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europeu, a supremacia da força pela postergação dos principios e pelo abatimento do justo e do direito arvorou-se em lei, e desde esse momento as consequencias foram fataes e inevitaveis. O arredondamento da França aggregando-se Nice e Saboya, a unidade italiana estabelecendo-se á custa dos pequenos estados que destruiu e assimilou n'aquella peninsula; a espoliação da Dinamarca roubando-lho á força de armas os ducados do Schelwigs-Holstein na presença da Europa indifferente, o engrandecimento da Prussia pela batalha de Sadowa e conquista do Hanover e pequenos estados que seguiram a desgraçada politica da Austria, provam de sobejo a triste verdade dos factos e a deploravel realisação dos acontecimentos.
Quando o direito da força substitue a força do direito, quando a idéa do quero porque quero, sustentada pelos novos inventos de destruição e espingardas de agulha, se ergue ufana, desassombrada e altiva, é mister precaver-nos todos, forçoso preparar-nos para que estejamos sempre promptos para acompanhar a Europa n'esse vertiginoso movimento que se apoderou d'ella, mas com a convicção intima que não podemos contar, nem com o auxilio dos estrangeiros, nem com allianças firmadas nos mais antigos tratados, nem com as tradições gloriosas dos nossos feitos, nem com a monarchia de tantos seculos, hoje abatida e humilhada, mas só, e só com os nossos recursos pequenos ou grandes, limitados ou não limitados, e com a nossa prudencia, com a nossa energia, coragem e brio, que por tão largo espaço nos fez temidos, e respeitadas as nossas quinas nas regiões longiquas, porque levaram a fé e o imperio ás terras áridas de Africa e Asia.
Desculpe a camara que eu me servisse do pensamento do nosso primeiro poeta, que tantos serviços prestou á patria, e que tão mal remunerados foram, morrendo na indigencia e no abandono; felizmente, posto que tarde, a geração de hoje fez-lhe justiça, e a estatua que ahi se ergue symbolisa seu genio, os seus talentos e serviços, os quaes elle bem manifestava nos seguintes versos:
Para cantar-vos mente ás musas dada, Para servir-vos braço ás armas feito.
Releve-me a camara esta pequena digressão.
Só com os nossos recursos pois devemos contar, porque se elles não nos salvarem do cataclysmo que está imminente e ameaçador, a nossa autonomia desapparecerá, e esse antigo Portugal, tão famoso de outras eras, desapparecerá da carta da Europa, com os fóros de nação independente, e terá o futuro desditoso da Polonia, ou a realisação desagradavel do jugo de Castella, que esse punhado de valentes, de bravos portuguezes, tão gloriosamente souberam sacudir. Não nos illudamos pois, encaremos a nossa situação tal qual é, e vejamos o que devemos e podemos fazer na presença de uma similhante crise. É tempo de olharmos seria e cuidadosamente para a nossa desfavorecida situação, e recordar-nos que os bons governos foram sempre as melhores trincheiras, os mais fortes baluartes, as mais duras muralhas e inexpugnáveis fortificações de um paiz livre, assim como os maus governos são a sua causa principal de destruição, de ruina, de desordem e miseria.
A historia tanto antiga como moderna nos fornece em cada uma das suas paginas argumentos para fortalecer esta verdadeira afirmativa, mas triste e sombria nas suas cores. Roma e Grecia, opulentas, guerreiras que n'outras eras desdenhavam trophéus, assolavam e davam leis a todo o universo, mais tarde soffreram as consequencias dos seus desatinos, dos seus maus governos, dos seus desvarios e imprudencias; mas modernamente se percorrermos avista pelas occorrencias europeas, ella fixa-se estática e horrorisada, contempla esse lugubre espectaculo, esse lastimoso quadro da desventurada Polonia, que guerreira, altiva e soberba, já dictou leis, já prescreveu ordens, já impoz preceitos, e hoje humilhada, abatida e retalhada, arrasta a custo as pesadas cadeias, os negros grilhões da escravidão. Todos sabem como se realisou a partilha d'aquelle grande reino. A sua má administração, mesmo a indole do seu systema, as dissensões intestinas, as divisões politicas, os odios que resultavam das lutas civis, e a corrupção que provinha das eleições reaes (porque a monarchia era electiva), a anarchia espalhada pelo povo, a reluctancia d'elle em pagar as contribuições, as falsas e erroneas doutrinas espalhadas pelos partidos, e o dinheiro espargido pelas côrtes estrangeiras, são os elementos poderosos da destruição, as causas irresistíveis do aniquilamento d'aquelle bravo povo.
Com o titulo de amigos e alliados as tres grandes potencias, Russia, Austria e Prussia, foram entrando e occupando militarmente as provincias polacas, e por disturbios e desordens motivaram aquella invasão, invasão que se prolongou, e que essas potencias julgaram de direito, a ponto de obrigarem esse infeliz e desditoso rei Estanislau Poniatowski, 36.° rei da Polonia, que não era senão o simulacro da realeza, não só a consentir n'ella, mas a assignar o desmembramento do reino. Catharina II, da Russia, Maria Thereza de Austria, e Frederico II da Prussia, dividiram entre si os despojos d'aquella importante nação, não lhe importando outro direito que a sua vontade e desejo de engrandecimento, e sem outra consideração, a soffredora Polonia foi a partilha das ambições d'aquelles orgulhosos soberanos e victima do seu despotismo. Se ella porém se mostrasse unida, se a sua administração fosse salutar, se as suas leis fossem executadas, e os homens publicos preferissem ao seu bem estar o do paiz, e em logar da desordem, da anarchia e de lutas sanguinolentas, mas esteréis e infructíferas, mostrasse pela sua sensatez e pericia que não carecia de tutores para se dirigir, sem duvida ergueria a fronte livre ainda hoje e desassombrada. Ponhamos pois os olhos nas desgraças dos outros, e poderá ser que da observação dos factos, da experiencia dos acontecimentos, e da luz e brilho da historia possamos trazer lição e exemplo aos nossos espiritos obcecados (apoiados), e assim afastaremos para longe e removeremos os perigos que nos ameaçam, comparando as causas e os elementos que perderam os outros e que nos perderão tambem se não levantarmos a tempo um dique a essa torrente caudal de desgraças e miserias que se nos antolham.
N'um paiz pequeno como o nosso devem estar prestes todos os meios de defeza, e por isso muito bem entendeu o illustre general, o bravo marquez do Sá da Bandeira, ser de absoluta necessidade fortificar Lisboa e Porto para nos resguardar de qualquer insulto de momento, e dar tempo a que o paiz se levante e cumpra o seu dever. Mas será esta a occasião opportuna? Não teremos nós outras necessidades de mais urgencia? Nas actuaes circumstancias poderemos nós ou devemos assim proceder? Eis-aqui pois o modo como se me afigura a questão, e sob este múltiplo aspecto a vou tratar.
Sr. presidente, na outra casa do parlamento disse eu, quando occupava cheio de prazer e satisfação a cadeira que tão briosa e independentemente os meus constituintes me deram, que nas nações pequenas a sua autonomia estava ligada ao seu bom regimen, sensata e prudente administração dos haveres da sociedade, e bem assim que o exercito é toda ella, quando os perigos o reclamam e as circumstancias o exigem. Desenvolverei em relação ao nosso Portugal esta asserção simples, esta doutrina que me parece corrente.
A crise que atravessámos, cujas causas eu não vou nem quero agora esquadrinhar, é assustadora, difficil e demasiadamente grave, mas não para desanimar, é pois essa crise que é necessario energicamente conjurar e combater de frente, organisando as finanças do estado, e estabelecendo-as sobre principios economicos, bases solidas e fortes (apoiados). A primeira difficuldade que temos a vencer (e eis-aqui uma reclamação mais constante e urgente do que as fortificações) é trazer a nossa receita e despeza ao equilibrio que nos dê o desapparecimento do deficit, e com elle vem em seguida o da divida fluctuante: resolvido este escabroso problema, removido este perigo constante, o governo ver-se-ha desaffrontado das difficuldades as mais terriveis, e terá bem merecido do paiz, se não abandonar a causa da civilisação e do progresso, e para ella nos fizer concorrer com o nosso humilde obolo. Este é o primeiro dever, esta, entre todas, é a necessidade mais impreterivel.
Não basta ter fortificações, é mister primeiro ter soldados e armamento. Temos nós armas já segundo o systema moderno? Sabe o nosso exercito trabalhar com ellas? Estão os mancebos válidos de toda a nação aptos e preparados para fazerem uso conveniente dellas? Se a resposta do nobre ministro a estas perguntas fosse affirmativa, eu declararia logo que as fortificações eram urgentissimas, mas com a sua negativa reconheço que ha outras necessidades mais urgentes, o cuja satisfação não se deve demorar. De que nos servirão as fortificações, se não tivermos exercito aguerrido e mancebos experientes e familiarisados com o manejo das armas para as guarnecer? Portanto dou os parabens ao sr. ministro da guerra pelo projecto que hoje foi votado, diminuindo os annos do serviço militar, e reduzindo-o a tres, e augmentando o da reserva. Este é o primeiro passo para ter exercito, pois o exercito entre nós não deve ser senão um meio de instrucção, uma escola permanente, e não cansa-lo com a policia, que, ao mesmo tempo que o fatiga, desmoralisa-o. Eu quereria mesmo, que em logar d'esses tres annos a que foi reduzido o tempo de serviço fosse a dois, como succedeu na Prussia quando Napoleão I lhe impoz a obrigação de não ter em pé de guerra um exercito superior a 30:000 homens. A Prussia pois para illudir e sophismar essa ordem ou imposição humilhante, reduziu immediatamente o serviço militar a dois annos, que lhe dava em resultado, em cinco ou seis, um exercito de cento e tantos mil homens. Não me argumentem que o tempo é pouco para o soldado de artilheria e cavallaria, pois desde que elle passa em seguida á reserva, e a reserva seja instruida, será remediado o inconveniente. N'este ponto divirjo e separo-me completamente do sr. conde de Cavalleiros, pois eu quero as reservas instruidas de fórma que possam n'uma occasião de perigo satisfazer condignamente ao seu fim. E pode-se este intento desejado obter sem muitas despezas nem grandes gravames. Se o governo nos districtos agrupar as freguezias e der a cada um d'esses grupos um instructor, que fará nos domingos e dias santificados exercicio não só com a reserva propriamente dita, mas com todos os mancebos válidos, que lhe forem aggregados por não lhes competir a sorte para o serviço no exercito, e der premios aos instructores que apresentarem os seus contingentes mais peritos, com melhor garbo e com instrucção mais adiantada na revista ou revistas geraes que devem ter logar todos os annos, consignará facilmente um magnifico resultado sem muito incommodo, nem largas despezas. Isto só não basta, é necessario estabelecer por todo o paiz as escolas de tiro para desembaraçar, tornar mais expedito e aperfeiçoar o soldado.
Quem quizer os fins deve empregar os meios, aliás baldados serão, e infructuosos os esforços. Como nação pequena e de poucos recursos, devemos alcançar e obter estas vantagens e estes aperfeiçoamentos sem grandes incommodos, e o mais barato que podermos, e em logar de andarmos a macaquear (permitta-se-me a expressão) as grandes nações, com as quaes não podemos nunca competir, devemos ir procurar aquellas que mais se nos assimilham, e escolher para modelo as que têem analogia e pontos de contacto comnosco. Porque não estudámos nós a organisação da Belgica, da Suissa e da Hollanda? Não são estes pequenos povos bem governados e bem dirigidos? Não é a sua boa administração e a sua economia que os fazem respeitados e credores da estima e admiração dos seus vizinhos? É ahi pois que nós devemos ir beber as salutares doutrinas e santas crenças que os ennobrecem e preservam dos immensos perigos que os rodeiam, se não fosse a sua vigilancia e precaução.
Apesar dos escassos recursos e da sua pequenez, estes estados de um momento para outro apresentam em occasião difficil um grande exercito, e mesmo agora no tempo de paz conserva em armas um não pequeno. E necessario temperarmo-nos com estes edificantes exemplos, e seguir o bom caminho, porque só d'elle poderá vir a nossa felicidade; e lembrar-nos que d'essas nações que se dizem nossas amigas e alliadas, temos já recebido bastantes insultos, repetidas offensas, e continuados desgostos, e que nem nos seus tratados encontraremos asylo quando o interesse dellas votar o nosso desmembramento.
O nosso mal todo só nos pôde vir da ambição de engrandecimento da Hespanha, ou de vistas interesseiras da França e Inglaterra, que conduzem as tres potencias á divisão do paiz e seus despojos. A historia dos factos consummados, dos ataques amiudados, e do pouco respeito á nossa bandeira, como ainda não ha muito se viu, deve-nos fazer ter este receio, que não teriamos, se a politica d'estas nações não fosse guiada pelos principios de Bentham, da utilidade e do interesse. Portanto a nossa conveniencia toda é manter com estes paizes relações sempre de amisade sincera, evitando sempre todos os motivos de complicação, e mostrar-lhes que pela nossa seriedade de relações, lealdade no cumprimento dos pactos, e sinceridade de sympathias, nos tornamos dignos e credores da sua estima, amisade e alliança, mas bem entendido, preparados sempre para reagirmos, escudados com o direito e o justo.
Se assim procedermos, seremos senão temidos, pelo menos respeitados, como já o fomos, e tanto valor e merecimento tinhamos, que essa temida Prussia de hoje veiu estudar a nossa organisação militar, que aperfeiçoou e plantou nos seus estados, e cujos resultados proficuos e vantajosos o attesta bem a ultima campanha, por todos nós conhecida.
Sr. presidente, não devemos descoroçoar nem da nossa situação, nem dos nossos recursos, mas sim prestar auxilio e meios ao governo que queira, possuido de idéas de regeneração e amor patrio, fazer alguma cousa, e emendar esses erros palpáveis que todos conhecem e vêem; é por esta rasão que entendo que mesmo admittindo a fortificação de Lisboa e Porto seja o mais urgente a fazer, que a verba dos 100:000$000 réis é pequenissima, e que a pouco nos levará; e por isso se este projecto podesse voltar ainda á outra casa do parlamento, eu ter-lhe-ía addicionado um artigo, que era o seguinte:
«Fica o governo auctorisado a despender com as fortificações de Lisboa e Porto, e qualquer outra do paiz que se entenda necessaria, e sobretudo com o armamento, alem da verba pedida, todas as economias que fizer no ministerio da guerra.»
Este artigo tinha não só o fim de se poder fazer alguma cousa que valesse, mas o incitar o nobre ministro da guerra, visto o seu empenho o desejo, a fazer economias e reformas n'aquelle ministerio, que tanto precisa e carece dellas. Eu já aqui disse e mostrei n'outra occasião, como de mil e tantos contos de réis que era aquella despeza, subiu a tres mil setecentos e tantos contos de réis. Se pois s. ex.ª economisasse 700:000$000 réis por anno, dentro em pouco não só teria as fortificações desejadas, mas o paiz todo armado. Como pelas rasões mencionadas não pude no projecto inserir este artigo de alta conveniencia, reservo-me para faze-lo quando uma nova auctorisação e despeza for pedida.
Sr. presidente, o governo deve ter um pensamento, e dirigir as suas vistas e intuitos para um fito determinado, e segundo certo plano e systema combinado. Por isso o projecto de lei que ha poucos instantes passou ácerca da reducção do serviço militar, devia vir acompanhado de outra proposta sobre a lei de recrutamento simplificando-a, corrigindo a e aperfeiçoando-a. Na Prussia não se admittem isenções excepto para aquelles que as pedem, mostrando por um exame que sabem e conhecem todo o exercicio, e se apresentam armados e fardados; a estes permitte-se-lhes que passem para a reserva porque estão promptos n'um momento dado a comparecerem ao chamamento que a patria lhes faça. Na Prussia o espirito militar está tão desenvolvido ou tão arreigado que até os proprios professores de instrucção primaria são obrigados a fazerem um dia por semana exercicio com os seus alumnos, o que muito lhes aproveita porque quando chegam á idade de militar estão desembaraçados e desenvolvidos, e quer no exercito quer na reserva aprendem com facilidade a instrucção que se lhes exige. Se a Prussia não se desconsiderou nem se humilhou por vir estudar entre nós, porque não havemos nós tambem ali estudar hoje que ella está tão adiantada, tão brilhante e tão cheia de vida, e que tanto influe nos destinos da Europa pela posição a que se elevou e pelas conquistas que soube realisar? Porque não havemos nós tambem dirigir as nossas vistas e intuitos para um fito determinado e fixo, porque não havemos de ter um plano meditado e estudado, e considerar a defeza da patria como o nosso primeiro, mais santo e sagrado dever.
N'um paiz como o nosso, em que a natureza e a Providencia nos collocou baluartes, por toda a parte e nos semeou fortificações a cada passo, em que as sinuosidades e asperezas do terreno e das montanhas, e a diversidade e numero de rios e ribeiros caudalosos nos dão linhas continuadas de defeza; emfim n'um paiz em que a bravura dos seus habitantes é proverbial, as suas tradições gloriosas até seculares, em que os instinctos de nacionalidade são manifestos, e a força moral pelas victorias de outros tempos sempre vizivel e patente, com estes valiosos elementos e apreciaveis condições, porque não nos havemos de tornar ainda respeitados como já fomos, e tirarmo-nos d'estes sustos que nos sobressaltam todos os dias e a todas as horas.