto se na importante o valor d'aquella casa.

Pois o rendimento d'essa grande massa de propriedades ficou tambem nas mãos de D. João VI.

Para D. Maria II é que foi fixado simplesmente, como dotação, 1 conto de réis por dia.

Mas, Sr. Presidente, a breve espaço se reconheceu que não bastava para as necessidades da Casa Real.

V. Exa. sabe muito bem o que se passou com relação ao pagamento dos direitos da alfandega.

O alvará de 25 de abril de 1818 tinha estabelecido que a Casa Real era obrigada a pagar durante vinte annos todos os direitos pelos generos que importava pelas alfandegas do reino.

A lei de 15 de outubro de 1823, abolindo o foral da alfandega, repetiu a mesma disposição, de maneira que a Casa Real ficou obrigada a direitos de importação até 15 de outubro de 1843.

Não os pagou por se encontrar já em difficuldades financeiras.

A portaria de 1839, permittindo o pagamento por encontro das dividas da alfandega, é o primeiro auxilio concedido á Rainha.

Elle está bem expresso no despacho do Ministro Franzini, proferido em 10 de julho de 1851:

Nas folhas que se processarem pela parte da dotação em divida ás pessoas reaes até 30 de junho de 1848 se encontrará a importancia dos direitos não pagos dos objectos despachados para Suas Majestades durante o mesmo periodo e que ainda não foram encontrados.

Durante o reinado de D. Maria II as difficuldades, como se vê, começaram a desenhar-se.

Veio depois o reinado de D. Pedro V e toda a gente reconhece o estado financeiro da Casa Real nessa epoca.

Em 1855 a lista civil é aumentada indirectamente, nem outra cousa é a lei de 16 de julho de 1855.

A divisão dos bons em duas classes, permittindo se que a Casa Real pudesse arrendar uma grande parte d'elles, é um acrescimo á dotação do Rei.

Mas isso não bastou.

Foi necessario que se fizessem as duas operações sobre a venda dos diamantes da Coroa.

Uma autorizada pela lei de 27 de maio de 1859, e outra pela de 30 de junho de 1860.

Venderam-se diamantes para comprar 1:000 contos de réis de inscrições.

Pela primeira operação venderam-se 14:490 quilates na importancia de réis 231:840$000.

Pela segunda venderam-se 26:624 quilates na importancia de 348:146$600 réis, perfazendo na totalidade réis 679:936$600.

É curiosa a historia d'estas duas operações, mas não entro agora nos seus pormenores, embora tenha deante de mim todos os documentos que a ella se referem.

O recurso aos diamantes continuou no reinado de El-Rei D. Luiz.

Em 1863, por carta de lei de 28 de maio, venderam-se mais diamantes em bruto e lapidados até 500 contos de réis, e em 1876, por carta de lei de 16 de abril, até outros 500 contos de réis, Nos archivos do Banco de Portugal existem todos os elementos necessarios para se conhecerem minuciosamente estas operações, que teem hoje um valor unicamente historico.

A operação de 1876 foi infeliz.

As avaliações foram feitas em Portugal e em Londres.

Os que se venderam em Portugal excederam o preço da avaliação, mas em Londres a offerta foi insignificante.

Vieram depois para Paris, e ali obtiveram um preço muito inferior.

Com um diamante bruto aconteceu, seguinte curioso caso: entenderam que era conveniente que fosse lapidado.

Foi incumbida a obra a um artista de Amsterdam, que declarou que era melhor para a venda que fosse dividido m pequenas pedras.

Assim se fez, com autorização do Governo.

O que é certo é que, depois de ter soffrido tantas modificações, foi vendido por 800$000 réis!

Isto tambem está documentado, e por isso é que digo que a historia d'estas quatro operações é, realmente, interessante, não a descrevendo minuciosamente á Camara para não alongar em demasia a minha exposição.

Sr. Presidente: apesar das difficuldades com que viveu a Casa Real durante os reinados anteriores, devemos nós aumentar a lista civil?

Eu estou convencido que a lista civil chega e chegará nos seguintes termos:

O Estado não dá a Sua Majestade El-Rei nada mais do que o estipulado na sua dotação, isto é, será observado o que determina o projecto quando preceitua que a lista civil não será aumentada por qualquer modo, mas reciprocamente Sua Majestade abster-se-ha de fazer cedencias d'aquillo que lhe pertence, em favor do Thesouro. Se V. Exa. sommar todas as verbas que representam as cedencias feitas desde o principio do reinado de D. Ma-

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ria II até hoje, que chegam a 4:000 contos de réis aproximadamente, verá que todos os auxilios que a Coroa tem recebido do Estado, em venda de diamantes e depois em venda das inscrições que os representavam, juntando as quantias por qualquer modo adeantadas, não chegam a completar as importancias das cedencias feitas ao Thesouro.

Se não fosse a generosidade dos Monarchas, a Casa Real não teria deficit e nenhuma necessidade tinha havido de lhe fazer adeantamentos. (Apoiados}.

É necessario que estabeleçamos para o futuro a verdadeira doutrina; que o Rei não receba favores pecuniarios da nação e que a nação não receba doações pecuniarias do Rei.

As cedencias são actos, verdadeiramente illegaes, já porque importam reducções, embora voluntarias na lista civil, já porque o Governo assim como não tem poderes para dar, tambem não tem poderes para receber.

Não pode o Governo fazer donativos ao Rei sem voto do Parlamento; mas tambem não pode acceitá los sem consentimento das Côrtes.

Sejamos claros. Nós estamos falando para a Camara e para o país inteiro, e devemos dizer-lhe toda a verdade.

Pois uma nação que recebe favores tem autoridade moral para exigir da parte de quem lh'os presta o pagamento de um debito?

Não tem. Se esse negocio se trata real a real, como se tem discutido a questão da lista civil e dos adeantamentos, como se fosse um mesquinho negocio financeiro, então é mester reconhecer que o credor não pode acceitar beneficios do devedor, e, quando os acceite, como no caso presente, perde a autoridade moral para exigir do devedor aquillo que este lhe deve. Esta é, a meu ver, a boa doutrina.

Poderá Sua Majestade satisfazer as dividas de seu Augusto Pae, como é seu nobilissimo desejo, sem ficar em circunstancias de recorrer no futuro a abonos extraordinarios de quaesquer quantias?

Creio que sim.

Eu disse, é certo, que não temos o direito de exigir o pagamento, mas isto não quer dizer que nos opponhamos ao cumprimento de um dever moral, tão sagrado como é aquelle que determina o procedimento de Sua Majestade. Ora, suppondo que os adeanta mentos montam, na sua liquidação final, a cerca de 400 contos de réis, a Casa Real, pagando 20 contos de réis em vinte annos satisfaz totalmente o seu debito.

Fica essa casa em condições de amortizar em parcelas o debito que se liquidar afinal? Fica, segundo penso, pelo rendimento dos predios. A Casa Real recebia até agora, annualmente, do rendimento dos predios a seguinte importancia, segundo as avaliações de 10 e 11 de agosto de 1890:

1) Palacio da Bemposta e suas dependencias:
Parte occupada
Pela Escola do Exercito..... 8:170$000

Pelo Instituto

Agricola.... 2:476$000 10:646$000

2) Construcções denominadas - Reaes Cavallariças - usufruidas pelo Ministerios da Guerra e da Fazenda..... 6:226$500

3) Antigas cavallariças do Real Palacio de Belem, na Calçada da Ajuda, onde se encontra aquartelado o regimento de cavallaria n.° 4, bem como o Pateo da Nora e o Pateo das Zebras..... 3:586$000

4) Parte do Palacio de Mafra, oCcupado pela Escola Pratica de Infantaria e suas dependencias .............. 6:771$650

5) Campo chamado das Salesias ou Terras do Desembargador......... 423$850

Total....... 27:654$000

Acrescentando a renda do Palacio de Queluz que, sobre a base da avaliação, é de 1:25O$000 réis, perfaz tudo 28:904$000 réis.

Qual é a situação futura?

É esta:

Palacio da Bemposta......... 10:646$000

Parte do Palacio de Mafra occcupado pela Escola Pratica de Infantaria.............. 6:771$65O

Campo das Salesias ou Terras do Desembargador........ 423$000

Somma......... 17:840$650

Isto é sem o rendimento do Pateo da Nora e Pateo das Zebras, onde está installado o corpo de cavallaria 4, pois não sei se esses terrenos são, ou não, pertenças do Palacio de Belem, porque então a renda dos predios excede 22 contos de réis.

Quero dizer que com os bens restantes que lhe ficam em usufruto e que pode arrendar, não lhe será extremamente difficil amortizar a divida sem onerar por qualquer forma a lista civil.

Mas, quando a Casa Real não possa satisfazer pela verba dos arrendamentos as dividas que Sua Majestade deseja pagar, pode muito bem satisfazê-las pela lista civil, desde que não faça doações extraordinarias, nem deduções de qualquer especie.

Eu hei de demonstrar á Camara, quando analysar a questão das rendas, como foram somente os actos de generosidade de El-Rei D. Carlos, que tornaram embaraçosa a situação da Casa Real.

Tem-se dito aqui que a Casa Real deve modificar as suas despesas, que deve fazer alterações no seu orçamento, que deve gastar só o que é indispensavel, creio até que a Casa Real tem feito isto, mas deixando inteira liberdade á Casa Real para ella se administrar como quiser; eu entendo que a verba de 1 conto de réis é sufficiente, e que nesta occasião o Parlamento não poderia votar, ainda que muitos o desejassem, uma verba superior; e assim fica inteiramente justificada essa quantia, tanto quanto o pode ser, visto não termos elementos mais rigorosos para o exame do assunto.

Passo agora a tratar da questão das rendas.

Qual foi a origem do pedido das rendas?

A Casa Real em 1894 determinou, como é sabido, pedir a renda dos predios ao Estado. E porque e que a Casa Real fez esse pedido? Qual foi a sua causa determinante?

Eu vou dizê-lo á Camara. Em dezembro de 1891 abriu-se a subscrição nacional para a compra de navios de guerra, e Sua Majestade El-Rei D. Carlos subscreveu com a quantia de 40 contos de réis.

Em 1892 publicou-se a lei de salvação publica; alargou-se e aumentou-se o imposto de rendimento, e como essa lei não podia abranger a dotação de Sua Majestade, porque, depois de fixada no começo de cada reinado, não pode ser alterada, Sua Majestade espontaneamente declarou que cedia a favor do Estado 20 por cento da sua dotação, ou 73 contos de réis por anno. Foi assim que El-Rei D. Carlos começou a sua administração particular. Primeiro com um donativo de 40 contos de réis, que abriu nesse anno um deficit na administração da sua casa, e que foi logo em seguida aggravado pela doação de 73 contos de réis feita annualmente por Sua Majestade.

Portanto, a lista civil ficou reduzida no primeiro anno a 325 contos de réis, no anno seguinte a 292 contos do réis. Os dois actos de pura generosidade praticados por Sua Majestade produziram uma reducção na lista civil, e consequentemente um deficit na administração da Casa Real.

Esta é que foi a origem.

A Casa Real encontrando esse deficit logo em 1892, que fez? Foi pedir ao Estado que lhe supprisse esse deficit ou que lhe fizesse qualquer adeantamento? Não, Sr. Presidente. El-Rei dirigiu-se ao Banco de Portugal, por via do administrador de sua casa, propondo o contrahir naquelle estabelecimento um emprestimo da quantia de 80 contos de réis, e expondo que esses 80 contos de réis lhe eram necessarios, porque em consequencia dos 73 contos de réis que Sua Majestade dava ao Estado, em vir-

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16 ANNAES DA CAMARA DOS DIGNOS PARES DO REINO

tude da reducção dos seus vencimentos, ficava naquelle anno a Casa Real com um deficit de igual importancia.

O Banco de Portugal declarou que não tinha duvida em celebrar o contrato, mas que a sua direcção, como administradora de bens alheios, não o podia fazer sem a competente garantia.

A Casa Real expôs que El-Rei não tinha valores alguns para caucionar o emprestimo, com a excepção unica de uma apolice de seguro de vida, e o Banco reconhecendo que a apolice era garantia sufficiente para o emprestimo, acceitou esse valor como garantia, e assim se celebrou o primeiro contrato de emprestimo com o Banco de Portugal.

Chegou o anno de 1894, e El-Rei D. Carlos que não queria recorrer ao expediente de pedir as rendas, intentou levantar novo emprestimo, aggravando assim a situação da sua casa, mas como não tinha penhor nem caução para novo emprestimo, não o póde obter. Já se vê, pois, mais uma voz o digo, que Sua Majestade foi forçado pela sua generosidade, que o collocou em circunstancias de ter um deficit annual na administração de sua casa, a recorrer a supprimento, cujos juros e amortizações lhe aggravaram ainda as difficuldades da sua situação financeira.

Foi só em 1894, depois de esgotados todos os recursos, que El-Rei D. Carlos recorreu ao Estado, reclamando o pagamento das rendas.

Em 9 de maio de 1894 dirigiu-se o administrador da Casa Real ao Governo nos seguintes termos:

Continuando a administração a meu cargo a lutar com serias difficuldades financeiras, ordena-me Sua Majestade El-Rei que leve ao conhecimento de V. Exa. este facto bem como a forçada consequencia que d'elle se deriva, que obriga esta administração a solicitar do Governo que lhe peja arbitrada uma renda annual por todos os palacios e suas dependencias actualmente em usufruto do Estado.

Aqui tem V. Exa. comprovado que foi em 9 de maio de 1894 que se fez o primeiro pedido das rendas; fui quando a Casa Real não póde obter por outro meio os supprimentos, por não ter garantias a offerecer. Então, e só então, é que a Casa Real, "como consequencia forçada" nas palavras do administrador Pedro Victor, se decidiu a reclamar o pagamento das rendas.

Em 1 de setembro de 1894 dizia ainda o administrador da Casa Real:

Em officio d'esta administração da Fazenda da Casa Real, com data de 9 de maio do corrente anno, tive a honra de expor a V. Exa. as condições verdadeiramente difficeis e até embaraçosas em que de dia para dia se encontrava esta administração a meu cargo, especialmente depois que as dotações das pessoas reaes estão sujeitas, por expressa determinação de Sua Majestade, á deducção de 20 por cento.

Aqui accentuava já claramente o administrador da Casa Real qual era o motivo porque pedia e exigia as rendas: era porque a reducção que se fazia na lista civil de Sua Majestade, collocava em serios embaraços a administração d'essa Casa.

Vem ainda em 29 de outubro e diz:

Pede o pagamento dos 428 contos de réis que entendia ser o saldo a favor da Casa Real - nas condições menos onerosas para o Thesouro, podendo se assim for mais conveniente, no todo ou na sua maxima importancia por meio de uma prestação mensal e "por encontro na deducção de 20 por cento a que a dotação de Sua Majestade El-Rei está sujeita".

Fica por consequencia clara e evidentemente demonstrado que o pedido das rendas teve uma origem honesta e respeitavel, e que não foi a ambição da Casa Real, nem a exploração gananciosa dos interesses do Estado, que não foi uma extorsão, emfim e antes um acto regular e digno, que a levou a reclamar as rendas.

Estavam exhaustos todos os meios ordinarios e extraordinarios de acudir ao deficit da lista civil; o qual deficit tinha por causa, não actos perdularios praticados per El Rei, mas nascera, já dos 40 contos de réis com que El-Rei concorrera para a subscrição nacional, já do pagamento annual de 73 contos de réis, resultante da deducção espontanea feita na sua Lista civil...

Sr. Presidente: é preciso fazer justiça a todos. A origem das difficuldades financeiras da Casa Real não envergonha, e antes ennobrece a admiministração d'aquella Casa. (Apoiados).

Tinha a Casa Real direito a obter rendas da parte do Estado?

É manifesto que, se os predios estivessem livres e desembaraçados, nenhuma duvida poderia haver, porque o direito estava consignado na lei de 16 de julho de 1855. Mas o Palacio da Bemposta havia sido cedido gratuitamente por D. Maria II, e alem d'isso havia outras propriedades, cujas rendas a Casa Real reclamava tambem, que tinham sido objecto de cedencias gratuitas.

Ora, Sr. Presidente, neste ponto não quero deixar de dar conhecimento á Camara da lucida exposição feita pela administração da, Casa Real, acêrca do Palacio da Bemposta. Dizia ella em 29 de outubro de 1894:

Em 9 de dezembro de 1850, Sua Majestade a Rainha a Senhora D. Maria II, de saudosa memoria, cedeu o Palacio da Bemposta e suas dependencias ao Estado, para ali se estabelecer a Escolado Exercito, sendo posteriormente modificadas "s disposições do decreto d'aquella data com a publicação de um outro decreto, de 2 de julho de 1853, pelo qual se destinou uma parte d'aquella real propriedade para nella se installar um Instituto Agricola. Em ambos os decretos se preceitua, claramente, que essas cedencias são feitas sem que, por forma alguma, se possa considerar o dito palacio e suas dependencias como separado do dominio da Coroa e encorporado nos Proprios Nacionaes, pois que é um d'aquelles predios que em virtude do artigo 2.° do decreto de 20 de março de 1884, fora equiparado áquelles de que trata o artigo 80.° da Carta Constitucional e que ficaram reservados para o usufruto da Rainha, e de seus herdeiros ou successores.

Pelos decretos acima mencionados vê-se que a cedencia de Sua Majestade a Rainha a Senhora D. Maria II foi feita sem designação expressa de qualquer encargo para o Estado e portanto até a epoca do seu fallecimento, em 16 de novembro de 1853, deve considerar se que nada a devido á Casa Real pelo usufruto pelo Estado d'aquella propriedade, desde a epoca da concessão até a data referida.

Sobre as chamadas reaes cavallariças dizia:

Em 14 de dezembro de 1885 foram cedidas, temporariamente, por Sua Majestade El-Rei o Senhor D. Luiz I, de saudosa memoria, todas as construcções denominadas - Reaes Cavallariças - que são hoje usufruidas pelos Ministerios da Guerra e da Fazenda e, nos mesmos termos que a anterior, esta cedencia tem de se considerar gratuita até a data do fallecimento do mesmo Augusto Senhor.

Sobre as cavallariças de Belem:

Em 1856, Sua Majestade El-Rei o Senhor D. Pedro V, e, mais tarde, em 8 de fevereiro de 1877, Sua Majestade El-Rei o Senhor D. Luis I, de saudosas memorias, cederam temporariamente ao Estado as antigas cavallariças do Real Palacio de Belem, na Calçada da Ajuda, aonde se encontra hoje aquartelado o regimento de cavallaria n.° 4, bem como os Pateos da Nora e das Zebras. Esta cedencia, como a anterior, deve considerar-se gratuita até outubro de 1889, epoca do fallecimento de El-Rei o Senhor D. Luiz I.

E finalmente sobre Mafra e Campo das Salesias:

Em agosto de 1877 foi cedido temporariamente, para usufruto do Ministerio da Guerra, uma parte do Palacio de Mafra, e pela mesma razão exposta nas reclamações anteriores venho solicitar que sejam abonadas á fazenda da Casa Real as rendas atrasadas dos nove semestres vencidos, a contar da epoca do fallecimento de Sua Majestade El-Rei o Senhor D. Luis I.

Em relação ao Campo chamado das Salesias, e pelos motivos já allegados, venho reclamar o embolso dos oito semestres das rendas vencidas desde a epoca do fallecimento de Sua Majestade El Rei o Senhor D. Luiz I até o primeiro de 1894, inclusive.

Havia, em primeiro logar, uma questão de direito a decidir. Aquellas cedencias gratuitas terminavam realmente no fim do reinado do Monarcha que as havia feito, ou obrigavam a pessoa do seu successor? Era exacta a doutrina exposta no officio da Casa Real que acabo de ler?

Foi o primeiro ponto que resolveu a commissão nomeada em 1879 e perante a qual corriam as reclamações:

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Eis a sua resolução:

A importancia das rendas que se referem ás cinco verbas precedentes está bem fixa la, vistas as formalidades das respectivas avaliações, entendendo a commissão que é incontestavel o direito de Sua Majestade El-Rei o Senhor D. Carlos ás que respeitam ao periodo do seu reinado". Considerando, alem d'isso, que "da não intervenção dos Monarchas successores da Senhora D. Maria II, não pode inferir-se que devessem acceitar a cedencia feita pela mesma Augusta Senhora", porquanto as propriedades de que se trata passaram para elles sem encargo "como passavam os antigos morgados para os immediatos successores, sem embargo de quaesquer transacções, feitas sobre estes morgados"; - que tratando o Thesouro de liquidar creditos seus, anteriores a 1856, não deve, "em boa justiça", oppor-se á liquidação dos que são apresentados pela Casa Real - parece á commissão que "fica sufficientemente justificado o direito ás verbas reclamadas sem que se possa allegar prescrição a favor da Fazenda".

A commissão argumentava com o exemplo dos bens dos morgados que passavam para o successor livres de qualquer encargo, mas comquanto esta razão pudesse justificar a sua decisão, o que é certo é que a lei de 1863, que aboliu os vinculos, não classificou como morgado os bens da Coroa, mas apenas como apanagio do Principe Real os bens da Casa de Bragança.

Ha argumento melhor.

É o que provem do disposto no artigo 3.° da lei de 16 de julho de 1855.

Esse artigo 3.° diz que: os arrendamentos feitos pelo Monarcha deverão ser mantidos pelo seu successor, até a expiração do prazo convencionado, mas
acrescenta: não havendo offensa dos seus direitos em alguma das outras clausulas.

A cedencia gratuita, feita pelos antecessores, offendia o direito que o successor tinha de arrendar os predios e, portanto, elle podia legalmente rescindir os contratos.

A lesão consistia em o successor deixar de receber as rendas, e d'este modo a clausula da cedencia gratuita, somente poderia ser mantida se elle consentisse na sua execução.

Da sua unica vontade dependia a continuação da cedencia gratuita e não da vontade anterior dos Monarchas cujo reinado havia terminado.

O Sr. Presidente: - Está a dar a hora.

O Orador: - Peço desculpa á Camara pelo tempo que lhe tomei na sessão de hoje, e como ainda não completei a minha oração, peço a V. Exa. a bondade de me reservar a palavra para amanhã. (Vozes: - Muito bem).

(O orador foi muito cumprimentado}.

O Sr. Presidente: - A commissão que tem de representar a Camara dos Dignos Pares na celebração da batalha do Vimeiro é composta dos seguintes Dignos Pares:

Pimentel Pinto.
Conde de Bomfim.
Marquez de Alvito.
F. J. Machado.
Visconde de Balsemão.

A seguinte sessão será amanhã, 10, e a ordem do dia a continuação da que vinha para hoje.

Está levantada a sessão.

Eram 5 horas e 2õ minutos da tarde.

Dignos Pares presentes na sessão de 19 de agosto de 1908

Exmos. Srs.: Antonio de Azevedo Castello Branco; Eduardo de Serpa Pimentel; Patriarcha de Lisboa; Marquezes: de Avila e de Bolama, de Penafiel, de Pombal, de Sousa Holstein; Condes: das Alcaçovas, de Arnoso, do Bomfim, de Castello de Paiva, de Castro, de Figueiró, de Mártens Ferrão, de Monsaraz, de Sabugosa, de Villar Seco; Viscondes: de Athouguia de Balsemão; Moraes Carvalho, Alexandre Cabral, Pereira de Miranda, Sousa Costa Lobo, Teixeira de Sousa, Campos Henriques, Eduardo Villaça, Bernardo de Aguilar, Fernando Larcher, Mattozo Santos, Veiga Beirão, Dias Costa, Ferreira do Amaral, Francisco José Machado, Francisco José de Medeiros, Francisco Maria da Cunha, Simões Margiochi, Ressano Garcia, Gama Barros, D. João de Alarcão, João Arroyo, Joaquim Telles de Vasconcellos, José de Alpoim, Silveira Vianna, Julio de Vilhena, Luciano Monteiro, Pimentel Pinto, Bandeira Coelho, Affonso de Espregueira, Pedro de Araujo, Sebastião Telles, Sebastião Dantas Baracho e Wenceslau de Lima.

O Redactor, JOÃO SARAIVA.

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